Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 130/2023-T
Data da decisão: 2025-12-02  Selo  
Valor do pedido: € 2.093.400,00
Tema: Imposto do Selo – verba 10.3, da TGIS – prestação de garantias no âmbito de empréstimo obrigacionista – reenvio prejudicial – inerência
REENVIO PREJUDICIAL   Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Maria do Rosário Anjos e Luís Sequeira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

1. A… – S.A., NIPC …, com sede na Avenida …, … Lisboa (“Requerente”), na sequência do indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa tramitado sob o n.º …, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo n.º …, de 27.01.2022, no montante de € 2.093.400,00.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 02.02.2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

           

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 19.04.2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 10.05.2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

5. Em 14.06.2023, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e concluído pela improcedência do pedido arbitral formulado pela Requerente.

 

II. POSIÇÃO DAS PARTES

 

§1 – Requerente

 

            6. A Requerente fundamentou o seu pedido, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

  1. “A Diretiva [2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008, relativa aos impostos indiretos sobre as reuniões de capitais] tem por objeto definir parâmetros para a aplicação pelos Estados-Membros da UE de impostos indiretos – incluindo o IS – sobre (i) entradas de capital em sociedades de capitais, (ii) operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais e (iii) emissão de determinados títulos e obrigações”;
  2. “a Diretiva estabele[ce] na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º que “[o]s Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto (…) [o]s empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis”;
  3. A “proibição da incidência de impostos indiretos (…) abrange as garantias constituídas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações”;
  4. “é entendimento do TJUE que a proibição de incidência de impostos indiretos sobre as operações de reunião de capitais não se cinge às realidades potencialmente tributáveis expressamente referidas no texto da Diretiva, mas também aos atos, operações ou situações passíveis de tributação que devam considerar-se parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, mesmo que estas não estejam expressamente previstas nesta proibição”;
  5. “no Acórdão Air Berlin, proferido no processo C-573/16, em 19.10.2017, o TJUE” entendeu que “não é uma condição sine qua non que uma operação exista como uma obrigação legal para que a mesma seja vista como um elemento constitutivo de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”;
  6. “Esta asserção (…) demonstra que o carácter não legalmente imperativo das garantias das obrigações não é um requisito imprescindível da abstenção de imposto prevista no normativo em referência”;
  7. “aquilo que verdadeiramente importa para uma realidade estar abrangida por esta proibição de tributação (…) é, precisamente, que esta esteja funcionalizada, de um ponto de vista económico, à concretização de uma operação global de reunião de capitais, i.e., que seja uma diligência comercial necessária para a sua concretização, ainda que não seja legalmente obrigatória”;
  8. “o sentido da proibição da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, é indisputável que as garantias inerentes a um empréstimo obrigacionista – como são as garantias em apreço – se acham abrangidas por esta proibição de tributação, uma vez que o objetivo prosseguido pela Diretiva é o de proibir a tributação das operações de reunião de capitais incluindo a tributação de todos os atos que, conquanto qualificáveis como como acessórios, constituem parte integrante de uma operação global de reunião de capitais”;
  9. “Este raciocínio é aplicável quer se entenda que a alusão a “formalidades conexas” abranja direitos de garantia inerentes a empréstimos obrigacionistas, quer se entenda que aqueles direitos não se reconduzam àquelas formalidades, por força da sua autonomia material (i.e., porque são constituídos através de um ato autónomo da emissão e subscrição de obrigações), na medida em que para o TJUE a tributação destes atos formalmente autónomos mas funcional e economicamente conexos equivaleria a tributar a totalidade da reunião de capitais, globalmente considerada”;
  10. “é manifesto que a constituição das garantias sob exame não é um ato que se esgota em si mesmo, no sentido de ser o desígnio último das partes, mas é um mero instrumento, um ato acessório, conquanto fundamental, para o fim último das partes que é a reunião de capitais materializada na emissão de obrigações da A…; ou seja, as partes não se reuniram para constituir garantias, mas sim para fornecer capital à A…, o que suporia sempre a prestação, por parte desta e do Grupo em que se insere, de garantias de reembolso desse capital e juros”;
  11. “acresce ainda que a norma de delimitação das exceções à regra de proibição tributária consagrada no artigo 5.º da Diretiva demonstra, outrossim, que (i) as garantias mobiliárias inerentes às operações de emissão de obrigações estão diretamente abrangidas pela proibição, (ii) pelo que, não seria sequer necessário qualificá-las como “formalidades conexas” para que se possa extrair da mesma Diretiva essa proibição”;
  12. “A alínea d) deste artigo [6.º, n.º 1 da Directiva] é clara ao determinar que os Estados-Membros podem optar por derrogar a regra proibitiva do artigo 5.º da Diretiva e tributar “a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas”, o que, atenta a remissão geral para o artigo 5.º, vigora também quando estes são constituídos para garantir empréstimos obrigacionistas”;
  13. “à luz desta jurisprudência [do TJUE nos Acórdãos FECSA e ACESA, proferidos nos processos apensos C-31/97 e C-32/97, em 27.10.1998] é possível concluir que, por um lado, a referência à “constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas” se reporta também às situações em que estas garantias ou privilégios garantam empréstimos obrigacionistas; e que, por outro lado, estas não se confundem com o empréstimo obrigacionista em si mesmo, para efeitos da aplicação da derrogação da alínea d) do n.º 1.º do artigo 6.º da Diretiva, na medida em que os Estados-Membros podem onerar os privilégios e hipotecas ligadas a esses empréstimos, mas não podem tributar os empréstimos ou, naquele caso, o seu reembolso, apenas porque são garantidos por hipoteca ou privilégio”;
  14. “Daqui decorre, com efeito, que as garantias inerentes a empréstimos obrigacionistas são, também por esta razão, realidades abrangidas pela alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, dado que, se não fosse esse o caso, não faria qualquer sentido a menção no proémio do artigo 6º - “Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos” – conjugada com a menção a hipotecas e privilégios; se estas, quando associadas a operações de reuniões de capitais, não se considerassem como podendo fazer parte das operações do n.º 5, que sentido faria dizer, no proémio do artigo 6.º, que se está a derrogar o artigo 5.º?”;
  15. “De resto, se o Tribunal entendesse que as garantias associadas a um empréstimo obrigacionista não estavam ínsitas na dita emissão de obrigações, no sentido de também não poderem sofrer imposições, a primeira coisa que teria feito seria dizê-lo, não importando saber se eram garantias imobiliárias ou mobiliárias, pois os Estados seriam sempre livres de as onerar”;
  16. “Uma análise às versões alemã e inglesa da Diretiva, confirma que as situações-tipo abarcadas nesta alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, dizem respeito apenas e só a direitos que oneram bens imóveis”;
  17. “Não obstante, mesmo que se entenda, com apego ao texto legal, que o conceito de “privilégios” constante na Diretiva corresponde ao conceito de “privilégios creditórios” consagrado no nosso ordenamento jurídico, também a essa luz as garantias em análise não serão subsumíveis a essa definição”;
  18. “as garantias em apreço são penhores financeiros de ações, de saldos de contas bancárias, de créditos acionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia” pelo que “é inequívoco que nenhuma destas realidades corresponde à factispecies que subjaz à alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, inferindo-se daí a aplicabilidade de um regime regra de que os privilégios e hipotecas são a exceção: as garantias inerentes ou associadas a um empréstimo obrigacionista são abrangidas pela proibição de imposições indiretas”;
  19. “Por conseguinte, dúvidas não poderão restar de que o ato liquidação de IS objeto do presente pedido de pronúncia arbitral viola a proibição, consagrada na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, de sujeitar a tributação indireta os empréstimos obrigacionistas ao aplicar IS sobre as garantias inerentes ao financiamento em relevo, devendo, de imediato, ser anulado, com todas as demais consequências legais.”;
  20. Subsidiariamente, para o caso de não ser acolhida a interpretação precedente, invocou a Requerente que o acto de liquidação de Imposto do Selo era ilegal por violar a isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS;
  21. A “alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º [do Código do Imposto do Selo]” é um norma que tem “uma redação de uma extraordinária amplitude: não apenas o legislador não restringiu de nenhuma maneira o tipo de operações (a que as garantias são inerentes) compreendidas no escopo de aplicação desta norma – p. ex., não especificou deverem tratar-se de operações de subscrição (ângulo do subscritor), emissão (ângulo do emitente) ou alienação ou aquisição derivada de valores mobiliários, direitos equiparados ou contratos” “como, para definir o objeto possível dessas operações, recorreu a formulações muitíssimo abrangentes – dir-se-á até, exprimiu-se da forma mais abrangente que lhe era possível –, incluindo assim no âmbito de aplicação da isenção aquelas operações que têm valores mobiliários por objeto direto ou indireto, e não só: também contratos de futuros, contratos de taxas de juros, contratos de divisas, contratos de índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas”;
  22. O que o “legislador pretende (…) é consagrar uma isenção de IS que incentive o funcionamento do mercado de capitais, sem criar desigualdades entre os supostos “novos instrumentos financeiros” (…) e aqueles ditos «tradicionais», não gerando qualquer discriminação”;
  23. “Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, exige-se que as garantias dispensadas de tributação sejam inerentes a operações realizadas sobre valores mobiliários e demais instrumentos referidos na norma citada”;
  24. “Não se pode, desde logo, afirmar que as garantias só poderão ser qualificadas como inerentes se forem legalmente obrigatórias; só uma análise parcial da lei, desligada da realidade dos mercados de valores mobiliários e em contradição com a jurisprudência do TJUE sobre a noção de “operação global do ponto de vista de reunião de capitais” pode insistir nessa exigência”;
  25. “Se essa tivesse sido a intenção do legislador, teria sido extraordinariamente simples consagrá-la na lei; bastaria que, em vez de se referir a garantias inerentes às operações mencionadas, o legislador aludisse a garantias legalmente exigidas para realizar as operações mencionadas”;
  26. “o que é inerente (inseparável, indissociável) a uma operação não é necessariamente obrigatório para que a mesma se execute, sobretudo se se entender esta obrigatoriedade como significando uma exigência legal”;
  27. “O critério da inerência não pode ser aferido à luz da lei, mas no plano dos factos; o que há a apurar é se, no domínio dos factos (da substância, da realidade económica), a garantia estava ou não intrinsecamente ligada à operação realizada; se a complementava, se se integrava na operação realizada, de um modo tal que não pudesse considerar-se um ato desligado, desconexo”;
  28. “se uma garantia é exigida, ou até mesmo indispensável – como são o caso das garantias em discussão nesta contenda, na medida da predisposição dos intervenientes da operação realizada de as exigir como condição necessária do empréstimo - então esta tem de ser qualificada como inerente à operação conexa”;
  29. “Note-se que, no passado, já houve realmente contados exemplos de operações sobre valores mobiliários que, para serem executadas, exigiam legalmente a prestação de garantias pela parte interessada” “Todavia, hoje em dia, já não se conhece qualquer situação de exigência legal imperativa de garantias, tendo tal exigência sido substituída por um princípio geral de cautela, imposto às entidades intervenientes no mercado, que deixa a seu cargo exigir das suas contrapartes as garantias tidas por adequadas para a realização de determinada operação – o que significa que as referidas garantias não são, portanto, legalmente obrigatórias, mas apenas contratualmente exigidas (tais como as garantias em relevo) e, ainda assim, inerentes às operações realizadas”;
  30. Esta interpretação “é a única compaginável com a jurisprudência já citada do TJUE (nomeadamente, refletida no Acórdão Air Berlin) sobre a proibição de tributação do artigo 5.º da Diretiva, segundo a qual: “(…) não é necessário que exista uma obrigação legal quando se trata de determinar se uma operação é um fim em si mesma ou deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”;
  31. “mesmo que por hipótese de raciocínio se pudesse sustentar que a Diretiva das reuniões de capitais não se aplicava diretamente, que o texto e a finalidade da Diretiva têm, obrigatoriamente, de ser um parâmetro de interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, por força do princípio da interpretação conforme”;
  32. “Sendo assim, é notório que, se Portugal não cumpriu o dever de transposição da Diretiva, a alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS deverá, então, ser interpretada de modo que o seu conteúdo normativo seja conforme à Diretiva e esteja de acordo com a finalidade ampla prosseguida por esta de proibir a tributação indireta sobre as operações de reunião de capitais”.

 

§2 – Requerida

 

