Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 436/2022-T
Data da decisão: 2023-09-26  IRC  
Valor do pedido: € 45.203,16
Tema: IRC. SNC – Classe 1. Conta 11 - Caixa. Despesas não documentadas. Ónus da Prova. Tributação autónoma.
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SUMÁRIO:

1) Verificando-se numa certa data uma discrepância entre o saldo de conta 11. Caixa e o valor apurado na contagem física de caixa, e não tendo resultado questionada a credibilidade da contabilidade do sujeito passivo, constata-se, então, que ocorreu um exfluxo financeiro do património da empresa. 2) Não existindo suporte documental válido desse exfluxo, nem o sujeito passivo logrando justificar a discrepância verificada, estamos perante “despesas não documentadas” (DND), preenchendo-se a previsão do art.º 88.º, n.º 1 do CIRC; 3) Recai sobre o sujeito passivo o ónus da prova do facto ou factos que justifiquem a discrepância, porque constitutivos do direito que invoca a não ser tributado em tributação autónoma sobre DND. 4) O facto tributário na TA sobre DND é a realização da despesa e considera-se verificado no exercício em que ocorre a contagem física de caixa que permite verificar a discrepância em questão. 5) Tendo ficado provada a ocorrência do facto tributário não tem vocação de aplicação o art.º 100.º, n.º 1 do CPPT.  

 

 

DECISÃO ARBITRAL

1. Relatório

A..., Lda., nipc..., com sede em ..., ..., ...-... ..., doravante designada por “Requerente”, “Sujeito Passivo”, ou simplesmente “SP”, veio, nos termos dos art.ºs 2.º, n.º 1 al. a), 3.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), doravante “RJAT”, submeter ao CAAD pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

Peticiona, assim, a declaração de ilegalidade de acto de liquidação de IRC reportado ao exercício de 2020, e da correspectiva liquidação de juros compensatórios (em conjunto doravante também “a Liquidação”).

 

Liquidação de que foi notificada e da qual, conforme Demonstração de acerto de contas, resultou um montante total a pagar de € 45.203,16 (juros compensatórios incluídos).

 

A liquidação em crise foi emitida na sequência de acção de inspecção à Requerente, com origem na Ordem de Serviço n.º OI2021..., no âmbito da qual a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu a correcções.

 

Conforme expõe, consta do respectivo Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”) ter sido efectuado, a 17.12.2020, o controlo do saldo de conta Caixa desse exercício, e o seu gerente ter então declarado não existirem valores em caixa porquanto todo o dinheiro da empresa se encontrava depositado no banco.

 

A Inspecção considerou, com base nos elementos contabilísticos, refere, que o saldo contabilístico de Caixa era de € 90.789,01 a 30.09.2020, e de € 44,97 a 31.12.2020, e o valor diminuiu pelo lançamento de documento (n.º 89) em que se movimentou a conta 11.1 Caixa por contrapartida da conta 278 Outros devedores e credores diversos –A..., Lda. – Rendas.

 

Segundo alega, por erro na emissão de facturas-recibo (quando deveriam apenas ter sido emitidas facturas), e consequente erro de lançamento contabilístico, a conta Caixa reflectia os pagamentos em numerário das rendas que lhe eram devidas, entre Janeiro de 2005 e Dezembro de 2010, pela B..., Lda. Sendo que os pagamentos em dinheiro não se realizaram e deveriam ter sido considerados como estando em dívida.

 

Constituindo as facturas-recibo documentos de quitação, a Inspecção não aceitou os movimentos suportados pelo dito documento (n.º 89)[1] - que reduziram o saldo de Caixa em € 89.000,00 - por considerar o mesmo não estar comprovado. Tendo concluído que através do respectivo lançamento foi retirado de Caixa aquele montante e que não se conhece o seu destino.

 

Concluíram os Serviços de Inspecção Tributária (SIT), expõe, que o saldo de Caixa a 17.12.2020 era de € 89.079,39, e que a falta desse dinheiro pressupõe o pagamento de despesas que não estão documentadas. Mais que esse valor deve ser tributado autonomamente à taxa de 50%, ao abrigo do art.º 88.º, n.º 1 do CIRC.

 

Entendimento da Requerida este com o qual não se conforma e que, segundo defende, não tem cabimento legal.

 

Requerente e sua arrendatária, nota, são sociedades familiares, com a mesma gerência. O facto de ter emitido as facturas-recibo, e de consequentemente a contabilidade os ter lançado na conta Caixa como recebidos em numerário, não implica que os respectivos montantes tivessem sido recebidos. E o facto de terem sido feitos pagamentos por cheque para regularizar algumas rendas devidas não implica que as demais tivessem sido pagas em numerário.

 

O montante de € 89.000,00 “corresponde às rendas não recebidas e que se encontravam a inflacionar indevidamente o saldo da conta Caixa”.

 

Por “regularização dos erros contabilísticos”, refere, o saldo foi corrigido para € 44,97, como já no balancete a 31.12.2020. O valor das rendas em dívida, na prática, foi expurgado da conta Caixa através da correcção efectuada com o dito documento.

 

Os saldos da conta Caixa já se verificavam em exercícios anteriores e eram fictícios. A terem ocorrido despesas não documentadas (no que não concede) já teria sido em exercícios anteriores - não poderiam ter ocorrido no dia do controlo de Caixa pela Inspecção (17.12.2020) e por isso não podem ser imputadas ao exercício de 2020.

 

O saldo da conta Caixa pode dever-se a uma série de circunstâncias. A falta de correspondência desse saldo com as disponibilidades financeiras deve-se, no caso, àquele erro na contabilidade.

 

E não bastava à Requerida invocar a falta de correspondência/divergência. Cabia-lhe demonstrar a efectiva existência de uma despesa em concreto. Nos termos do art.º 74.º da LGT.

 

A Requerida não provou a ocorrência das despesas não documentadas. Limitou-se a presumir que a inexistência de numerário em Caixa (em divergência com o saldo contabilístico) corresponde a uma despesa não documentada, ocorrida à data da Inspecção. E era necessário provar a efectiva saída de valores da esfera da Requerente, bem como o momento da sua ocorrência. Sendo o respectivo ónus da prova da Requerida.

 

Inexiste evidência do facto tributário. E não se provou o momento da realização das despesas. Foi violado o princípio da especialização dos exercícios e há fundada dúvida na quantificação do facto tributário, cfr. art.º 100.º, n.º 1 do CPPT. A Liquidação padece de erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito.

 

Mais há, quanto aos elevados saldos da conta Caixa, manifesto erro na contabilidade, e por isso a Requerida não podia fundar a tributação autónoma na presunção de veracidade daquela. Também por aqui ocorrendo dúvida sobre o facto tributário nos termos do art.º 100.º/1 do CPPT.

 

Requer, assim, a anulação da Liquidação, com fundamento em: (i) inexistência do facto tributário sujeito a tributação autónoma em sede de IRC no ano de 2020; (ii) subsidiariamente, fundada dúvida na quantificação do facto tributário nos termos do art.º 100.º, n.º 1 do CPPT, e consequente erro nos pressupostos de facto e de direito; (iii) subsidiariamente ainda, fundada dúvida nos termos do art.º 100.º, n.º 1 do CPPT quanto ao exercício em que ocorreram as alegadas despesas, violando o princípio da especialização e periodização dos exercícios.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD a 22.07.2022 e notificado à AT.

 

Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral singular a ora signatária, que atempadamente aceitou o encargo.

 

A 09.09.2022 as Partes foram notificadas da designação de árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, cfr. art.º 11º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 27.09.2022.

 

Notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta, pugnando pela total improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral e consequente manutenção da Liquidação na Ordem Jurídica.

 

Segundo a Requerida a Liquidação não padece de qualquer ilegalidade.

 

Defendendo-se por impugnação, entre o mais refere que a Requerente não provou, seja no procedimento, seja nestes autos arbitrais, aquilo que alega.

 

A Requerente limitou-se, expõe, a alegar que os registos contabilísticos que efectuou entre os anos de 2005 e 2010 resultaram de ter emitido facturas-recibo como documentos de quitação pelo recebimento de rendas que afinal não teria recebido. Porém, sem de tal apresentar prova. Baseia-se na tese de que cometeu erros, erros na emissão de facturas-recibo, nos registos contabilísticos, no saldo de Caixa, mas sem o provar. Nunca apresentando prova documental que o sustente.

 

A prova dos factos que a Requerente vem alegar faz-se pela sua demonstração, que há-de assentar antes de mais na realidade. Cabendo tal prova à Requerente, nos termos dos art.ºs 342.º do Código Civil e 74.º, n.º 1 da LGT.

 

Dá nota dos motivos pelos quais os SIT promoveram a correcção, e que os levaram a concluir que o documento que suporta o lançamento que movimentou a conta SNC 11.1 Caixa a crédito no valor de € 89.000,00 não se encontra justificado. Assim não sendo apto a provar o alegado não pagamento das rendas.

 

Aquando da contagem de caixa pelos SIT, a 17.12.2020, não foi contado qualquer dinheiro, quando o saldo de Caixa constante da contabilidade na mesma data era de € 89.079,39, e a falta desses meios financeiros na sociedade, desacompanhada de comprovativos documentais, configura uma saída de fundos da mesma.

 

Desconhecido, assim, o destino dado àquele montante, foi o mesmo enquadrado na figura de “despesas não documentadas”. E, assim, tributado autonomamente, cfr. art.º 88.º/1 do CIRC[2].

 

Cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação da norma. Apoiou-se, para o efeito, na demonstração da referida divergência e incongruências apuradas, e na solicitação de documentos justificativos da divergência, que não foram apresentados.

 

Sobre a contabilidade enquanto sistema de informação e sua relevância expõe, entre o mais, a mesma englobar não só livros e registos, como também os documentos justificativos.

 

Refere, neste contexto, que a contabilidade da Requerente, devidamente organizada, beneficia da presunção constante do art.º 75.º da LGT.

 

E a tese da Requerente de que os registos anteriores a 31.12.2020 contêm erros não procede face à inexistência de prova documental que a sustente. Dá nota, ainda, de que no procedimento inspectivo a Requerente não invocou erros ou omissões e inexactidões.

 

Cumpriu o ónus da prova dentro dos limites que a sua actuação lhe permitiria, mais não lhe podendo ser exigido por impossível de cumprir. Não lhe foi facultado qualquer documento com elementos referentes à saída dos meios financeiros em falta.

