SUMÁRIO:
I - O sujeito passivo tem direito à dedução do IVA suportado nas despesas relativas à contratação de serviços para transportar os seus trabalhadores desde locais pré-determinados para o local de trabalho e regresso, por configurarem despesas que têm um nexo direto e imediato com as despesas gerais inerentes ou ligadas ao conjunto das atividades económicas do sujeito passivo.
II - Estamos perante uma despesa que, pela sua natureza, manifestamente não é passível de ser facilmente desviada para consumos privados, pelo que devem ser aplicadas as regras gerais do exercício do direito à dedução do IVA suportado.
Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, A. Sérgio de Matos e João Taborda da Gama, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
-
RELATÓRIO
A..., LDA, sociedade com sede na ..., ...-... ..., ..., contribuinte fiscal n.º..., veio, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral tendo por objeto a decisão de indeferimento, proferida pelo Senhor Chefe de Divisão de Serviço Central da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, que recaiu sobre o Pedido de Revisão Oficiosa apresentado contra os atos de Autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), referentes ao período compreendido entre janeiro de 2018 e dezembro de 2019, bem como, contra estes atos de autoliquidação propriamente ditos.
É Requerida a AT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 13 de outubro de 2022.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 5 de dezembro de 2022, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O TAC encontra-se, desde 23 de dezembro de 2022, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 3, alínea a) do RJAT..
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 1 de fevereiro de 2023.
Foi designada por despacho de 2 de março de 2023 data de audiência que depois foi precedida de novo pedido de aditamento de rol de testemunhas.
Na sequência deste requerimento e de nova nomeação de árbitro foi dada sem efeito a data de designação de audiência, sendo que em 24 de maio de 2023 foi designada data de audiência para 1 de junho de 2023.
Foi realizada audiência para produção de prova na referida data, documentada com ata junta ao processo.
Na sequência de erro de cálculo detetado pela Requerente durante a referida inquirição de testemunhas relativamente ao IVA efetivamente deduzido a este propósito, a Requerente veio, por requerimento de 23 de junho de 2023, reduzir o pedido de € 711.376,44 para o valor de € 626.886,29, correspondente ao montante de IVA não deduzido nas autoliquidações objeto do pedido arbitral e cujo reembolso solicita à Requerida nos presentes autos.
Subsequentemente foram apresentadas alegações por ambas as partes.
-
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
II.1 Posição da Requerente
A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:
-
A Requerente alega que faz parte do Grupo “Grupo B...”, apresenta um dos maiores empreendimentos estrangeiros, que a partir de 2018 passou a trabalhar em laboração contínua, tendo os turnos os seguintes horários: noites de domingo e feriados - 00:00h; noites de segunda a sexta-feira - 23:50h; manhãs - 07:00h; tardes - 15:20h.
-
Considerando que as instalações têm uma situação remota, distam da estação ferroviária mais próxima cerca de 2,5 Km, os transportes públicos são insuficientes, com horários não compatíveis com os seus turnos, pelo que, para conseguir trabalhadores e manter a laboração contínua, viu-se na necessidade de contratar uma empresa de transporte rodoviário que assegura o transporte diário dos seus trabalhadores, de determinados locais pré-estabelecidos até à fábrica e, bem assim, o seu regresso no final de cada turno.
-
Por estes serviços de transporte incorreu em custos e liquidou IVA (não deduzido), por referência a 2018 e 2019, ascendendo o imposto liquidado a € 626.720,77:
-
Constituem também objeto do pedido os atos de Autoliquidação de IVA acima identificados, no âmbito do qual foi apurado um montante total de imposto em excesso, no valor total de € 711.376,44, decorrente da (indevida) restrição do direito à dedução do IVA.
-
Caso a Requerente não fornecesse estes serviços de transporte aos seus trabalhadores não teria possibilidades de cumprir os objetivos de produção, sendo ele tão relevante para eles que faz parte do acordo base celebrado entre a administração da empresa e a comissão de trabalhadores.
-
Concluindo, tudo como melhor consta na petição, que aqui damos por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, que não se pode exigir ao sujeito passivo que carregue a obrigação de suportar um imposto que teve uma correspondência direta com a sua atividade tributada e que, caso não seja deduzido, constituirá uma desproporção entre os meios e os fins a atingir, sem legitimação legal, que afetará nos termos antes expostos a mecânica de funcionamento do IVA, termos em que solicita a devolução do imposto nos termos já referidos.
-
Com a referência a Acórdãos do TJUE, do STA e do CAAD fundamenta o pedido de que o valor do IVA em causa seja dedutível, concluindo, como consta do PPA, que não se pode exigir ao sujeito passivo que suporte a obrigação de suportar um imposto que tem uma ligação direta com as suas operações tributadas. Alega ainda que caso o IVA em causa não seja deduzido, constituirá uma desproporção entre os meios e os fins a atingir, sem legitimação legal, o que contraria a mecânica de funcionamento do IVA, mormente o princípio da neutralidade. E conclui peticionando a devolução do IVA pago e juros indemnizatórios.
Posição da Requerida
Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:
Por exceção:
-
Conforme resulta da informação na base do indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa, este foi indeferido, com base na intempestividade do mesmo.
-
Ou seja, a Requerida indeferiu o Pedido de Revisão Oficiosa, com base na intempestividade do mesmo, por entender em suma que, não se presumindo qualquer erro imputável aos serviços, no caso concreto, não se apura qualquer erro imputável aos serviços, nas (auto) liquidações em apreço, que decorreram das declarações periódicas de imposto entregues pela Requerente.
-
Fundamenta esta exceção no facto de “estando em causa o exercício do direito à dedução, matéria que indubitavelmente está na disponibilidade dos sujeitos passivos, é manifesto que nenhum erro pode ser imputado à AT (…) A AT não pode substituir-se aos sujeitos passivos no exercício legítimo do direito de opção sobre deduzir ou não o imposto, e em que moldes. (…) E ainda que o pudesse fazer, jamais alteraria os termos em que as mesmas foram efetuadas, uma vez que, estando sujeita ao princípio da legalidade, e sendo patente, como adiante melhor se explicitará, que o entendimento seguido pela Requerente é aquele que está de acordo com o regime jurídico-tributário em vigor, não haveria outra opção a seguir senão considerar o imposto suportado como excluído do direito à dedução”.