            7. A Requerida, fundamentou a sua resposta, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

  1. “entende a Requerente que a garantia aqui em causa se encontra abrangida pela alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS que, na redação dada pela Lei n.º 107-B/2003, de 31 de dezembro”;
  2. “esta questão foi já suscitada em processos arbitrais anteriores (processos n.º 97/2016-T, n.º 2/2020-T e n.º 80/2021-T) e que, em todos eles, a resposta coincidiu no sentido de que a isenção prevista alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS se aplica a garantias inerentes apenas às operações sobre instrumentos financeiros derivados e não sobre valores mobiliários em geral e, mais ainda, que a qualidade de “garantia inerente” não se verifica em garantias prestadas facultativamente”;
  3. “as decisões arbitrais que a Requerente invoca como suportando a sua pretensão – v.g. as decisões proferidas nos processos n.º 69/2014-T, de 30-11-2014 e n.º 532/2016-T, de 17-03-2017 – não tratam de situações equiparáveis ao caso em apreço”;
  4. “Já relativamente à interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo” a Requerida segue o entendimento do Tribunal Arbitral no processo n.º 97/2016;
  5. “Mais se refira que quando se utiliza o vocábulo inerente na redação da norma aqui em causa este necessariamente significa obrigatório, algo que resulte de uma exigência legal ou regulamentar traduzida numa condição essencial sem a qual uma operação como a que aqui se aprecia nunca se pudesse concretizar”;
  6. “do enquadramento factual que originou a liquidação resulta claro que estamos a falar de uma garantia facultativa apresentada pelo emissor, para cobertura do risco associado ao empréstimo obrigacionista efetuado”;
  7. “Tratam-se, portanto, de garantias de salvaguarda, extrínsecas às exigências dos mercados visados pela isenção, constituídas no interesse da Requerente a favor do seu credor contra o compromisso de estes subscreverem as obrigações emitidas, unicamente com o intuito de mitigar e acautelar o risco de perda do seu investimento”;
  8. “Apesar no Código dos Valores Mobiliários (CVM) qualificar diretamente as obrigações como valores mobiliários [alínea b) do artigo 2.º do CVM], neste caso valores mobiliários representativos de dívida na medida que visam a obtenção de financiamento -, parece-nos que, à semelhança do que é afirmado pelo tribunal arbitral na decisão proferida no processo n.º 97/2016-T, nunca foi intenção do legislador abranger pela isenção obrigações e muito menos garantias que tivessem no seu cerne um acordo firmado entre um emissor e os seus credores obrigacionistas”;
  9. “apesar das referências ao regime das operações a prazo genericamente previsto nos artigos 252.º a 265.º da versão originária do CVM terem sido, como já se mencionou, suprimidas pelo Decreto-Lei n.º 357.º-A/2007 -, convém relembrar que o artigo 260.º, na redação em vigor até à alteração levada a cabo pelo citado diploma, exigia expressamente a constituição obrigatória de garantias a favor da contraparte para a realização deste tipo de operações e que a dicotomia operações a contado ou à vista e operações a prazo continua bem presente no mercado de valores mobiliários”;
  10. “apesar da supressão do mencionado preceito, a possibilidade de constituição obrigatória de garantias para operações que envolvam instrumentos financeiros ainda se mantém, conforme se prevê na alínea c) do n.º 1 do artigo 273.º do CVM”;
  11. “No caso específico dos instrumentos financeiros derivados (antigas operações a prazo), em particular aqueles que são transacionados fora de mercado, ou seja, no mercado de balcão ou através das plataformas de negociação eletrónica de instituições financeiras (comumente designados de contratos de derivados OTC)” “a obrigação de constituição de garantias resulta da aplicação do Regulamento (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012”;
  12. “a única interpretação admissível da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS é que a mesma só se aplica a garantias inerentes a operações realizadas sobre valores mobiliários que resultem de obrigações legais ou regulamentares, pois sem elas o negócio não se pode concretizar, ou chegando-se, contra a lei, a concretizar, os agentes que violem aquela exigência sujeitam-se a pesadas sanções”;
  13. “Dos autos não decorre, nem se intui, que as garantias aqui em causa resultem de uma qualquer imposição legal ou regulamentar”;
  14. “Nem tão pouco a Requerente faz prova que a sua não prestação implicava a aplicação de uma sanção a título de contraordenação”;
  15. “Decorrem de um acordo entre as partes no qual, à semelhança do que acontece na generalidade dos financiamentos (v.g., empréstimo bancário), foi constituída uma garantia com o único intuito de minimizar o risco associado ao financiamento obrigacionista obtido junto dos Bancos subscritores em causa”;
  16. “Não preenchendo, por isso, um dos pressupostos cumulativos (da inerência) que lhe permitiriam beneficiar da aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS”;
  17. “no acórdão Air Berlin estava em causa a utilização de serviço de compensação na venda de ações em bolsa e no acórdão IM Gestão de Ativos estava em causa a tributação de encargos com serviços de comercialização na subscrição de participações de fundos”;
  18. “Já no caso sub judice, está em causa tributação incidente sobre garantias prestadas no âmbito da subscrição de obrigações”;
  19. “não são objetivamente comparáveis à prestação de garantia como colateral na subscrição de obrigações, a utilização de uma câmara de compensação na admissão de ações em bolsa ou de serviços de intermediação na oferta pública de unidade de participação”;
  20. “o artigo 6.º da Diretiva 2008/7 prevê, expressamente “em derrogação ao disposto no artigo 5.º” que os Estados-Membros podem cobrar tributos que “onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas;”;
  21. “não faz qualquer sentido a argumentação que a Requerente desenvolve na tentativa de concluir que as garantias contempladas naquele artigo 6.º não poderiam coincidir com garantias prestadas no âmbito da subscrição de ações”;
  22. “Nem colhe, de resto, a tese que a Requerente de que os termos “privilégios e hipotecas” deixariam de fora garantias como os penhores, utilizadas no caso sub judice”;
  23. “a versão portuguesa [da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Directiva] faz fé e é plenamente aplicável” sendo coincidente com a versão francesa;
  24. “mesmo que se admitisse (…) que a obrigação prestada como colateral na subscrição de obrigações estaria abrangida pela alínea b), do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, a sua tributação encontra-se legitimada pelo artigo 6.º da mesma diretiva”;
  25. “nem se vê de que forma, numa operação com os contornos da que está agora em causa – que embora se apresente como uma emissão de obrigações, equivale materialmente a um mútuo garantido por penhor - a tributação das garantias prestada pudesse surgir como dando «origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais» (considerando 2 do preâmbulo da Diretiva 2008/7/CE), justificando assim que se convoque a proibição imposta pelo artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE”;
  26. “no caso dos presentes autos, tendo as obrigações sido negociadas diretamente com um banco, suscita-se a dúvida se àquelas será dado o destino normal dos “títulos negociáveis”, que não o de mero sucedâneo para um negócio de mútuo convencional - que, materialmente, foi o que se verificou”;
  27. “O caso sub judice configura justamente uma situação que ajuda a enquadrar o objetivo do legislador europeu quando, na Diretiva que se propõe proteger a livre circulação de títulos negociáveis, prevê expressamente como derrogação da proibição da tributação da emissão de obrigações e outros títulos negociáveis, os tributos que incidem sobre garantias”;
  28. “É que é nos casos, como o vertente, em que, contra a subscrição de obrigações, um agente vem exigir prestação de garantias, que não é expectável que tais títulos tenham tido como destino primário a sua a negociação no mercado, mas antes a emissão de obrigação tenha funcionado como a celebração bilateral convencional de um mútuo, o que sempre escaparia ao âmbito de proteção da Diretiva 2008/7/CE”;
  29. Subsidiariamente referiu ainda a Requerida que “a[s] garantia[s] em causa não se insere[m] no conceito de «formalidades conexas»” porque “resultaram da vontade das partes, não constituindo condição de validade da emissão obrigacionista que visou proteger, nem tão-pouco assumem a natureza de operação acessória tal como desenvolvida no acórdão IM Gestão de Ativos”;
  30. “a Requerente defende uma interpretação lata para as expressões “emissão de obrigações” e “formalidades conexas” com vista a que nela esteja compreendido todo e qualquer ato ou operação diretamente relacionada com a emissão das obrigações e que se revele indispensável à sua concretização” contudo “quando analisa as garantias ou privilégios que garantam empréstimos obrigacionistas e a aplicação da alínea d) do n.º 1.º do artigo 6.º da Diretiva, defende, ao invés, uma interpretação restritiva, concluindo que estas garantias ou privilégios não devem confundir-se com o empréstimo obrigacionista em si mesmo, na medida em que os Estados-Membros podem onerar os privilégios e hipotecas ligadas a esses empréstimos, mas não podem tributar os empréstimos ou, naquele caso, o seu reembolso, apenas porque são garantidos por hipoteca ou privilégio”;
  31. “a expressão “formalidades conexas” a que se reporta a alínea b), n.º 2 do art.º 5.º da Diretiva 2008/7/CE, não pode entender-se com o sentido amplo pretendido pela Requerente, mas sim no sentido de abranger apenas as formalidades que fazem parte do procedimento da operação em causa, ou seja, aquelas formalidades previstas na lei como um trâmite, entre outros, característicos do mesmo”;
  32. “mesmo que a tributação de garantias prestadas no âmbito de operações de reunião de capitais não estivesse expressamente autorizada no artigo 6.º da Diretiva 2008/7/CE, ainda assim soçobraria a argumentação da Requerente quanto à aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva a garantias prestadas como colateral na subscrição de obrigações”.

 

III. SANEAMENTO

 

            8. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos do artigo 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem excepções ou outras questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            9. Analisada a prova até agora produzida, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a apreciação do mérito da causa:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima de direito português inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, com sede na Avenida …, … Lisboa;
  2. O capital social da Requerente é detido na sua totalidade pela B…S.à r.l., sociedade de responsabilidade limitada registada no Registo de Comércio e de Sociedades do Luxemburgo (R.C.S. Luxembourg) sob o número … e com o número português de entidade equiparada … (“B…”);
  3. Em 21.07.2021, a B… adquiriu à C…, SGPS, S.A., sociedade anónima de direito português inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula …, com sede na Rua …, … Porto (“C…”), a totalidade do capital social da D…, S.A., sociedade anónima de direito português inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, com sede na Rua …, … Porto (“D…”) e da E…, S.A. sociedade anónima inscrita na conservatória do registo comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva E…, com sede na Rua …, … Porto (“E…”);
  4. Em 29.07.2021, a B… cedeu à Requerente a sua posição contratual no contrato de compra e venda das acções da D… e da E… referido na alínea anterior;
  5. Em 27.01.2022, a Requerente celebrou um contrato de financiamento denominado Facilities Agreement, no âmbito do qual emitiu um empréstimo obrigacionista, com a emissão de obrigações nominativas e escriturais, de valor nominal de € 100.000,00 por título, no montante global de emissão de € 348.900.000,00 fraccionado em duas classes de obrigações (classes “A” e “B”) que foram integralmente subscritas pelo BANCO F…, S.A. (“F…”);
  6. No Facilities Agreement determinou-se que a Requerente, na qualidade de emitente, podia determinar a transmissão da posição contratual de subscritor assumida pelo F…, ainda que mediante penalidades/comissões;
  7. As obrigações emitidas seriam registadas junto de, e custodiadas pela, G…, na qualidade de Sociedade Gestora de Sistemas de Liquidação e de Sistemas Centralizados de Valores Mobiliários da Comissão dos Valores Mobiliários;
  8. O Facilities Agreement foi celebrado com o objectivo de financiar o pagamento do preço da compra e venda das acções da D… e da E…, bem como para refinanciamento da dívida existente dessas sociedades;
  9. Para garantia do cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades constituídas ao abrigo do Facilities Agreement, foram prestadas diversas garantias de natureza real e/ou pessoal pela B…, pela A… e pela D… e E…, através do contrato denominado de Security Agreement (“Contrato de Prestação de Garantias”) celebrado entre estas sociedades, na qualidade de garantes, e o F…, na qualidade de beneficiário e agente das garantias;
  10. No âmbito do Security Agreement, a B… concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:
  • Penhor financeiro de primeiro grau sobre as acções da Requerente, e respectivos direitos inerentes;
  • Promessa de penhor financeiro sobre novas acções que venham a ser emitidas pela Requerente e respectivos direitos inerentes;
  • Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos presentes (resultantes de prestações acessórias, prestações suplementares, suprimentos, ou quaisquer outras dívidas subordinadas, outras formas de quase capital ou outras formas de financiamento em espécie ou dinheiro (“Créditos Accionistas”)) de que a B… seja titular, enquanto sociedade-mãe, sobre a Requerente;
  • Promessa de penhor financeiro sobre futuros Créditos Accionistas que a B…venha a ser titular;
  1. No âmbito do Security Agreement, a Requerente concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:
  • Penhor financeiro de primeiro grau sobre as acções da D… e da E…, e respectivos direitos inerentes;
  • Promessa de penhor financeiro sobre novas acções que venham a ser emitidas pela D… e pela E… e respectivos direitos inerentes;
  • Penhor de primeiro grau de quaisquer Créditos Accionistas presentes de que a Requerente seja titular, enquanto sociedade-mãe, sobre a D… e E…;
  • Promessa de penhor financeiro sobre futuros Créditos Accionistas que a Requerente venha a ser titular;
  • Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos de que a Requerente seja titular, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Hedging Agreement Rights”, “Project Document Rights” e “Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias, passíveis de serem empenhados;
  • Cessão de créditos com escopo de garantia de todos os créditos de que a Requerente venha a ser titular, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Future Hedging Agreement Rights”, “Future Project Document Rights” e “Future Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias e não abrangidos pelo penhor previsto no parágrafo anterior;
  • Penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo das contas bancárias de que a Requerente era titular à data da celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
  • Promessa de penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo de novas contas bancárias de que a Requerente venha a ser titular após a celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
  • No âmbito do Security Agreement, a D… e E… concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:
  • Penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo das contas bancárias de que as sociedades eram titulares à data da celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
  • Promessa de penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo de novas contas bancárias de que as sociedades venham a ser titulares após a celebração do Contrato de Prestação de Garantias;
  • Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos de que as sociedades sejam titulares, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Project Document Rights” e “Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias, passíveis de serem empenhados;
  • Cessão de créditos com escopo de garantia de todos os créditos de que as sociedades venham a ser titulares, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Future Project Document Rights” e “Future Insurance Agreement Rights” no Contrato de Prestação de Garantias e não abrangidos pelo penhor previsto no parágrafo anterior;
  1. A celebração do Security Agreement e a prestação das garantias anteriormente referidas foram necessários e essenciais à celebração do Facilities Agreement e à consequente emissão do empréstimo obrigacionista;
  2. Em 27.01.2022, o notário que exarou a escritura do Facilities Agreement e do Security Agreement liquidou Imposto do Selo (Declaração mensal de Imposto do Selo n.º …), de acordo com a verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), através da aplicação da taxa de 0,6% sobre o valor de € 348.900.000,00, resultando assim num imposto apurado de € 2.093.400,00;
  3. A Requerente pagou por débito da sua conta bancária o montante de € 2.093.400,00;
  4. Em 03.08.2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o acto de liquidação de Imposto do Selo (Declaração mensal do IS n.º …);
  5. Em 03.12.2022, formou-se uma presunção de indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa em virtude da falta de decisão da AT;
  6. Em 02.03.2023, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral que originou o presente processo.

 

§2 – Factos não provados

 

            10. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que se tenham dado como não provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

11. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

12. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

            13. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

V. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1 – Ordem de conhecimento dos vícios

 

14. Discute-se neste processo a tributação em sede de Imposto do Selo, por aplicação da verba 10.3 da Tabela Geral anexa ao código daquele imposto, de um conjunto de garantias melhor identificadas supra, prestadas relativamente a um empréstimo obrigacionista celebrado entre a Requerente e o F… com o intuito de financiar o pagamento do preço da compra e venda das acções da D… e da E…, bem como para refinanciamento da dívida dessas sociedades.

 

15. No pedido de pronúncia arbitral a Requerente imputou ao acto de liquidação de Imposto do Selo vício de violação de direito da União Europeia, em concreto da exclusão de tributação prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008 (“Directiva de Reunião de Capitais”), relativa aos impostos indirectos sobre as reuniões de capitais e, a título subsidiário, vício de violação de direito interno, resultante da não aplicação da isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

 

16. Uma vez que ambos os vícios conduzem à anulabilidade do acto de liquidação de Imposto do Selo, deverá ser respeitada na sua apreciação a relação de subsidiariedade estabelecida pela Requerente, em conformidade com o disposto no artigo 124.º do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

§2 – Violação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais

 

            17. Quanto a este primeiro vício, invocou a Requerente a ilegalidade da tributação das garantias prestadas em concomitância ao empréstimo obrigacionista, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais.

 

            18. Conforme anteriormente referido, alegou a Requerente que o objectivo prosseguido pela Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008 é o de proibir a tributação de todos os actos, ainda que acessórios, relativos a operações de reunião de capitais. Segundo a Requerente, apesar de as garantias prestadas terem sido voluntária e autonomamente contratualizadas com o F…, elas foram estritamente essenciais para viabilizar a celebração do empréstimo obrigacionista. Neste sentido, concluiu a Requerente que as garantias constituíam actos formalmente autónomos, mas funcional e economicamente conexos com a emissão das obrigações, de tal modo que a sua tributação em sede de IS equivaleria a tributar a totalidade da reunião de capitais globalmente considerada.

 

            19. Invocou ainda a Requerente que a derrogação da proibição constante do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) que resulta do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), ambos da Directiva de Reunião de Capitais, apenas abrange garantias que onerem bens imóveis, não sendo assim aplicável ao presente caso, uma vez que as garantias objecto dos presentes autos consistem essencialmente em penhores e promessas de penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia.

 

            20. Já a Requerida entende que no presente caso a emissão de obrigações acompanhada da prestação de garantia equivale materialmente a uma celebração bilateral convencional de um mútuo garantido por penhor, já que as obrigações emitidas foram negociadas directamente com um banco, não sendo expectável que tais títulos tenham tido como destino primário a sua negociação no mercado. Por conseguinte, considera a Requerida que a tributação das garantias prestadas em sede de Imposto do Selo não é passível de dar origem a “discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais” (considerando 2 do preâmbulo da Directiva), não justificando assim que se convoque a proibição imposta pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais. Acresce que, no entender da Requerida, as garantias prestadas pela Requerente não consistiram numa condição de validade da emissão obrigacionista que visaram proteger (i.e., não eram obrigatórias) nem tão-pouco assumem a natureza de operação acessória (como é o caso do registo da emissão no livro de registo, do registo dos titulares das obrigações, de eventuais autenticações de actas sociais, de registos comerciais e publicações da deliberação de emissão pela sociedade), não preenchendo assim o objecto de proibição que resulta da Directiva de Reunião de Capitais.

 

21. Alegou ainda a Requerida que no presente caso sempre seria aplicável a derrogação prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Directiva de Reunião de Capitais, já que o conceito de “privilégios” que consta de tal norma abrange as garantias prestadas através de penhor, não resultando daquela norma qualquer limitação aos direitos que oneram bens imóveis.

 

22. Para decidir, importa antes de mais transcrever na parte que aqui interessa o enquadramento legal aplicável às operações em análise:

 

Código do Imposto do Selo

Capítulo I

Incidência

Artigo 1.º

Incidência objectiva

1 – O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.

 

Tabela Geral do Imposto do Selo

10 Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro‑caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente - sobre o respectivo valor, em função do prazo, considerando-se sempre como nova operação a prorrogação do prazo do contrato:

(…)

10.3 Garantias sem prazo ou de prazo igual ou superior a cinco anos  0,6%”.

 

Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2008, relativa aos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais

CAPÍTULO I

OBJECTO E ÂMBITO

Artigo 1.º

Objecto

A presente directiva regula a aplicação de impostos indirectos sobre:

a) Entradas de capital em sociedades de capitais;

b) Operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais;

c) Emissão de determinados títulos e obrigações.