 

Em sede de despesas não documentadas não relevadas como despesas na contabilidade, sendo omisso o registo contabilístico das “despesas não documentadas” e não disponibilizados documentos comprovativos do dispêndio dos meios financeiros, a demonstração da ocorrência das despesas reconduz-se à verificação, por contagem física, da não correspondência do saldo contabilístico com a realidade, num dado momento. Desconhecidas que são as operações subjacentes.

 

E, assim, aquela divergência (que a Requerente, após a contagem física pela Requerida, justificou na sua contabilidade pelo lançamento n.º 89, a 31.12.2020) teria, como concluíram os SIT, que ser enquadrada na figura das “despesas não documentadas”.

 

Acresce que a inexistência de comprovativos e registos contabilísticos dos exfluxos monetários inviabiliza totalmente a produção de prova e a obtenção de dados relativos às datas em que ocorreram. Informações de que só o órgão de gestão dispõe.

 

Face à inexistência de documentação de suporte, e de explicação plausível, o lançamento contabilístico da Requerente a 31.12.2020 não pode ser aceite. E a divergência é atribuída a saídas de meios monetários consumidos na realização de “despesas não documentadas”. Pelo que a verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada na data da contagem física. Só pode, consequentemente, o mesmo ser imputado ao exercício de 2020.

 

Não quantificou despesas com base em indícios ou presunções. Mas sim no confronto directo entre o resultado da contagem física e os elementos disponibilizados na análise e verificação dos registos contabilísticos. E a presunção de veracidade da contabilidade da Requerente não resultou afastada, não se preenchendo quaisquer pressupostos para o efeito, constantes do art.º 75.º, n.º 2 da LGT.

 

Faz notar que a Requerente não contesta a quantificação feita pela Requerida. Tão só realizou um lançamento, após acção inspectiva, pelo qual pretende fazer crer que o saldo de caixa relativo a recebimentos de rendas desde o ano de 2005, pelos quais emitiu facturas-recibo, corresponde a erros de emissão e erros contabilísticos ao longo de anos.

 

Desenvolve quanto à inaplicabilidade do princípio da especialização dos exercícios e à não ocorrência de dúvida fundada sobre o exercício em que ocorreram as “despesas não documentadas”, e conclui que a Liquidação não enferma de qualquer erro, devendo manter-se.

 

*

Por despacho de 16.11.2022 as Partes foram notificadas para a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, atento o requerimento da Req.te de produção de prova testemunhal. A reunião teve lugar a 29.11.2022, ficando as Partes então notificadas para apresentar alegações escritas facultativas.

 

Requerente e Requerida apresentaram alegações, reiterando as posições anteriores. Mais quanto à prova testemunhal produzida defende a Req.te ter resultado provado o erro contabilístico que alegou, e a Req.da não ter resultado provado, desde logo, o alegado não recebimento das rendas.

 

Por despacho de 20.03.2023 o Tribunal determinou, nos termos do n.º 2 do art.º 21.º do RJAT, a prorrogação por dois meses do prazo para prolação da Decisão. E assim novamente por despachos de 26.05.2023 e de 21.07.2023.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é competente e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, cfr. art.s 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

O Processo não enferma de nulidades e não existe matéria de excepção.

 

O Pedido de Pronúncia Arbitral é tempestivo, apresentado que foi dentro do prazo legal de 90 dias – cfr. duas últimas al.s dos factos provados, infra, e art.º 10.º, n.º 1, al. a), primeira parte, do RJAT (v. art.º 102.º, n.º 1, al. a) do CPPT).

 

Cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os factos que seguem:

 

a) A Requerente, A... Lda., é uma sociedade por quotas, constituída ao abrigo da lei portuguesa, com o objecto social de “Compra e venda de imóveis e administração de imóveis próprios ou alheios”, que exerce a actividade de arrendamento de bens imóveis, CAE 68200;

 

b) A Requerente tem o capital social de € 100.000,00, na titularidade de C..., está enquadrada em IRC no regime geral, e tem como gerente D...;

 

c) A Requerente tem o mesmo Contabilista Certificado desde a sua constituição e até ao presente;

 

d) A sociedade B... Lda., nipc …, é arrendatária da Requerente no imóvel em que tem instalado o seu stand de vendas e exposição de materiais;

 

e) A sociedade B... Lda. tem o mesmo gerente que a Requerente, e o mesmo Contabilista Certificado que a Requerente;

 

f) D... e sua mulher, E..., são os titulares do capital social da B... Lda., no valor de € 10.000,00, e são pais de C... (v. al. b) supra);

 

g) A Requerente emitiu entre Janeiro de 2005 e, pelo menos, Dezembro de 2010, facturas-recibo de renda à B... Lda. com referência ao imóvel em que esta tem instalado o seu stand (v. al. d) supra);

 

h) Os pagamentos titulados pelas facturas-recibo foram reflectidos contabilisticamente pela Requerente, ao longo dos respectivos anos, por lançamentos na Conta 11 – Caixa;

 

i) Pela Ordem de Serviço n.º OI2021... a Requerente foi alvo de acção inspectiva de âmbito parcial em IRC com o fim de comprovação/verificação, e motivo de controlo declarativo;

 

j) O procedimento inspectivo (v. al. anterior) teve início a 17.12.2020 com a assinatura pelo gerente da Requerente do despacho da Requerida n.º DI2020..., para realização de contagem dos valores de caixa;

 

k) Aquando contagem dos valores de caixa, a 17.12.2020, os SIT verificaram nada constar da mesma, e, questionado, o gerente da Requerente declarou então não existir dinheiro ou outros valores em caixa, e todo o dinheiro da sociedade estar depositado no banco; (cfr. PA - auto de declarações de 17.12.2020)

 

l) No balancete analítico da Requerente mais recente à data da contagem, balancete de 30.09.2020, a Conta Caixa (11.1) apresentava um saldo devedor de € 90.798,01;

 

m) Nas verificações posteriores foi constatado pelos SIT o saldo devedor da Conta 11.1 Caixa, que era de € 90.798,01 a 30.09.2020, ter decrescido para € 44,97 a 31.12.2020, conforme balancetes analíticos da Requerente;

 

n) Com vista à verificação de lançamentos contabilísticos da Requerente desde 2005, a Requerida emitiu os despachos externos n.ºs DI2021.../.../.../..., em nome da daquela, com extensão aos exercícios de 2005 a 2019 e 2021;

 

o) Para verificação dos registos contabilísticos relacionados com as rendas, a Requerida emitiu os despachos externos n.ºs DI2021.../.../.../.../..., em nome da sociedade B... Lda., com extensão aos exercícios de 2005 a 2021;

 

p) Em resultado da acção inspectiva à Requerente foram propostas correcções de natureza aritmética em sede de tributação autónoma em IRC, por “despesas não documentadas” no exercício de 2020; 

 

q) A 15.11.2021 a Requerente foi notificada do Projecto de Relatório de Inspecção Tributária e para o exercício do direito de audição, que não exerceu, e o Projecto foi, após, convolado em Relatório final;

 

r) Do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) consta, entre o mais, o seguinte (tudo se dando por reproduzido):


“(...)

 

O despacho n° DI2020... foi emitido em nome do sujeito passivo, adiante referido por SP, A..., NIPC ..., com o objetivo de se proceder à contagem dos valores em caixa.

O procedimento inspetivo foi iniciado em 17 de dezembro de 2020, com a assinatura do despacho pelo gerente D..., NIF..., que quando questionado sobre a existência de valores em caixa declarou "não tem qualquer dinheiro ou outros valores em caixa. Todo o dinheiro da sociedade encontra-se depositado no banco", conforme auto de declarações reduzido a escrito (...).

 

De acordo com os balancetes analíticos apresentados, a conta SNC 11.1 - Caixa exibia um saldo devedor de € 90.789,01 em 30.09.2020 e de € 44,97 em 31.12.2020 e analisado o extrato desta conta por forma a perceber o decréscimo do saldo devedor, verificou-se que em 31.12.2020, através do documento n° 89 do diário 1 (operações diversas) foi efetuado o seguinte registo contabilístico, que movimenta a conta SNC 11. 1 - caixa por contrapartida da conta SNC 278119601004 - Outros Devedores e credores diversos A... Lda. Rendas:

 

 

O documento de suporte constitui o anexo 1, no qual consta “Regularização do saldo devedor da Caixa correspondente às Rendas devidas e não pagas pela firma B..., Lda, NIF..., em virtude de terem sido indevidamente lançadas em Caixa, por indevida emissão de Recibo.”

E identifica setenta (70) lançamentos contabilísticos, datados desde 31-01-2005 a 31-12-2010 e 1 (um) de 31.12.2019, que totalizam € 131.500,00, que corresponde ao valor creditado na conta SNC 11.1 – Caixa e 10 (dez) lançamentos contabilísticos com datas desde 31-01-2006 a 31-07-2010, no valor total de € 42.500,00, que corresponde ao montante creditado na conta SNC 11. 1- Caixa. Logo, em termos líquidos, o saldo devedor da conta caixa foi reduzido em € 89.000,00 em 31/12/2020.

Os movimentos que totalizam € 42.500, 00 e foram creditados na conta SNC 11.1 - Caixa, correspondem a registos contabilísticos em que o pagamento da renda foi efetuado através de banco, de acordo com o documento (...) 89, que se reproduz parte: / (...)

Com o objetivo de se indagar acerca destes lançamentos contabilísticos desde 2005, foram emitidos os despachos externos n.ºs Dl2021.../.../.../..., com extensão aos exercícios de 2005 a 2009 e 2021, que foram assinados pelo gerente em 28-10-2021.

No dia 03 de novembro de 2021, o gerente foi ouvido em auto de declarações reduzido a escrito, que consta do processo de evidencia de trabalho, que se transcreve:

“Quando questionado para exibir as pastas contendo os elementos contabilísticos referidos no doc.89 de 31- 12-2020 diário 1, nomeadamente de 2005 a 2010, declarou que os documentos de 2005 a 2010 foram destruídos, como é hábito, por estarem ultrapassados os 10 anos.

Quanto às pastas com os documentos de suporte dos registos contabilísticos de 2011, 2012 e 2013 não os conseguiu localizar. / Declarou ainda que as pastas com os documentos de suporte dos registos contabilísticos de 2014 a 2021 estão disponíveis para análise.”

 

Verificou-se que o SP emitiu recibos referentes à renda do imóvel onde se encontra instalado o stand de vendas e exposição de materiais da sociedade B... LDA, NIPC ... (...). / (...)

Os rendimentos decorrentes das rendas foram reconhecidos pelo SP na conta SNC 72119 - Prestação de serviços entre 2005 e 2018 e conta SNC 72115 - Prestação de serviços em 2019 e 2020, por contrapartida da conta SNC 11.1 - Caixa.