Por impugnação:
-
Dúvidas não restarão de que efetivamente, as despesas suportadas pela Requerente com o transporte dos seus trabalhadores de e para o seu local de trabalho, são abrangidas pela previsão da al. c) do n.º 1 do art. 21.º do CIVA e, assim, não é suscetível de ser deduzido o imposto suportado naquelas despesas, porquanto esta norma exclui o direito à sua dedução.
-
No n.º 2 do mesmo preceito legal, estão previstas exceções às regras constantes do n.º 1, sendo que, essas exceções, no que à al. c) do n.º 1 diz respeito, essas exceções estão previstas nas als. c), d) e e) do n.º 2.
-
Ora, não se tratando no caso de despesas efetuadas em nome e por conta de terceiros, registadas em contas apropriadas, ou de despesas de transportes, referentes à participação ou organização em/de congressos, feiras, exposições, seminários, conferências e similares, não se aplica às despesas referentes ao transporte dos trabalhadores de e para o seu local de trabalho, qualquer exceção, pelo que o direito à dedução do IVA contido em tais despesas, não pode ser deduzido atenta a regra da al. c) do n.º 1 do art.o 21.º do CIVA.
-
Na análise das ilegalidades apontadas importa, salvo melhor opinião, percecionar desde logo a origem e natureza da norma anti-abuso ínsita no artigo 21.º do Código do IVA, a sua ratio e compatibilidade com o direito europeu e seus princípios e da possibilidade de esta conter ou não uma presunção suscetível de elisão.
-
Importa igualmente deixar claro que a interpretação defendida pela AT é conforme doutrina e jurisprudência nacional e comunitária referente especificamente a esta questão.
-
O direito à dedução constitui a base de todo o mecanismo de funcionamento do IVA, garantindo a neutralidade do imposto e objetivo primordial de tributação do consumo, não sendo, contudo, ilimitado, encontrando-se previstas exclusões do direito em certos tipos de operações.
-
Aqui se insere o artigo 21.º do Código do IVA, que visa, precisamente, evitar a dedução de IVA suportado com despesas que, pelas suas características e natureza, facilmente poderiam ser desviadas para consumos privados, ou, no todo ou em parte, a fins alheios aos empresariais ou profissionais de um sujeito passivo.
-
Mas, para confrontar esta limitação com a Diretiva IVA, importa então, antes do mais, compreender a denominada cláusula standstill, de uma forma mais completa.
-
De acordo como n.º 6 do artigo 17.º da Sexta Diretiva, que atualmente corresponde ao artigo 176.º da Diretiva IVA, os Estados-membros poderiam manter determinadas limitações ao direito à dedução desde que as mesmas já existissem ao nível da sua legislação interna no momento da entrada em vigor da Diretiva.
-
SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
O processo não enferma de nulidades.
-
Fundamentação
IV.1. Matéria de facto
Factos dados como provados
Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:
-
A Requerente é uma empresa que integra o “Grupo B...”, e que, em Portugal, desenvolve a sua atividade numa única fábrica, sita no concelho de ..., na qual são produzidos diversos modelos automóveis – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas;
-
A referida fábrica opera nos quatro níveis do processo de produção automóvel, quais sejam os seguintes: Prensas, Carroçarias, Pintura e Montagem – facto não controvertido mas que foi corroborado por todas as testemunhas inquiridas;
-
A Requerente trabalha em regime de laboração contínua, utilizando a totalidade da sua capacidade instalada para produzir cerca de 890 carros/dia, os quais se destinam, essencialmente, aos mercados europeu e asiático – factos não controvertidos;
-
A unidade de produção da fábrica de ... labora de forma contínua – ou seja, durante 24 horas por dia, 7 dias por semana, em regime de trabalho por turnos, 19 turnos por semana (3 turnos por dia, de segunda a sexta-feira, 2 turnos ao sábado e domingo). Estes turnos podem ser ajustados conforme as necessidades de produção da fábrica – factos corroborados por todas as testemunhas inquiridas;
-
A Requerente labora em turnos, que se iniciam nos seguintes horários – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas;
Noites de domingo e feriados - 00:00h;
Noites de segunda a sexta-feira - 23:50h;
Manhãs - 07:00h;
Tardes - 15:20h
-
Ficou provada a localização remota da unidade fabril e as características específicas das suas imediações, bem como os motivos pelos quais a fábrica foi instalada naquele local, em decorrência da necessidade de ocupação de um espaço de dimensões muito significativas e que pudesse albergar essa unidade fabril e todas as outras instalações que lhes dão apoio – factos corroborados por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
Em termos de dimensão, a fábrica de ... deverá ocupar uma área total de cerca de 113/115 hectares – facto corroborado pela testemunha C...;
-
O percurso entre a fábrica e a estação mais próxima (...) é uma zona de mato, que não tem iluminação pública nem sinalização, o que o torna bastante perigoso, sobretudo à noite, fazendo com que os trabalhadores utilizem a alternativa do transporte através de autocarro – factos corroborados por todas as testemunhas inquiridas;
-
O referido percurso não tem passeios e as bermas são exíguas, ou praticamente inexistentes, possuindo um tráfego muito significativo de veículos automóveis (ligeiros e pesados) – factos corroborados por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
Aquele percurso constitui um risco para a segurança de qualquer pessoa que o utilize, no referido trajeto – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
Quando a Requerente iniciou o seu processo de recrutamento, fê-lo nas áreas circundantes da fábrica, mas cedo percebeu que teria de expandir a sua área de recrutamento, chegando mesmo a Sines, Grândola, Azambuja ou Vendas Novas, por forma a atrair mão-de-obra qualificada que pudesse executar este tipo de trabalho – facto corroborado pela testemunha D...;
-
Ora, a disponibilidade e oferta de transportes públicos é inexistente, quer a curta, quer a média distância, não existe qualquer transporte público rodoviário para a fábrica, nem para as imediações da fábrica– facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
A estação ferroviária mais próxima (estação ferroviária de ...) situa-se a cerca de 2,5 km de distância da fábrica, o que corresponde a um caminho de cerca de uma hora a pé, necessariamente atravessando um terreno descampado e percorrendo bermas de estradas (sem qualquer passeio pedonal), o que poderia colocar em causa a segurança dos trabalhadores – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