 

CAPÍTULO II

DISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 5.º

Operações não sujeitas a impostos indirectos

(…)

2.   Os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indirecto:

a) A criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de acções, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu;

b) Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.

 

Artigo 6.º

Impostos e direitos

1.   Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos:

(…)

d) Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas;

 

23. Cabe então apreciar se as garantias referidas nas alíneas j) a l) da matéria de facto dada como provada, que foram prestadas para assegurar a realização e salvaguardar o cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades do empréstimo obrigacionista celebrado entre a Requerente e o F… são uma “formalidade conexa” para efeitos do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais.

 

24. Relativamente à interpretação daquela norma, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no acórdão Air Berlin, proferido no processo C-573/16 que:

 

a proibição da imposição das operações de reunião de capitais se aplica igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais” sendo que para o efeito “não é necessário que exista uma obrigação legal quando se trata de determinar se uma operação é um fim em si mesma ou deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”.

 

25. Este entendimento foi reafirmado pelo TJUE no acórdão IM Gestão de Ativos e o., proferido no processo C‑656/21, onde o Tribunal referiu que:

 

tendo em conta o objetivo prosseguido por esta diretiva [de Reunião de Capitais], o artigo 5.º da mesma deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil. Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica‑se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16, EU:C:2017:772, n.ºs 31 e 32 e jurisprudência referida)”.

 

26. Para além de consolidar uma vez mais o referido entendimento, o TJUE no acórdão A, S.A., proferido no processo C‑335/22 sublinhou ainda o seguinte:

 

24 Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça já esclareceu que o artigo 11.º, alínea b), da Diretiva 69/335, disposição cuja redação era idêntica à do artigo 5.º, nº2, alínea b), da Diretiva 2008/7, que revogou a Diretiva 69/335, devia ser interpretado no sentido de que a proibição de sujeitar um empréstimo obrigacionista ao imposto se opõe igualmente à tributação de todas as formalidades conexas, incluindo o ato notarial obrigatório para registar o reembolso desse empréstimo (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 1998, FECSA e ACESA, C‑31/97 e C‑32/97, EU:C:1998:508, n.os 19, 21 e 22).

 

25 Ora, uma vez que os serviços de colocação em mercado de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial de novas emissões, apresentam, à semelhança das operações e das formalidades referidas pela jurisprudência recordada nos n.os 23 e 24 do presente despacho, uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação dos referidos títulos, na aceção do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais em causa (v., por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.° 31).

 

26 Por conseguinte, o facto de dar a conhecer junto do público ofertas de títulos negociáveis, como obrigações e papel comercial, e de desenvolver todos os seus melhores esforços para os distribuir de modo que promova a respetiva subscrição e aquisição ou de os adquirir por sua conta para efeitos de revenda junto do público constitui uma diligência comercial necessária e que, nessa medida, deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e de colocação em circulação dos referidos títulos (v., por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.º 33).

 

27 Além disso, uma vez que a aplicação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de colocação em mercado com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de colocação em mercado a terceiros em vez de as efetuar diretamente (v., por analogia, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.° 34).

 

28 A este respeito, há que recordar que, por um lado, essa disposição não faz depender a obrigação de os Estados‑Membros isentarem as operações de reunião de capitais de nenhuma condição relativa à qualidade da entidade encarregada de realizar essas operações. Por outro lado, a existência ou não de uma obrigação legal de contratar os serviços de um terceiro não é uma condição pertinente quando se trata de determinar se uma operação deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista de uma reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2022, IM Gestão de Ativos e o., C‑656/21, EU:C:2022:1024, n.º 35 e jurisprudência referida).”.

 

27. Resulta, portanto, da jurisprudência do TJUE que as “formalidades conexas” abrangidas pela proibição de tributação constante do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva de Reunião de Capitais são aquelas que apresentem um ligação estreita, isto é, que se integram ou insiram numa operação de reunião de capitais globalmente considerada.

 

28. Sem prejuízo da amplitude interpretativa que resulta da jurisprudência do TJUE acabada de citar, a verdade é que as “formalidades conexas” visadas naqueles acórdãos – serviços de compensação na venda de acções em bolsa e encargos com serviços de comercialização na subscrição de participações de fundos – são diferentes entre si e distintas das visadas nos presentes autos – em que está em causa a prestação de garantias no âmbito da subscrição de obrigações.

 

29. Ao não terem aqueles acórdãos versado sobre a proibição de tributação indirecta relativamente à prestação de garantias por efeito da realização de operações de reunião de capitais e sobre a respectiva acessoriedade face à operação globalmente considerada, considera este Tribunal Arbitral que não pode ser feita uma transposição tout court da jurisprudência do TJUE para o presente processo.

 

30. Acresce que naqueles processos também não se discutiu a aplicabilidade da derrogação prevista no artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Directiva de Reunião de Capitais, designadamente no que se deve entender por “privilégios”, atentas as aparentes divergências de sentido que resultam das diferentes redacções/versões da Directiva.

 

31. As divergências e entendimentos contraditórios no que respeita à interpretação do Direito da União Europeia são evidentes nas posições assumidas pelas partes nos articulados que apresentaram, sendo que quer a Requerente quer a Requerida suscitaram a formulação de questões prejudiciais ao TJUE.

 

32. Ora, o reenvio prejudicial é “um instrumento de cooperação judiciária (…) pelo qual um juiz nacional e o juiz comunitário são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos estados-membros”, conforme sublinhou o TJUE no acórdão Schwarze, proferido no processo 16/65.

 

33. Este instrumento de cooperação pode não ser utilizado pelo juiz nacional com base na “teoria do acto claro” que, tal como sublinhou o TJUE no acórdão Cilfit proferido no processo 283/81, se verifica nos seguintes casos:

  1. A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal;
  2. O TJUE já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma;
  3. O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União Europeia, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.

 

34. Aqui chegados, e considerando o anteriormente exposto, considera este Tribunal Arbitral que não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação da teoria do acto claro, impondo-se a formulação de questões prejudiciais de forma a suscitar a intervenção do TJUE no que respeita à interpretação e compatibilidade das normas de direito interno com normas de Direito da União Europeia.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que decide este Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do artigo 272.º, n.º 1 do CPC, suspender a instância e submeter à apreciação do TJUE as seguintes questões prejudiciais:

 

  1. O artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à tributação em Imposto do Selo de garantias consubstanciadas em penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas em relação a uma operação de emissão de obrigações?

 

  1. A resposta à primeira questão difere consoante a prestação das garantias seja legalmente exigida ou facultativa e voluntariamente acordada?

 

  1. A resposta à primeira questão difere no caso de as garantias terem sido prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações sujeita a subscrição particular por um Banco, cuja posição de subscritor pode ser transmitida por vontade da entidade emitente, ainda que condicionada e sujeita a penalidades/comissões?

 

  1. O artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro deve ser interpretado no sentido de que abrange as garantias consubstanciadas em penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações abrangida pela alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º do mesmo diploma?

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 2.093.400,00 (dois milhões noventa e três mil e quatrocentos euros).

 

VII. CUSTAS

 

            O montante das custas será fixado a final em função do decaimento.

 

Notifique-se.

Lisboa, 10 de Novembro de 2023

 

A Árbitra Presidente,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Relatora)

 

A Árbitra Adjunta,

 

Maria do Rosário Anjos

 

 

O Árbitro Adjunto,

 

Luís Sequeira

 

2.ª DECISÃO Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

I.           Assumindo as garantias constituídas no âmbito de empréstimo obrigacionista, a qualificação de «privilégios» na acepção do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2008, é legitima a sujeição a Imposto do Selo sobre a constituição de tais garantias, nos termos da verba 10.3, da Tabela Geral do Imposto do Selo, por força daquele dispositivo, sem que, de tal tributação, decorra qualquer violação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da referida Directiva.

II.         A referência a «garantias inerentes» no artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do Código do Imposto do Selo, não pode ser entendida como excluindo do campo da isenção as garantias de origem contratual, não se circunscrevendo tal isenção às situações de garantias legalmente impostas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Maria do Rosário Anjos e Luís Sequeira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.          RELATÓRIO

 

1.          A...– S.A., sociedade anónima com o número único de matrícula e pessoa colectiva..., com sede na..., ... ..., ..., em Lisboa (“Requerente”), veio apresentar pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º e seguintes, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto tributário de liquidação de Imposto do Selo (“IS”) n.º..., de 27.01.2022, no montante de € 2.093.400,00, bem como da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra aquele acto.

 

2.          O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 02.02.2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

3.          A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

 

4.          As partes foram notificadas dessa designação em 19.04.2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

5.          Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 10.05.2023, sendo que, nesta mesma data, foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta e para remeter ainda cópia do processo administrativo.

 

6.          Em 14.06.2023, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e concluído pela improcedência do pedido arbitral formulado pela Requerente, requerendo a sua absolvição de todos os pedidos.

 

7.          Em 10.11.2023, foi proferido despacho a determinar a prorrogação do prazo para a prolação de decisão por dois meses, a contar daquela data, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, tendo em conta (i) a especial complexidade das questões submetidas a julgamento nos presentes autos, que reclamam um esforço acrescido de ponderação e articulação entre os árbitros do Tribunal Arbitral, (ii) a interposição de um dilatado período de férias judicias, e (iii) a necessidade de submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) questões prejudiciais relativas à interpretação das normas de Direito Europeu cuja aplicação é convocada no presente processo.

 

8.          Na mesma data, foi proferida decisão arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), e do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“CPC”), no sentido de suspender a instância e de submeter à apreciação do TJUE, as seguintes questões prejudiciais:

1) O artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à tributação em Imposto do Selo de garantias consubstanciadas em penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas em relação a uma operação de emissão de obrigações?

2) A resposta à primeira questão difere consoante a prestação das garantias seja legalmente exigida ou facultativa e voluntariamente acordada?

3) A resposta à primeira questão difere no caso de as garantias terem sido prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações sujeita a subscrição particular por um Banco, cuja posição de subscritor pode ser transmitida por vontade da entidade emitente, ainda que condicionada e sujeita a penalidades/comissões?

4) O artigo 6.º, n.º 1, alínea d) da Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro deve ser interpretado no sentido de que abrange as garantias consubstanciadas em penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia, prestadas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações abrangida pela alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º do mesmo diploma?”.

9.          Em 06.06.2025, foram estes autos notificados do acórdão, em resposta ao pedido de reenvio prejudicial apresentado por este Tribunal Arbitral, proferido pelo TJUE em 05.06.2025, no âmbito do processo C-685/2023 (“Acórdão C-685/2023”), o qual, a final, declarou o seguinte:

O artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, 

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações.” (com negrito no próprio texto).

 

10.       Em 16.07.2025, foi proferido despacho arbitral, convidando as partes para, querendo e em 15 dias, se pronunciarem sobre o teor do Acórdão C-685/2023 do TJUE, esclarecendo, nomeadamente, o seu entendimento acerca dos moldes como a verba 10.3, da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), e o artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do Código do IS (“CIS”), deverão ser interpretados à luz das orientações enunciadas naquele Acórdão.

 

11.       Em 04.08.2025, foi proferido despacho arbitral a determinar a prorrogação do prazo para a prolação de decisão por dois meses, a contar do termo do prazo de arbitragem, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, tendo em conta (i) a tramitação processual, (ii) a especial complexidade das questões submetidas a julgamento nos presentes autos – que exigem um esforço acrescido de ponderação e articulação entre os árbitros do Tribunal Arbitral, e (iii) a interposição de um dilatado período de férias judiciais.

 

12.       Em 15.09.2025, a Requerente e Requerida vieram, em resposta ao despacho arbitral datado de 16.07.2025, pronunciar-se sobre o teor do Acórdão C-685/2023 do TJUE, tendo concluído pela procedência e improcedência, respectivamente, do pedido de pronúncia arbitral, mantendo assim o sentido dos seus articulados iniciais.

 

13.       Em 18.09.2025, a Requerente apresentou um requerimento a requerer a junção aos autos da decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 1058/2024-T, por entender que a mesma incide sobre matéria directamente conexa com o objecto destes autos.

 

14.       Por despacho arbitral de 22.09.2025, o Tribunal Arbitral veio a admitir a junção aos autos do documento apresentado pela Requerente em 18.09.2025, tendo concedido o prazo de 10 dias à Requerida para, querendo, exercer o contraditório sobre o teor do referido documento.

 

15.       Em 02.10.2025, foi proferido despacho arbitral a determinar a prorrogação do prazo para prolação de decisão por dois meses, a contar do termo do prazo de arbitragem, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, tendo em conta (i) a tramitação processual, e (ii) a especial complexidade das questões submetidas a julgamento nos presentes autos — que exigem um esforço acrescido de ponderação e articulação entre os árbitros do Tribunal Arbitral.

 

16.       Em 18.11.2025, foi proferido despacho arbitral a (i) determinar a dispensa da realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, bem como a apresentação de alegações, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT; (ii) notificar a Requerente para proceder ao depósito da taxa de arbitragem subsequente e à junção aos autos do respectivo comprovativo e (iii) a informar que a decisão final seria proferida até ao dia 6 de Dezembro de 2025.

II.        POSIÇÃO DAS PARTES

 

§1     Posição da Requerente

 

17.       A Requerente fundamentou o seu pedido, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

a)          “A Diretiva [Directiva 2008/7/CE do Conselho, de 18.02.2008, relativa aos impostos indirectos sobre as reuniões de capitais, doravante “Directiva 2008/7/CE”] tem por objeto definir parâmetros para a aplicação pelos Estados-Membros da UE de impostos indiretos – incluindo o IS – sobre (i) entradas de capital em sociedades de capitais, (ii) operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais e (iii) emissão de determinados títulos e obrigações”;

b)          “a Diretiva estabele[ce] na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º que “[o]s Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto (…) [o]s empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis” (com negritos no próprio texto);

c)          A “proibição da incidência de impostos indiretos (…) abrange as garantias constituídas no âmbito de uma operação de emissão de obrigações”;

d)          “é entendimento do TJUE que a proibição de incidência de impostos indiretos sobre as operações de reunião de capitais não se cinge às realidades potencialmente tributáveis expressamente referidas no texto da Diretiva, mas também aos atos, operações ou situações passíveis de tributação que devam considerar-se parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais, mesmo que estas não estejam expressamente previstas nesta proibição”;

e)          “no Acórdão Air Berlin, proferido no processo C-573/16, em 19.10.2017, o TJUE” entendeu que “não é uma condição sine qua non que uma operação exista como uma obrigação legal para que a mesma seja vista como um elemento constitutivo de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais” (com negrito e sublinhados no próprio texto);

f)           “Esta asserção (…) demonstra que o carácter não legalmente imperativo das garantias das obrigações não é um requisito imprescindível da abstenção de imposto prevista no normativo em referência”;

g)          “aquilo que verdadeiramente importa para uma realidade estar abrangida por esta proibição de tributação (…) é, precisamente, que esta esteja funcionalizada, de um ponto de vista económico, à concretização de uma operação global de reunião de capitais, i.e., que seja uma diligência comercial necessária para a sua concretização, ainda que não seja legalmente obrigatória”;

h)          “o sentido da proibição da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, é indisputável que as garantias inerentes a um empréstimo obrigacionista – como são as garantias em apreço – se acham abrangidas por esta proibição de tributação, uma vez que o objetivo prosseguido pela Diretiva é o de proibir a tributação das operações de reunião de capitais incluindo a tributação de todos os acto  que, conquanto qualificáveis como como acessórios, constituem parte integrante de uma operação global de reunião de capitais”;

i)           “Este raciocínio é aplicável quer se entenda que a alusão a “formalidades conexas” abranja direitos de garantia inerentes a empréstimos obrigacionistas, quer se entenda que aqueles direitos não se reconduzam àquelas formalidades, por força da sua autonomia material (i.e., porque são constituídos através de um ato autónomo da emissão e subscrição de obrigações), na medida em que para o TJUE a tributação destes atos formalmente autónomos mas funcional e economicamente conexos equivaleria a tributar a totalidade da reunião de capitais, globalmente considerada” (com negrito no próprio texto);

