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REENVIO PREJUDICIAL   |
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DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Maria do Rosário Anjos e Luís Sequeira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A… – S.A., NIPC …, com sede na Avenida …, … Lisboa (“Requerente”), na sequência do indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa tramitado sob o n.º …, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo n.º …, de 27.01.2022, no montante de € 2.093.400,00.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 02.02.2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 19.04.2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 10.05.2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
5. Em 14.06.2023, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e concluído pela improcedência do pedido arbitral formulado pela Requerente.
II. POSIÇÃO DAS PARTES
§1 – Requerente
6. A Requerente fundamentou o seu pedido, em síntese, com base nos seguintes argumentos:
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“A Diretiva [2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008, relativa aos impostos indiretos sobre as reuniões de capitais] tem por objeto definir parâmetros para a aplicação pelos Estados-Membros da UE de impostos indiretos – incluindo o IS – sobre (i) entradas de capital em sociedades de capitais, (ii) operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais e (iii) emissão de determinados títulos e obrigações”;
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“a Diretiva estabele[ce] na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º que “[o]s Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto (…) [o]s empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis”;
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A “proibição da incidência de impostos indiretos (…) abrange as garantias constituídas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações”;
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“é entendimento do TJUE que a proibição de incidência de impostos indiretos sobre as operações de reunião de capitais não se cinge às realidades potencialmente tributáveis expressamente referidas no texto da Diretiva, mas também aos atos, operações ou situações passíveis de tributação que devam considerar-se parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, mesmo que estas não estejam expressamente previstas nesta proibição”;
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“no Acórdão Air Berlin, proferido no processo C-573/16, em 19.10.2017, o TJUE” entendeu que “não é uma condição sine qua non que uma operação exista como uma obrigação legal para que a mesma seja vista como um elemento constitutivo de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”;
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“Esta asserção (…) demonstra que o carácter não legalmente imperativo das garantias das obrigações não é um requisito imprescindível da abstenção de imposto prevista no normativo em referência”;
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“aquilo que verdadeiramente importa para uma realidade estar abrangida por esta proibição de tributação (…) é, precisamente, que esta esteja funcionalizada, de um ponto de vista económico, à concretização de uma operação global de reunião de capitais, i.e., que seja uma diligência comercial necessária para a sua concretização, ainda que não seja legalmente obrigatória”;
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“o sentido da proibição da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, é indisputável que as garantias inerentes a um empréstimo obrigacionista – como são as garantias em apreço – se acham abrangidas por esta proibição de tributação, uma vez que o objetivo prosseguido pela Diretiva é o de proibir a tributação das operações de reunião de capitais incluindo a tributação de todos os atos que, conquanto qualificáveis como como acessórios, constituem parte integrante de uma operação global de reunião de capitais”;
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“Este raciocínio é aplicável quer se entenda que a alusão a “formalidades conexas” abranja direitos de garantia inerentes a empréstimos obrigacionistas, quer se entenda que aqueles direitos não se reconduzam àquelas formalidades, por força da sua autonomia material (i.e., porque são constituídos através de um ato autónomo da emissão e subscrição de obrigações), na medida em que para o TJUE a tributação destes atos formalmente autónomos mas funcional e economicamente conexos equivaleria a tributar a totalidade da reunião de capitais, globalmente considerada”;
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“é manifesto que a constituição das garantias sob exame não é um ato que se esgota em si mesmo, no sentido de ser o desígnio último das partes, mas é um mero instrumento, um ato acessório, conquanto fundamental, para o fim último das partes que é a reunião de capitais materializada na emissão de obrigações da A…; ou seja, as partes não se reuniram para constituir garantias, mas sim para fornecer capital à A…, o que suporia sempre a prestação, por parte desta e do Grupo em que se insere, de garantias de reembolso desse capital e juros”;
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“acresce ainda que a norma de delimitação das exceções à regra de proibição tributária consagrada no artigo 5.º da Diretiva demonstra, outrossim, que (i) as garantias mobiliárias inerentes às operações de emissão de obrigações estão diretamente abrangidas pela proibição, (ii) pelo que, não seria sequer necessário qualificá-las como “formalidades conexas” para que se possa extrair da mesma Diretiva essa proibição”;
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“A alínea d) deste artigo [6.º, n.º 1 da Directiva] é clara ao determinar que os Estados-Membros podem optar por derrogar a regra proibitiva do artigo 5.º da Diretiva e tributar “a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas”, o que, atenta a remissão geral para o artigo 5.º, vigora também quando estes são constituídos para garantir empréstimos obrigacionistas”;