Acresce a isto a enorme dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de conciliar os horários desse único transporte público (comboio) com os turnos de trabalho estabelecidos, pois estes últimos implicam entradas/saídas a horas em que, muitas vezes, não existe qualquer cobertura de transportes – os que existem, como se aludiu, ficam a uma distância que é impraticável para os trabalhadores ou exige dos mesmos um esforço de deslocação e um risco de segurança que não são aceitáveis – factos corroborados por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
Da análise em detalhe dos horários dos comboios que param na estação de ..., resulta a evidência da falta de alternativa de transporte público, pois mesmo que o percurso a pé fosse viável, os trabalhadores que entram às 7:00 e os que saem às 0:00 não têm comboio que permita chegar a tempo ao turno das 7:00, nem conseguir regressar a casa saindo às 00:00, o que se agrava aos sábados, domingos e feriados – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas e pela documentação junta aos autos, nomeadamente, na reunião do dia 01/06/2023;
-
Foi perante todas estas circunstâncias que a Requerente se viu obrigada, sob pena de não conseguir garantir trabalhadores para todos os turnos, a garantir o transporte dos mesmos, de e para o local de trabalho, a partir de diversos pontos geográficos previamente determinados – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas e pelos Documentos n.ºs 2 a 5 juntos com o pedido arbitral;
-
De facto e para assegurar a continuidade da sua atividade e, em concreto, a plena execução do seu processo produtivo, a Requerente fez alguns contactos com a Fertagus e com entidades públicas camarárias, na tentativa de garantir esse transporte, mas a resposta foi sempre negativa, em virtude da complexidade dos diversos turnos implementados pela Requerente – facto corroborado pelas testemunhas D... e C...;
-
Não havendo alternativa, a Requerente viria a contratar uma empresa de transporte rodoviário que assegura o transporte diário dos seus trabalhadores, de determinados locais préestabelecidos até à fábrica e, bem assim, o seu regresso no final de cada turno – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas e pelos Documentos n.ºs 2 a 5 juntos com o pedido arbitral;
-
Este transporte tem assim uma enorme abrangência geográfica, na medida em que os trabalhadores que usufruem deste transporte residem em locais que distam vários quilómetros da fábrica, quer a norte do Tejo (como Cascais, Azambuja, Benavente, Loures), quer a sul do Tejo (como Grândola ou Vendas Novas) – facto corroborado pelas testemunhas D... e C..., bem como, pelos Documentos n.ºs 3 a 5 juntos com o pedido arbitral;
-
O transporte em questão é disponibilizado pela Requerente a todos os trabalhadores da fábrica, sem prejuízo de alguns optarem por se deslocar, porque têm essa possibilidade, através de viaturas próprias – facto corroborado por todas as testemunhas inquiridas;
-
Através dos mapas que foram juntos ao pedido arbitral, como Documentos n.ºs 3 a 5, é possível constatar, exemplificativamente quanto aos meses de março e de setembro 2018 e de maio de 2019, o número de rotas realizadas com este fim, o número de trabalhadores que utilizam os autocarros e, em concreto, o número médio de trabalhadores que utilizam os autocarros em cada um dos turnos (manhã, tarde ou noite);
-
Por estes serviços de transporte a Requerente incorreu, no ano de 2018, num custo total de € 6.072.613,33 e, em 2019, de € 6.495.037,11, sendo os mesmos sujeitos a tributação à taxa reduzida de IVA (6%), ascendendo o imposto liquidado a € 711.376,44 – facto corroborado pelo Documento n.º 2 junto com o pedido arbitral;
-
Contudo, uma parte daquele valor foi re-faturado aos fornecedores que também utilizaram este serviço, em concreto o montante de € 84.490,15 – facto corroborado pelo Documento n.º 6 junto com o requerimento apresentado em 10/06/2023;
-
Assim, o montante do imposto liquidado (e não deduzido), por referência aos trabalhadores da Requerente e aos anos aqui em causa, ascendeu aos seguintes montantes – facto corroborado pelo Documento n.º 6 junto com o requerimento apresentado em 10/06/2023;
-
Ficou também provado que as rotas em causa – que foram em média de 44/45 por mês – tiveram correspondência com os 3 turnos praticados, sendo executadas entre locais pré-determinados e a fábrica (ida e regresso) – facto corroborado pelos Documentos n.ºs 3 a 5 juntos com o pedido arbitral;
-
As rotas em causa não são passíveis de ser afectas a qualquer outro fim, que não seja o do transporte, de e para a fábrica, não sendo por esse motivo utilizados para fins estranhos ou alheios à actividade profissional da Requerente – facto corroborado pelas testemunhas inquiridas;
-
Mesmo quando esse transporte é utilizado por outros colaboradores da fábrica, como sucede com alguns fornecedores, o mesmo não serve para o exercício de funções externas ou de viagens de negócios, sejam elas de que tipo forem, relativamente à Requerente ou a qualquer outra entidade – facto corroborado pelas testemunhas inquiridas;
-
Em média, dos 4700 trabalhadores da fábrica, cerca de 4200 utilizam diariamente este transporte), o que demonstra a sua vital importância para o processo produtivo – facto corroborado pela testemunha D...;
-
Até à data, a fábrica nunca parou a sua atividade por motivos relacionados com a falta ou o atraso de trabalhadores, nem mesmo no período da pandemia Covid-19, à exceção de situações relacionadas com greve ou com layoff, precisamente pelo facto de estar assegurado este transporte – facto corroborado pelas testemunhas D... e C..., bem como, pelos Documentos n.ºs 3 a 5 juntos com o pedido arbitral;
-
Caso se verificasse a paragem total de um turno, a Requerente deixaria de produzir cerca de 300 veículos, o que representaria um custo de cerca de € 146.000,00 e perdas de vendas/lucros de cerca de € 53.000,00 – facto corroborado pela testemunha E...;
-
Os custos relacionados com este transporte rondaram anualmente cerca de € 6.000.000,00 e de € 6.500.000,00, respetivamente quanto a 2018 e 2019 – facto não controvertido e demonstrado pela documentação junta no requerimento de 10/06/2023;
-
Este transporte assume tamanha relevância para os trabalhadores da fábrica de ..., e é tão imprescindível para a sua laboração, que está inclusivamente previsto no acordo base celebrado entre a administração da empresa e a comissão de trabalhadores, podendo ser consultado no seguinte endereço:
-
http://www...