j)           “é manifesto que a constituição das garantias sob exame não é um ato que se esgota em si mesmo, no sentido de ser o desígnio último das partes, mas é um mero instrumento, um ato acessório, conquanto fundamental, para o fim último das partes que é a reunião de capitais materializada na emissão de obrigações da A...; ou seja, as partes não se reuniram para constituir garantias, mas sim para fornecer capital à A..., o que suporia sempre a prestação, por parte desta e do Grupo em que se insere, de garantias de reembolso desse capital e juros”;

k)          “acresce ainda que a norma de delimitação das exceções à regra de proibição tributária consagrada no artigo 5.º da Diretiva demonstra, outrossim, que (i) as garantias mobiliárias inerentes às operações de emissão de obrigações estão diretamente abrangidas pela proibição, (ii) pelo que, não seria sequer necessário qualificá-las como “formalidades conexas” para que se possa extrair da mesma Diretiva essa proibição”;

l)           “A alínea d) deste artigo [6.º, n.º 1 da Directiva] é clara ao determinar que os Estados-Membros podem optar por derrogar a regra proibitiva do artigo 5.º da Diretiva e tributar “a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas”, o que, atenta a remissão geral para o artigo 5.º, vigora também quando estes são constituídos para garantir empréstimos obrigacionistas”;

m)        “à luz desta jurisprudência [do TJUE nos Acórdãos FECSA e ACESA, proferidos nos processos apensos C-31/97 e C-32/97, em 27.10.1998] é possível concluir que, por um lado, a referência à “constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas” se reporta também às situações em que estas garantias ou privilégios garantam empréstimos obrigacionistas; e que, por outro lado, estas não se confundem com o empréstimo obrigacionista em si mesmo, para efeitos da aplicação da derrogação da alínea d) do n.º 1.º do artigo 6.º da Diretiva, na medida em que os Estados-Membros podem onerar os privilégios e hipotecas ligadas a esses empréstimos, mas não podem tributar os empréstimos ou, naquele caso, o seu reembolso, apenas porque são garantidos por hipoteca ou privilégio”;

n)          “Daqui decorre, com efeito, que as garantias inerentes a empréstimos obrigacionistas são, também por esta razão, realidades abrangidas pela alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, dado que, se não fosse esse o caso, não faria qualquer sentido a menção no proémio do artigo 6º - “Em derrogação ao disposto no artigo 5.º, os Estados-Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos” – conjugada com a menção a hipotecas e privilégios; se estas, quando associadas a operações de reuniões de capitais, não se considerassem como podendo fazer parte das operações do n.º 5, que sentido faria dizer, no proémio do artigo 6.º, que se está a derrogar o artigo 5.º?” (com negritos no próprio texto);

o)          “De resto, se o Tribunal entendesse que as garantias associadas a um empréstimo obrigacionista não estavam ínsitas na dita emissão de obrigações, no sentido de também não poderem sofrer imposições, a primeira coisa que teria feito seria dizê-lo, não importando saber se eram garantias imobiliárias ou mobiliárias, pois os Estados seriam sempre livres de as onerar”;

p)          “Uma análise às versões alemã e inglesa da Diretiva, confirma que as situações-tipo abarcadas nesta alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, dizem respeito apenas e só a direitos que oneram bens imóveis”;

q)          “Não obstante, mesmo que se entenda, com apego ao texto legal, que o conceito de “privilégios” constante na Diretiva corresponde ao conceito de “privilégios creditórios” consagrado no nosso ordenamento jurídico, também a essa luz as garantias em análise não serão subsumíveis a essa definição”;

r)           “as garantias em apreço são penhores financeiros de ações, de saldos de contas bancárias, de créditos acionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia” pelo que “é inequívoco que nenhuma destas realidades corresponde à factispecies que subjaz à alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Diretiva, inferindo-se daí a aplicabilidade de um regime regra de que os privilégios e hipotecas são a exceção: as garantias inerentes ou associadas a um empréstimo obrigacionista são abrangidas pela proibição de imposições indiretas” (com negrito no próprio texto);

s)          “Por conseguinte, dúvidas não poderão restar de que o ato liquidação de IS objeto do presente pedido de pronúncia arbitral viola a proibição, consagrada na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva, de sujeitar a tributação indireta os empréstimos obrigacionistas ao aplicar IS sobre as garantias inerentes ao financiamento em relevo, devendo, de imediato, ser anulado, com todas as demais consequências legais”;

t)           Subsidiariamente, para o caso de não ser acolhida a interpretação precedente, o acto de liquidação de IS é ilegal por violar a isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS;

u)          A alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS é uma norma que tem “uma redação de uma extraordinária amplitude: não apenas o legislador não restringiu de nenhuma maneira o tipo de operações (a que as garantias são inerentes) compreendidas no escopo de aplicação desta norma – p. ex., não especificou deverem tratar-se de operações de subscrição (ângulo do subscritor), emissão (ângulo do emitente) ou alienação ou aquisição derivada de valores mobiliários, direitos equiparados ou contratos, (…) como, para definir o objeto possível dessas operações, recorreu a formulações muitíssimo abrangentes – dir-se-á até, exprimiu-se da forma mais abrangente que lhe era possível –, incluindo assim no âmbito de aplicação da isenção aquelas operações que têm valores mobiliários por objeto direto ou indireto, e não só: também contratos de futuros, contratos de taxas de juros, contratos de divisas, contratos de índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas”;

v)          “o que o legislador pretende (…) é consagrar uma isenção de IS que incentive o funcionamento do mercado de capitais, sem criar desigualdades entre os supostos “novos instrumentos financeiros” (…) e aqueles ditos «tradicionais», não gerando qualquer discriminação”;

w)        “Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, exige-se que as garantias dispensadas de tributação sejam inerentes a operações realizadas sobre valores mobiliários e demais instrumentos referidos na norma citada”;

x)          “Não se pode, desde logo, afirmar que as garantias só poderão ser qualificadas como inerentes se forem legalmente obrigatórias; só uma análise parcial da lei, desligada da realidade dos mercados de valores mobiliários e em contradição com a jurisprudência do TJUE sobre a noção de “operação global do ponto de vista de reunião de capitais” pode insistir nessa exigência”;

y)          “Se essa tivesse sido a intenção do legislador, teria sido extraordinariamente simples consagrá-la na lei; bastaria que, em vez de se referir a garantias inerentes às operações mencionadas, o legislador aludisse a garantias legalmente exigidas para realizar as operações mencionadas”;

z)          “o que é inerente (inseparável, indissociável) a uma operação não é necessariamente obrigatório para que a mesma se execute, sobretudo se se entender esta obrigatoriedade como significando uma exigência legal”;

aa)       “O critério da inerência não pode ser aferido à luz da lei, mas no plano dos factos; o que há a apurar é se, no domínio dos factos (da substância, da realidade económica), a garantia estava ou não intrinsecamente ligada à operação realizada; se a complementava, se se integrava na operação realizada, de um modo tal que não pudesse considerar-se um ato desligado, desconexo”;

bb)       “se uma garantia é exigida, ou até mesmo indispensável – como são o caso das garantias em discussão nesta contenda, na medida da predisposição dos intervenientes da operação realizada de as exigir como condição necessária do empréstimo - então esta tem de ser qualificada como inerente à operação conexa” (com negritos no próprio texto);

cc)       “Note-se que, no passado, já houve realmente contados exemplos de operações sobre valores mobiliários que, para serem executadas, exigiam legalmente a prestação de garantias pela parte interessada”;

dd)       “Todavia, hoje em dia, já não se conhece qualquer situação de exigência legal imperativa de garantias, tendo tal exigência sido substituída por um princípio geral de cautela, imposto às entidades intervenientes no mercado, que deixa a seu cargo exigir das suas contrapartes as garantias tidas por adequadas para a realização de determinada operação – o que significa que as referidas garantias não são, portanto, legalmente obrigatórias, mas apenas contratualmente exigidas (tais como as garantias em relevo) (…) e, ainda assim, inerentes às operações realizadas”;

ee)       Esta interpretação “é a única compaginável com a jurisprudência já citada do TJUE (nomeadamente, refletida no Acórdão Air Berlin) sobre a proibição de tributação do artigo 5.º da Diretiva, segundo a qual: “(…) não é necessário que exista uma obrigação legal quando se trata de determinar se uma operação é um fim em si mesma ou deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais” (com negrito no próprio texto);

ff)         “mesmo que por hipótese de raciocínio se pudesse sustentar que a Diretiva das reuniões de capitais não se aplicava diretamente, que o texto e a finalidade da Diretiva têm, obrigatoriamente, de ser um parâmetro de interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, por força do princípio da interpretação conforme” (com negrito no próprio texto);

gg)       “Sendo assim, é notório que, se Portugal não cumpriu o dever de transposição da Diretiva, a alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS deverá, então, ser interpretada de modo que o seu conteúdo normativo seja conforme à Diretiva e esteja de acordo com a finalidade ampla prosseguida por esta de proibir a tributação indireta sobre as operações de reunião de capitais”;

hh)       Já após a prolação do Acórdão C-685/2023 do TJUE, a Requerente sustentou que aquele devolveu a este Tribunal a tarefa de definir o conceito de “privilégio” à luz do direito nacional;

ii)         Tanto o Acórdão C-685/2023 do TJUE como a Opinião do Advogado-Geral padecem de superficialidade e de viés favorável ao Governo português, por assumirem sem base legal que o penhor seria a “garantia máxima” em Portugal e por confundirem privilégios legais com garantias voluntárias;

jj)         No direito interno, os privilégios decorrem directamente da lei (artigos 736.º a 751.º, do Código Civil) e prevalecem sobre hipotecas e penhores, razão pela qual não podem ser equiparados a garantias contratuais como o penhor de acções ou créditos;

kk)       O TJUE não impôs uma definição uniforme, antes permitiu que cada Estado preenchesse o conceito conforme o respectivo ordenamento;

ll)         Este Tribunal Arbitral deve concluir que só são tributáveis os privilégios e hipotecas legalmente estabelecidos, não as garantias voluntárias, ainda que economicamente essenciais;

mm)   O alcance extensivo atribuído pelo Advogado-Geral e pela Requerida ao artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE, é criticável por transformar a excepção em regra e esvaziar a proibição de tributação das operações de captação de capital;

nn)       As garantias associadas à emissão de obrigações integram uma operação única de reunião de capitais e são inerentes à mesma, estando, portanto, abrangidas pela proibição de tributação e pelas isenções do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS e da verba 10.3, da TGIS;

oo)       Tendo presente o princípio da interpretação conforme ao direito da União Europeia e os acórdãos do TJUE proferidos nos casos Von ColsonPfeiffer e Adeneler, a norma nacional deve ser lida de modo a preservar o efeito útil da Directiva, afastando qualquer tributação indirecta das operações de captação de capital;

pp)       Por fim, em face da recente decisão arbitral proferida em 03.09.2025, no processo 1058/2024-T, a expressão “privilégios e hipotecas” (cfr. artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE) abrange apenas garantias reais que conferem direitos preferenciais sobre bens do devedor — não se estendendo a garantias pessoais como a fiança;

qq)       Conclui que não pode deixar de ser reconhecida a ilegalidade da liquidação de IS e ordenado o reembolso das quantias pagas, com juros indemnizatórios.

 

§2     Posição da Requerida

 

18.       A Requerida, fundamentou a sua resposta, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

a)          “entende a Requerente que a garantia aqui em causa se encontra abrangida pela alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS (…) na redação dada pela Lei n.º 107-B/2003, de 31 de dezembro”;

b)          “esta questão foi já suscitada em processos arbitrais anteriores (processos n.º 97/2016-T, n.º 2/2020-T e n.º 80/2021-T) e que, em todos eles, a resposta coincidiu no sentido de que a isenção prevista alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS se aplica a garantias inerentes apenas às operações sobre instrumentos financeiros derivados e não sobre valores mobiliários em geral e, mais ainda, que a qualidade de “garantia inerente” não se verifica em garantias prestadas facultativamente”;

c)          “as decisões arbitrais que a Requerente invoca como suportando a sua pretensão – v.g. as decisões proferidas nos processos n.º 69/2014-T, de 30-11-2014 e n.º 532/2016-T, de 17-03-2017 – não tratam de situações equiparáveis ao caso em apreço”;

d)          “Já relativamente à interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo” a Requerida segue o entendimento do Tribunal Arbitral na decisão arbitral proferida no processo n.º 97/2016;

e)          “Mais se refira que quando se utiliza o vocábulo inerente na redação da norma aqui em causa este necessariamente significa obrigatório, algo que resulte de uma exigência legal ou regulamentar traduzida numa condição essencial sem a qual uma operação como a que aqui se aprecia nunca se pudesse concretizar”;

f)           “do enquadramento factual que originou a liquidação resulta claro que estamos a falar de uma garantia facultativa apresentada pelo emissor, para cobertura do risco associado ao empréstimo obrigacionista efetuado”;

g)          “Tratam-se, portanto, de garantias de salvaguarda, extrínsecas às exigências dos mercados visados pela isenção, constituídas no interesse da Requerente a favor do seu credor contra o compromisso de estes subscreverem as obrigações emitidas, unicamente com o intuito de mitigar e acautelar o risco de perda do seu investimento”;

h)          “Apesar no Código dos Valores Mobiliários (CVM) qualificar diretamente as obrigações como valores mobiliários [alínea b) do artigo 2.º do CVM], neste caso valores mobiliários representativos de dívida na medida que visam a obtenção de financiamento -, parece-nos que, à semelhança do que é afirmado pelo tribunal arbitral na decisão proferida no processo n.º 97/2016-T, nunca foi intenção do legislador abranger pela isenção obrigações e muito menos garantias que tivessem no seu cerne um acordo firmado entre um emissor e os seus credores obrigacionistas”;

i)           “apesar das referências ao regime das operações a prazo genericamente previsto nos artigos 252.º a 265.º da versão originária do CVM terem sido, como já se mencionou, suprimidas pelo Decreto-Lei n.º 357.º-A/2007 -, convém relembrar que o artigo 260.º, na redação em vigor até à alteração levada a cabo pelo citado diploma, exigia expressamente a constituição obrigatória de garantias a favor da contraparte para a realização deste tipo de operações e que a dicotomia operações a contado ou à vista e operações a prazo continua bem presente no mercado de valores mobiliários”;

j)           “apesar da supressão do mencionado preceito, a possibilidade de constituição obrigatória de garantias para operações que envolvam instrumentos financeiros ainda se mantém, conforme se prevê na alínea c) do n.º 1 do artigo 273.º do CVM”;

k)          “No caso específico dos instrumentos financeiros derivados (antigas operações a prazo), em particular aqueles que são transacionados fora de mercado, ou seja, no mercado de balcão ou através das plataformas de negociação eletrónica de instituições financeiras (comumente designados de contrato de derivados OTC)”;

l)           “a obrigação de constituição de garantias resulta da aplicação do Regulamento (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012”;

m)        “a única interpretação admissível da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS é que a mesma só se aplica a garantias inerentes a operações realizadas sobre valores mobiliários que resultem de obrigações legais ou regulamentares, pois sem elas o negócio não se pode concretizar, ou chegando-se, contra a lei, a concretizar, os agentes que violem aquela exigência sujeitam-se a pesadas sanções”;

n)          “Dos autos não decorre, nem se intui, que as garantias aqui em causa resultem de uma qualquer imposição legal ou regulamentar”;

o)          “Nem tão pouco a Requerente faz prova que a sua não prestação implicava a aplicação de uma sanção a título de contraordenação”;

p)          “Decorrem de um acordo entre as partes no qual, à semelhança do que acontece na generalidade dos financiamentos (v.g., empréstimo bancário), foi constituída uma garantia com o único intuito de minimizar o risco associado ao financiamento obrigacionista obtido junto dos Bancos subscritores em causa”;

q)          “Não preenchendo, por isso, um dos pressupostos cumulativos (da inerência) que lhe permitiriam beneficiar da aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS”;

r)           “no acórdão Air Berlin estava em causa a utilização de serviço de compensação na venda de ações em bolsa e no acórdão IM Gestão de Ativos estava em causa a tributação de encargos com serviços de comercialização na subscrição de participações de fundos”;

s)          “Já no caso sub judice, está em causa tributação incidente sobre garantias prestadas no âmbito da subscrição de obrigações”;