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“à luz desta jurisprudência [do TJUE nos Acórdãos FECSA e ACESA, proferidos nos processos apensos C-31/97 e C-32/97, em 27.10.1998] é possível concluir que, por um lado, a referência à “constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas” se reporta também às situações em que estas garantias ou privilégios garantam empréstimos obrigacionistas; e que, por outro lado, estas não se confundem com o empréstimo obrigacionista em si mesmo, para efeitos da aplicação da derrogação da alínea d) do n.º 1.º do artigo 6.º da Diretiva, na medida em que os Estados-Membros podem onerar os privilégios e hipotecas ligadas a esses empréstimos, mas não podem tributar os empréstimos ou, naquele caso, o seu reembolso, apenas porque são garantidos por hipoteca ou privilégio”;
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“Daqui decorre, com efeito, que as garantias inerentes a empréstimos obrigacionistas são, também por esta razão, realidades abrangidas pela alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, dado que, se não fosse esse o caso, não faria qualquer sentido a menção no proémio do artigo 6º - “Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos” – conjugada com a menção a hipotecas e privilégios; se estas, quando associadas a operações de reuniões de capitais, não se considerassem como podendo fazer parte das operações do n.º 5, que sentido faria dizer, no proémio do artigo 6.º, que se está a derrogar o artigo 5.º?”;
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“De resto, se o Tribunal entendesse que as garantias associadas a um empréstimo obrigacionista não estavam ínsitas na dita emissão de obrigações, no sentido de também não poderem sofrer imposições, a primeira coisa que teria feito seria dizê-lo, não importando saber se eram garantias imobiliárias ou mobiliárias, pois os Estados seriam sempre livres de as onerar”;
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“Uma análise às versões alemã e inglesa da Diretiva, confirma que as situações-tipo abarcadas nesta alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, dizem respeito apenas e só a direitos que oneram bens imóveis”;
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“Não obstante, mesmo que se entenda, com apego ao texto legal, que o conceito de “privilégios” constante na Diretiva corresponde ao conceito de “privilégios creditórios” consagrado no nosso ordenamento jurídico, também a essa luz as garantias em análise não serão subsumíveis a essa definição”;
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“as garantias em apreço são penhores financeiros de ações, de saldos de contas bancárias, de créditos acionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia” pelo que “é inequívoco que nenhuma destas realidades corresponde à factispecies que subjaz à alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, inferindo-se daí a aplicabilidade de um regime regra de que os privilégios e hipotecas são a exceção: as garantias inerentes ou associadas a um empréstimo obrigacionista são abrangidas pela proibição de imposições indiretas”;
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“Por conseguinte, dúvidas não poderão restar de que o ato liquidação de IS objeto do presente pedido de pronúncia arbitral viola a proibição, consagrada na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, de sujeitar a tributação indireta os empréstimos obrigacionistas ao aplicar IS sobre as garantias inerentes ao financiamento em relevo, devendo, de imediato, ser anulado, com todas as demais consequências legais.”;
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Subsidiariamente, para o caso de não ser acolhida a interpretação precedente, invocou a Requerente que o acto de liquidação de Imposto do Selo era ilegal por violar a isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS;
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A “alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º [do Código do Imposto do Selo]” é um norma que tem “uma redação de uma extraordinária amplitude: não apenas o legislador não restringiu de nenhuma maneira o tipo de operações (a que as garantias são inerentes) compreendidas no escopo de aplicação desta norma – p. ex., não especificou deverem tratar-se de operações de subscrição (ângulo do subscritor), emissão (ângulo do emitente) ou alienação ou aquisição derivada de valores mobiliários, direitos equiparados ou contratos” “como, para definir o objeto possível dessas operações, recorreu a formulações muitíssimo abrangentes – dir-se-á até, exprimiu-se da forma mais abrangente que lhe era possível –, incluindo assim no âmbito de aplicação da isenção aquelas operações que têm valores mobiliários por objeto direto ou indireto, e não só: também contratos de futuros, contratos de taxas de juros, contratos de divisas, contratos de índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas”;
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O que o “legislador pretende (…) é consagrar uma isenção de IS que incentive o funcionamento do mercado de capitais, sem criar desigualdades entre os supostos “novos instrumentos financeiros” (…) e aqueles ditos «tradicionais», não gerando qualquer discriminação”;
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“Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, exige-se que as garantias dispensadas de tributação sejam inerentes a operações realizadas sobre valores mobiliários e demais instrumentos referidos na norma citada”;
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“Não se pode, desde logo, afirmar que as garantias só poderão ser qualificadas como inerentes se forem legalmente obrigatórias; só uma análise parcial da lei, desligada da realidade dos mercados de valores mobiliários e em contradição com a jurisprudência do TJUE sobre a noção de “operação global do ponto de vista de reunião de capitais” pode insistir nessa exigência”;
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“Se essa tivesse sido a intenção do legislador, teria sido extraordinariamente simples consagrá-la na lei; bastaria que, em vez de se referir a garantias inerentes às operações mencionadas, o legislador aludisse a garantias legalmente exigidas para realizar as operações mencionadas”;
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“o que é inerente (inseparável, indissociável) a uma operação não é necessariamente obrigatório para que a mesma se execute, sobretudo se se entender esta obrigatoriedade como significando uma exigência legal”;
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“O critério da inerência não pode ser aferido à luz da lei, mas no plano dos factos; o que há a apurar é se, no domínio dos factos (da substância, da realidade económica), a garantia estava ou não intrinsecamente ligada à operação realizada; se a complementava, se se integrava na operação realizada, de um modo tal que não pudesse considerar-se um ato desligado, desconexo”;