-
No ponto 4.8 do referido acordo, ficou expressamente previsto que "A empresa assegura o transporte, de acordo com a lista de rotas definidas, em todos os períodos de laboração. Os trabalhadores estão autorizados a utilizar a rota/transporte de acordo com a sua morada ou destino frequente.";
-
O transporte que é assegurado pela Requerente não tem qualquer correlação com a remuneração dos trabalhadores, não existindo qualquer diferenciação a nível salarial entre um trabalhador que opte por usufruir deste benefício face a outro que utilize os seus próprios meios para se deslocar de e para a fábrica – facto que decorre, por exemplo, do depoimento da testemunha D...;
-
Em termos contabilísticos, as facturas relativas aos custos de transporte em causa são devidamente registadas pela Requerente, do seguinte modo: a débito na conta #62521 (FSE - transporte de pessoal) e a crédito na conta #2211 (fornecedores) – facto demonstrado através do Documento n.º 6 junto com o pedido arbitral;
-
A Requerente apresentou um Pedido de Informação Vinculativa (“PIV”), em 06/05/2021, questionando a AT acerca da dedução, em sede de IVA, das despesas com o transporte dos referidos trabalhadores, sobre o qual recaiu decisão proferida pelo Senhor Subdirector-Geral, notificada à Requerente, em 17/09/2021, através do Ofício ..., nos termos da qual se considerou não existir fundamento para a dedução de tais despesas – facto demonstrado através do Documento n.º 7 junto com o pedido arbitral;
-
Por não concordar com o enquadramento fáctico-jurídico em que assentou a resposta ao aludido PIV, a Requerente apresentou uma ação administrativa, contestando o entendimento da AT, em 16/12/2021, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, a qual corre termos sob o n.º de processo 730/21.3BEALM - facto não controvertido e corroborado pela testemunha E...;
-
Em 03/03/2022, a Requerente procedeu à apresentação de um Pedido de Revisão Oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, contra os Atos de Autoliquidação de IVA dos períodos de janeiro de 2018 a dezembro de 2019, por forma a que fosse sancionada a possibilidade de dedução do IVA suportado com o transporte realizado nas circunstâncias acima descritas, ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Código do IVA – facto demonstrado através do Documento n.º 8 junto com o pedido arbitral;
-
Indeferido o aludido Pedido de Revisão Oficiosa, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.
Factos dados como não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, na prova testemunhal e em factos não questionados pelas partes.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
IV. 2. Matéria de Direito
IV.2.A. Quanto à Exceção de caducidade do direito de ação
A Requerida vem suscitar exceção no que respeita à questão da caducidade do direito de ação, por intempestividade do pedido de revisão oficiosa.
O artigo 78.º n.º 1 da LGT prevê que a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
Contudo, com base no n.º 7 do mesmo art.º 78.º, os tribunais superiores têm entendido, numa jurisprudência que se pode dizer hoje plenamente unânime e consolidada, que “a Administração não pode demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão [oficiosa] do ato quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados, já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes, no domínio das suas atribuições” (STA 2 Sec., ac. de 29.05.2013, proc. 0140/13, relator Valente Torrão)[1]. Ou seja, os sujeitos passivos têm apenas o prazo da reclamação graciosa para pedir a revisão (não oficiosa) dos atos tributários, mas podem pedir à administração tributária que tome a iniciativa de desencadear a revisão oficiosa, a qual pode ser realizada no prazo de quatro anos previsto na segunda parte do nº 1 do art.º 78.º, dispondo o sujeito passivo de um prazo de quatro anos para efetuar esse pedido, o mesmo em que a Autoridade Tributária pode tomar a iniciativa de efetuar o procedimento.
No mesmo sentido, se pode ainda citar o acórdão do STA, 2 Sec., proc. 536/07, 20.11.2007, em que se afirma: “Embora este artº 78º da LGT, no que concerne a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, se refira apenas à que tem lugar dentro do «prazo de reclamação administrativa», no seu nº 6 [nº 7 na redacção atualmente vigente] faz-se referência a «pedido do contribuinte», para a realização da revisão oficiosa, o que revela que esta, apesar da impropriedade da designação como «oficiosa», pode ter subjacente também a iniciativa do contribuinte. Idêntica referência é feita no nº 1 do artº 49º da LGT, que fala em «pedido de revisão oficiosa». Esta possibilidade de a revisão «oficiosa», que deve ser da iniciativa da administração tributária, ser suscitada por um pedido do contribuinte veio a ser confirmada pela alínea a) do nº 4 do artº 86º do C.P.P.T., que refere a apresentação de «pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo, com fundamento em erro imputável aos serviços».”
É, assim, inequívoco que se admite, a par da denominada revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte (dentro do prazo de reclamação), que se faça, também na sequência de pedido seu, a “revisão oficiosa” (que a Administração pode realizar por sua iniciativa).
A revisão oficiosa prevista na segunda parte do nº 1 do art.º 78.º tem de ter obrigatoriamente por fundamento “erro imputável aos serviços”.
Por conseguinte, quando seja o sujeito passivo a pedir à Autoridade Tributária que leve a cabo essa “revisão oficiosa”, o sujeito passivo tem naturalmente o ónus de invocar esse “erro imputável aos serviços”.
Torna-se aqui fulcral, como se deduz, a noção de “erro imputável aos serviços”.
Como tem afirmado o Supremo Tribunal Administrativo em inúmeras ocasiões, e como é confirmado, por exemplo, no acórdão já citado proferido no processo 1007/11, o “erro imputável aos serviços” a que alude o artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro”; ou no acórdão do mesmo tribunal de 12.12.2001 (2 Sec., proc. 26.233, relator Jorge de Sousa) em que se afirma que “esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efetuar liquidação afetada por erro, já que a administração tributária está genericamente obrigada a atuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços»”[10] (no mesmo sentido acórdãos do STA de 22-03-2011, proc. 01009/10; de 06/02/2002 proc. 26.690; de 05/06/2002 proc. 392/02; de 12/12/2001, proc. 26.233; de 16/01/2002 proc. 26.391; de 30/01/2002, proc. 26.231; de 20/03/2002, proc. 26.580; de 10/07/2002, proc. 26.668).