t)           “não são objetivamente comparáveis à prestação de garantia como colateral na subscrição de obrigações, a utilização de uma câmara de compensação na admissão de ações em bolsa ou de serviços de intermediação na oferta pública de unidade de participação”;

u)          “o artigo 6.º da Diretiva 2008/7 prevê, expressamente “em derrogação ao disposto no artigo 5.º” que os Estados-Membros podem cobrar tributos que “onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas” (com negritos no próprio texto);

v)          “não faz qualquer sentido a argumentação que a Requerente desenvolve na tentativa de concluir que as garantias contempladas naquele artigo 6.º não poderiam coincidir com garantias prestadas no âmbito da subscrição de ações”;

w)        “Nem colhe, de resto, a tese que a Requerente de que os termos “privilégios e hipotecas” deixariam de fora garantias como os penhores, utilizadas no caso sub judice”;

x)          “a versão portuguesa [da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Directiva] faz fé e é plenamente aplicável” sendo coincidente com a versão francesa;

y)          “mesmo que se admitisse (…) que a obrigação prestada como colateral na subscrição de obrigações estaria abrangida pela alínea b), do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE, a sua tributação encontra-se legitimada pelo artigo 6.º da mesma diretiva”;

z)          “nem se vê de que forma, numa operação com os contornos da que está agora em causa – que embora se apresente como uma emissão de obrigações, equivale materialmente a um mútuo garantido por penhor - a tributação das garantias prestada pudesse surgir como dando «origem a discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais» (considerando 2 do preâmbulo da Diretiva 2008/7/CE), justificando assim que se convoque a proibição imposta pelo artigo 5.º da Diretiva 2008/7/CE”;

aa)       “no caso dos presentes autos, tendo as obrigações sido negociadas diretamente com um banco, suscita-se a dúvida se àquelas será dado o destino normal dos “títulos negociáveis”, que não o de mero sucedâneo para um negócio de mútuo convencional - que, materialmente, foi o que se verificou”;

bb)       “O caso sub judice configura justamente uma situação que ajuda a enquadrar o objetivo do legislador europeu quando, na Diretiva que se propõe proteger a livre circulação de títulos negociáveis, prevê expressamente como derrogação da proibição da tributação da emissão de obrigações e outros títulos negociáveis, os tributos que incidem sobre garantias” (com negrito no próprio texto);

cc)       “É que é nos casos, como o vertente, em que, contra a subscrição de obrigações, um agente vem exigir prestação de garantias, que não é expectável que tais títulos tenham tido como destino primário a sua a negociação no mercado, mas antes a emissão de obrigação tenha funcionado como a celebração bilateral convencional de um mútuo, o que sempre escaparia ao âmbito de proteção da Diretiva 2008/7/CE”;

dd)       Subsidiariamente, “a[s] garantia[s] em causa não se insere[m] no conceito de «formalidades conexas»” porque “resultaram da vontade das partes, não constituindo condição de validade da emissão obrigacionista que visou proteger, nem tão-pouco assumem a natureza de operação acessória tal como desenvolvida no acórdão IM Gestão de Ativos”;

ee)       “a Requerente defende uma interpretação lata para as expressões “emissão de obrigações” e “formalidades conexas” com vista a que nela esteja compreendido todo e qualquer ato ou operação diretamente relacionada com a emissão das obrigações e que se revele indispensável à sua concretização”;

ff)         Contudo “quando analisa as garantias ou privilégios que garantam empréstimos obrigacionistas e a aplicação da alínea d) do n.º 1.º do artigo 6.º da Diretiva, defende, ao invés, uma interpretação restritiva, concluindo que estas garantias ou privilégios não devem confundir-se com o empréstimo obrigacionista em si mesmo, na medida em que os Estados-Membros podem onerar os privilégios e hipotecas ligadas a esses empréstimos, mas não podem tributar os empréstimos ou, naquele caso, o seu reembolso, apenas porque são garantidos por hipoteca ou privilégio”;

gg)       “a expressão “formalidades conexas” a que se reporta a alínea b), n.º 2 do art.º 5.º da Diretiva 2008/7/CE, não pode entender-se com o sentido amplo pretendido pela Requerente, mas sim no sentido de abranger apenas as formalidades que fazem parte do procedimento da operação em causa, ou seja, aquelas formalidades previstas na lei como um trâmite, entre outros, característicos do mesmo”;

hh)       “mesmo que a tributação de garantias prestadas no âmbito de operações de reunião de capitais não estivesse expressamente autorizada no artigo 6.º da Diretiva 2008/7/CE, ainda assim soçobraria a argumentação da Requerente quanto à aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da Diretiva a garantias prestadas como colateral na subscrição de obrigações”;

ii)         Já na resposta ao despacho arbitral de 16.07.2025, a Requerida pronuncia-se sobre o Acórdão C-685/2023 do TJUE, afirmando que o TJUE respondeu de forma precisa e clara às questões colocadas pelo Tribunal Arbitral;

jj)         O reenvio limitou-se à compatibilidade das normas de incidência do CIS e da verba 10, da TGIS, com os artigos 5.º, n.º 2, alínea b), e 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE, não abrangendo o artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS;

kk)       No § 44 do Acórdão C-685/2023, o TJUE remete ao tribunal nacional a tarefa de verificar se os penhores e cessões de créditos em causa podem ser qualificados como “privilégios”, sendo que, à luz do direito português, os penhores (cfr. artigo 666.º, do Código Civil) conferem um direito real de garantia com preferência, equiparável ao privilégio para efeitos da Directiva;

ll)         Daí decorre que o IS sobre a constituição de penhores no âmbito de emissões obrigacionistas não viola o direito da União Europeia, pois tais garantias enquadram-se na excepção prevista no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE;

mm)   A isenção do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, só abrange garantias legalmente exigidas nas operações aí descritas, não se aplicando à emissão de valores mobiliários, tal como decorre da decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 80/2021-T;

nn)       Conclui que a tributação das garantias prestadas pela Requerente é legítima e não contraria o Acórdão C-685/2023 do TJUE, nem o direito da União Europeia.

 

III.      SANEAMENTO

 

19.       O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos do artigo 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. 

 

20.       As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. 

 

21.       O processo não enferma de nulidades, nem existem excepções ou outras questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

IV.      MATÉRIA DE FACTO

 

§1     Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

22.       Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

23.       Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de Direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

24.       Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos facto e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

§2     Factos provados

 

25.       Analisada a prova até agora produzida, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a apreciação do mérito da causa:

a)          A Requerente é uma sociedade anónima de direito português;

b)          O capital social da Requerente é detido na sua totalidade pela B... S.à.r.l., sociedade de responsabilidade limitada registada no Registo de Comércio e de Sociedades do Luxemburgo (R.C.S. Luxembourg) sob o número ... e com o número português de entidade equiparada ... (“B...”);

c)          Em 21.07.2021, a B... adquiriu à C..., SGPS, S.A., sociedade anónima de direito português inscrita na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva ....  (“C...”), a totalidade do capital social da D..., S.A., sociedade anónima de direito português inscrita na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva (“D...”) e da E..., S.A. sociedade anónima inscrita na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de pessoa colectiva ... (“E...”);

d)          Em 29.07.2021, a B... cedeu à Requerente a sua posição contratual no contrato de compra e venda das acções da D... e da E... referido na alínea anterior;

e)          Em 27.01.2022, a Requerente celebrou um contrato de financiamento denominado Facilities Agreement, no âmbito do qual emitiu um empréstimo obrigacionista, com a emissão de obrigações nominativas e escriturais, de valor nominal de € 100.000,00 por título, no montante global de emissão de € 348.900.000,00 fraccionado em duas classes (classes “A” e “B”) de obrigações (“Facilities Agreement”);

f)           As obrigações referidas na alínea anterior emitidas pela Requerente ao abrigo do Facilities Agreement foram integralmente subscritas pelo Banco F..., S.A. (“F...”);

g)          No Facilities Agreement determinou-se que a Requerente, na qualidade de emitente, podia determinar a transmissão da posição contratual de subscritor assumida pelo F..., ainda que mediante penalidades/comissões;

h)          As obrigações emitidas pela Requerente foram registadas junto de, e custodiadas pela, G... (“G...”);

i)           O Facilities Agreement foi celebrado com o objectivo de financiar o pagamento pela Requerente do preço da compra e venda das acções da D... e da E..., bem como para o refinanciamento da dívida existente nestas sociedades;

j)           Para garantia do cumprimento de todas as obrigações e responsabilidades constituídas ao abrigo do FacilitiesAgreement, foram prestadas diversas garantias de natureza real e/ou pessoal pela B..., pela Requerente, pela D... e pela E..., através do contrato denominado de Security Agreement celebrado entre estas sociedades, na qualidade de garantes, e o F..., na qualidade de beneficiário e agente das garantias;

k)          No âmbito do Security Agreement, a B... concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:

1.          Penhor financeiro de primeiro grau sobre as acções da Requerente, e respectivos direitos inerentes;

2.          Promessa de penhor financeiro sobre novas acções que venham a ser emitidas pela Requerente e respectivos direitos inerentes;

3.          Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos presentes (resultantes de prestações acessórias, prestações suplementares, suprimentos, ou quaisquer outras dívidas subordinadas, outras formas de quase capital ou outras formas de financiamento em espécie ou dinheiro (“Créditos Accionistas”) de que a B... seja titular, enquanto sociedade-mãe, sobre a Requerente;

4.          Promessa de penhor financeiro sobre futuros Créditos Accionistas que a B... venha a ser titular;

l)           No âmbito do Security Agreement, a Requerente concedeu as seguintes garantias e promessas de garantias:

1.          Penhor financeiro de primeiro grau sobre as acções da D... e da E..., e respectivos direitos inerentes;

2.          Promessa de penhor financeiro sobre novas acções que venham a ser emitidas pela D... e pela E... e respectivos direitos inerentes;

3.          Penhor de primeiro grau de quaisquer Créditos Accionistas presentes de que a Requerente seja titular, enquanto sociedade-mãe, sobre a D... e E...;

4.          Promessa de penhor financeiro sobre futuros Créditos Accionistas que a Requerente venha a ser titular;

5.          Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos de que a Requerente seja titular, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Hedging Agreement Rights”, “Project Document Rights” e “Insurance Agreement Rights” no Security Agreement, passíveis de serem empenhados;

6.          Cessão de créditos com escopo de garantia de todos os créditos de que a Requerente venha a ser titular, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Future Hedging Agreement Rights”, “Future Project Document Rights” e “Future Insurance Agreement Rights” no Security Agreement e não abrangidos pelo penhor previsto no parágrafo anterior;

7.          Penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo das contas bancárias de que a Requerente era titular à data da celebração do Security Agreement;

8.          Promessa de penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo de novas contas bancárias de que a Requerente venha a ser titular após a celebração do Security Agreement;

m)        No âmbito do Security Agreement, a D... e E... concederam as seguintes garantias e promessas de garantias:

1.          Penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo das contas bancárias de que as sociedades eram titulares à data da celebração do Security Agreement;

2.          Promessa de penhor financeiro de primeiro grau sobre o saldo de novas contas bancárias de que as sociedades venham a ser titulares após a celebração do Security Agreement;

3.          Penhor de primeiro grau de quaisquer créditos de que as sociedades sejam titulares, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Project Document Rights” e “Insurance Agreement Rights” no Security Agreement, passíveis de serem empenhados;

4.          Cessão de créditos com escopo de garantia de todos os créditos de que as sociedades venham a ser titulares, incluindo o direito a receber quaisquer montantes ao abrigo dos denominados “Future Project Document Rights” e “Future Insurance Agreement Rights” no Security Agreement e não abrangidos pelo penhor previsto no parágrafo anterior;

n)          A celebração do Security Agreement e a prestação das garantias anteriormente referidas foram necessárias e essenciais à celebração do Facilities Agreement e à consequente emissão do empréstimo obrigacionista por parte da Requerente;

o)          Em 27.01.2022, o notário que exarou a escritura do Facilities Agreement e do Security Agreement liquidou IS, de acordo com a verba 10.3, da TGIS, através da aplicação da taxa de 0,6% sobre o valor de € 348.900.000,00, resultando assim num imposto apurado de € 2.093.400,00;

p)          A Requerente pagou, em 28.01.2022, por débito da sua conta bancária o montante de € 2.093.400,00, tendo a notária entregue nos cofres do Estado tal montante, em 01.02.2022, na sequência da entrega da Declaração Mensal de IS n.º...;

q)          Em 03.08.2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra aquele acto de liquidação de IS, a qual correu termos sob o n.º ...2022...;

r)           Em 03.12.2022, formou-se uma presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente em virtude da falta de decisão da Requerida;

s)          Em 02.03.2023, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral que originou o presente processo.

 

§3     Factos não provados 

 

26.       Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que se tenham dado como não provados.

 

V.        MATÉRIA DE DIREITO

 

§1     Ordem de conhecimento dos vícios

 

27.       Discute-se neste processo a tributação em sede de IS, por aplicação da verba 10.3, da TGIS, de um conjunto de garantias melhor identificadas supra, prestadas no âmbito de um empréstimo obrigacionista celebrado entre a Requerente e o F... com o intuito de financiar aquela no pagamento do preço da compra e venda das acções da D... e da E..., bem como no refinanciamento da dívida existente nestas sociedades que aquela iria adquirir.

 

28.       No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente imputou ao acto de liquidação de IS posto em crise o vício de violação de direito da União Europeia, em concreto da exclusão de tributação prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE, relativa aos impostos indirectos sobre as reuniões de capitais e, a título subsidiário, o vício de violação de direito interno, resultante da não aplicação da isenção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

 

29.       Uma vez que ambos os vícios conduzem à anulabilidade do acto de liquidação de IS impugnado, deverá ser respeitada, na sua apreciação, a relação de subsidiariedade estabelecida pela Requerente, em conformidade com o disposto no artigo 124.º, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

§2     Violação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE 

 

30.       Quanto a este primeiro vício, invocou a Requerente a ilegalidade da tributação das garantias prestadas em concomitância com o empréstimo obrigacionista, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE.

 

31.       Conforme anteriormente referido, alegou a Requerente que o objectivo prosseguido pela Directiva 2008/7/CE, é o de proibir a tributação de todos os actos, ainda que acessórios, relativos a operações de reunião de capitais. 

 

32.       Segundo a Requerente, apesar de as garantias prestadas terem sido voluntária e autonomamente contratualizadas com o F..., elas foram estritamente essenciais para viabilizar a celebração do empréstimo obrigacionista ao abrigo do Facility Agreement.

 

33.       Neste sentido, concluiu a Requerente que as garantias inerentes a este empréstimo obrigacionista constituíam actos formalmente autónomos, mas funcional e economicamente conexos com essa emissão de obrigações, de tal modo que a sua tributação em sede de IS equivaleria a tributar a totalidade da reunião de capitais globalmente considerada.

 

34.       Invocou ainda a Requerente que a derrogação da proibição constante do artigo 5.º, n.º 2, alínea b) que resulta do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), ambos da Directiva 2008/7/CE, apenas abrange garantias que onerem bens imóveis, não sendo assim aplicável ao presente caso, uma vez que as garantias objecto dos presentes autos consistem essencialmente em penhores e promessas de penhores financeiros de acções, de saldos de contas bancárias, de créditos accionistas e a cessão de créditos com escopo de garantia.

 

35.       Já a Requerida entende que, no presente caso, a emissão de obrigações acompanhada da prestação de garantia equivale materialmente a uma celebração bilateral convencional de um mútuo garantido por penhor, já que as obrigações emitidas foram negociadas directamente com um banco, não sendo expectável que tais títulos tenham tido como destino primário a sua negociação no mercado. 

 

36.       Por conseguinte, considera a Requerida que a tributação das garantias prestadas em sede de IS não é passível de dar origem a “discriminações, duplas tributações e disparidades que dificultam a livre circulação de capitais»(considerando 2 do preâmbulo da Diretiva)”, não justificando assim que se convoque a proibição imposta pelo artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE. 

