Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 36/2023-T
Data da decisão: 2023-09-14  IMI  
Valor do pedido: € 34.575,32
Tema: AIMI; Valor Patrimonial Tributário; Avaliação
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Sumário:

I - O ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver;

II - Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação de AIMI com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.

 

DECISÃO ARBITRAL

    I.  RELATÓRIO

  1. A... S.A, titular do NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... ... (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 2, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), pretendendo a declaração de ilegalidade (i) do ato de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa das liquidações de Adicional ao Imposto Municipal sobre os Imóveis (“AIMI”) n.os 2018..., 2019 ... e 2020 ..., referentes, respetivamente, aos anos de 2018, 2019 e 2020 no montante global de € 34.575,32, efetuado pela Requerente à Requerida, e (ii) de forma mediata, dos mencionados atos de liquidação de AIMI, e bem assim, a condenação da Requerida na restituição à Requerente do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos da lei.
  2. De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  3. O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 28 de março de 2023, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
  4. Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 15 de maio de 2023.
  5. A Requerente alega, em síntese, que, no que respeita aos anos de 2018, 2019 e 2020, relativamente a determinados terrenos para construção por si detidos, a Requerida liquidou um montante de AIMI superior ao montante legalmente devido, “face aos valores patrimoniais tributários que deveriam ter sido considerados” nessas liquidações, pelo que deveria a Requerida restituir-lhe o montante de AIMI pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, tal como requereu no pedido de revisão oficiosa que deduziu e foi indeferido pela AT.
  6. Por seu lado, a AT entende, no essencial, que o presente pedido arbitral assenta, em rigor, na imputação de vícios aos atos de fixação ou determinação do valor patrimonial tributário dos mencionados terrenos para construção pelo que, encontrando-se previsto um meio e prazo próprios para a impugnação direta desses atos, não são os atos de liquidação aqui em crise impugnáveis com tal fundamento, razão pela qual deve este tribunal arbitral absolver a AT do pedido.

II. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

1.  A Requerente é proprietária dos prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de ... sob os artigos ..., ..., ..., ... e ... .

2. Tais prédios encontravam-se qualificados, nas respetivas cadernetas prediais, como sendo do tipo “Terreno para Construção”.

3. As liquidações de AIMI parcialmente contestadas (identificadas nas notas de cobrança n.os 2018 ... 2019 ... e 2020 ...,) assentam nos valores patrimoniais tributários (doravante “VPT”) inscritos nas mencionadas cadenetas prediais em 31 de dezembro dos respetivos anos, os quais foram calculados no ano de 2007 (com posteriores atualizações) e, apenas quanto ao prédio inscrito sob o artigo ..., no ano de 2009.

4. A Requerente apresentou, em 29 de julho de 2022, um pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78º da LGT, das liquidações do AIMI relativas àqueles imóveis e aos anos de 2018, 2019 e 2020, acima identificadas.

5. Em 15 de dezembro de 2022, a Chefe de Finanças de Oeiras ... indeferiu o pedido de revisão oficiosa, concluindo que concluindo que “[o]s VPT destes artigos reclamados pela requerente, resultam da aplicação da fórmula utilizada aquando da avaliação inicial, desconsiderando a aplicação dos coeficientes em causa, e não em valores apurados de acordo com a fórmula atual”.

A.2. Factos dados como não provados

Não se provou que a Requerente tenha solicitado segunda avaliação dos imóveis e/ou impugnado administrativa ou judicialmente o resultado da mesma.

Não existem outros factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

 Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

 

III. DO DIREITO

Analisados os articulados e documentos juntos aos autos, torna-se cristalino que a Requerente não assaca qualquer vício próprio aos atos de liquidação mediatamente impugnados formulando, ao invés, a sua causa de pedir com base em vícios que entende ferirem de ilegalidade os atos de determinação do VPT de cada um dos imóveis relevantes (os quais contagiariam também a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que imediatamente impugna através do presente pedido de pronúncia arbitral.