O recebimento das rendas entre 2005 e 2010 encontra-se contabilizado através de caixa e de bancos, nos montantes e valores indicados no documento 89 supra referido./ (...)

Por forma a verificar os registos contabilísticos relacionados com as rendas, foram emitidos os despachos externos n°s DI2021.../.../.../.../... em nome da sociedade B... LDA, NIPC. ..., com extensão aos exercícios de 2005 a 2021. No âmbito deste procedimento o gerente D..., NIF..., foi ouvido em auto de declarações, reduzido a escrito, em 28-10-2021, que se reproduz:

“Quando questionado se possui os elementos de suporte dos registos contabilísticos da sociedade B... Lda, desde 2005 a 2020, respondeu que os documentos anteriores a 2010 foram destruídos e que os de 2010 a 2020 estão disponíveis para consulta”.

 

Na contabilidade desta sociedade, através do documento n.° 208 do diário 1 de 31-12-2020 foi efetuado o seguinte registo: (...)

Este registo contabilístico credita a conta SNC 27811980102 - Devedores diversos – A..._Rendas Por Pagar, por contrapartida da conta SNC 268151 - Acionistas/sócios – D... . / Através deste registo contabilístico o saldo credor da conta SNC 268151 diminui para € 46.225,81.

O documento de suporte é idêntico ao anexo 1. Os € 89.000,00 constantes do registo contabilístico correspondem ao valor líquido que foi deduzido ao saldo da conta SNC 11.1-Caixa do SP (A... Lda). Este registo contabilístico n° 208 não movimentou a conta SNC 11.1-Caixa.

Foram analisados os extratos contabilísticos da sociedade B... Lda entre 2005 e 2020, concluindo-se que as rendas foram registadas como pagas por caixa (crédito da conta 11.1) através de 36 recibos de renda, no valor total de € 63.000,00, conforme documento em anexo 3. O remanescente encontra-se pago através de cheque (€ 42.620,00) ou do sócio (€ 30.777,38) mediante lançamentos a crédito nas contas 12 e 258151.

Quer dizer que a contabilidade por um lado, nomeadamente as contas 11/12/258 (e respetivas contas de custo), refletem o pagamento das rendas ao longo desses anos, e por outro, com o lançamento n° 208 de 31/12/2020, passa a traduzir o não pagamento dessas mesmas rendas.

Ora não se percebe porque foi efetuado o movimento de regularização n° 208, que criou a conta SNC 27811980103 – A... rendas por pagar, quando o pagamento das mesmas se encontrava registado através das contas SNC 11-.1 - Caixa, 12 - bancos e 268151 – D.... / (...)

As demonstrações financeiras (...) compreendem a conta 11- caixa. Esta conta faz parte dos meios financeiros líquidos (classe 1), classe esta que se destina a (...). / A conta caixa contém os elementos monetários, tais como notas e moedas, pelo que os elementos do ativo a considerar na conta 11 – Caixa deverão ser apenas dinheiro (...) e cheques e vales postais (...). / Todos os documentos internos e externos que justificam recebimentos ou pagamentos deverão constar na conta caixa.

De acordo com a alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º do CIRC (...). / E o artigo 123.º n.º 2 alínea a) do CIRC refere (...).

Em resumo:

Embora a contabilidade exibisse um saldo de caixa elevado, em 17 de dezembro de 2020, o gerente declarou não existir qualquer valor em caixa.

Em 31-12-2020 foi efetuado um registo contabilístico que pretende refletir que as rendas devidas pela sociedade B... Lda, não foram pagas.

No entanto, na contabilidade do SP, se os registos a débito em caixa entre 2005 e 2010 não tivessem existido, a mesma exibiria um saldo negativo a partir de março de 201[0], o que não é possível.

E não deixa de ser estranho que os pagamentos em numerário não tenham acontecido, de acordo com os argumentos do SP, mas que tenham sido pagas rendas entre 2006 e 2010 através de cheque.

Por outro lado, o SP emitiu faturas recibo pelas rendas, sendo que este documento confere quitação.

Face ao exposto, conclui-se que o documento que suporta o lançamento contabilístico n° 89 de 31.12.2020 não o justifica.

Nos termos do n° 1 do artigo 74º da Lei Geral Tributária "O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque." É o SP quem vem invocar que as rendas não foram recebidas e cabe-lhe a si esta prova. Apenas foi apresentada uma listagem dos registos contabilísticos que debitaram a conta 11.1 (anexo 1).

 

Acresce ainda que as contas foram sempre aprovadas ao longo dos anos, conforme resulta das atas, e que os saldos de caixa integram os elementos da IES (informação empresarial simplificada) desde 2007, e conferem com os saldos evidenciados na contabilidade.

O SP através do registo contabilístico com o no 89 vem em 2020 colocar em causa os seus próprios registos contabilísticos, efetuados ao longo dos anos, desde 2005 e muito além do prazo de conservação dos documentos, o que também impede a verificação do documento de suporte dos mesmos.

Conclui-se que o registo contabilístico n.º 89 de 31-12-2020 do diário de operações diversas, que movimentou a conta SNC 11.1 — Caixa a crédito, em € 89.000,00 (ou seja, reduziu o seu saldo) não está comprovado. / (...)

Através do registo contabilístico n.º 89 diário 1 de 31.12.2020 foi retirado de caixa o montante de € 89.000,00 e não se conhece o destino deste montante.

O saldo de caixa apurado em 17-12-2020 é de € 89.079,39, que resulta dos registos contabilísticos na conta SNC 11.1, expurgados dos documentos 85 e 34 (com datas posteriores) e 89.

Em 17-12-2020 não foi contado qualquer dinheiro em caixa e o saldo que a respetiva conta SNC 11.1- Caixa da contabilidade traduzia, nessa data, era de € 89.079,39, pelo que, a falta desse dinheiro pressupõe o pagamento de despesas que não estão documentadas e como tal são tributadas autonomamente à taxa de 50%, nos termos do n.° 1 do artigo 88.° do CIRC, pelo que se apura uma correção em sede de Imposto - tributações autónomas de IRC, no montante de € 44,539,70 (€ 89.079,39 x 50%)./ (...).”

 

s) Do auto de declarações do gerente aquando da realização da contagem dos valores em caixa consta, entre o mais, que (i) feita a contagem pelos SIT não se apurou qualquer valor em caixa, (ii) todo o dinheiro da sociedade está depositado no banco, não existindo outros valores de caixa fora daquelas instalações, nem em trânsito, e (iii) em 2020 não houve distribuição de lucros ou pagamento de adiantamentos a esse título; (cfr. auto de declarações de 17.12.2020, PA1);

 

t) Do balancete analítico da Requerente de Dezembro de 2019 consta em Conta 11 Caixa um Saldo Devedor de € 92.231,38;

 

u) Do extracto de Conta 11 Caixa de 2020 da Requerente consta um Saldo de abertura de € 92.231,38, Devedor; (cfr. PA1)

 

v) Do balancete analítico da Requerente de 30.09.2020 consta em Conta 11 Caixa um Saldo Devedor de € 90.798,01; 

 

x) Do balancete analítico da Requerente de Dezembro de 2020 consta em Conta 11 CAIXA um Saldo Devedor de € 44,97;

 

y) Os Saldos contabilísticos, devedores, da conta Caixa da Requerente, já eram elevados nos anos anteriores a 2020, de que são exemplo os seguintes, reportados ao fecho dos exercícios: (i) 2009, €107.062,18, (ii) 2017, € 95.142,82, e (iii) 2018, € 93.553,84;

 

z) No documento na base do lançamento contabilístico de 31.12.2020 pelo qual a Requerente creditou a Conta Caixa, referido com o n.º 89, consistente numa folha A4, assinada pelo seu gerente, lêem-se, além da denominação e NIF, os seguintes dizeres: “Regularização do saldo devedor da Caixa correspondente às Rendas devidas e não pagas pela firma B..., Lda, NIF ..., em virtude de terem sido indevidamente lançadas em Caixa, por indevida emissão de Recibo”, seguidos de lista com os seguintes items (transcrevem-se as primeiras linhas, tudo se dando por reproduzido):

“N.º Doc.    Data.         Descritivo.           Valor             /   N.º Doc.  Data.  Depósito

  1.  31/01/2005  Serv. Prest. F.ª n.º 057  1.250,00€        9    31/01/2006  2.000,00€;

 

 

aa) No documento referido na alínea anterior identificam-se, à esquerda, 70 (setenta) descritivos, no valor total de € 131.500,00 e, à direita, 10 (dez) descritivos, no valor total de € 42.500,00, tendo este último valor sido creditado na conta Caixa por contrapartida de Bancos como correspondendo a pagamentos de renda efectuados por cheque;

 

bb) Por via do lançamento contabilístico de 31.12.2020, a Requerente efectuou, com base no documento n.º 89 do diário 1, operações diversas (v. alíneas anteriores) um registo que movimenta a conta SNC 11.1 - Caixa a crédito em € 89.000,00, por contrapartida da conta SNC 278119601004 – “Outros Devedores e credores Diversos A... Lda. Rendas”, como correspondendo a rendas em dívida;

 

cc) A Requerente não exibiu quaisquer documentos de suporte dos descritivos constantes do documento n.º 89 (v. al.s anteriores), e questionado pelos SIT para exibir as pastas com os documentos contabilísticos ali referidos o gerente informou que os mesmos foram destruídos por ultrapassados os dez anos; (cfr. auto de declarações de 03.11.2021 - PA1);

 

dd) No âmbito do procedimento inspectivo a Requerida considerou que o documento n.º 89 não justifica o lançamento contabilístico de 31.12.2020;

 

ee) Com base nos registos contabilísticos da Requerente, a Requerida apurou que a 17.12.2020 o saldo de conta caixa era de € 89.079,39, e tendo a contagem física revelado, nessa data, € 0,00 em caixa, concluiu que a falta desse dinheiro pressupõe o pagamento de despesas que não estão documentadas;

 

ff) A Requerida propôs, na sequência, correcções meramente aritméticas por tributação autónoma, no montante de € 44.539,70, em aplicação do art.º 88.º, n.º 1 do CIRC;

 

gg) Com data de 06.01.2022 foi emitida a Liquidação 2022 8310023114, que reflecte as correcções operadas, e, com data de 30.03.2022, a Demonstração de acerto de contas, com o valor global a pagar (imposto e juros) de € 45.203,16, e data limite de pagamento 17.05.2022;

 

hh) A 20.07.2022 a Requerente interpôs o Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

2.2. Factos não provados

 

Não resultou provado que o pagamento das rendas titulado pelas facturas-recibo emitidas pela Requerente à B..., Lda. ao longo dos anos de 2005 e seguintes, e correspondente ao montante total de € 89.079,39, não tenha ocorrido.