 

37.       Acresce que, no entender da Requerida, as garantias prestadas pela Requerente não consistiram numa condição de validade da emissão obrigacionista que visaram proteger (i.e., não eram obrigatórias) nem tão-pouco assumem a natureza de operação acessória (como é o caso do “registo da emissão no livro de registo; do registo dos titulares das obrigações; de eventuais autenticações de atas sociais, de registos comerciais e publicações da deliberação de emissão pela sociedade”), não preenchendo assim o objecto de proibição que resulta da Directiva 2008/7/CE.

 

38.       Foi, nestes autos, determinado o reenvio prejudicial para o TJUE, para que este se pronunciasse sobre as quatro questões supra citadas formuladas por este Tribunal Arbitral, o que veio a suceder através do Acórdão C-685/2023, de 05.06.2025.

 

39.       Neste Acórdão, o TJUE começa por recordar que o objecto da Directiva 2008/7/CE é excluir os impostos indirectos sobre as reuniões de capitais, com excepção do “imposto sobre as entradas de capital” enunciado no artigo 7.º, da Directiva 2008/7/CE, sendo que o seu considerando 9 expressa o objectivo de não ser aplicado IS sobre títulos representativos de capital próprio ou de empréstimo.

 

40.       Neste sentido, o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE, proíbe a tributação indirecta de empréstimos contraídos sob a forma de emissão de obrigações e de todas as “formalidades conexas”.

 

41.       Sublinha, porém, o TJUE que este conceito de “formalidades conexas” abrange apenas actuações exigidas pela lei nacional para a constituição e emissão de obrigações, pelo que garantias prestadas voluntariamente – ainda que exigidas pelo mutuante – não integram aquele conceito previsto naquela norma da Directiva 2008/7/CE.

 

42.       Contudo, decorre do explanado pelo TJUE que a proibição de tributar as operações de capitais deve ser interpretada amplamente (“latu sensu”), para preservar o efeito útil da Directiva 2008/7/CE, abrangendo não apenas as operações expressamente nela previstas, mas também aquelas que integrem economicamente uma operação de reunião de capitais.

 

43.       Daí que, para o TJUE, as garantias associadas ao cumprimento das obrigações resultantes de um empréstimo obrigacionista, por estarem estreitamente ligadas à respectiva emissão, fazem parte integrante da operação de reunião de capitais, independentemente de serem legais ou voluntárias ou de se prever a possibilidade de o mutuante poder substituir outro mutuante.

 

44.       Por conseguinte e por princípio, a constituição dessas garantias deve-se ter por abrangida pela proibição de tributação do artigo 5.º, da Directiva 2008/7/CE.

 

45.       No entanto, ao analisar o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE, o TJUE refere que tal preceito permite, pese embora o disposto no artigo precedente, aos Estados-Membros cobrar impostos sobre a constituição, inscrição ou extinção de “privilégios e hipotecas”. 

 

46.       Tendo presente que a Directiva 2008/7/CE não define o termo “privilégios” empregue naquela norma, mas assinalando que o seu sentido deve ser aplicado de uma forma uniforme em toda a União Europeia, o TJUE prescreve que a respectiva interpretação, de forma autónoma e uniforme, deve ter em conta o texto, o contexto em que se insere e os objectivos da Directiva.

 

47.       Constata, ainda, o TJUE que a expressão “privilégios e hipotecas” aparece na maioria das versões linguísticas, como abrangendo instrumentos que conferem direitos preferenciais sobre bens de uma pessoa e não apenas direitos imobiliários. 

 

48.       Seguidamente, o TJUE sublinha que o artigo 6.º, n.º 1, da Directiva 2008/7/CE, funciona como derrogação da regra de não tributação ínsita no artigo 5.º daquela, pelo que ao interpretar o conceito de “privilégios” ínsito na alínea d) daquele artigo, deve considerar-se o contexto dessa proibição.

 

49.       Isto é, o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE, só veda a tributação indirecta sobre empréstimos obtidos através da emissão de obrigações ou de outros títulos negociáveis (títulos representativos de capitais de empréstimo) e não sobre todo o âmbito de empréstimos em geral.

 

50.       A este respeito, o TJUE detalha que, tal como nas emissões de títulos representativos de capitais próprios (e.g., a emissão de acções), esta norma da Directiva 2008/7/CE também isenta de impostos indirectos as operações de reunião de capitais sob a forma de empréstimos obrigacionistas, uma vez que, nestes casos, o investidor (mutuante) avalia, sobretudo, o desempenho futuro da entidade emitente e não o património desta como garantia de reembolso.

 

51.       Sustentando o TJUE esta interpretação tendo por referência os artigos 3.º, alíneas i) e j), e 5.º, n.º 1, alínea a), ambos da Directiva 2008/7/CE.

 

52.       Em todo o caso, e ainda que tendo presente que o legislador europeu não privou as partes contratantes de constituírem direitos preferenciais sobre bens móveis ou imóveis para garantir o reembolso de um empréstimo abrangido pelas disposições da Directiva 2008/7/CE, sublinha o TJUE que “não é menos certo que o artigo 6.º, n.º l, alínea d), desta diretiva manteve a competência fiscal dos Estados-Membros no que respeita aos instrumentos contratuais constituídos pelos privilégios e hipotecas previstos no âmbito de uma operação de reunião de capitais de empréstimo.” (com negrito nosso).

 

53.       Prosseguindo nesta linha de julgamento, o TJUE recorda que “o âmbito de aplicação do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7, que se aplica «[e]m derrogação» das proibições de tributação previstas no artigo 5.º da mesma, está em estreita correlação com o âmbito de aplicação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), desta diretiva e comprova que o legislador da União não teve intenção de retirar da competência fiscal dos Estados-Membros uma categoria de direitos, de natureza imobiliária ou mobiliária, que visam garantir o reembolso de um empréstimo obrigacionista. Nestas condições, como, em substância, o advogado-geral considerou no n.º 50 das suas conclusões, a expressão «privilégios e hipotecas», referida neste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), engloba todos os instrumentos contratuais que façam parte integrante de uma operação de reunião de capitais de empréstimo que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações” (com negritos nossos).

 

54.       Resulta deste último citado segmento do aresto em análise, a afirmação segundo a qual, a expressão “privilégios e hipotecas” abrange todos os instrumentos contratuais que, integrando, ainda que acessoriamente, uma operação de reunião de capitais sob a forma de empréstimo, concedem ao credor um direito de pagamento preferencial ou prioritário em caso de incumprimento por parte do devedor.

 

55.       Em função destas considerações, determinou o TJUE que é da responsabilidade do órgão jurisdicional de reenvio (este Tribunal Arbitral, no caso) averiguar “se os penhores, as promessas de penhor e a cessão de créditos em causa no processo principal, uma vez que não constituem hipotecas, podem ser qualificadas de «privilégios» na aceção do referido artigo 6.º, n.º 1, alínea d) [da Directiva 2008/7/CE]”.

56.       Tendo o TJUE declarado, recorde-se, a final, neste Acórdão, o seguinte:

O artigo 5.º, n.º 2, alínea b), e o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, 

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a uma legislação nacional que prevê a tributação a título de imposto do selo das garantias prestadas sob a forma de penhores de ações, de saldos de contas bancárias ou de créditos resultantes de empréstimos acionistas, bem como sob a forma de cessão de créditos, com vista ao cumprimento adequado das obrigações decorrentes de um empréstimo obrigacionista emitido por uma sociedade de capitais, desde que essas garantias, ainda que façam parte integrante desse empréstimo obrigacionista, constituam privilégios, na aceção deste artigo 6.º, n.º 1, alínea d), uma vez que permitem que o titular de um crédito obtenha o pagamento preferencial ou prioritário deste último no caso de o devedor não cumprir as suas obrigações. (com negrito no próprio texto).

 

57.       Decorre deste Acórdão C-685/2023 proferido pelo TJUE que a Directiva 2008/7/CE não impede que os Estados-Membros tributem em IS as garantias (como penhores ou cessões de créditos) prestadas no âmbito de um empréstimo obrigacionista, desde que essas garantias confiram ao credor um direito de pagamento preferencial ou prioritário em caso de incumprimento por parte do devedor, ou seja, desde que sejam qualificáveis como “privilégios” na acepção do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE.

 

58.       Por outras palavras, o TJUE conclui que a Directiva 2008/7/CE não se opõe à legislação portuguesa que sujeita a IS tais garantias, desde que estas confiram efectivamente um direito preferencial ou prioritário ao credor de se ver ressarcido através de tais “privilégios”, independentemente de se tratar ou não de uma garantia imobiliária.

 

59.       Resulta ainda deste acórdão do TJUE que o conceito de “privilégios” deve ser interpretado de forma autónoma e funcional, não se circunscrevendo às figuras nominadas do direito interno, nem tão-pouco exigindo que a garantia assuma a forma de hipoteca. 

 

60.       O TJUE esclarece ainda que a delimitação deste conceito deve atender, não à designação técnica da garantia, mas à função económica que esta desempenha: a de conferir ao credor uma posição de preferência no recebimento do seu crédito em caso de incumprimento do devedor. 

 

61.       Assim, privilegia o TJUE uma leitura substancial que engloba todas as garantias reais ou equiparáveis que assegurem prioridade creditória, incluindo penhor financeiro, penhor de acções, penhor de créditos presentes ou futuros, bem como cessões de crédito com função de garantia.

 

62.       É, pois, com base neste julgamento do TJUE que cabe a este Tribunal Arbitral – enquanto órgão jurisdicional de reenvio – a apreciação sobre se as garantias em concreto prestadas no âmbito do Security Agreement reúnem (ou não) as características de “privilégio” na acepção do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE, que legitimem a tributação, em sede de IS, sobre a constituição de tais garantias. 

 

63.       Aqui chegados, impõe-se, ante a concreta natureza do acervo de garantias prestadas no caso em análise sobre o valor da emissão obrigacionista em apreço, aferir se as mesmas se subsumem nos elementos caracterizadores que dimanam da interpretação da Directiva 2008/7/CE prescrita pelo TJUE.

 

64.       Aplicando este critério interpretativo ao caso concreto dos autos, o conjunto de garantias prestadas por força do Facilities Agreement e previstas do Security Agreement — penhores financeiros sobre acções, penhores de créditos accionistas, penhores de saldos bancários, cessões de créditos de diversa natureza e promessas de constituição de penhor — configuram inequivocamente mecanismos que afectam activos patrimoniais ao cumprimento das obrigações emergentes do empréstimo obrigacionista, conferindo assim ao F... uma posição preferencial de recebimento do seu crédito, sendo a mesma juridicamente oponível perante terceiros. 

 

65.       A natureza destas garantias, a sua função de mitigação de risco e a tradução destas na viabilização de condições prioritárias no ressarcimento em caso de incumprimento, preenchem integralmente os elementos que, segundo o TJUE, caracterizam um “privilégio” na acepção da Directiva 2008/7/CE.

 

66.       Deste modo, conclui-se que as garantias em causa têm a aptidão funcional de assegurar ao credor o pagamento preferencial (face aos demais credores que delas não sejam beneficiários) do seu crédito e, por isso, devem ser qualificadas como “privilégios” para efeitos do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE. 

 

67.       Por consequência, enquadram-se no âmbito das garantias cuja constituição os Estados-Membros estão autorizados a submeter a imposto, não havendo, em face do direito da União Europeia, qualquer obstáculo à sua tributação em sede de IS.

 

68.       Essa leitura já vinha, de resto, sendo acolhida em diversas decisões arbitrais, designadamente nas decisões proferidas em 14.10.2024, no processo n.º 1040/2023-T, e em 25.07.2025, no processo n.º 1203/2024-T, aqui se citando um trecho deste último aresto: 

Na verdade, cremos que se enquadram, ainda, no conceito de “privilégios” outros tipos de garantias que tenham os mesmos efeitos, ou seja, que confiram direitos especiais na aceção supra indicada – i.e, o de constituir uma garantia especial capaz de conferir direitos preferenciais na satisfação do crédito em caso de incumprimento (cfr. Conclusões do Advogado-Geral, n.º 51).

A ser outra a interpretação, conforme declarou o Advogado-Geral, estaríamos a privar a menção “privilégios”, consagrada na alínea d), do n.º 1, do artigo 6.º, da citada Diretiva, de qualquer significado e utilidade, dando origem a uma situação iníqua, no qual só no caso de um contrato de garantia em que estejam previstas hipotecas é possível aplicar impostos indiretos, o que levaria a uma disparidade no tratamento entre garantias com as mesmas funções e efeitos, que afetaria negativamente a autonomia contratual das partes.

Desta feita, é manifesto que as garantias aqui prestadas (penhores de ações, penhores de créditos, penhores de quotas e hipotecas) estão sujeitas a tributação, em sede de IS, ao abrigo da citada norma – alínea d), do n.º 1, do artigo 6.º, da aludida Diretiva –,

Sendo esta a interpretação a retirar das aludidas conclusões do Advogado-Geral apresentadas no âmbito do processo n.º C685/23 e da respetiva decisão final, e não a apresentada pela Requerente, que está em clara contradição com a posição preconizada por aquele.”.

 

69.       Em suma, as garantias constituídas pela Requerente e pelas demais sociedades garantes ao abrigo do Security Agreement assumem a natureza de “privilégios”, na acepção consagrada no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Directiva 2008/7/CE, legitimando assim a sujeição a IS, nos termos da verba 10.3, da TGIS, sobre a respectiva constituição, sem que, de tal tributação, decorra qualquer violação do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2008/7/CE, não podendo assim obter provimento a declaração de ilegalidade da liquidação de IS ora colocada em crise, tendo por referência este vício arguido pela Requerente.

 

§3     Violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS

 

70.       A Requerente invoca ainda a ilegalidade do acto de liquidação de IS e bem assim da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra aquele acto, defendendo que tal liquidação incidente sobre as garantias prestadas no âmbito do contrato de financiamento obrigacionista constitui uma violação do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, uma vez que estas garantias devem ser consideradas “inerentes” à operação de emissão obrigacionista.

 

71.       Sustenta, em síntese, que a referida isenção tem por objectivo promover e não onerar as operações de captação de capital, em conformidade com a Directiva 2008/7/CE, e que as garantias prestadas ora em análise são elementos necessários e indissociáveis da operação de financiamento, sem os quais esta não se teria concretizado.

 

72.       Defende ainda que, na redacção constante daquela norma do CIS, não há uma restrição promovida pelo legislador quanto ao tipo de operações (garantias) compreendidas no âmbito daquela norma.

 

73.       Nem tampouco, para a Requerente, o termo “inerente” constante daquela norma se deve limitar às garantias que sejam legalmente obrigatórias, devendo abranger igualmente as garantias exigidas contratualmente pelos subscritores ou entidades financeiras como condição necessária ao financiamento, sob pena de esvaziar o alcance da norma e contrariar o objectivo da isenção. 

 

74.       Por conseguinte, a liquidação de IS impugnada é, no seu entender, também por esta razão, ilegal.

 

75.       Por seu turno, sustenta a Requerida, em suma, que não se verifica qualquer violação do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, por entender que a isenção ali prevista apenas se aplica às garantias cuja prestação seja legalmente exigida nas operações financeiras aí descritas — e não às garantias livremente acordadas pelas partes no âmbito de contratos de financiamento, como o empréstimo obrigacionista em causa. 

 

76.       Invocando a jurisprudência arbitral maioritária (v.g. a decisão arbitral proferida em 03.08.2021, no processo n.º 80/2021-T), defende que as garantias contratualmente estabelecidas não preenchem o requisito da “inerência” exigido pela norma, já que tal implicaria uma aplicação casuística e arbitrária da isenção, incompatível com os princípios da legalidade e da tipicidade dos benefícios fiscais.

 

77.       Vejamos, antes de mais, o teor do normativo em causa e sobre o qual repousa a presente questão a dilucidar:

“Artigo 7.º

Outras isenções

1.                 São também isentos do imposto:

(…)

d) As garantias inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados ou através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar, ou ainda por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tenham por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas;”

 

78.       A controvérsia em torno da interpretação do termo de “inerente” constante da norma ora citada tem vindo a ser analisada em diversas decisões arbitrais, corroboradas pelas Requerida, proferidas não apenas no já mencionado processo n.º 80/2021-T, mas igualmente as datadas de 29.03.2021, referente ao processo n.º 2/2020-T, e de 25.03.2025, referente ao processo n.º 883/2024-T.