Ora, como bem refere a Requerida, a questão de saber se, precludidos os prazos de impugnação do ato de fixação de VPT (e este tribunal entende que tais atos podem ser, de facto, objeto de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da LGT desde que cumpridos os requisitos elencados no mesmo) os vícios de tal ato podem servir de fundamento a uma posterior impugnação das liquidações de imposto que nele se baseiem, foi já objeto de profusa jurisprudência do CAAD e, com maior relevância, de um acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em fevereiro de 2023, em sede de oposição de julgados no CAAD, num caso com contornos factuais muito semelhantes ao presente, em que também se discutia uma potencial anulação de liquidações de AIMI no contexto de alegadamente errada aplicação de coeficientes na fixação de VPT de terrenos para construção.

E, de tal acórdão, proferido no âmbito do processo n.º 0102/22.2BALSB, de cujos fundamentos não se veem razões para divergir e que se consideram assumidos e reproduzidos por este tribunal arbitral, resulta que:

“Vigora no contencioso tributário o princípio da impugnação unitária segundo o qual só há lugar a impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que tem assento legal nos artigos 66.º da LGT e 54.º do CPPT. [Neste] segundo, com a epígrafe “impugnação unitária”, estabelece[-se] que «Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.»

O princípio da impugnação unitária tem, assim, duas exceções, admitindo a lei adjetiva tributária a impugnação imediata dos atos interlocutórios (i) «quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte», e (ii) quando «exista disposição expressa em sentido diferente», ou seja, quando exista lei que admita expressamente a impugnação imediata do ato interlocutório.

Ora, a avaliação direta é um dos casos em que o legislador afastou o princípio da impugnação unitária e admitiu a impugnação imediata do ato de avaliação. […]

Particularizando ainda mais, e centrando-nos no caso sub judice, o procedimento de determinação do valor patrimonial tributário (ato de fixação de valores patrimoniais – artigo 37.º a 46.º, e 71.º a 77.º, do Código do IMI) é uma espécie de procedimento de avaliação direta, prevendo o Código do IMI um expediente especial de reação contra as ilegalidades da avaliação.

Assim, quando o sujeito passivo não concorda com o resultado da avaliação (primeira avaliação) pode requerer uma segunda avaliação, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI. E do resultado desta segunda avaliação cabe impugnação judicial, tal como o prevê o artigo 77.º do mesmo Código.

O disposto nestes dois artigos 76.º e 77.º do Código do IMI devem ser interpretados em conjugação com o disposto no referido artigo 134.º do CPPT, que prevê, como atrás referimos, a impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais, e no seu n.º 7 condiciona a impugnabilidade ao esgotamento dos meios graciosos («7- A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação»), que por sua vez está em consonância com o artigo 86.º, n.º 2, da LGT, que determina, como também já se referiu, que os atos de avaliação direta só são contenciosamente impugnáveis quando estiverem esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão. Esta necessidade de esgotamento dos meios graciosos como condição de impugnação do valor fixado através de avaliação direta, reiterada nas diferentes disposições legais, evidencia que a segunda avaliação não é, para efeitos de impugnação, uma mera faculdade.

Tendo em conta o que fica dito duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável – admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio.

E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.

Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt).

Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial. […]

O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10). […]

Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior.

Em face do que fica dito é de concluir que deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável(sublinhados do signatário).

Ora assim sendo, tendo o Supremo Tribunal Administrativo uniformizado jurisprudência tão recentemente e em termos tão incisivos, e sendo tão evidente que a Requerente não imputa aos atos de liquidação impugnados (e ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa) qualquer vício que não advenha do ato de fixação dos VPT dos imóveis em causa, tem este tribunal arbitral de julgar improcedente o pedido arbitral, na sua totalidade, por não poderem servir de fundamento a impugnação de liquidações de AIMI eventuais ilegalidades decorrentes do procedimento de determinação do VPT que não tenham sido atempadamente impugnadas pelo sujeito passivo.

Pelo exposto, fundando-se esta decisão de improcedência do pedido na inimpugnabilidade das liquidações de AIMI contestadas com base em vícios do procedimento de avaliação e determinação do valor tribunal tributário, questão que é de análise prévia a qualquer outra, fica prejudicada a análise dos demais fundamentos invocados pela Requerente.

 

IV. DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido arbitral e, em consequência, condenar a Requerente nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 34.575,32 (trinta e quatro mil, quinhentos e setenta e cinco euros e trinta e dois cêntimos) nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

 

VI. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,  nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

Notifique-se.

Lisboa, 14 de setembro de 2023.

 

O Árbitro,

 

João Taborda da Gama