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“se uma garantia é exigida, ou até mesmo indispensável – como são o caso das garantias em discussão nesta contenda, na medida da predisposição dos intervenientes da operação realizada de as exigir como condição necessária do empréstimo - então esta tem de ser qualificada como inerente à operação conexa”;
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“Note-se que, no passado, já houve realmente contados exemplos de operações sobre valores mobiliários que, para serem executadas, exigiam legalmente a prestação de garantias pela parte interessada” “Todavia, hoje em dia, já não se conhece qualquer situação de exigência legal imperativa de garantias, tendo tal exigência sido substituída por um princípio geral de cautela, imposto às entidades intervenientes no mercado, que deixa a seu cargo exigir das suas contrapartes as garantias tidas por adequadas para a realização de determinada operação – o que significa que as referidas garantias não são, portanto, legalmente obrigatórias, mas apenas contratualmente exigidas (tais como as garantias em relevo) e, ainda assim, inerentes às operações realizadas”;
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Esta interpretação “é a única compaginável com a jurisprudência já citada do TJUE (nomeadamente, refletida no Acórdão Air Berlin) sobre a proibição de tributação do artigo 5.º da Diretiva, segundo a qual: “(…) não é necessário que exista uma obrigação legal quando se trata de determinar se uma operação é um fim em si mesma ou deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”;
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“mesmo que por hipótese de raciocínio se pudesse sustentar que a Diretiva das reuniões de capitais não se aplicava diretamente, que o texto e a finalidade da Diretiva têm, obrigatoriamente, de ser um parâmetro de interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, por força do princípio da interpretação conforme”;
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“Sendo assim, é notório que, se Portugal não cumpriu o dever de transposição da Diretiva, a alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS deverá, então, ser interpretada de modo que o seu conteúdo normativo seja conforme à Diretiva e esteja de acordo com a finalidade ampla prosseguida por esta de proibir a tributação indireta sobre as operações de reunião de capitais”.
§2 – Requerida
7. A Requerida, fundamentou a sua resposta, em síntese, com base nos seguintes argumentos:
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“entende a Requerente que a garantia aqui em causa se encontra abrangida pela alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS que, na redação dada pela Lei n.º 107-B/2003, de 31 de dezembro”;
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“esta questão foi já suscitada em processos arbitrais anteriores (processos n.º 97/2016-T, n.º 2/2020-T e n.º 80/2021-T) e que, em todos eles, a resposta coincidiu no sentido de que a isenção prevista alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS se aplica a garantias inerentes apenas às operações sobre instrumentos financeiros derivados e não sobre valores mobiliários em geral e, mais ainda, que a qualidade de “garantia inerente” não se verifica em garantias prestadas facultativamente”;
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“as decisões arbitrais que a Requerente invoca como suportando a sua pretensão – v.g. as decisões proferidas nos processos n.º 69/2014-T, de 30-11-2014 e n.º 532/2016-T, de 17-03-2017 – não tratam de situações equiparáveis ao caso em apreço”;
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“Já relativamente à interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo” a Requerida segue o entendimento do Tribunal Arbitral no processo n.º 97/2016;
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“Mais se refira que quando se utiliza o vocábulo inerente na redação da norma aqui em causa este necessariamente significa obrigatório, algo que resulte de uma exigência legal ou regulamentar traduzida numa condição essencial sem a qual uma operação como a que aqui se aprecia nunca se pudesse concretizar”;
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“do enquadramento factual que originou a liquidação resulta claro que estamos a falar de uma garantia facultativa apresentada pelo emissor, para cobertura do risco associado ao empréstimo obrigacionista efetuado”;
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“Tratam-se, portanto, de garantias de salvaguarda, extrínsecas às exigências dos mercados visados pela isenção, constituídas no interesse da Requerente a favor do seu credor contra o compromisso de estes subscreverem as obrigações emitidas, unicamente com o intuito de mitigar e acautelar o risco de perda do seu investimento”;
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“Apesar no Código dos Valores Mobiliários (CVM) qualificar diretamente as obrigações como valores mobiliários [alínea b) do artigo 2.º do CVM], neste caso valores mobiliários representativos de dívida na medida que visam a obtenção de financiamento -, parece-nos que, à semelhança do que é afirmado pelo tribunal arbitral na decisão proferida no processo n.º 97/2016-T, nunca foi intenção do legislador abranger pela isenção obrigações e muito menos garantias que tivessem no seu cerne um acordo firmado entre um emissor e os seus credores obrigacionistas”;
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“apesar das referências ao regime das operações a prazo genericamente previsto nos artigos 252.º a 265.º da versão originária do CVM terem sido, como já se mencionou, suprimidas pelo Decreto-Lei n.º 357.º-A/2007 -, convém relembrar que o artigo 260.º, na redação em vigor até à alteração levada a cabo pelo citado diploma, exigia expressamente a constituição obrigatória de garantias a favor da contraparte para a realização deste tipo de operações e que a dicotomia operações a contado ou à vista e operações a prazo continua bem presente no mercado de valores mobiliários”;
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“apesar da supressão do mencionado preceito, a possibilidade de constituição obrigatória de garantias para operações que envolvam instrumentos financeiros ainda se mantém, conforme se prevê na alínea c) do n.º 1 do artigo 273.º do CVM”;