 

79.       Todas estas decisões arbitrais tendem a convergir no entendimento de que a isenção de IS prevista na referida norma apenas abrange as garantias legalmente impostas, excluindo aquelas que resultam de exigência contratual acordada entre as partes.

 

80.       Estas decisões assentam, de forma essencial, em duas linhas de argumentação: 

a.          Em primeiro lugar, sustentam que o termo “inerente” deve ser interpretado restritivamente, limitando-se às garantias cuja constituição seja imposta ope legis, sob pena de violação das regras de interpretação normativa; 

b.          Em segundo lugar, consideram que uma leitura mais ampla colidiria com os princípios da legalidade e da tipicidade dos benefícios fiscais, uma vez que deixaria à livre determinação das partes ou de entidades aplicadoras (como os notários) o poder de definir o âmbito de aplicação da isenção.

 

81.       Deve, contudo, e desde já, deixar-se claro que não se acompanha qualquer destes argumentos sufragados nos referidos arestos e secundados, no essencial, pela ora Requerida.

 

82.       A interpretação aí defendida incorre num enviesamento formalista do conceito em causa e numa inversão do método interpretativo consagrado no artigo 9.º, do Código Civil, desconsiderando o elemento literal, afastando-se da realidade económica das operações em apreciação e, por fim, afastando-se da própria finalidade extrafiscal subjacente à isenção de IS em causa.

 

83.       O ponto de partida da actividade interpretativa não pode deixar de ser o texto da lei, mas também o seu sentido linguístico comum. 

 

84.       Assim mesmo, o termo “inerente”, de raiz latina (inhaerens, “aderido”, “ligado”, “inseparável”), significa aquilo que pertence à própria natureza de algo, que lhe é próprio ou intrínseco, “que está ligado de modo inseparável à natureza ou essência de algo; intrínseco, próprio[1].

 

85.       É, pois, carecido de fundamento etimológico-linguístico a interpretação que pretende reduzir tal conceito àquilo que seja legislativamente imposto ou exigido.

 

86.       Pelo contrário, o sentido natural da expressão remete para uma relação de indissociabilidade funcional ou estrutural, no caso, dos mecanismos a que as garantias se devam considerar indissociáveis, o que se mostra plenamente compatível com garantias cuja constituição decorra de exigências contratuais e não apenas por determinação legal, porquanto sem aquelas a finalidade última – in casu, a emissão obrigacionista – não é susceptível de ocorrer.

 

87.       De acordo com o artigo 9.º, do Código Civil, atento o disposto no artigo 11.º, da Lei Geral Tributária (“LGT”), a interpretação da lei deve reconstituir o pensamento legislativo a partir da letra, tendo em conta “a unidade do sistema jurídico” e “as condições do tempo em que é aplicada”. 

 

88.       Pelo que, fazer corresponder o termo de “inerente” a garantias impostas ex lege, para além da carência de qualquer correspondência literal, significaria neutralizar a relevância para efeitos interpretativos da teleologia da norma, esvaziando as razões que presidiram à sua consagração e o contexto a que a mesma se mostra aplicável.

 

89.       De resto, se a intenção legislativa fosse a de reduzir as garantias a coberto da isenção de IS em análise àquelas que decorressem de exigência legal, em nome da boa técnica legislativa e de forma simples, poderia o legislador ter vertido no texto legal tal solução, bastando que, para o efeito, introduzisse, por exemplo, a expressão “garantias legalmente exigíveis” ao invés de “garantias inerentes”.

 

90.       Ora, não tendo tal sucedido no caso da redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, forçoso será concluir, atento o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil que [n]ão pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.

 

91.       Fica, pois, inviabilizada a tese propugnada pela Requerida de redução das garantias abrangidas por tal isenção somente àquelas que tenham origem em imposição legal, atenta a inexistência de correspondência verbal, mesmo que imperfeitamente expressa.

 

92.       Acrescendo ainda que o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil que [n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” tal legitima, como entende este Tribunal ser o caso, a interpretação segundo a qual o legislador não pretendeu arredar do âmbito das garantias cobertas por tal isenção, aquelas que se mostrem contratualmente exigidas na esfera das operações tipificadas no preceito em análise.

 

93.       Também a leitura sistemática da legislação fiscal confirma esta conclusão. 

 

94.          O conceito de “inerência” surge em múltiplos domínios fiscais como, por exemplo, no artigo 51.º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), relativo à quantificação das mais-valias.

 

95.          Ora, ao interpretar esta norma, tiveram o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) e o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”) a oportunidade de afirmar que um encargo é “inerente” sempre que se mostre indissociável da operação e necessário à prossecução da finalidade económica almejada, independentemente de imposição legal. 

 

96.       Assim o afirmam, entre outros, os acórdãos do STA, de 18.11.2020, proferido no processo n.º 0245/15.4BELRA, e do TCAS, de 14.11.2019, proferido no processo n.º 219/11.9BEBJA, bem como diversas decisões arbitrais, que qualificam como “inerentes” as comissões de mediação imobiliária por se revelarem funcionalmente necessárias à concretização da alienação.

 

97.       No caso do STA, no acórdão acima melhor identificado[2], aí se propugnou o seguinte: 

No critério legal, só as despesas inerentes são necessárias, pelo que só elas são relevantes.

Ora, o qualificativo “inerente”, logo etimologicamente - in re - contém, a se, uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienaçãopara ser considerada relevante, a despesa há-de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há-de, em suma, ser dela indissociável. (…)

Finalmente, como aponta o Ex.mo Magistrado do Ministério Publico, o caso das comissões imobiliárias é diferente das despesas em causa, pois que, se o interessado opta pela venda do imóvel através da mediação imobiliária, como pode fazerestas despesas estão, inequivocamente, conexas com a transacção concreta na origem das mais-valias, são-lhe inerentes, o que já não acontece, como vimos, com os encargos com a desoneração do imóvel alienado.” (com sublinhados nossos).

 

98.       Em idêntica linha de entendimento relativamente ao conceito de “inerente” se pronunciou o TCAS, no acórdão acima melhor identificado[3], nestes moldes: 

Sobre a matéria constituem pontos firmes os seguintes:

a) «Sobre o conceito de “despesas necessárias (…), inerentes à alienação”, (…) [a] Administração Fiscal aceita que são consideradas dedutíveis as despesas que se relacionem com a obtenção da mais valia, como o pagamento da remuneração a uma empresa de mediação, no processo de transmissão de determinado bem imóvel. A Administração Fiscal reconhece que, uma vez demonstrada de forma inequívoca a conexão entre o montante pago à empresa de mediação e a transacção concreta que originou a mais valia tributável, nada obsta a que se considere a comissão de intermediação como despesa necessária para efeitos do disposto na alínea a) do artigo 51º do Código do IRS. Assim, uma vez preenchidos os requisitos necessários para demonstrar de forma inequívoca a conexão do montante pago ao mediador imobiliário com a transacção concreta que originou a mais valia tributávele estando devidamente documentada a intervenção do respectivo mediador nos termos legais aplicáveis, poderá considerar-se a comissão de intermediação como “despesa necessária” para efeitos da alínea a) do artigo 51.º do CIRS – (…)» (3).

b) «[A]s despesas suportadas pelo sujeito passivo que podem ser deduzidas ao valor de aquisição do imóvel para efeitos de mais-valias; // No critério legal, só as despesas inerentes são necessárias, pelo que só elas são relevantesTal critério contém uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienação: para ser considerada relevante, a despesa há-de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há-de, em suma, ser dela indissociável. A despesa há-de ser integrante da própria alienação. Não se vê, efectivamente, que outro sentido se possa atribuir à expressão “inerentes à alienação”; Não basta, pois, que as despesas sejam conexas à obtenção do rendimento, é necessário que elas dele sejam indissociáveis»(4).

c) «Para determinação das mais-valias fiscais, as despesas necessárias e efectivamente praticadas inerentes à alienação podem ser adicionadas ao valor de aquisição. // Por outras palavras, a mais-valia resultante da venda do bem imóvel é igual à diferença entre o preço de aquisição, descontado das despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação. // Permite, assim, a lei que o montante dispendido, nomeadamente, com empresas imobiliárias, inerentes à venda de imóveis tem cabimento na referida alínea a), devendo, no entanto, ser devidamente comprovada»” (com sublinhados nossos).

 

99.       Os arestos dos tribunais superiores vindos de citar vêm uniformemente entendido que as comissões de mediação imobiliária constituem despesas “inerentes” à alienação, ainda que, evidentemente, não impostas por lei. 

 

100.    A razão de ser desse entendimento não pode deixar de se reconduzir a que que tais comissões – não obstante resultarem de uma manifestação volitiva do sujeito passivo, o qual opta por recorrer à mediação imobiliária como meio que entende como mais adequado e eficaz à sua pretensão – são indissociáveis em ordem a alcançar a finalidade económica por aquele pretendida: a alienação do imóvel, nas melhores condições de mercado possíveis ou no mais curto espaço de tempo, por exemplo.

 

101.    Com base na jurisprudência consolidada dos tribunais superiores vinda de citar, é possível afirmar, com segurança, que o conceito de “inerência” não se confina apenas à obrigatoriedade legal de um facto, mas antes à demonstrada e intrínseca indissociabilidade funcional e instrumental de determinado facto para a obtenção do resultado económico pretendido. 

 

102.    Transpondo este entendimento jurisprudencial para o caso da emissão obrigacionista em apreço, a similitude é evidente.

 

103.    Tal como a comissão de mediação é inerente à alienação de um imóvel porquanto, através de tal recurso, o sujeito passivo logrou potenciar e viabilizar a concretização da pretendida transmissão do bem imobiliário de que era titular…

 

104.    … também nas garantias financeiras e/ou reais exigidas pelo subscritor dos títulos mobiliários dever-se-ão ter como inerentes à operação de emissão e colocação de obrigações, na medida em que tais garantias constituem condição imprescindível para a concretização da emissão e colocação dos títulos e, consequentemente, para a obtenção do financiamento pretendido pela entidade emitente.

 

105.    A este propósito e como refere o Acórdão C-685/2023 do TJUE, as garantias não podem deixar de se ter como “parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais”, o que significa afirmar a essencialidade destas para a concretização de operações de reunião de capitais, como a ora em causa.

 

106.    Neste concreto caso, importa salientar que – conforme decorre da matéria de facto dada como provada – a operação de financiamento assenta na emissão, pela Requerente, de um empréstimo obrigacionista no montante de € 348.900.000,00, estruturado através do Facilities Agreement, celebrado em 27.01.2022. 

 

107.    Através desta operação, a Requerente assumiu a posição de emitente dos títulos de dívida e simultaneamente de devedora principal das obrigações pecuniárias resultantes do financiamento…

 

108.    … cabendo-lhe, assim, prover pela estruturação financeira destinada a suportar a operação de financiamento de activos societários do grupo, organizando e prestando, directamente e através das sociedades por si participadas, um conjunto alargado de garantias destinadas a assegurar o ressarcimento da entidade subscritora dessas obrigações, em caso de incumprimento pelo seu emitente. 

 

109.    No caso concreto, a subscrição do empréstimo obrigacionista foi realizada na sua totalidade pelo F..., o que significa que este assumiu, desde o primeiro momento, a posição de subscritor integral e único detentor das obrigações emitidas pela Requerente. 

 

110.    O F... não actuou apenas como simples investidor institucional: desempenhou a função central de financiador, suportando todo o risco da operação e a viabilidade económica do financiamento. 

111.    A esta qualidade soma-se ainda a de beneficiário das garantias, cabendo-lhe a titularidade fiduciária das garantias constituídas pela Requerente, pela accionista B... e pelas sociedades operacionais do grupo. 

 

112.    Assim, todo o pacote de garantias (e.g. penhores, cessões de créditos e promessas de garantias) foi prestado a favor do F..., tendo este assumido a função de agente das garantias, nos termos usuais do financiamento estruturado.

 

113.    Por sua vez, a G... interveio enquanto entidade gestora do sistema centralizado, assegurando a custódia escritural e registo das obrigações emitidas, de acordo com o estipulado no Regulamento (EU) n.º 909/2014, de 23 de Julho.

 

114.    A intervenção da G... insere-se, assim, na emissão obrigacionista em causa, no circuito regulamentado dos valores mobiliários, garantindo o cumprimento das normas de registo, compensação, liquidação e custódia aplicáveis aos instrumentos financeiros escriturais ao abrigo do versado regulamento europeu.

 

115.    Este triângulo funcional – emitente, financiador/subscritor e entidade gestora do mercado – confere o recorte concretizado quanto à estrutura típica das operações de financiamento obrigacionista no mercado português, permitindo deste modo compreender a relevância que as garantias desempenham para a concretização de operações de emissão obrigacionista, como aquela que está ora em análise.

 

116.    Ora, tal papel das garantias afigura-se, de resto, absolutamente central e essencial, quando se está perante a subscrição de títulos obrigacionistas de um montante apreciável a uma única entidade, como é o caso dos autos, ao F... .

 

117.    Enquanto subscritor único dos títulos em causa, o F... exigiu contratualmente que a subscrição das obrigações pela entidade emitente (Requerente) fosse acompanhada da prestação de garantias, em ordem a acautelar um cenário de eventual incumprimento por parte daquela. 

 

118.    Nas operações de emissão obrigacionista como a ora em análise, em que os títulos são emitidos e colocados junto de uma mesma entidade financeira ou bancária, como sucede com o F..., esta entidade – enquanto sole bondholder – compromete-se a subscrever a totalidade dos valores mobiliários a serem emitidos, o que não pode deixar de ter uma posição decisiva na operação de financiamento em causa.

 

119.    Essa posição decisiva do F... decorre de a viabilidade da emissão obrigacionista depender da colocação dos títulos pela Requerente junto daquele, enquanto subscritor integral das obrigações a emitir, o qual em função do risco da operação em causa, pode exigir (e exigiu), por sua vez, a constituição de garantias adequadas que mitiguem as dificuldades do seu ressarcimento em cenário de incumprimento por parte da Requerente.

 

120.    Neste conspecto, se a jurisprudência do STA e do TCAS vem considerando “inerente” uma despesa contratualmente assumida (por mera vontade de quem pretende alienar um bem imobiliário) e não apenas a que deriva de imposição legal, por se demonstrar indissociável à obtenção da finalidade económica pretendida (alienação do imóvel)… 

 

121.    … prejudicada se encontra a interpretação aqui defendida pela Requerida, não podendo assim as garantias contratualmente exigidas deixar de se considerar igualmente como “inerentes” para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, atenta a existência de um vínculo de indissociabilidade e de causalidade económica e lógica entre o meio utilizado – garantias prestadas – e o resultado obtido (emissão obrigacionista com o consequente financiamento dela decorrente).

 

122.    Deste modo, a “inerência” resulta da intrínseca e indissociável conexão funcional e material entre o facto-instrumento – acervo de garantias a prestar – e o resultado económico pretendido pela operação-fim – emissão obrigacionista – e não da obrigatoriedade legal daquele para a concretização deste. 

 

123.    Ora, não se descortina como o entendimento jurisprudencial do STA e do TCAS quanto ao conceito de “inerente” vindo de supra enunciar não deva ser directamente transponível para o domínio do IS e para operações de reuniões de capitais com recurso a garantias contratualmente exigidas, tal e qual previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

 

124.    Até porque, a finalidade legislativa da isenção em análise afigura-se, como já tivemos a oportunidade de enunciar, inequívoca: a promoção do investimento e o financiamento empresarial através do mercado de capitais.

 

125.    E, para tal desiderato, o legislador pretendeu evitar que a constituição de garantias associadas às operações tipificadas no preceito supra fossem objecto de oneração ao nível do IS, pois tal oneração fiscal objectivamente agravaria o custo da operação, sendo assim susceptível de funcionar como um desincentivo ao recurso a tais instrumentos de reunião de capitais. 

 

126.    Qualquer leitura do preceito e do conceito de “inerente” enquanto apenas abrangendo as garantias impostas por lei, para além de destituídas de apoio ao nível da hermenêutica interpretativa da norma, frustram ainda a finalidade legislativa, ao excluir precisamente as situações que a norma pretende abranger: as garantias contratualmente exigidas pelos subscritores, as quais não se poderão deixar de se assumir como funcional e materialmente indissociáveis da realização de operações de reunião de capitais, como aquela que resulta em análise e tipificada da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

 

127.    Deste modo, as garantias em apreço não podem deixar de se considerar como material, funcional e economicamente inerentes a uma operação de reunião de capitais (empréstimo obrigacionista) como a ora em apreço, sob pena de colocar em causa a própria concretização da operação-fim.