Assim, ao invocar “erro imputável aos serviços” nos termos e para os efeitos da segunda parte do n.º 1 do art.º 78º, o sujeito passivo pode alegar que o “erro imputável aos serviços” consiste em ilegalidade. Evidentemente, essa alegação de ilegalidade poderá ou não vir a revelar-se procedente. Mas o exame sobre a procedência da ilegalidade já não relevará, nesse caso, para a admissibilidade formal do pedido de revisão, ou para aferir a sua tempestividade, mas apenas para a decisão do mérito do pedido.
No caso dos autos vem a Requerida invocar que “estando em causa o exercício do direito à dedução, matéria que indubitavelmente está na disponibilidade dos sujeitos passivos, é manifesto que nenhum erro pode ser imputado à AT (…) A AT não pode substituir-se aos sujeitos passivos no exercício legítimo do direito de opção sobre deduzir ou não o imposto, e em que moldes. (…) E ainda que o pudesse fazer, jamais alteraria os termos em que as mesmas foram efetuadas, uma vez que, estando sujeita ao princípio da legalidade, e sendo patente, como adiante melhor se explicitará, que o entendimento seguido pela Requerente é aquele que está de acordo com o regime jurídico-tributário em vigor, não haveria outra opção a seguir senão considerar o imposto suportado como excluído do direito à dedução”.
É nosso entender que não assiste razão à Requerida.
Primeiro, porque não há dúvida de que a ilegalidade abstrata é uma forma de ilegalidade do ato tributário, e mais concretamente da liquidação[2].
Na verdade, é pacífico na jurisprudência e na doutrina que:
-
Os sujeitos passivos podem provocar, através de um pedido, o procedimento de revisão oficiosa da liquidação no prazo estabelecido no n.º 1 do art.º 78.º da LGT, sempre que invoquem para isso “erro imputável aos serviços”;
-
O “erro imputável aos serviços” compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro;
-
O erro de direito pode consistir numa ilegalidade abstrata, ie. numa ilegalidade da norma tributária.
Deste modo, conclui-se que a Requerente podia, efetivamente, pedir a revisão das liquidações, e por conseguinte, o pedido de revisão não foi intempestivo, pelo que não se verifica a caducidade do direito de ação.
IV.2.B. Quanto ao mérito
A questão essencial no presente processo[3] consiste em determinar se as despesas com o transporte dos trabalhadores de e para o local da sua residência ou entre determinados locais pré-estabelecidos e o seu local de trabalho na fábrica da Requerente, gratuita para todos os trabalhadores, contratada a uma empresa de transporte rodoviário se podem considerar relacionadas com uma atividade económica da empresa e se o IVA incorrido com essas despesas é dedutível.
Está em causa decidir se as despesas em causa deverão ou não ser dedutíveis para efeitos de IVA, tendo em consideração as normas do Direito da União Europeia, a legislação nacional e a interpretação judicial que tem sido realizadas sobre esta questão, especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Considerando os factos dados como provados a Requerente tem a única fábrica sita no concelho de ..., na qual são produzidos diversos modelos automóveis, onde a disponibilidade e oferta de transportes públicos é muito limitada, quer a curta, quer a média distância, não existindo qualquer transporte público rodoviário para a fábrica, e o transporte ferroviário existente não fica suficientemente próximo da fábrica da Requerente.
Acresce que existe uma impossibilidade de conciliar os horários desse transporte ferroviário com os turnos de trabalho estabelecidos, pois estes últimos implicam entradas/saídas a horas em que, muitas vezes, não existe qualquer cobertura de transportes - os que existem, como se aludiu, ficam a uma distância que exige aos trabalhadores um esforço de deslocação.
Considerando a localização da sua fábrica, a Requerente contratou os serviços de uma empresa de transporte rodoviário que assegura o transporte diário dos seus trabalhadores, de determinados locais pré-estabelecidos até à fábrica e, bem assim, o seu regresso no final de cada turno.
São despesas que a empresa tem de suportar para poder laborar 24h por dia, sem interrupções, de modo a garantir o cumprimento os seus objetivos de produção e comercialização.
São estes os factos que norteiam a decisão a proferir por este Tribunal Arbitral.
IV.2.B.1. A legislação Europeia
Diretiva IVA - Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977; reformulada pela Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006.
O artigo 2.°, n.º 1 determina:
“1. Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:
“a) As entregas de bens efectuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
(...)”
“Artigo 168. º
Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:
a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;
(...)”
“Artigo 176.º
O Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, determina quais as despesas que não conferem direito à dedução do IVA. Em qualquer caso, são excluídas do direito à dedução as despesas que não tenham carácter estritamente profissional, tais como despesas sumptuárias, recreativas ou de representação.
Até à entrada em vigor das disposições referidas no primeiro parágrafo, os Estados-Membros podem manter todas as exclusões previstas na respectiva legislação nacional em 1 de Janeiro de 1979 ou, no que respeita aos Estados-Membros que tenham aderido à Comunidade após essa data, na data da respectiva adesão.”
“Artigo 177.º
Após consulta do Comité do IVA, os Estados-Membros podem, por razões conjunturais, excluir parcial ou totalmente do regime das deduções alguns ou todos os bens de investimento ou outros bens.
A fim de manterem condições de concorrência idênticas, os Estados-Membros podem, em vez de recusar a dedução, tributar os bens produzidos pelo próprio sujeito passivo ou que este tenha adquirido no território da Comunidade ou importado, de tal forma que essa tributação não exceda o montante do IVA que incidiria sobre a aquisição de bens similares.”
IV.2.B.2. A legislação nacional
O CIVA:
“Artigo 19.º
1 - Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:
a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;
(...)