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“No caso específico dos instrumentos financeiros derivados (antigas operações a prazo), em particular aqueles que são transacionados fora de mercado, ou seja, no mercado de balcão ou através das plataformas de negociação eletrónica de instituições financeiras (comumente designados de contratos de derivados OTC)” “a obrigação de constituição de garantias resulta da aplicação do Regulamento (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012”;
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“a única interpretação admissível da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS é que a mesma só se aplica a garantias inerentes a operações realizadas sobre valores mobiliários que resultem de obrigações legais ou regulamentares, pois sem elas o negócio não se pode concretizar, ou chegando-se, contra a lei, a concretizar, os agentes que violem aquela exigência sujeitam-se a pesadas sanções”;
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“Dos autos não decorre, nem se intui, que as garantias aqui em causa resultem de uma qualquer imposição legal ou regulamentar”;
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“Nem tão pouco a Requerente faz prova que a sua não prestação implicava a aplicação de uma sanção a título de contraordenação”;
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“Decorrem de um acordo entre as partes no qual, à semelhança do que acontece na generalidade dos financiamentos (v.g., empréstimo bancário), foi constituída uma garantia com o único intuito de minimizar o risco associado ao financiamento obrigacionista obtido junto dos Bancos subscritores em causa”;
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“Não preenchendo, por isso, um dos pressupostos cumulativos (da inerência) que lhe permitiriam beneficiar da aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS”;
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“no acórdão Air Berlin estava em causa a utilização de serviço de compensação na venda de ações em bolsa e no acórdão IM Gestão de Ativos estava em causa a tributação de encargos com serviços de comercialização na subscrição de participações de fundos”;
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“Já no caso sub judice, está em causa tributação incidente sobre garantias prestadas no âmbito da subscrição de obrigações”;
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“não são objetivamente comparáveis à prestação de garantia como colateral na subscrição de obrigações, a utilização de uma câmara de compensação na admissão de ações em bolsa ou de serviços de intermediação na oferta pública de unidade de participação”;
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“o artigo 6.º da Diretiva 2008/7 prevê, expressamente “em derrogação ao disposto no artigo 5.º” que os Estados-Membros podem cobrar tributos que “onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas;”;
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“não faz qualquer sentido a argumentação que a Requerente desenvolve na tentativa de concluir que as garantias contempladas naquele artigo 6.º não poderiam coincidir com garantias prestadas no âmbito da subscrição de ações”;
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“Nem colhe, de resto, a tese que a Requerente de que os termos “privilégios e hipotecas” deixariam de fora garantias como os penhores, utilizadas no caso sub judice”;
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“a versão portuguesa [da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Directiva] faz fé e é plenamente aplicável” sendo coincidente com a versão francesa;
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“mesmo que se admitisse (…) que a obrigação prestada como colateral na subscrição de obrigações estaria abrangida pela alínea b), do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, a sua tributação encontra-se legitimada pelo artigo 6.º da mesma diretiva”;
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“nem se vê de que forma, numa operação com os contornos da que está agora em causa – que embora se apresente como uma emissão de obrigações, equivale materialmente a um mútuo garantido por penhor - a tributação das garantias prestada pudesse surgir como dando «origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais» (considerando 2 do preâmbulo da Diretiva 2008/7/CE), justificando assim que se convoque a proibição imposta pelo artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE”;
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“no caso dos presentes autos, tendo as obrigações sido negociadas diretamente com um banco, suscita-se a dúvida se àquelas será dado o destino normal dos “títulos negociáveis”, que não o de mero sucedâneo para um negócio de mútuo convencional - que, materialmente, foi o que se verificou”;
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“O caso sub judice configura justamente uma situação que ajuda a enquadrar o objetivo do legislador europeu quando, na Diretiva que se propõe proteger a livre circulação de títulos negociáveis, prevê expressamente como derrogação da proibição da tributação da emissão de obrigações e outros títulos negociáveis, os tributos que incidem sobre garantias”;
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“É que é nos casos, como o vertente, em que, contra a subscrição de obrigações, um agente vem exigir prestação de garantias, que não é expectável que tais títulos tenham tido como destino primário a sua a negociação no mercado, mas antes a emissão de obrigação tenha funcionado como a celebração bilateral convencional de um mútuo, o que sempre escaparia ao âmbito de proteção da Diretiva 2008/7/CE”;
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Subsidiariamente referiu ainda a Requerida que “a[s] garantia[s] em causa não se insere[m] no conceito de «formalidades conexas»” porque “resultaram da vontade das partes, não constituindo condição de validade da emissão obrigacionista que visou proteger, nem tão-pouco assumem a natureza de operação acessória tal como desenvolvida no acórdão IM Gestão de Ativos”;
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“a Requerente defende uma interpretação lata para as expressões “emissão de obrigações” e “formalidades conexas” com vista a que nela esteja compreendido todo e qualquer ato ou operação diretamente relacionada com a emissão das obrigações e que se revele indispensável à sua concretização” contudo “quando analisa as garantias ou privilégios que garantam empréstimos obrigacionistas e a aplicação da alínea d) do n.º 1.º do artigo 6.º da Diretiva, defende, ao invés, uma interpretação restritiva, concluindo que estas garantias ou privilégios não devem confundir-se com o empréstimo obrigacionista em si mesmo, na medida em que os Estados-Membros podem onerar os privilégios e hipotecas ligadas a esses empréstimos, mas não podem tributar os empréstimos ou, naquele caso, o seu reembolso, apenas porque são garantidos por hipoteca ou privilégio”;