 

128.    Como bem sublinha a decisão arbitral de 03.03.2025, proferida no processo n.º 892/2024-T, “[o] contrato de garantia (Security Agreement), longe de constituir um fim em si mesmo, representa um elemento materialmente acessório de um contrato principal de concessão de crédito (i.e. emissão obrigacionista), sendo concebido como um meio para a sua viabilização. A separação entre o contrato principal de emissão de obrigações e o contrato acessório de constituição de garantias seria uma operação meramente conceitual, de natureza artificial, indiferente à estreita ligação substantiva – económica e funcional – que se estabelece entre ambos.

 

129.    Acrescenta-se nessa mesma decisão que “[o] Security Agreement não tem uma finalidade autónoma que o justifique, a não ser a de tornar possível a realização da operação principal de financiamento (v.g. emissão obrigacionista), sendo de constituição simultânea e materialmente acessória da mesma. Daí que se deva alargar ao contrato acessório o tratamento fiscal concedido ao contrato principal, de acordo com uma lógica que o TJUE tem adotado, por exemplo, em matéria de IVA. Uma interpretação da isenção de IS do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, em conformidade com o direito da União Europeia reconduz à mesma a prestação de garantias constante do Security Agreement em presença”. 

 

130.    Em face do ora exposto, é destituído de qualquer racional, o eventual entendimento segundo o qual as garantias foram prestadas por mera vontade da entidade emitente – e não por exigência da entidade financeira/bancária em que se alicerça a operação – porquanto a constituição e sua manutenção será, por princípio, contrária aos interesses desta, quer pelos encargos associados, quer pela oneração patrimonial que a constituição de garantias reais e/ou financeiras sempre acarretam.

 

131.    Não se revê igualmente este Tribunal na tese sufragada pela Requerida, inculcada em decisões arbitrais a que já supra se aludiu[4], nas quais se enfatiza a “gravidade” de colocar na disponibilidade das partes a aplicabilidade ou não desta isenção de IS analisada em tais arestos.

 

132.    Ora, tal asserção é, entende este Tribunal Arbitral, insubsistente e destituída de relevância enquanto argumento em ordem à rejeição da inclusão das garantias contratualmente exigidas na previsão da norma em causa.

 

133.    Desde logo porquanto a questão da aplicação por parte de terceiros de uma determinada norma fiscal tendente à arrecadação de receita é, naturalmente, uma opção legislativa que, de resto, ocorre, num crescente número de situações, em que o imposto é arrecadado através de entidades a quem o Estado incumbe o papel de “sujeito passivo”, que não coincide com quem o efectivamente suporta.

 

134.    Exemplo disso mesmo, são os casos de substituição tributária – retenção na fonte – em que recai sobre os substitutos tributários a obrigação de reter o imposto legalmente devido, o que os obriga, em muitos casos, a uma prévia aferição sobre a aplicabilidade, quer de taxas reduzidas, quer mesmo de eventuais isenções.

 

135.    Ora, não se afigura que da operacionalização de tal aferição no domínio destes mecanismos de substituição recaia um qualquer labelo (conhecido, pelo menos) que comprometa os princípios da legalidade e da tipicidade fiscal, limitando-se o substituto a executar o dever, que legislativamente lhe é imputado, de verificar a incidência e a eventual isenção do imposto face ao caso concreto, em obediência ao quadro legislativo aplicável.

 

136.    De resto, o sentido quanto à interpretação do termo “inerente” que aqui se vem trilhando em nada colide, nem poderia, com o princípio da legalidade ou sequer com o da tipicidade fiscal, antes sendo uma decorrência de uma opção legislativa que, dentro da liberdade conformadora própria do legislador fiscal, os concretiza.

 

137.    Nestes moldes, o emergir da consagração das garantias na norma de isenção em análise são uma inequívoca manifestação da centralidade e essencialidade da função destas na realidade de reunião de capitais e a cujo recurso o legislador pretendeu incentivar e às quais a jurisprudência do TJUE no Acórdão C-685/2023 vindo de citar precisamente aponta como parte integrante de uma operação global de reunião de capitais.

 

138.    Excluí-las da isenção significaria assim contrariar, não só a versada essencialidade das garantias na operação, como igualmente contrariar o fito do legislador que está na base da redacção do preceito, o qual, entende este Tribunal ser, inequivocamente, o de incentivar a realização destas operações de reunião de capitais, desonerando, por via fiscal, os mecanismos que tornam concretizáveis tais operações de financiamento.

139.    Por tudo o que se expôs supra, resulta que a interpretação do conceito de “inerente” constante do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, à luz do artigo 9.º, do Código Civil, não poderá deixar de ser consentânea com os elementos norteadores da interpretação da norma jurídica – literalidade, sistematicidade e teleologia – valorizando o seu sentido natural e o contexto do preceito.

 

140.    Não resultando de qualquer elemento supra ou da conjugação destes que a “inerência” se possa ter como correspondendo apenas a garantias impostas por lei, devendo, antes sim, abranger também as necessárias, funcional e economicamente indissociáveis em ordem à consecução de qualquer das operações tipificadas na norma.

 

141.    Tal reconduz-se à admissão enquanto “inerente” daquelas que são contratualmente exigidas, atenta a finalidade legislativa subjacente à isenção, a qual passa pela promoção do investimento, através de instrumentos de reunião de capitais.

 

142.    Destarte, impõe concluir que as garantias prestadas no âmbito da emissão obrigacionista – embora não impostas ope legis – são material e funcionalmente indissociáveis da própria operação de financiamento – emissão obrigacionista – preenchendo assim o conceito de “inerente” que o artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do CIS, consagra. 

 

143.    Ante o que supra se alinhou e atenta a matéria de facto provada, encontra-se plenamente demonstrado que a emissão obrigacionista realizada pela Requerente teve lugar no âmbito do circuito regulamentado de valores mobiliários, a qual foi objecto de registo (e custódia) pela G..., pelo que esta operação é inteiramente subsumível à previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, a qual contempla operações que tenham por objecto valores mobiliários, como indiscutivelmente, sucede com as obrigações, como decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Valores Mobiliários.

 

144.    Nessa medida, ao tributar tais garantias como se estivessem excluídas da isenção legalmente prevista, a liquidação de IS em apreciação mostra-se violadora dos critérios interpretativos do artigo 9.º, do Código Civil, e da teleologia expressa da norma, o que determina a ilegalidade do acto tributário aqui impugnado.

§4     Reembolso do imposto indevidamente pago

 

145.    A par da ilegalidade do acto tributário, peticiona a Requerente a condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago.

 

146.    De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Requerida, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

 

147.    Esta vinculação da Requerida a que se faz referência está, aliás, em sintonia com o preceituado no artigo 100.º, da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

148.    Para efeitos da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário ora impugnado, haverá assim lugar ao reembolso por parte da Requerida do imposto indevidamente pago pela Requerente em 01.02.2022, em conformidade com a matéria de facto provada nestes autos.

 

§5     Juros indemnizatórios

 

149.    A Requerente peticiona ainda que, em consequência da anulação da liquidação de IS, lhe seja devido o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, da LGT.

 

150.    Importa, desde já, relevar que a Requerente não praticou o acto de liquidação do IS que ora se encontra arbitralmente impugnado. 

 

151.    No caso do acto tributário em dissídio, o sujeito passivo é o notário que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS, procede à liquidação do IS, o qual repercutiu este, in casu, na Requerente.

 

152.    A Requerente é a beneficiária económica da operação, razão pela qual é chamada a suportar o encargo do imposto, tendo vindo o STA a esclarecer, no processo n.º 02244/12.3BEPRT 0898/17, de 19.02.2020, que “apesar de imprópria, a relação jurídica aqui subjacente é ainda qualificável como substituição tributária e não como uma mera repercussão legal do encargo fundada numa relação jurídico-privada de cobrança de uma dívida (ou seja, como se de um direito disponível se tratasse). É que o fundamental neste caso é que o legislador fiscal interessa-se por que esta exigência do montante do imposto pelo sujeito passivo ao titular do interesse económico efectivamente se verifique, pois este é ainda um passo complementar da tributação, que, por essa razão, não é alheio à relação jurídica fiscal que se constitui entre a Administração Tributária e o sujeito passivo. Diremos que, impropriamente, esta relação jurídica tributária também se estende à posição jurídica do titular do interesse económico, sendo a sua posição económica que a tributação visa atingir e, nessa medida, o sujeito passivo surge aqui interposto com carácter funcional equivalente ao do substituto tributário nos casos de retenção na fonte.  por força de algo que, por simplicidade, poderemos configurar como um caso de substituição fiscal sem retenção na fonte.”

 

153.    Em suma, a legitimidade processual da Requerente radica não da qualidade de sujeito passivo, mas antes de sobre esta recair o encargo económico em que a tributação de IS se materializa, pelo que sobre aquela não se poderá fazer recair um ónus de imputação quanto à origem do erro na interpretação do Direito que está na base da liquidação levada a efeito pelo notário.

 

154.    A evolução do sistema tributário e a crescente tendência de transferência de certas funções públicas para entidades privadas, tem levado o legislador a passar a atribuir a alguns intervenientes – que mantêm ligação com o contribuinte – algumas competências na determinação e cobrança de impostos.

 

155.    Um exemplo típico da versada evolução é o já aludido mecanismo de substituição tributária, em que o um terceiro actua em representação da Requerida.

 

156.    A propósito desta temática, a jurisprudência proferida pelo STA – como é o caso do acórdão de 09.11.2022, proferido no processo n.º 087/22.5BEAVR[5] – tem vindo a afirmar que as irregularidades ou erros praticados por entidades privadas encarregadas da liquidação de tributos devem ser tratados como se fossem imputáveis à própria Requerida, produzindo as mesmas consequências jurídicas, nomeadamente quanto ao direito a juros indemnizatórios.

 

157.    Até porque inexistem razões objectivas que possam justificar uma diminuição das garantias dos contribuintes nos casos em que cabe a um terceiro liquidar e cobrar os impostos que determinado contribuinte suportará, quando comparadas com os casos em que tais funções são levadas a efeito directamente pelos serviços da Requerida, enquanto sujeito activo da relação jurídico-tributária.

 

158.    Conclui-se, assim, que a liquidação (fixação do montante do imposto devido) foi levada a efeito pelo sujeito passivo – in casu, notário – aquando da outorga da escritura pela qual se constituíram as garantias, momento em que exigiu à Requerente (substituído fiscal, sem recurso à retenção na fonte) o pagamento do montante tido pelo sujeito passivo como devido.

 

159.    Assim e retomando o tema dos juros indemnizatórios, determina o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, que serão devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

160.    Nos mesmos termos, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

161.    Como vimos de enunciar supra, a ilegalidade do acto tributário em apreciação não é susceptível de ser imputada à Requerente, por não ser, de resto e no caso, o sujeito passivo, mas antes o contribuinte sobre quem recaiu o encargo de suportar o imposto, não podendo assim o erro deixar de se considerar imputável aos serviços.  

 

162.    Nos presentes autos, o acto tributário do IS não foi da iniciativa da ora Requerente, pelo que não é possível deixar de imputar aos serviços da Requerida o erro que está na base do acto de liquidação de IS em causa.

 

163.    No acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, de 29.06.2022, no processo n.º 093/21.7BALSB, no qual, além do mais, estavam em causa instituições de crédito, foi expresso que “liquidaram e entregaram ao Estado imposto de selo incidente sobre as operações de crédito, nos períodos de Fevereiro a Dezembro de 2015, de Janeiro a Março de 2016, de Fevereiro a Dezembro de 2017 e de Janeiro a Dezembro de 2018 (…) fizeram repercutir o imposto de selo liquidado na esfera jurídica das Requerentes, enquanto entidades mutuárias, que suportaram integralmente o imposto”.

 

164.    Tendo a Requerente apresentado reclamação graciosa, foi entendido nesse acórdão o seguinte:

Passemos ao exame do termo inicial da obrigação de juros indemnizatórios, quando ligada à existência do procedimento de reclamação graciosa.

De acordo com o probatório da decisão arbitral recorrida, no que diz respeito aos actos tributários que foram objecto de reclamação graciosa (cfr. actos de liquidação de imposto de selo emitidos nos períodos de Fevereiro de 2017 a Dezembro de 2018 - al. J) da matéria de facto supra exarada), foi tal reclamação deduzida em 20 de Março de 2019, mais sendo objecto de indeferimento expresso em 6 de Setembro de 2019 (cfr. al. K) da matéria de facto supra exarada).

Neste segmento da instância recursiva, deve chamar-se à colação a doutrina defendida pelo acórdão fundamento, oriundo do Tribunal Central Administrativo Sul, a qual já foi sufragada por diversos acórdãos deste Tribunal e Secção (cfr.v.g.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/01/2017, rec.890/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/05/2018, rec.250/17; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 7/04/2021, rec. 360/11.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 6/10/2021, rec.3009/12.8BELRS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 9/12/2021, rec.1098/16.5BELRS), e que nos diz: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.

Mais se deve recordar que o indeferimento tácito de reclamação graciosa deduzida opera ao fim de quatro meses, prazo esse que é contínuo e se deve contar nos termos do artº.279, do C.Civil (cfr. artº.57, nºs.1 e 3, da L.G.T.; artºs.20, nº.1, e 106, do C.P.P.T.).

Revertendo ao caso dos autos, tendo sido deduzida, a reclamação graciosa, em 20 de Março de 2019, operou o indeferimento tácito da mesma em 22 de Julho de 2019, uma segunda-feira (cfr. artº.279, als.b), c) e e), do C.Civil).

Portanto, a mencionada data de 22 de Julho de 2019 deve ter-se como "dies a quo" do cômputo dos juros indemnizatórios no caso concreto, em consequência do que, também nesta parcela, deve ser revogada a decisão arbitral que fixou o termo inicial do cômputo dos juros indemnizatórios nas datas do pagamento do imposto.”

 

165.    Em linha com a directriz de “interpretação e aplicação uniformes do direito” vertida no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, adopta-se este entendimento pelo que são devidos pela Requerida à Requerente juros indemnizatórios, a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, até à data do processamento da respectiva nota de crédito, por força do disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 100.º, da LGT, e no artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

166.    Assim, no caso dos autos, tendo a reclamação graciosa sido apresentada em 03.08.2022, o indeferimento tácito verificou-se em 03.12.2022, data a partir da qual são devidos juros indemnizatórios pela Requerida, os quais serão calculados com base no valor de € 2.093.400,00, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º, do CPPT, do artigo 559.º, do Código Civil, e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

VI.      DECISÃO

 

167.    Termos em que decide este Tribunal Arbitral Colectivo:

          a.               Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente, declarando a ilegalidade e a consequente anulação do acto tributário de liquidação de IS impugnado, e, também, em consequência declarar a ilegalidade e a anulação da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra aquele acto;

          b.               Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago pela Requerente, no montante de € 2.093.400,00 e condenar a Requerida no pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, calculados à taxa legal supletiva sobre aquele montante, contados a partir de 03.12.2022 até à data da emissão da correspondente nota de crédito; e

          c.               Condenar a Requerida nas custas dos presentes autos.

 

VII.    VALOR DO PROCESSO

 

168.    Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 2.093.400,00 (dois milhões, noventa e três mil e quatrocentos euros).

 

VIII. CUSTAS

 

169.    Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 27.234,00, a cargo da Requerida, em face do decaimento obtido no presente processo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 2 de Dezembro de 2025.

 

 

Os árbitros

 

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente)

 

 

Maria do Rosário Anjos

(Árbitra Adjunta)

 

 

 

Luís Sequeira

(Árbitro Adjunto e Relator)

 

 

 

 

 

 

 



[2] Disponível em www.dgsi.pt.

[3] Disponível em www.dgsi.pt

[4] Decisões arbitrais, processos n.º 883/2024-T e 2/2020-T, disponíveis em www.caad.org.pt  

[5] Disponível em www.dgsi.pt