 

Não resultou provado erro nos lançamentos contabilísticos da Requerente na Conta 11.1 Caixa correspondentes ao recebimento dos pagamentos das rendas.

 

Com relevo para a decisão da causa não existem outros factos considerados não provados.

 

 

2.3. Fundamentação da matéria de facto

 

Os factos dados como provados, bem como os dados como não provados, foram-no com base nos documentos juntos aos autos, incluindo tudo o constante do PA (todos os documentos se dando por integralmente reproduzidos), e, bem assim, com base nas posições manifestadas pelas Partes nos articulados, factos não controvertidos e prova testemunhal, tudo criticamente apreciado.

Quanto à prova testemunhal, prestou depoimento F..., indicado pela Requerente. A testemunha é o Contabilista Certificado da Requerente desde a sua constituição e até ao presente. De referir que o vínculo profissional da testemunha, enquanto Contabilista Certificado, ocorre também com a sociedade B..., Lda., como a certo passo do depoimento se revelou.

Não obstante a testemunha ter aparentado, no geral, procurar responder aos factos sobre que foi questionada de forma solícita e espontânea, o seu depoimento não foi, no entendimento do Tribunal, de total isenção e imparcialidade. Denotando-se indissociável comprometimento com a contabilidade por si elaborada, como também é compreensível. O depoimento revelou, também, contradições e algumas inconsistências/insuficiências. São exemplo, entre outros, a testemunha afirmar que a funcionária da Requerente passava facturas-recibo mesmo sem receber o dinheiro e que isso acontecia porque era o único livro que tinham na empresa (livro de facturas-recibo), afirmando também que fazia o lançamento em Caixa porque era isso que lhe era dado entender, que o dinheiro entrava em caixa. E por outro lado afirmando que o dinheiro não entrava, e que “não entrava por que não aparecia lá”, “logo se a outra empresa não pagava logicamente esta não recebia”. Afirmando ainda que nunca se deslocava à empresa. Ou, e em conexão, quando questionada sobre se, para fazerem a regularização, de 31.12.2020 pela Conta 27, fizeram alguma análise da contabilidade e dos documentos antigos respondeu “o que se verificou é que não havia prova de se ter recebido aquele dinheiro”.

Neste contexto, pela prova testemunhal produzida a Requerente não logrou complementar a prova documental junta e que, desde logo e só por si, se revelou insuficiente para prova dos factos que alegou. 

 

No que respeita em especial ao primeiro facto dado como não provado. Refira-se, ainda, que não foram exibidos quaisquer documentos de suporte dos descritivos elencados no doc. 89 - documento interno, redigido em momento posterior ao da contagem de Caixa pelos SIT, e que se destinou a servir de base ao lançamento contabilístico com o mesmo número, no final de Dezembro de 2020.

Por outro lado, as contas da Requerente foram aprovadas ano após ano, assim também a Requerente aprovando o daí constante quanto a saldos em conta caixa (cfr. RIT e anexos).

Aquando da contagem de caixa o gerente da Requerente confirmou que não existia dinheiro em caixa e não fez referência a que os montantes titulados pelas facturas-recibo não tivessem sido recebidos, nem a que tivesse havido um erro contabilístico.

Do PA (PA1, a pp 51-52) constam duas facturas-recibos de renda emitidas pela Requerente à B... Lda. com data, uma, de 08.07.2010, valor € 2.000,00, e a outra de 07.12.2010, valor € 2.000,00, e descritivos, respectivamente, “Renda do imóvel, sito em ..., referente ao mês de Julho/10” / “(...) referente ao mês de Dezembro/10”. O que não se coaduna com o que se lê no doc. 89, em que os descritivos têm, quase sem excepção, como datas das, como tal ali referidas, facturas (“Fª”), o último dia de cada mês, e aí se lê, no que ora importa:

“N.º Doc.   Data.         Descritivo.                     Valor

65        31/07/2010    Serv. Prest. F.ª n.º 125    2 000,00 €   / (...)     

116      31/12/2010    Serv. Prest. F.ª n.º 130    2 000,00 €”          

 

Com efeito, não pode senão estranhar-se que tivesse sido emitida, no final do mês, uma factura por uma determinada renda (pense-se na do mês de Julho de 2010) cujo pagamento havia já sido declarado pela Requerente ter sido recebido, pela emissão de factura-recibo, no início desse mesmo mês. Acrescendo que o único documento constante dos autos é a factura-recibo. (Nem também havendo como conjecturar-se esta factura-recibo, de 08.07.2010, ser reportada ao pagamento da renda de Junho. Desde logo porque não é esse o seu descritivo. E também porque vem listada “Fª” de 30.06.2010, no doc. 89, pelo que também não faria sentido, a ter existido esta Fª, se estar, após, a emitir uma factura-recibo por esse pagamento - quando muito emitir-se-ia tão só um recibo. Sendo que, insista-se, o único documento que foi exibido é a factura-recibo.) O mesmo se podendo dizer, mutatis mutandis, quanto à renda do mês de Dez. de 2010.

Mais tendo sempre sido referidos pela Requerente, seja em sede de procedimento, seja nos presentes autos arbitrais, os documentos emitidos, e que estão na base dos lançamentos a débito na conta Caixa, como se tratando de facturas-recibo. Nesse ponto tendo, aliás, a testemunha corroborado o alegado pela Req.te, de que se tratava sempre de facturas-recibo.  E no doc. 89, em dissonância, vindo listados, diferentemente, como facturas (“Fª”).

Acresce que também não se vê como compatibilizar o escrito no doc. 89 com o facto de a Req.te ter reconhecido, nas contas 72119 e 72115, os rendimentos decorrentes das rendas (cfr. RIT – v. al. r), factos provados).

Na contabilidade da sociedade arrendatária da Requerente, por sua vez, estando registadas as rendas como pagas ao longo dos anos em questão. Isto, até à mesma data de 31.12.2020, data em que também foi feito um lançamento contabilístico (aí n.º 208) pelo qual, criando-se uma conta “278 – (...) rendas por pagar”, se fez um movimento de “regularização” que passou a traduzir o não pagamento daquelas mesmas rendas (cfr. RIT – v. al. r), factos provados).

 

De tudo quanto vem agora percorrido resultando também como não provado o alegado erro contabilístico em que a Requerente teria incorrido ao lançar em conta caixa os sucessivos pagamentos da renda ao longo dos anos de 2005 e seguintes, de que foi dando quitação através de facturas-recibo. Além do mais, nem se afigurando ao Tribunal plausível a perpetuação de um tal erro ao longo de (tantos) anos, em contexto de contabilidade organizada. Com tudo o que a mesma implica. Como infra também melhor se verá.

 

Ao Tribunal cabe seleccionar, de entre os alegados pelas Partes, os factos que importam à apreciação e decisão da causa perspectivando as hipotéticas soluções plausíveis das questões de direito (v. art.º 16.º, al. e) e art.º 19.º do RJAT e, ainda, art.º 123.º, n.º 2 do CPPT e art.º 596.º do CPC[3]), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.s 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.ºs 5.º, n.º 2 e 411.º do CPC[4]).

Não se deram como provadas ou não provadas alegações das Partes apresentadas como factos mas consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja validade será de aferir em face da matéria de facto considerada assente.

 

 

3. Matéria de Direito

 

Recapitulando muito brevemente.

 

A Requerente foi alvo de procedimento inspectivo, iniciado no ano de 2020, no qual foi detectada pelos SIT divergência, para menos, entre os valores constantes da sua contabilidade em saldo de conta caixa e as disponibilidades financeiras efectivamente existentes na caixa. A saber, com referência à data da contagem física, 17.12.2020, a contabilidade da Requerente relatava/informava existirem em caixa € 89.079,39, e, realizada a contagem, constatou-se não existir qualquer valor em caixa.

 

Em face do que, a Requerida entende que, não tendo a Requerente apresentado para o facto outra explicação além da de que a contabilização em conta caixa foi um erro derivado de as facturas-recibo por si emitidas não terem tido correspondência em recebimentos - e tendo procedido a uma regularização do invocado erro por via de um lançamento contabilístico  (posterior à contagem pelos SIT) de 31.12.2020, para o qual apresenta um seu documento com uma listagem sem suporte em quaisquer outros documentos - não podia senão considerar-se a inexistência, em caixa, do montante em questão traduzir “despesas não documentadas”. Desde logo porque a Requerente não provou, como lhe cabia, o alegado não pagamento das rendas.

 

A Requerente, de seu lado, não se conforma com o entendimento da Requerida. Primeiro, por caber a esta provar a realização efectiva das despesas em concreto, e uma vez que o não fez. Depois, por tais despesas poderem, a ser o caso, ter ocorrido em anos anteriores, pois que os saldos devedores da conta caixa já então eram elevados. E uma vez que a Requerida não provou, como também lhe cabia, a data da realização das despesas.

 

Subjazem às posições das Partes entendimentos divergentes sobre a distribuição do ónus da prova nesta sede. Como melhor veremos.

 

3.1. Questões a decidir

As questões sobre que decidir podem sumariar-se assim:

  1. Estão, ou não, reunidos, no caso, os pressupostos de aplicação do art.º 88.º, n.º 1 do CIRC, preenchendo-se a previsão normativa?
  2. Se sim, o facto tributário em questão ocorreu no exercício em que a Requerida o considerou verificado?

 

Dito de outro modo:

  1. A quantia de € 89.079,39, correspondente à divergência existente, a 17.12.2020, entre o saldo contabilístico de conta caixa (€ 89.079,39) e a efectiva disponibilidade de meios existente na caixa aquando da contagem física (€ 0,00), é ou não, no caso, subsumível à figura das “despesas não documentadas” consagrada pelo legislador fiscal, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 88.º, n.º 1 do CIRC?
  2. Em caso afirmativo, tendo a verificação das disponibilidades em caixa (a contagem física) ocorrido no decurso do exercício de 2020, e assim a discrepância tendo sido detectada nessa data (17.12.2020), é ou não de considerar verificado o facto tributário nesse mesmo exercício? 

 

Haverá ainda que apreciar e decidir da, a certo passo, aventada pela Requerente “fundada dúvida na quantificação do facto tributário” “nos termos do art.º 100.º, n.º 1 do CPPT”.

 

E, ainda, quanto à invocada “fundada dúvida relativamente ao exercício em que ocorreram as despesas” “nos termos do art.º 100.º, n.º 1 do CPPT” “violando do princípio da especialização e periodização dos exercícios”.