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“a expressão “formalidades conexas” a que se reporta a alínea b), n.º 2 do art.º 5.º da Diretiva 2008/7/CE, não pode entender-se com o sentido amplo pretendido pela Requerente, mas sim no sentido de abranger apenas as formalidades que fazem parte do procedimento da operação em causa, ou seja, aquelas formalidades previstas na lei como um trâmite, entre outros, característicos do mesmo”;
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“mesmo que a tributação de garantias prestadas no âmbito de operações de reunião de capitais não estivesse expressamente autorizada no artigo 6.º da Diretiva 2008/7/CE, ainda assim soçobraria a argumentação da Requerente quanto à aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva a garantias prestadas como colateral na subscrição de obrigações”.
III. SANEAMENTO
8. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos do artigo 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem excepções ou outras questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
IV. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
9. Analisada a prova até agora produzida, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a apreciação do mérito da causa:
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A Requerente é uma sociedade anónima de direito português inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, com sede na Avenida …, … Lisboa;
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O capital social da Requerente é detido na sua totalidade pela B…S.à r.l., sociedade de responsabilidade limitada registada no Registo de Comércio e de Sociedades do Luxemburgo (R.C.S. Luxembourg) sob o número … e com o número português de entidade equiparada … (“B…”);
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Em 21.07.2021, a B… adquiriu à C…, SGPS, S.A., sociedade anónima de direito português inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula …, com sede na Rua …, … Porto (“C…”), a totalidade do capital social da D…, S.A., sociedade anónima de direito português inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, com sede na Rua …, … Porto (“D…”) e da E…, S.A. sociedade anónima inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva E…, com sede na Rua …, … Porto (“E…”);
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Em 29.07.2021, a B… cedeu à Requerente a sua posição contratual no contrato de compra e venda das acções da D… e da E… referido na alínea anterior;
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Em 27.01.2022, a Requerente celebrou um contrato de financiamento denominado Facilities Agreement, no âmbito do qual emitiu um empréstimo obrigacionista, com a emissão de obrigações nominativas e escriturais, de valor nominal de € 100.000,00 por título, no montante global de emissão de € 348.900.000,00 fraccionado em duas classes de obrigações (classes “A” e “B”) que foram integralmente subscritas pelo BANCO F…, S.A. (“F…”);
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No Facilities Agreement determinou-se que a Requerente, na qualidade de emitente, podia determinar a transmissão da posição contratual de subscritor assumida pelo F…, ainda que mediante penalidades/comissões;
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As obrigações emitidas seriam registadas junto de, e custodiadas pela, G…, na qualidade de Sociedade Gestora de Sistemas de Liquidação e de Sistemas Centralizados de Valores Mobiliários da Comissão dos Valores Mobiliários;
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O Facilities Agreement foi celebrado com o objectivo de financiar o pagamento do preço da compra e venda das acções da D… e da E…, bem como para refinanciamento da dívida existente dessas sociedades;
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Para garantia do cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades constituídas ao abrigo do Facilities Agreement, foram prestadas diversas garantias de natureza real e/ou pessoal pela B…, pela A… e pela D… e E…, através do contrato denominado de Security Agreement (“Contrato de Prestação de Garantias”) celebrado entre estas sociedades, na qualidade de garantes, e o F…, na qualidade de beneficiário e agente das garantias;
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No âmbito do Security Agreement, a B… concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:
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Penhor financeiro de primeiro grau sobre as acções da Requerente, e respectivos direitos inerentes;
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Promessa de penhor financeiro sobre novas acções que venham a ser emitidas pela Requerente e respectivos direitos inerentes;
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Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos presentes (resultantes de prestações acessórias, prestações suplementares, suprimentos, ou quaisquer outras dívidas subordinadas, outras formas de quase capital ou outras formas de financiamento em espécie ou dinheiro (“Créditos Accionistas”)) de que a B… seja titular, enquanto sociedade-mãe, sobre a Requerente;
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Promessa de penhor financeiro sobre futuros Créditos Accionistas que a B…venha a ser titular;
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No âmbito do Security Agreement, a Requerente concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:
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Penhor financeiro de primeiro grau sobre as acções da D… e da E…, e respectivos direitos inerentes;
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Promessa de penhor financeiro sobre novas acções que venham a ser emitidas pela D… e pela E… e respectivos direitos inerentes;
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Penhor de primeiro grau de quaisquer Créditos Accionistas presentes de que a Requerente seja titular, enquanto sociedade-mãe, sobre a D… e E…;
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Promessa de penhor financeiro sobre futuros Créditos Accionistas que a Requerente venha a ser titular;