Artigo 21.º
Exclusões do direito à dedução
1 - Exclui-se, todavia, do direito à dedução o imposto contido nas seguintes despesas:
(...)
c) Despesas de transportes e viagens de negócios do sujeito passivo do imposto e do seu pessoal, incluindo as portagens;
d) Despesas respeitantes a alojamento, alimentação, bebidas e tabacos e despesas de recepção, incluindo as relativas ao acolhimento de pessoas estranhas à empresa e as despesas relativas a imóveis ou parte de imóveis e seu equipamento, destinados principalmente a tais recepções;
e) Despesas de divertimento e de luxo, sendo consideradas como tal as que, pela sua natureza ou pelo seu montante, não constituam despesas normais de exploração.
(...)
2 - Não se verifica, contudo, a exclusão do direito à dedução nos seguintes casos:
(...)
b) Despesas relativas a fornecimento ao pessoal da empresa, pelo próprio sujeito passivo, de alojamento, refeições, alimentação e bebidas, em cantinas, economatos, dormitórios e similares;
c) Despesas mencionadas nas alíneas a) a d) do número anterior, quando efectuadas por um sujeito passivo do imposto agindo em nome próprio mas por conta de um terceiro, desde que a este sejam debitadas com vista a obter o respectivo reembolso;
d) Despesas mencionadas nas alíneas c) e d), com excepção de tabacos, ambas do número anterior, efectuadas para as necessidades directas dos participantes, relativas à organização de congressos, feiras, exposições, seminários, conferências e similares, quando resultem de contratos celebrados directamente com o prestador de serviços ou através de entidades legalmente habilitadas para o efeito e comprovadamente contribuam para a realização de operações tributáveis, cujo imposto é dedutível na proporção de 50 %;
e) Despesas mencionadas na alínea c) e despesas de alojamento, alimentação e bebidas previstas na alínea d), ambas do número anterior, relativas à participação em congressos, feiras, exposições, seminários, conferências e similares, quando resultem de contratos celebrados directamente com as entidades organizadoras dos eventos e comprovadamente contribuam para a realização de operações tributáveis, cujo imposto é dedutível na proporção de 25 %.
(...)”
IV.2.B.3. A importância das decisões do TJUE nos presentes autos
As decisões do TJUE assumem nestes autos um papel relevante na medida em que se tem entendido que, e como corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais dos Estados-Membros quando tem por objeto questões conexas com o Direito da União Europeia.
Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em considerar que o IVA é um imposto de matriz comunitária, cujas normas, harmonizadas no conjunto dos Estados-Membros da União Europeia, constam da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006. É um imposto plurifásico que assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir, razão pela qual o direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado” (Cfr. Xavier Basto, A Tributação do Consumo e a sua coordenação internacional, Lisboa 1991, p. 41).
O direito à dedução designado como método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtrativo indireto ou ainda método das faturas, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto suportado nos respetivos inputs, devendo garantir a neutralidade fiscal, a qual configura a característica nuclear do imposto, constituindo o equivalente, em matéria de IVA, do princípio da igualdade de tratamento, como é afirmado pelo no Acórdão S. Puffer, C-460/07, do TJUE de 23 de abril de 2009.
O direito à dedução é considerado como um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado e que é exercido imediatamente para a totalidade dos impostos que oneraram as operações efetuadas a montante, como é mencionado nos Acórdãos do TJUE nos Acórdãos Mahagében e Dávid, C-80/11 e C-142/11; Bonik, C-285/11; e Petroma Transports C-271/12.
O regime de deduções instituído pela Diretiva IVA tem por objetivo desonerar por completo o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA visa garantir, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA.
Assim, a regra principal de funcionamento do IVA assenta no mecanismo da dedução do imposto suportado, tendente a evitar que, de forma oculta, se incorpore no preço de bens e serviços, o que originaria o surgimento de efeitos cumulativos, contrários à sua neutralidade que busca e que se apresenta como a uma caraterística principal.
O artigo 168.º da DIVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro de 2006), consagra o princípio geral da liquidação e dedução do IVA suportado pelos sujeitos passivos em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo, desde que tais bens e serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas.
A Diretiva 2006/112/CE, de 28 de novembro estabelece no artigo 168.º a) que, quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor o IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo.
A análise desta norma permite concluir que a dedução integral e imediata do imposto constitui a regra geral no que diz respeito às despesas do sujeito passivo com bens e serviços utilizados para os fins das suas operações tributadas.
O artigo 176.º da DIVA, dispõe que “O Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, determina quais as despesas que não conferem direito à dedução do IVA. Em qualquer caso, são excluídas do direito à dedução as despesas que não tenham carácter estritamente profissional, tais como despesas sumptuárias, recreativas ou de representação.”
E os Estados-Membros podem ainda excluir parcial ou totalmente do regime das deduções alguns ou todos os bens de investimento ou outros bens, conforme o artigo e 177.º da mesma Diretiva.
A nível da legislação interna, de mencionar que o artigo 21.º do CIVA exclui deste princípio geral, algumas despesas que expressamente enumera. Exclui nomeadamente, no n.º 1 c) “as despesas de transporte e viagens de negócios do sujeito passivo e do seu pessoal, incluindo as portagens.”
Porém, o CIVA não tem qualquer norma que derrogue a regra geral estabelecida no seu artigo 2.º e não estabelece qualquer limitação ao princípio geral da liquidação e dedução do IVA, estabelecido no artigo 168.º da DIVA, para as despesas incorridas por uma empresa com o pagamento a uma outra empresa para transportar os seus trabalhadores desde determinados locais para o local de trabalho, como previsto no acordo base celebrado entre a administração da Requerente e a comissão dos seus trabalhadores, o que é feito sem quaisquer implicações nas suas retribuições.
De salientar, a propósito do princípio da neutralidade do IVA, que “O Tribunal de Justiça recorda frequentemente na sua jurisprudência em matéria de IVA que o direito à dedução (e, por conseguinte, ao reembolso do imposto pago) é parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado.