 

Consoante o que se vier a concluir, assim a Liquidação em crise será ou não de anular, como vem peticionado. 

*

 

Ditando a norma potencialmente aplicável, identificada já nas Questões a decidir, assim[5]:

Art.º 88.º - Taxas de tributação autónoma

  1. As despesas não documentadas são tributadas autonomamente[6], à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 23.º-A. / (...).”

 

Importará, com vista a responder às Questões supra, começar por aproximar, antes de mais, o conceito de “despesas não documentadas”, bem como a tributação aqui em causa. Como segue.

 

 

3.2. Despesas não documentadas (“DND”) e Tributação Autónoma (“TA”)

 

Dispõe o legislador no art.º 23.º-A do CIRC assim:

Art.º 23.º-A - Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais

1. Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

a) (...)

b) As despesas não documentadas;

c) Os encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º, bem como os encargos evidenciados em documentos emitidos por (...); / (...)”

 

A distinção entre o que o legislador tipificou como “despesas não documentadas” e, de outra banda, como “encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º” resulta desde logo evidenciada pelo respectivo tratamento em separado, nas al.s b) e c) acima. Assim, “despesas não documentadas” versus despesas não devidamente documentadas, quanto a estas últimas - e não quanto às primeiras - se pressupondo, como bem se vê (desde logo pela remissão normativa para o art.º 23.º, n.ºs 3 e 4), a existência de suporte documental.  Suporte documental válido, sempre se diga, independentemente da respectiva natureza.

 

O tipo legal “despesas não documentadas” é, assim, delimitado a encargos incorridos, pelo sujeito passivo, mas desprovidos de suporte documental válido. Ou, pelo menos, sendo desconhecido tal suporte documental.

 

Assim vem também sendo assente, seja na Doutrina, seja na Jurisprudência. Tendo-se tornado claro, ao longo do tempo, e com reflexo depois no legislador, no CIRC, o conceito de “despesas não documentadas” ser de entender como um conceito amplo, a elas sendo também de reconduzir as despesas até certo momento denominadas pelo legislador de “confidenciais”. Com efeito, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (LOE 2008) foi eliminada a referência às despesas confidenciais, passando o então art.º 81.º, n.º 1 do CIRC (correspondente ao actual art.º 88.º, n.º 1) a referir tão só “despesas não documentadas”. Ficando mais uma vez claro as “despesas confidenciais” se reconduzirem, elas próprias, a “despesas não documentadas”. Trata-se, em ambos os casos, de despesas não comprovadas documentalmente, sendo o conceito de “despesas não documentadas”, assim, mais abrangente que o das “despesas confidenciais”. 

 

O regime não é novo e remonta (embora com taxas que viriam a aumentar) aos iniciais dispositivos legais entre nós em matéria de Tributações Autónomas. Com efeito, foi pelo DL n.º 192/90, no seu art.º 4.º, que o legislador determinou a sujeição à tributação autónoma das “despesas confidenciais e não documentadas” (a par de não serem consideradas como custos para efeitos de determinação do lucro tributável). 

 

Como se lê em Acórdão do STA de 18.02.2010, prolatado no processo n.º 018/10, “As sucessivas reformas fiscais têm vindo a agravar gradualmente o aproveitamento de “despesas confidenciais ou não documentadas”, com o propósito de desmotivar as empresas à sua utilização, já que “as despesas confidenciais ou não documentadas” se apresentam, as mais das vezes e pelas mais variadas formas, o meio mais eficiente de ocultação de rendimentos tributáveis.”

 

Estamos, em qualquer caso - em sede de “despesas não documentadas” - perante saídas de meios financeiros do património da empresa, exfluxos financeiros carecidos de um comprovativo documental válido a nível contabilístico. Diferentemente, caso exista documentação de suporte válida a nível contabilístico, mesmo que afectada por insuficiências, estaremos já perante as denominadas “despesas não devidamente documentadas”. 

 

A Tributação Autónoma incide, tão só, sobre as primeiras (v. art.º 23.º-A, n.º 1 al. b) versus al. c), e art.º 88.º, n.ºs 1 e 2 e do CIRC). E incide com taxa agravada. Estando claramente presente, nesta Tributação Autónoma (sobre DND) - uma finalidade de penalização.

 

“O regime jurídico das TAs tem vindo a sofrer constantes alterações ao longo dos anos. (...) As realidades abrangidas são múltiplas, como uma leitura breve do art.º 88.º, sob a epígrafe “Taxas de tributação autónoma”, permite concluir. / Pela própria multiplicidade de possíveis realidades - multiplicidade de factos típicos, factos tributários tipificados - abrangidas, e sobretudo pela forçada inserção num Código de imposto sobre o rendimento, quando de imposto sobre o rendimento se não trata, o regime reveste características muito próprias. / Tenham-se em mente, também, as múltiplas finalidades potencialmente ínsitas nos vários dispositivos dali constantes, desde finalidades anti-abuso e de procurar contrariar a erosão indevida da base tributável, penalizadoras (v. despesas não documentadas), de desincentivo a certos comportamentos e incentivo a outros (...), e outras. (...) uma tributação que veio a ser enxertada num Código que, por sua vez, cuida de uma realidade tributária - um facto tributário, de formação sucessiva - que é distinta, é de complexidade notória e não se confunde, no seu funcionamento e lógica subjacentes, com a tributação operada pelas TAs. / Identificam-se, sim, nos SP. E nos momentos de liquidação e pagamento. Não mais, quanto a nós. / As TAs são efectivamente impostos que incidem sobre a despesa. Com as características que lhe são próprias, enquanto tal. Ainda que inseridos num Código de tributação do rendimento.”[7]

 

Quanto à finalidade que vem de se referir existir em especial nesta tipologia de TAs (sobre DND), penalizadora, também assim de combate à evasão e fraude fiscais, é a mesma patente, diga-se, desde logo por a tributação, aqui, acrescer à desconsideração como custos fiscalmente relevantes (cfr. art.º 88.º, n.º 1, segunda parte). Assim foi historicamente a finalidade visada pelo legislador ao tratar estas despesas (remontando na origem ao DL n.º 375/74, de 20/08), e assim é claramente assumido pelo legislador fiscal até ao presente (como se pode apreender do disposto nos n.ºs 2 e 8[8] do art.º 88.º, ou, também, a título de exemplo, do disposto no art.º 36.º-A, n.º 14, segunda parte, do EBF[9]).

 

Por seu turno, quanto à multiplicidade de realidades abrangidas actualmente na tributação autónoma em sede de IRC, e mais uma vez a ilustrar a especificidade desta tipologia de TAs, sobre DND, veja-se como nas demais normas do art.º 88.º, que não os seus n.ºs 1 e 2 (e 8), o legislador identificou, concretizando-as, as despesas (as mais variadas) em questão. Nessas outras normas se lendo, invariavelmente, e diferentemente, “encargos (...) relacionados com (...)”, “encargos (...) relativos a despesas de (...)”, “encargos relativos a (...) e à (...)”, “os lucros distribuídos (...)”, “os gastos ou encargos relativos a (...) ou (...) bem como os gastos relativos à (...)”, “os gastos ou encargos relativos a bónus e outras remunerações (...)”, etc. Para dizer que em todos os outros factos tributários que o legislador elegeu nesta sede vêm identificadas as concretas despesas de que se cuida. O mesmo não sucedendo, como bem se compreende, no caso específico das “despesas não documentadas” (DND). Assim tipificadas.

*

Especificidades, pois, da TA em DND. Finalidade, ainda que não exclusiva, penalizadora; não identidade das despesas em concreto.

*

Aqui voltaremos.

 

Como quer que seja - e relembrando distinção a que nos referimos supra, entre “despesas não documentadas” e “despesas não devidamente documentadas” - no caso dos autos, não vem questionado, tão pouco, que inexistem documentos de suporte das - assim subsumidas à norma pela Requerida - “despesas não documentadas”.

 

Não vem questionado, pois, que, a considerar-se ter havido despesas, estaremos em sede de “despesas não documentadas”. Aquilo que a Requerente alega é que não houve despesas. Segundo defende, numa primeira linha de argumentação, os Saldos contabilísticos devedores (de aproximadamente € 90.000,00, ao longo de vários anos) que a sua contabilidade apresentava na Conta 11. Caixa não eram reais, tinham resultado de lançamentos contabilísticos que, afinal, não deveriam ter sido feitos. Uma vez que apesar de os mesmos reflectirem os pagamentos de rendas mensais de cujo recebimento deu quitação, emitindo facturas-recibo ao longo dos anos de 2005 (com início em Janeiro de 2005) a 2010, inclusive, o certo é que os pagamentos não foram recebidos. Assim expõe.

 

Trata-se, assim, defende, de uma discrepância entre o constante da sua contabilidade e o efectivamente existente na realidade na sua caixa que se deve a um erro contabilístico.

 

Também não vem, pois, questionado que se verifica a discrepância.

 

*

Factualidade que vem assente, pois. Discrepância; não documentação.

*

 

E para corrigir o erro que aqui defende ter existido, ao que aos autos importa, procedeu a um lançamento, a crédito, na Conta 11. Caixa, pelo qual, expõe, expurgou o montante de € 89.000,00 da mesma, que estaria a “inflacionar indevidamente o saldo da conta Caixa”. Sustenta a tese por que pugna em que as rendas em questão nunca chegaram a ser-lhe pagas a não ser numa parte, que lhe teria sido paga por cheque (no total de € 42.500,00).

 

Para sustentar por sua vez o lançamento pelo qual “corrigiu o erro” apresenta um documento, interno, no qual lista uma série de descritivos correspondentes a facturas mensais de rendas que terá emitido à sua arrendatária (cfr. al.s z) e aa) factos provados). Sem que, contudo, e apesar de instada pela Requerida a fazê-lo em sede de procedimento inspectivo, junte qualquer um dos documentos contabilísticos que na lista refere. E defende que a Requerida não tem razão ao considerar que o documento em questão não justifica o lançamento contabilístico de “correcção do erro”, de 31.12.2020.

 

Entende, em qualquer caso, que cabia à Requerida, querendo tributar em sede de Tributação Autónoma, como fez, fazer, ela Requerida, a prova de cada uma das despesas em concreto. Sem o que não poderia tributar. Não tendo ficado demonstrado verificar-se o facto tributário. As “despesas não documentadas”, portanto. 

 

 

3.3. Da prova das “despesas não documentadas” (DND) – o Facto tributário

 

A possibilidade de ocorrência do facto tributário - DND – resultaria assim afastada, no caso, provado que resultasse não ter havido recebimento das rendas. (Ao arrepio da contabilidade até 31.12.2020.)