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Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos de que a Requerente seja titular, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Hedging Agreement Rights”, “Project Document Rights” e “Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias, passíveis de serem empenhados;
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Cessão de créditos com escopo de garantia de todos os créditos de que a Requerente venha a ser titular, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Future Hedging Agreement Rights”, “Future Project Document Rights” e “Future Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias e não abrangidos pelo penhor previsto no parágrafo anterior;
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Penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo das contas bancárias de que a Requerente era titular à data da celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
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Promessa de penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo de novas contas bancárias de que a Requerente venha a ser titular após a celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
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No âmbito do Security Agreement, a D… e E… concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:
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Penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo das contas bancárias de que as sociedades eram titulares à data da celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
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Promessa de penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo de novas contas bancárias de que as sociedades venham a ser titulares após a celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
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Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos de que as sociedades sejam titulares, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Project Document Rights” e “Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias, passíveis de serem empenhados;
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Cessão de créditos com escopo de garantia de todos os créditos de que as sociedades venham a ser titulares, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Future Project Document Rights” e “Future Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias e não abrangidos pelo penhor previsto no parágrafo anterior;
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A celebração do Security Agreement e a prestação das garantias anteriormente referidas foram necessários e essenciais à celebração do Facilities Agreement e à consequente emissão do empréstimo obrigacionista;
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Em 27.01.2022, o notário que exarou a escritura do Facilities Agreement e do Security Agreement liquidou Imposto do Selo (Declaração mensal de Imposto do Selo n.º …), de acordo com a verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), através da aplicação da taxa de 0,6% sobre o valor de € 348.900.000,00, resultando assim num imposto apurado de € 2.093.400,00;
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A Requerente pagou por débito da sua conta bancária o montante de € 2.093.400,00;
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Em 03.08.2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o acto de liquidação de Imposto do Selo (Declaração mensal do IS n.º …);
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Em 03.12.2022, formou-se uma presunção de indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa em virtude da falta de decisão da AT;
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Em 02.03.2023, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral que originou o presente processo.
§2 – Factos não provados
10. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que se tenham dado como não provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
11. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
12. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
13. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
V. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Ordem de conhecimento dos vícios
14. Discute-se neste processo a tributação em sede de Imposto do Selo, por aplicação da verba 10.3 da Tabela Geral anexa ao código daquele imposto, de um conjunto de garantias melhor identificadas supra, prestadas relativamente a um empréstimo obrigacionista celebrado entre a Requerente e o F… com o intuito de financiar o pagamento do preço da compra e venda das acções da D… e da E…, bem como para refinanciamento da dívida dessas sociedades.
15. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente imputou ao acto de liquidação de Imposto do Selo vício de violação de direito da União Europeia, em concreto da exclusão de tributação prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008 (“Directiva de Reunião de Capitais”), relativa aos impostos indirectos sobre as reuniões de capitais e, a título subsidiário, vício de violação de direito interno, resultante da não aplicação da isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.
16. Uma vez que ambos os vícios conduzem à anulabilidade do acto de liquidação de Imposto do Selo, deverá ser respeitada na sua apreciação a relação de subsidiariedade estabelecida pela Requerente, em conformidade com o disposto no artigo 124.º do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
§2 – Violação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais
17. Quanto a este primeiro vício, invocou a Requerente a ilegalidade da tributação das garantias prestadas em concomitância ao empréstimo obrigacionista, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais.
18. Conforme anteriormente referido, alegou a Requerente que o objectivo prosseguido pela Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008 é o de proibir a tributação de todos os actos, ainda que acessórios, relativos a operações de reunião de capitais. Segundo a Requerente, apesar de as garantias prestadas terem sido voluntária e autonomamente contratualizadas com o F…, elas foram estritamente essenciais para viabilizar a celebração do empréstimo obrigacionista. Neste sentido, concluiu a Requerente que as garantias constituíam actos formalmente autónomos, mas funcional e economicamente conexos com a emissão das obrigações, de tal modo que a sua tributação em sede de IS equivaleria a tributar a totalidade da reunião de capitais globalmente considerada.