No entanto, ainda que, à primeira vista, este direito à dedução deva sempre aplicar-se com o objetivo de atingir uma tributação neutra, há certos limites que se impõem a esse direito. A este respeito, na sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça exige que exista uma relação direta e imediata entre a aquisição de um bem ou de um serviço e a operação tributada a jusante. Por outras palavras, a aquisição deve, segundo critérios objetivos, destinar-se a servir a atividade económica do sujeito passivo. Em contrapartida, quando são efetuadas aquisições para efeitos de operações isentas ou que não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA, não pode ser cobrado nenhum imposto a jusante nem pode ser pode ser deduzido nenhum imposto a montante”. Cfr. CURIA Fichas Temáticas - Deduções do Imposto Sobre o Valor Acrescentado”, in https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2021-06/tra-doc-pt-div-c-0000-2020-202000844-05_00.pdf.
-
Acórdão Fillibeck do TJUE de 16 de outubro de 1997
No que refere à questão da dedução do valor IVA suportado nas despesas de transporte dos trabalhadores da empresa, temos de considerar o Processo C-258/95, Acórdão Fillibeck do TJUE de 16 de outubro de 1997 (que é citado pela Requerente no PPA e pela Requerida na Resposta) acórdão que se pronunciou sobre a questão de uma empresa poder deduzir o IVA no transporte dos trabalhadores desde a sua residência para o local de trabalho:
“1. Por decisão de 11 de Maio de 1995, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 31 de Julho seguinte, o Bundesfinanzhof submeteu ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE, três questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 2.°, n.º 1, e 6.°, n.º 2, da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54, a seguir «Sexta Directiva»).
2. Estas questões foram suscitadas num litígio que opõe Julius Fillibeck Söhne GmbH & Co. KG (a seguir «Julius Fillibeck Söhne») ao Finanzamt Neustadt a propósito da sujeição ao imposto sobre o valor acrescentado (a seguir “IVA”) do transporte gratuito do seus assalariados efectuado pela Julius Fillibeck Söhne, do domicílio daqueles para o respectivo local de trabalho.
3. A Julius Fillibeck Söhne, que exerce a actividade de construção, transportou gratuitamente, de 1980 a 1985, alguns dos seus assalariados em veículos que lhe pertencem, do respectivo domicílio até aos diversos locais de obras aos quais os mesmos estavam afectados. Durante este mesmo período, encarregou, além disso, um dos seus assalariados de transportar no seu veículo privado outros assalariados dessa sociedade do respectivo domicílio até aos diversos locais de trabalho.
4. A Julius Fillibeck Söhne assegurou estes transportes, em conformidade com a «Bundesrahmentarifvertrag für das Baugewerbe» (convenção colectiva de trabalho para o sector da construção civil), quando o percurso entre o domicílio e o local de trabalho atinja uma determinada distância mínima.”
(...)
8. O artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva, prevê:
“São equiparadas a prestações de serviços efectuadas a título oneroso:
a) A utilização de bens afectos à empresa para uso privado do sujeito passivo ou do seu pessoal ou, em geral, para fins estranhos à própria empresa, sempre que, relativamente a esses bens, tenha havido dedução total ou parcial do imposto sobre o valor acrescentado;
b) As prestações de serviços a título gratuito efectuadas pelo sujeito passivo, para seu uso privado ou do seu pessoal ou, em geral, para fins estranhos à própria empresa...”
9.estas condições, o Bundesfinanzhof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:
“1)Preenche o conceito de prestação de serviços “a título oneroso”, na acepção do n.º 1 do artigo 2.° da Directiva 77/388/CEE, o transporte efectuado por uma entidade patronal - entendendo-se como contrapartida uma parte a determinar da prestação laboral do trabalhador - quando a entidade patronal, com base numa convenção colectiva de trabalho (e sem contrapartida acordada e calculada em separado), transporta trabalhadores da sua residência para os locais de trabalho, a partir de uma certa distância mínima, e a prestação laboral deva ser efectuada exclusivamente como contrapartida do salário acordado, tal como acontece com os restantes trabalhadores - sem ligação concreta com aquela prestação de transporte?
2. O n.º 2 do artigo 6.° da Directiva 77/388/CEE abrange a utilização de bens afectos à empresa ou a prestação a título não oneroso de serviços, ainda que (como acontece com o transporte a título não oneroso de trabalhadores da habitação para os locais de trabalho e regresso, em veículo da empresa) do ponto de vista da entidade patronal, não sejam prosseguidos fins estranhos à própria empresa, mesmo que se sirva também o uso privado dos trabalhadores, sem que a estes seja exigido o imposto sobre o volume de negócios (que seria devido por receberem uma prestação de transporte a título não oneroso)?
3.Caso a resposta à questão 2. seja afirmativa:
É ainda aplicável o n.º 2 do artigo 6.° da Directiva 77/388/CEE quando a entidade patronal não transporta os trabalhadores em veículos próprios, mas, em vez disso, encarrega um terceiro (no caso vertente, um dos seus trabalhadores) da realização do transporte?”
(...)
10. Através da primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 2.°, n.º 1, da directiva, deve ser interpretado no sentido de que uma entidade patronal que assegura o transporte dos seus assalariados, a partir de determinada distância, do seu domicílio até ao local de trabalho, a título gratuito e sem relação concreta com a relação de trabalho ou o salário, é abrangida pela noção de prestação de serviços a título oneroso na acepção dessa disposição.
(...)
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),
pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Bundesfinanzhof, por decisão de 11 de Maio de 1995, declara:
O artigo 2.°, n.º 1, da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que uma entidade patronal que assegura o transporte dos seus assalariados, a partir de uma certa distância, do respectivo domicílio para o local de trabalho, a título gratuito e sem nexo concreto com a prestação de trabalho ou o salário, não efectua uma prestação de serviços a título oneroso na acepção dessa disposição.
O artigo 6.°, n.º 2, da Sexta Directiva 77/388 deve ser interpretado no sentido de que o transporte gratuito de assalariados, assegurado pela entidade patronal entre o respectivo domicílio e o local de trabalho, com um veículo da empresa, satisfaz em princípio o uso privado dos assalariados e serve, por conseguinte, fins estranhos à empresa. Todavia, esta disposição não se aplica quando as exigências da empresa, atentas certas circunstâncias particulares, tais como a dificuldade de recorrer a outros meios de transporte convenientes e as mudanças de local de trabalho, aconselham que o transporte dos assalariados seja assegurado pela entidade patronal, não sendo esta prestação, nestas condições, efectuada para fins estranhos à empresa.