 

Vejamos.

 

Começando, então, pelo documento da Requerente na base do lançamento de 31.12.2020. Documento, interno, com base no qual, assim, creditou a Conta 11. Caixa, pelo valor de € 89.000,00, por contrapartida da conta 278 (...) – “Outros Devedores e credores diversos A... Lda. Rendas”. Cfr., entre o mais, al. aa), factos provados.

 

Ou seja, retirou, contabilisticamente, esse montante da Conta 11. Caixa. Como? Com base no dito documento, interno, originado em momento posterior ao da contagem física de valores em caixa pelos SIT. Para tanto listou uma série de facturas de renda, que não juntou, ou alguma vez exibiu (e que perfazem um valor total de € 131.500,00). Apesar de no procedimento inspectivo tanto lhe haver sido solicitado. Intitulou o dito documento de “Regularização do saldo devedor da Caixa correspondente às Rendas devidas e não pagas pela firma B..., Lda, NIF..., em virtude de terem sido indevidamente lançadas em Caixa, por indevida emissão de Recibo.” Algo contraditoriamente considerou aí pagas parte das rendas, no valor de € 42.500,00, por cheque. E o remanescente montante que ali discriminou, € 89.000,00, esse sim considerou como não pago, e assim creditou a conta 11. Caixa, nesse montante, por contrapartida da conta 278 (...) – Outros Devedores (...) A... Lda. Rendas (cfr. supra e al. aa) factos provados).

 

Se se preferir, saldou a conta 11. Caixa, levou-a a zeros. Debitando, por igual montante, a conta 278. E, assim, o saldo (devedor) da Conta 11. Caixa diminuiu em € 89.000,00.

 

Porquê o fez? Alegadamente porque as rendas nesse montante, que haviam sido (por si) consideradas pagas, pelo pagamento das quais havia emitido facturas-recibo (havia, pois, dado quitação), e assim tendo sido feitos (por si) os lançamentos contabilísticos na conta 11. Caixa, afinal, não haviam sido pagas. Mantinham-se em dívida. A arrendatária,  B..., Lda., não as teria, afinal, pago.

 

Pois bem.

Tudo na contabilidade da Requerente (até ao lançamento de 31.12.2020) indica no sentido oposto. O de que as rendas foram recebidas. Segundo reflecte a sua contabilidade, terão sido recebidas, em numerário, por isso desses pagamentos se tendo dado quitação (facturas-recibo) e lançado em Conta 11. Caixa.

Sem pretensão de exaustão, assim apontam, entre o mais, (i) a emissão das facturas-recibo, ao longo de anos, (ii) os lançamentos em Conta 11. Caixa, ao longo de anos, (iii) o reconhecimento das rendas como rendimentos em Contas de Prestação de Serviços, ao longo de anos, (iv) o terem sido aqueles os Saldos contabilísticos de conta Caixa da Requerente ao longo de anos, o que também implica que ano a ano a gerência ao aprovar as contas anuais (que aprovou, v. al. r) factos provados) confirmava a sua fiabilidade, (iv) aquando da contagem física, confrontado pelos SIT com a discrepância constatada, o gerente nada ter referido quanto ao alegado erro de contabilidade ou quanto ao alegado não pagamento, (v) constatar-se pela contabilidade que, a não terem sido feitos os lançamentos a débito em questão na conta Caixa, a mesma teria apresentado Saldo credor.

Não de menor relevância, o facto de a sustentar o doc. 89 não existirem documentos contabilísticos, não tendo sido exibida qualquer factura das ali listadas e, mais, tendo o gerente, a seu tempo (2021), declarado, face à solicitação dos SIT, que não podia exibir tais documentos (de 2005 a 2010) por terem sido destruídos por ultrapassados os 10 anos. O que também aponta num de dois possíveis sentidos: o de, ao ter sido elaborado o doc. 89, não existirem os documentos contabilísticos em que o mesmo se teria baseado, ou, a existirem, apesar de utilizados para base do documento feito no final de 2020 - com fins de lançamento justificativo de um alegado erro - ainda assim a Requerente ter preferido (em Dezembro de 2020) não os manter. Isto, sendo também certo que estamos em IRC, regendo o Princípio da documentação - cfr., entre o mais, art.º 123.º, n.º 2, al. a) do CIRC, e tendo o lançamento sido feito em 2020.

 

Por outro lado, também da contabilidade da sua arrendatária o mesmo decorre. Também tudo nessa contabilidade indica no sentido oposto àquele pelo qual a Requerente pugna (até a um lançamento, aí com o n.º 208, de 31.12.2020). Com efeito, daí consta, além do mais, que as rendas em questão nos autos foram contabilizadas como pagas por caixa (€ 63.000,00) ou por sócio (€ 30.777,38). Reflectindo-se aí o pagamento das rendas à Requerente ao longo dos anos. Até ao lançamento a 31.12.2020 em sentido contrário, e igualmente sem que tenham sido exibidos documentos justificativos de suporte.

 

Tudo como constante do RIT, v. al. r) dos factos provados.

 

Ora, tendo em consideração todo o período compreendido entre (Janeiro de) 2005 e (Dezembro de) 2020 tal como constante da contabilidade, como vimos, e presumindo-se esta verdadeira e de boa-fé, nos termos do art.º 75.º, n.º 1 da LGT, não se vê como um documento interno, originado por consequência da contagem de caixa pela Requerida a 17.12.2020, sem qualquer sustentação por documentos contabilísticos justificativos, pudesse ter-se como o determinante. Pudesse entender-se proporcionar - este sim e não toda a contabilidade de c. 15 anos - apropriadamente, e com verdade, a informação acerca da posição financeira da Requerente e fluxos de caixa.

 

Nem a Requerida afastou a presunção de veracidade da contabilidade, a quem caberia, se fosse o caso, fazê-lo. Nem havia fundamento para tanto – não se preenche a al. a) do n.º 2 do referido art.º 75.º da LGT[10]. Que dispõe que a presunção constante do n.º 1 se não verifica quando “As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável do sujeito passivo.” Não é o caso, contrariamente ao que a Requerente defende ao apelar a que seja afastada a presunção de veracidade da sua contabilidade por “os elevados e inverosímeis saldos de conta Caixa que revela ao longo de sucessivos exercícios” representarem “manifesto erro” (105.º do PPA). Como bem se compreende, por tudo o que vem de se expor, e sem necessidade de maiores desenvolvimentos. E o manter-se a presunção do art.º 75.º da LGT não “concorre para a dúvida sobre o facto tributário nos termos do art.º 100.º, n.º 1 do CPPT” (v. 87.º a 94.º, e 105.º do PPA). Nem este dispositivo legal seria convocável, implicado que está, aí, o equilíbrio de forças entre o dever de colaboração dos contribuintes, por um lado, e os deveres da AT no âmbito do princípio do inquisitório, por outro, e tendo a Requerente feito um lançamento “correctivo” de anos de lançamentos com base num documento interno sem documentos justificativos contabilísticos de suporte (e que terão sido destruídos). 

 

O documento não afasta, assim, que tenham ocorrido despesas – exfluxos de meios financeiros, de caixa. Segundo a contabilidade as rendas em questão foram recebidas, em numerário, e o documento não o abala, dele não resulta o contrário. (Cfr. factos não provados, supra.)

 

Se dúvidas houvesse, vejamos ainda sumariamente.

À Requerente é aplicável o Sistema de Normalização Contabilística (SNC)[11]. V. respectivo art.º 3.º, al. a), onde se dispõe que o mesmo é obrigatoriamente aplicável, entre o mais, às “entidades abrangidas pelo Código das Sociedades Comerciais”. E a conta 11. Caixa insere-se na Classe 1. – Meios Financeiros Líquidos (v. Código de Contas – CC - do SNC). Destina-se, pois, esta Classe, a registar os meios financeiros líquidos. Sendo que na Conta 11. devem ser registados os pagamentos e recebimentos em numerário, e o seu saldo representa a quantia em notas e moedas correntes de que a empresa dispõe.

As demonstrações financeiras incluem, como nem poderia deixar de ser, os fluxos de caixa.  As mesmas devem apresentar apropriadamente a posição financeira, o desempenho financeiro e os fluxos de caixa de uma entidade.  E a informação acerca dos fluxos de caixa proporciona aos utentes, conjugadamente com as demais demonstrações financeiras, base para conhecer a capacidade da entidade de gerar dinheiro e equivalentes e para determinar as necessidades daquela de utilizar esses fluxos de caixa. E presume-se que da aplicação adequada das normas contabilísticas resultam demonstrações financeiras que alcançam uma apresentação apropriada. (cfr. SNC)

Dito isto, como bem se compreende, a contagem física no final do exercício económico é imprescindível. Se havia um erro na contabilidade, havia que o corrigir. O que, ano após ano não tendo sido feito, aponta no sentido de que não era o caso. Não ocorria erro de contabilidade. (V. também factos não provados, supra.)

 

Os factos não provados - não pagamento das rendas / erro na contabilidade consequente - são constitutivos do direito que a Requerente invoca, a não ser tributada em sede de TA, por despesas não documentadas.

 

Logo, recai sobre si, contribuinte, o ónus da respectiva prova, cfr. art.º 74.º, n.º 1, da LGT: “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque” (v. também art.ºs 414.º do CPC e 342.º/1 do CC). Não tendo sido provado o facto constitutivo do direito que a Requerente invoca, deve tal ser valorado contra si, por aplicação das regras do ónus da prova. Na falta de prova do facto há que desconsiderá-lo, e dá-lo por não provado.

 

Avançando, então.

 

A Requerente alega que, em qualquer caso, sempre teria a Requerida que provar a concreta realização da(s) despesa(s). Bem como a data em que ocorreram. I.e., defende que, ainda que não se entenda resultar provado o não recebimento das rendas/o erro contabilístico (como vimos de ver suceder), sempre ocorre dúvida sobre a existência do facto tributário, “inexiste evidência do facto tributário”. Requer a anulação da Liquidação com fundamento em inexistência do facto tributário.

 

A TA teria, nesta sua linha argumentativa, natureza excepcional face à regra constitucionalmente consagrada da tributação sobre o rendimento real, entre o mais com a consequente necessidade de os factos constitutivos serem “demonstrados pela A.T. de forma clara, suficiente e congruente ou seja, para lá de qualquer dúvida razoável” (v. 97.º PPA).

 

Pois bem. Deve começar por recordar-se que a TA não tem a natureza de tributação sobre o rendimento, mas sim sobre a despesa. Não se verificando, pois, violação do consagrado na Lei Fundamental a respeito de tributação sobre o rendimento (nem as consequências que a Requerente daí pretende retirar, como seja a de exigir interpretação restritiva).