19. Invocou ainda a Requerente que a derrogação da proibição constante do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) que resulta do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), ambos da Directiva de Reunião de Capitais, apenas abrange garantias que onerem bens imóveis, não sendo assim aplicável ao presente caso, uma vez que as garantias objecto dos presentes autos consistem essencialmente em penhores e promessas de penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia.
20. Já a Requerida entende que no presente caso a emissão de obrigações acompanhada da prestação de garantia equivale materialmente a uma celebração bilateral convencional de um mútuo garantido por penhor, já que as obrigações emitidas foram negociadas directamente com um banco, não sendo expectável que tais títulos tenham tido como destino primário a sua negociação no mercado. Por conseguinte, considera a Requerida que a tributação das garantias prestadas em sede de Imposto do Selo não é passível de dar origem a “discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais” (considerando 2 do preâmbulo da Directiva), não justificando assim que se convoque a proibição imposta pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais. Acresce que, no entender da Requerida, as garantias prestadas pela Requerente não consistiram numa condição de validade da emissão obrigacionista que visaram proteger (i.e., não eram obrigatórias) nem tão-pouco assumem a natureza de operação acessória (como é o caso do registo da emissão no livro de registo, do registo dos titulares das obrigações, de eventuais autenticações de actas sociais, de registos comerciais e publicações da deliberação de emissão pela sociedade), não preenchendo assim o objecto de proibição que resulta da Directiva de Reunião de Capitais.
21. Alegou ainda a Requerida que no presente caso sempre seria aplicável a derrogação prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Directiva de Reunião de Capitais, já que o conceito de “privilégios” que consta de tal norma abrange as garantias prestadas através de penhor, não resultando daquela norma qualquer limitação aos direitos que oneram bens imóveis.
22. Para decidir, importa antes de mais transcrever na parte que aqui interessa o enquadramento legal aplicável às operações em análise:
Código do Imposto do Selo
“Capítulo I
Incidência
Artigo 1.º
Incidência objectiva
1 – O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.”
Tabela Geral do Imposto do Selo
“10 Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro‑caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente - sobre o respectivo valor, em função do prazo, considerando-se sempre como nova operação a prorrogação do prazo do contrato:
(…)
10.3 Garantias sem prazo ou de prazo igual ou superior a cinco anos 0,6%”.
Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2008, relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais
“CAPÍTULO I
OBJECTO E ÂMBITO
Artigo 1.º
Objecto
A presente directiva regula a aplicação de impostos indirectos sobre:
a) Entradas de capital em sociedades de capitais;
b) Operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais;
c) Emissão de determinados títulos e obrigações.”
“CAPÍTULO II
DISPOSIÇÕES GERAIS
Artigo 5.º
Operações não sujeitas a impostos indirectos
(…)
2. Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indirecto:
a) A criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;
b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.”
“Artigo 6.º
Impostos e direitos
1. Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos:
(…)
d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas;”
23. Cabe então apreciar se as garantias referidas nas alíneas j) a l) da matéria de facto dada como provada, que foram prestadas para assegurar a realização e salvaguardar o cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades do empréstimo obrigacionista celebrado entre a Requerente e o F… são uma “formalidade conexa” para efeitos do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais.
24. Relativamente à interpretação daquela norma, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no acórdão Air Berlin, proferido no processo C-573/16 que:
“a proibição da imposição das operações de reunião de capitais se aplica igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais” sendo que para o efeito “não é necessário que exista uma obrigação legal quando se trata de determinar se uma operação é um fim em si mesma ou deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”.
25. Este entendimento foi reafirmado pelo TJUE no acórdão IM Gestão de Ativos e o., proferido no processo C‑656/21, onde o Tribunal referiu que:
“tendo em conta o objetivo prosseguido por esta diretiva [de Reunião de Capitais], o artigo 5.º da mesma deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil. Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica‑se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16, EU:C:2017:772, n.ºs 31 e 32 e jurisprudência referida)”.
26. Para além de consolidar uma vez mais o referido entendimento, o TJUE no acórdão A, S.A., proferido no processo C‑335/22 sublinhou ainda o seguinte:
“24 Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça já esclareceu que o artigo 11.º, alínea b), da Diretiva 69/335, disposição cuja redação era idêntica à do artigo 5.º, nº2, alínea b), da Diretiva 2008/7, que revogou a Diretiva 69/335, devia ser interpretado no sentido de que a proibição de sujeitar um empréstimo obrigacionista ao imposto se opõe igualmente à tributação de todas as formalidades conexas, incluindo o ato notarial obrigatório para registar o reembolso desse empréstimo (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 1998, FECSA e ACESA, C‑31/97 e C‑32/97, EU:C:1998:508, n.os 19, 21 e 22).