 

“Na tributação autónoma em IRC - segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular.” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012, de 20.06.2012).

“Enquanto que o facto tributário eleito pelo legislador nos impostos sobre o rendimento é o rendimento, que é um facto tributário de formação sucessiva, nas TAs, diferentemente, o facto tributário é a realização de despesas, cada uma das despesas conforme identificadas no art.º 88.º do CIRC. Facto tributário este que é instantâneo. E que, por razões práticas, o legislador optou por fazer os contribuintes liquidar em simultâneo com a liquidação do IRC. (...).”[12]

 

Não deixa, porém, de ser certo que o facto tributário há-de necessariamente, também nesta sede, de TAs, estar devidamente demonstrado.

 

Vejamos se assim sucede no nosso caso.

 

O facto tributário em questão é, vimo-lo já, a própria realização da despesa. Conforme tipificada na norma de incidência. No nosso caso, no n.º 1 do art.º 88.º do CIRC. Vem o facto tributário, neste caso, tipificado assim: “Despesas não documentadas”. Como supra já percorremos também, e tendo aí notado como é distinta a fórmula uitilizada pelo legislador na tipificação deste tipo de TAs (v. supra, p. 25), distinta desde logo por não identificados quaisquer elementos definidores das despesas. A não ser, precisamente, o de serem não documentadas.

 

Despesas não documentadas vimos também acima o que são (v. supra, pp. 22-23).

 

Facto tributário realização da despesa não documentada. Está ele devidamente demonstrado?

Verifica-se o facto tributário? Ocorreu na vida real a situação de facto prevista pelo legislador?

Preenche-se a previsão da norma?

A preencher-se, estando nós perante uma norma de incidência, nasce o tributo. Nasce a obrigação de imposto.

 

“São, pois, afinal (facto gerador/facto tributário), sob esta perspectiva, dois nomes possíveis para uma mesma realidade. / Como é bom de ver, este facto gerador insere-se no momento da constituição da obrigação de imposto. Com ele ela nasce. Obrigação que, existindo já, vai (em regra num momento ulterior[13]) ser concretizada, tornando-se líquida (certa, exigível e líquida) pela operação de liquidação. Cfr. art.º 36.º/1 da LGT: “A relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário.” Sendo que, quando da iniciativa da AT, a liquidação tem lugar por uma operação procedimental – cfr. art.º 54.º/1, al. b) da LGT[14], e quando da iniciativa do contribuinte é operada por este no âmbito das suas obrigações acessórias, e denominada, também, de autoliquidação.”[15]

 

No caso da TA sobre DND como as em questão nos autos, como se torna evidente, o contribuinte precisamente não procede à liquidação, por autoliquidação, como seria a regra. Como seria caso tivesse, como devido, revelado - documentado as despesas. Numa situação de DND, precisamente, despesas não acompanhadas de documento justificativo (cfr. supra), despesas, assim, não identificadas, em que não se identificam os seus elementos - para além do “constatável”, de diminuírem o património da sociedade - necessariamente será através não de autoliquidação, mas sim de uma operação procedimental da AT (liquidação pela AT), posterior ao nascimento, que a obrigação vai ser concretizada. Que o imposto se vai tornar devido. Sendo que, já se vê, as possibilidades de tal suceder - i.e., de o imposto se tornar devido, concretizando a obrigação de imposto que nasceu com a realização do facto tributário, a despesa - são escassas. São, melhor, uma. Aquela que nos autos se viu suceder: a contagem de caixa, pela AT.

 

Posto isto.

 

Realizou-se a despesa? Sim, houve um exfluxo financeiro da caixa, que diminuiu o património da Requerente. Um encargo em que a Requerente incorreu, cfr. art.º 23.º-A, n.º 1, al. b) (supra). Provada (vinha assente) que vem a discrepância existente entre o Saldo de conta caixa e o fisicamente (não) existente em caixa. Partindo-se da veracidade do constante da contabilidade, como vimos, e não se tendo provado, além do mais, existir um erro na mesma a este respeito. E provado (vinha assente) que em caixa não existiam fundos à data em que o Saldo contabilístico revelava existirem € 89.079,39. Tendo saído de caixa esse dinheiro, não se conhecendo o seu destino e não tendo também havido distribuição de lucros ou adiantamentos aos sócios por conta dos mesmos (v. al. s) do probatório).

 

Esse exfluxo não está documentado. Configura, assim, DND, cfr. supra (pp. 22-23). Que o legislador, no art.º 88.º, n.º 1, sujeitou a TA, independentemente de ter ou não sido levado a custos fiscais, ou mesmo relevado contabilisticamente - como bem se compreende e é já Jurisprudência assente[16]. Como no caso, em que nem na contabilidade foi relevado.

 

Apela a Requerente a um ónus da prova por parte da Requerida das concretas despesas realizadas, e ainda da data em que o foram. Sem necessidade de maiores desenvolvimentos, e por tudo o que vem percorrido, deve dizer-se que não alcança o Tribunal como a Requerente tal pretende. Se a própria não consegue revelar (ou, consegue não revelar) a natureza das despesas ou qualquer elemento das mesmas. Podia sequer o legislador ter pretendido fazer recair sobre a Requerida AT um tal ónus da prova, tipificando como tipificou este facto gerador? Não podia. Não documentando as despesas o contribuinte impede, precisamente, tal prova. Incluindo, necessariamente, quanto à data em que foram realizadas. E o legislador não teria criado uma obrigação tributária carecida da possibilidade de concretização.

 

Mais, o legislador foi até bastante claro, neste particular. Ao ter tipificado como tipificou esta espécie de despesas que sujeitou a TA, recortando-as tão só como tal, despesas que são não documentadas. Como aproximámos supra, p. 25. Diferentemente das demais. Por alguma razão, dir-se-á. Óbvia. A de que sem documentação, não há como identificá-las mais. E, por isso também, não há mais o que seja necessário provar. Falecendo o argumento da Requerente quanto a um invocado ónus de uma prova que se não requer, e que recairia sobre a Requerida.

 

Não há, diga-se também, um qualquer recurso a presunções, para aferir da ocorrência das DND, contrariamente ao que afirma a Requerente. (Ou sequer para aferir da data da realização das despesas, como adiante também melhor se verá). A não existência de numerário em caixa, nas circunstâncias que vimos, prova que ocorreu o exfluxo financeiro. A inexistência daquele numerário em caixa não foi a base de uma presunção, mas sim da constatação de um facto.

 

Por outro lado, também não se partiu “de uma errada presunção da veracidade” da contabilidade, como supra já desenvolvidamente apreciado.

 

Nem assim faz também qualquer sentido a alegação da Requerente no sentido de a Requerida, “não querendo ter esse ónus probatório e pretendendo cingir-se a meros indícios e a presunções e premissas conclusivas, como fez”, para tributar em TA sobre DND no caso, dever recorrer a métodos indirectos (como também refere - 98.º do PPA). Não só, vimos de referi-lo, não ocorre o que a Requerente aqui aventa. Como, bem se viu, não ocorre impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável do imposto. Condição necessária à avaliação indirecta. Cfr. art.º 87.º, n.º 1, al. b) da LGT. Foi pelo confronto, à data da contagem, entre o valor existente segundo a contabilidade e o valor existente na caixa física que se apurou a matéria colectável (lato sensu).

 

Verifica-se, assim, o facto tributário. Preenche-se a previsão normativa. E a Requerida cumpriu o ónus da prova que lhe competia. É afirmativa a resposta à Questão decidenda I., supra. Estão reunidos os pressupostos de aplicação do art.º 88.º, n.º 1 do CIRC.

 

 

3.4. Da localização temporal do facto tributário “despesas não documentadas”

 

Aproximámos já aquilo a que aqui se requer resposta.

 

Ocorre a despesa não documentada, o facto tributário. Que não carece – por impossível – de mais prova do que a de que existe (ocorreu) e é não documentada. O facto tributário no caso é, pois, instantâneo, a realização da despesa. A realização da despesa não documentada faz nascer a obrigação tributária. Nasce a obrigação tributária, que, como em regra sucede, só num momento posterior vai ser concretizada. E desde logo ao não existir documentação, não obstante ter nascido numa certa data (a da realização) a obrigação tributária só se concretiza quando a AT detecta que a despesa teve lugar. Que foi realizada.

Assim, - essa sendo a especificidade - a obrigação tributária só se concretiza quando a contagem de caixa tem lugar. Só então pode tornar-se certa e exigível. Porquê? Porque só então é detectado, constatado, que ocorreu a despesa, o exfluxo financeiro do património da empresa. Pela simples razão de que só então tal é possível.

E assim sucede, também se diga, porque o SP ocultou a realização da despesa. Não a documentando. Abstendo-se de dar cumprimento aos deveres de documentação e obrigações contabilísticas, cfr. CIRC (v., entre o mais, art.s 17.º e 123.º), e de informação e relato contabilístico, cfr. SNC, a que está obrigado. (E tenha-se presente, sempre, como no CIRC o legislador tomou a contabilidade como instrumento de medida e informação da realidade.) 

 

Isto dito, no caso das DND cuja realização foi constatada a 17.12.2020, como sucede nos autos, a TA que sobre elas incide é, ou não, de liquidar nesse mesmo exercício de 2020?

 

Alega a Requerente que não tendo a Requerida feito prova da data em que foram realizadas as despesas, não pode presumir nem considerar que ocorreram na data da contagem de caixa. E que, como os Saldos elevados de conta Caixa já ocorriam em anos anteriores, a realização das despesas pode ter ocorrido em outros exercícios que não o de 2020. Mais que, por assim ser, é de considerar violado “o princípio da especialização dos exercícios e o da periodização do lucro tributável”. (96.º do PPA).

 

Pois bem.

Que de presunção se não trata já o vimos. A Requerida constatou, a 17.12.2020, a discrepância de valores referida, com o conhecimento e confirmação do gerente da Requerente, e verificou, após apuramento da informação relatada na contabilidade que o valor em Saldo de Conta à data de 17.12.2020 era de € 89.079,39, sendo que na contagem se verificou não existir qualquer valor.  Foi este o facto constatado. Que configura, como vimos, despesa não documentada.

 

Concretamente quanto a uma alegada necessidade de prova da data da ocorrência das despesas no exercício de 2020. Para que se pudesse considerar de liquidar a TA sobre aquelas despesas neste mesmo exercício. Vejamos.

 

Mais uma vez, foi o SP que, não documentando as despesas, obstou a que os elementos identificadores das mesmas, no caso a ou as datas em que os exfluxos ocorreram, fossem cognoscíveis, desde logo pela AT.

 

Porém não houve recurso a uma presunção para serem consideradas como tendo ocorrido no exercício de 2020. Houve sim recurso à contabilidade da Requerente. Como devido. Com efeito, tendo o Saldo de abertura da conta caixa do ano de 2020 - 1 de Janeiro de 2020 -  revelado um determinado valor em Saldo devedor de conta Caixa (o mesmo, como teria que ser, do Saldo de encerramento de 2019) e tendo, depois, a 17 de Dezembro, de 2020, sido constatado em caixa existir saldo zero (€ 0,00), decorre da contabilidade da Requerente que em alguma data entre o dia 1 de Janeiro e o dia 17 de Dezembro, desse ano de 2020, o ou os exfluxos tiveram lugar. É isso mesmo que a contabilidade da Requerente informa, relata.

E se não é possível identificar o concreto dia ou dias em que tal ocorreu - sendo certo que sempre terão sido dias do ano de 2020, pois que a 1 de Janeiro desse ano o valor, segundo a contabilidade, estava em caixa, e a 17 de Dezembro não estava, ao fazer-se a contagem – tal apenas se deve ao incumprimento dos deveres e obrigações a que a Requerente está vinculada por força, desde logo, do CIRC em matéria de documentação e contabilidade.

Posto isto, bem se compreende que então irrelevante se torna saber o dia ou dias concretos do ano de 2020 em que as despesas tiveram lugar.

Não fora a TA, com especial particularidade quando sobre DND, uma tributação através da qual o legislador visou sancionar/penalizar comportamentos como este, combater fenómenos que envolvem uma menor transparência em matéria fiscal, incentivar ao cumprimento dos deveres que impendem sobre contribuintes como a Requerente, sociedades comercias. (v. supra). E não fora a tipificação efectuada pelo legislador precisamente adequada, desenhando o facto tributário como assim: despesas que não são documentadas.

Só assim, com a conclusão que vem de se retirar, se dando aplicação a tudo o estruturado pelo legislador em sede de CIRC ao confiar à contabilidade um papel essencial como instrumento de medida e informação da realidade económica de que nessa sede se trata. Mais se devendo ter em mente, entre o mais, como também se lê no Preâmbulo do CIRC, que “A manutenção do modelo de dependência parcial determina, desde logo, que, sempre que não estejam estabelecidas regras fiscais próprias, se verifica o acolhimento do tratamento contabilístico decorrente das novas normas [contabilísticas].”

 

E se, como invoca a Requerente, as despesas poderão (refere tão só como uma possibilidade) ter ocorrido em outros anos anteriores, não é isso que a sua contabilidade informa. E só a si Requerente caberia tê-lo revelado na contabilidade. O que não foi o caso.

 

Certo é também que no que respeita a fluxos de caixa é um critério de competência de caixa que se aplica, e não o regime contabilístico do acréscimo. V., entre o mais, 2.3.1 do SNC. O que, também se diga, será fazível quando os contribuintes relevam na contabilidade esses exfluxos, como também nem sucedeu no caso. E, concomitantemente, não é de princípio da periodização dos exercícios aquilo de que se trata quando se trata de tributação sobre a despesa, ainda que enxertada num Código de Imposto sobre o rendimento. Como também vimos supra, é distinta a lógica subjacente. E o princípio em causa, especialização dos exercícios, periodização do lucro tributável é, por definição, respeitante a impostos de formação sucessiva, como no caso do IRC, e não das TAs.

 

Ainda assim, como vimos de ver, essa questão - da violação desse princípio, que pelo que acabamos de dizer não ocorreria em qualquer caso, por não aplicável (e v. art.ºs 8 e 18.º) – não chega a colocar-se. Como vimos. As despesas ocorreram no ano de 2020, como só assim se pode, e deve, concluir pela contabilidade da Requerente. Contabilidade que se destina, sempre se note, aos destinatários/utentes da informação que presta e, entre eles, o Estado, bem como o próprio interesse público geral.[17]

 

Em conclusão, o facto gerador deve considerar-se verificado no exercício em que é feita a contagem de caixa na qual se detecta a ocorrência do exfluxo financeiro. Verificada que foi, então, a já supra melhor identificada discrepância. Assim, no exercício de 2020. Tudo como supra. E como na Liquidação.

 

Assim se compreendendo também a relação entre as especificidades supra afloradas, desta TA, e o que se viu suceder nos autos – a discrepância de € 89.079,39 entre o constante da contabilidade em Conta Caixa e o contado fisicamente, na data de 19.12.2020; a inexistência de documentação dos exfluxos. V. a sublinhados, supra, pp. 26 e 27.

É afirmativa a resposta à Questão II supra.

 

3.5. Da “dúvida fundada” na quantificação e na imputação ao exercício de 2020

 

Subsidiariamente, requer ainda a Requerente a anulação da Liquidação fazendo apelo ao art.º 100.º, n.º 1 do CPPT invocando “fundada dúvida na quantificação do facto tributário”.

Apela ao art.º 100.º, n.º 1 do CPPT. Porém nada expõe a respeito de uma hipotética errada quantificação. Quereria eventualmente dizer a Requerente dúvida sobre a qualificação, ou sobre a existência novamente. Avancemos e tudo apreciaremos e decidiremos já de seguida.

 

Subsidiariamente ainda, requer a anulação com fundamento em “fundada dúvida nos termos do art.º 100.º, n.º 1 do CPPT quanto ao exercício em que ocorreram as alegadas despesas, violando o princípio da especialização e periodização dos exercícios”.

 

Apelando, em qualquer destes dois casos, ao art.º 100.º, n.º 1 do CPPT.

Como a respeito da norma em questão se lê em recentíssimo Acórdão do STA, de 03.08.2023, prolatado no processo n.º 01480/15, que acompanhamos, passando a transcrever parcialmente, com a devida vénia, o ponto V. do respectivo Sumário: “O artº.100.º, nº.1, do CPPT, constitui uma afloração do princípio "in dubio contra fiscum", vigente no momento da decisão sobre facto incerto na aplicação da lei e com alcance análogo ao do princípio "in dubio pro reo" no que respeita à apreciação da prova em processo penal. Tal princípio leva a que o interesse substancial da justiça domine o actual processo tributário em detrimento do mero interesse formal ou financeiro do Estado. (...) Saber se, perante a prova produzida, há dúvidas sobre a existência ou quantificação de um facto tributário é uma questão essencialmente de facto. Assim, se o Tribunal decidiu dar como provada a existência ou inexistência de um facto tributário não haverá lugar à aplicação desta norma. Só em situações em que não houver a certeza se existe ou não o facto deverá fazer-se aplicação desta regra sobre o ónus da prova, decidindo a questão contra quem tem tal ónus (...).”

 

Tendo ficado provada a verificação do facto tributário, incluindo a sua quantificação, não tem vocação de aplicação o art.º 100.º, n.º 1 do CPPT a que a Requerente faz apelo. Mais não resulta violado, como também supra vimos, o Princípio da especialização dos exercícios, a que em conjugação a Requerente também faz apelo.

 

Por tudo o visto, a Liquidação não padece de qualquer dos vícios que a Requerente lhe imputa, não se verificando erro nos pressupostos de facto nem de direito. É conforme à lei. Como se decidirá.

 

4. Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o PPA, e assim:

Absolver a Requerida do pedido de anulação da Liquidação, melhor identificada supra.

 

5. Valor do processo

Nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, e 306.º, n.º 2 do CPC, fixa-se o valor do processo em € 45.203,16.

 

6. Custas

Conforme disposto no art.º 22.º, n.º 4 do RJAT, no art.º 4.º, n.º 4 do Regulamento já referido e na Tabela I a este anexa, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 26 de Setembro de 2023

 

O Árbitro

 

(Sofia Ricardo Borges)

 

 

 

 



[1] A que também nos referiremos como “doc. 89”. Ressalve-se, porém, que nestes autos o mesmo (sua fotocópia) se encontra a pp. 73-74 do PA (PA1), doc. anexo ao RIT (este também junto com seus anexos pela Requerente como “doc 4”).

[2] Sempre que nos referirmos a artigos sem identificação de Diploma Legal estaremos a referir-nos ao CIRC.

[3]Estes últimos Diplomas legais aplicáveis ao nosso processo ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para eles se remeter na presente Decisão).

[4]Todos Diplomas legais aplicáveis ex vi art.º 29.º, n.º 1 do RJAT (e assim sempre que para qualquer deles - ou para Outros quando nos referirmos à aplicabilidade no caso dos respectivos artigos - se remeter na presente Decisão).

[5] Reportamo-nos às normas na versão aplicável, salvo indicação em contrário.

[6] Quaisquer sublinhados e/ou negritos ao longo da presente serão nossos, salvo indicação em contrário.

[7] Sofia Ricardo Borges, “Tributações Autónomas sobre encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros (...)”, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Carlos dos Santos, Coord. José Guilherme Xavier de Basto e Outros, Almedina, 2021, p. 1185 e ss.

[8]2. A taxa referida no número anterior é elevada para 70 % nos casos em que tais despesas sejam efectuadas por sujeitos passivos total ou parcialmente isentos, ou que não exerçam, a título principal, (...) e ainda por sujeitos passivos que (...).” / “8. São sujeitas ao regime dos n.ºs 1 ou 2, consoante os casos, sendo as taxas aplicáveis, respetivamente, 35 % ou 55 %, as despesas correspondentes a importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou coletivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável (...).”

[9] “14. As entidades licenciadas na Zona Franca da Madeira ficam sujeitas ao pagamento especial por conta de IRC e às tributações autónomas apenas na proporção da taxa de IRC aplicável, exceto quanto às tributações autónomas previstas nos n.ºs 1 e 8 do artigo 88.º do Código do IRC”.

[10] A única passível de se ponderar aplicável.

[11] DL n.º 158/2009, de 13 de Julho, republicado pelo DL n.º 98/2015, de 2 de Junho.

[12] Sofia Ricardo Borges, ibidem

[13] Embora não obrigatoriamente - v. IMT.

[14] V., também, o art.º 44.º/1, al. b) e art.ºs 59.º e ss do CPPT.

[15] Sofia Ricardo Borges, ibidem

[16] V., entre outros, Acórdão do STA de 31.03.2016, proc.º 0505/15.

[17] E sempre se note também que numa situação como a dos autos haverá, depois, que ser actualizado o Saldo de conta caixa em conformidade com o ocorrido por força da contagem física, fazendo-o voltar a reflectir a realidade.