25 Ora, uma vez que os serviços de colocação em mercado de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial de novas emissões, apresentam, à semelhança das operações e das formalidades referidas pela jurisprudência recordada nos n.os 23 e 24 do presente despacho, uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação dos referidos títulos, na aceção do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais em causa (v., por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.° 31).
26 Por conseguinte, o facto de dar a conhecer junto do público ofertas de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial, e de desenvolver todos os seus melhores esforços para os distribuir de modo que promova a respetiva subscrição e aquisição ou de os adquirir por sua conta para efeitos de revenda junto do público constitui uma diligência comercial necessária e que, nessa medida, deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e de colocação em circulação dos referidos títulos (v., por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.º 33).
27 Além disso, uma vez que a aplicação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de colocação em mercado com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de colocação em mercado a terceiros em vez de as efetuar diretamente (v., por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.° 34).
28 A este respeito, há que recordar que, por um lado, essa disposição não faz depender a obrigação de os Estados‑Membros isentarem as operações de reunião de capitais de nenhuma condição relativa à qualidade da entidade encarregada de realizar essas operações. Por outro lado, a existência ou não de uma obrigação legal de contratar os serviços de um terceiro não é uma condição pertinente quando se trata de determinar se uma operação deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista de uma reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.º 35 e jurisprudência referida).”.
27. Resulta, portanto, da jurisprudência do TJUE que as “formalidades conexas” abrangidas pela proibição de tributação constante do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais são aquelas que apresentem um ligação estreita, isto é, que se integram ou insiram numa operação de reunião de capitais globalmente considerada.
28. Sem prejuízo da amplitude interpretativa que resulta da jurisprudência do TJUE acabada de citar, a verdade é que as “formalidades conexas” visadas naqueles acórdãos – serviços de compensação na venda de acções em bolsa e encargos com serviços de comercialização na subscrição de participações de fundos – são diferentes entre si e distintas das visadas nos presentes autos – em que está em causa a prestação de garantias no âmbito da subscrição de obrigações.
29. Ao não terem aqueles acórdãos versado sobre a proibição de tributação indirecta relativamente à prestação de garantias por efeito da realização de operações de reunião de capitais e sobre a respectiva acessoriedade face à operação globalmente considerada, considera este Tribunal Arbitral que não pode ser feita uma transposição tout court da jurisprudência do TJUE para o presente processo.
30. Acresce que naqueles processos também não se discutiu a aplicabilidade da derrogação prevista no artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Directiva de Reunião de Capitais, designadamente no que se deve entender por “privilégios”, atentas as aparentes divergências de sentido que resultam das diferentes redacções/versões da Directiva.
31. As divergências e entendimentos contraditórios no que respeita à interpretação do Direito da União Europeia são evidentes nas posições assumidas pelas partes nos articulados que apresentaram, sendo que quer a Requerente quer a Requerida suscitaram a formulação de questões prejudiciais ao TJUE.
32. Ora, o reenvio prejudicial é “um instrumento de cooperação judiciária (…) pelo qual um juiz nacional e o juiz comunitário são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos estados-membros”, conforme sublinhou o TJUE no acórdão Schwarze, proferido no processo 16/65.
33. Este instrumento de cooperação pode não ser utilizado pelo juiz nacional com base na “teoria do acto claro” que, tal como sublinhou o TJUE no acórdão Cilfit proferido no processo 283/81, se verifica nos seguintes casos:
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A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal;
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O TJUE já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma;
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O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União Europeia, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.
34. Aqui chegados, e considerando o anteriormente exposto, considera este Tribunal Arbitral que não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação da teoria do acto claro, impondo-se a formulação de questões prejudiciais de forma a suscitar a intervenção do TJUE no que respeita à interpretação e compatibilidade das normas de direito interno com normas de Direito da União Europeia.
V. DECISÃO
Termos em que decide este Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do artigo 272.º, n.º 1 do CPC, suspender a instância e submeter à apreciação do TJUE as seguintes questões prejudiciais:
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O artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à tributação em Imposto do Selo de garantias consubstanciadas em penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas em relação a uma operação de emissão de obrigações?
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A resposta à primeira questão difere consoante a prestação das garantias seja legalmente exigida ou facultativa e voluntariamente acordada?
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A resposta à primeira questão difere no caso de as garantias terem sido prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações sujeita a subscrição particular por um Banco, cuja posição de subscritor pode ser transmitida por vontade da entidade emitente, ainda que condicionada e sujeita a penalidades/comissões?
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O artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro deve ser interpretado no sentido de que abrange as garantias consubstanciadas em penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações abrangida pela alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º do mesmo diploma?
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 2.093.400,00 (dois milhões noventa e três mil e quatrocentos euros).
VII. CUSTAS
O montante das custas será fixado a final em função do decaimento.
Notifique-se.
Lisboa, 10 de Novembro de 2023
A Árbitra Presidente,
Carla Castelo Trindade
(Relatora)
A Árbitra Adjunta,
Maria do Rosário Anjos
O Árbitro Adjunto,
Luís Sequeira
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