A resposta dada à segunda questão é igualmente válida quando a entidade patronal não transporta os assalariados nos seus próprios veículos, mas encarrega um dos seus assalariados de assegurar o transporte com o seu veículo privado.”
-
Processo C-124/12 do TJUE de 18 de julho de 2013
Sobre a mesma questão é de salientar o Processo C-124/12 do TJUE de 18 de julho de 2013. (Este Acórdão foi proferido no âmbito da DIVA 2006/112/CE, após a reformulação da Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977) e que na sua fundamentação faz referência expressa ao Acórdão Fillibeck.
Este processo tem como objeto:
“Imposto sobre o valor acrescentado - Diretiva 2006/112/CE - Artigos 168.°, alínea a), e 176.° - Direito à dedução - Despesas relativas à aquisição de bens e de prestações de serviços destinados ao pessoal - Pessoal disponibilizado ao sujeito passivo que invoca o direito à dedução, mas que trabalha para outro sujeito passivo.”
11. A AES possui e explora uma central elétrica que, embora se situe no território do município de Galabovo (Bulgária), se encontra fora dos limites da zona habitacional deste município.
12. A AES não dispõe de pessoal próprio para assegurar a exploração da referida central, pelo que é obrigada a proceder à locação, a tempo inteiro, dos serviços de trabalhadores, através de um contrato de cedência de pessoal celebrado com a sociedade AES Maritza East 1 Services EOOD (a seguir «AES Services»). Nos termos deste contrato, a AES Services seleciona e contrata o pessoal necessário à atividade económica da AES. Os contratos de trabalho são celebrados entre os trabalhadores e a AES Services e é esta que paga a retribuição a esses trabalhadores.
13. Os trabalhadores em questão são em seguida disponibilizados à AES. Nos termos do contrato que vincula a AES à AES Services, a primeira paga à segunda uma remuneração pelo serviço de disponibilização de pessoal. Esta remuneração inclui as retribuições e as contribuições para a segurança social dos trabalhadores. O vestuário de trabalho, o equipamento de proteção pessoal dos trabalhadores e o serviço que assegura o transporte de ida e volta dos referidos trabalhadores entre a central elétrica e o seu domicílio são providenciados pela AES. As despesas atinentes a estes bens e serviços não estão incluídos no montante da remuneração paga à AES Services. Quando um trabalhador é enviado numa viagem de serviço, a AES também assume diretamente as despesas de transporte e alojamento daquele.
14. Entre agosto de 2008 e setembro de 2010, a AES beneficiou de prestações, efetuadas por terceiros, cujo objeto era um serviço de transporte, de disponibilização de vestuário de trabalho e de equipamento de proteção pessoal, e ainda de serviços relacionados com viagens de serviço dos trabalhadores.
15. Resulta da decisão de reenvio que, vivendo as pessoas que trabalham na central elétrica em zonas habitacionais que não são servidas por transportes públicos, a AES decidiu assegurar ela própria um serviço de transporte, em horários correspondentes aos turnos dos trabalhadores.
16. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, por força do disposto no Código do Trabalho e na Lei sobre a saúde e a segurança no trabalho, a AES é obrigada a fornecer vestuário de trabalho e equipamento de proteção pessoal às pessoas que trabalham na central elétrica.
22. Nestas condições, o Administrativen sad Plovdiv decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) É conforme com os artigos 168.°, alínea a) e 176.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado uma regulamentação como a do artigo 70.°, n.º 1, ponto 2, [da ZDDS], nos termos da qual não deve ser reconhecido a um sujeito passivo o direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado referente a prestações de transporte, vestuário de trabalho e equipamento de proteção pessoal, bem como a despesas incorridas com viagens de serviço, pelo facto de esses bens e prestações terem sido fornecidos a título gratuito a pessoas singulares, designadamente em benefício dos trabalhadores ao serviço do sujeito passivo, se forem tomadas em consideração as seguintes circunstâncias:
a) O sujeito passivo não celebrou contratos de trabalho com os trabalhadores, mas emprega‑os com base numa relação contratual que tem por objeto a ‘cedência de pessoal’, com outro sujeito passivo que é a entidade patronal desses trabalhadores;
b) As prestações de transporte são utilizadas para o transporte, de ida e volta, dos trabalhadores a partir de diversos locais de recolha em diferentes localidades para o local de trabalho, sem que os trabalhadores disponham de transporte público para o local de trabalho;
c) A disponibilização de vestuário de trabalho e de equipamento de proteção pessoal é exigida pelo Código de Trabalho e pela Lei [sobre a] saúde e da segurança no local de trabalho;
d) A dedução do IVA sobre as prestações de transporte, o vestuário de trabalho, o equipamento de proteção e as despesas com viagens de serviço não seria objeto de controvérsia se estes bens tivessem sido disponibilizados e estes serviços tivessem sido prestados pela entidade patronal dos trabalhadores. No caso em apreço, contudo, as respetivas aquisições foram efetuadas por um sujeito passivo que não é a entidade patronal, mas que, com base num contrato de cedência de pessoal, retira o proveito do seu trabalho e suporta os custos a ele associados?
Quanto à primeira questão
23 A título preliminar, refira‑se que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, em princípio, pode considerar‑se que as despesas incorridas pela AES com a aquisição dos bens e serviços a que a primeira questão se refere fazem parte das despesas gerais ligadas ao conjunto das atividades económicas da AES e que o problema relativo à respetiva dedutibilidade é apenas suscitado porque, ao contrário da situação em causa no processo que deu origem ao acórdão Fillibeck, já referido, o sujeito passivo que invoca o direito à dedução não tem, por força do direito búlgaro, a qualidade de empregador das pessoas que trabalham nas suas instalações, mas tão‑só a de «empregador económico».
24 Nestas condições, há que entender a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que se pretende saber, no essencial, se os artigos 168.°, alínea a), e 176.° da Diretiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional nos termos da qual um sujeito passivo, que incorre em despesas com serviços de transporte, vestuário de trabalho, equipamento de proteção pessoal e viagens de serviço de pessoas que trabalham para o referido sujeito passivo, não tem direito à dedução do IVA relativo a estas despesas, porque as referidas pessoas lhe são disponibilizadas por outra entidade e não podem, por conseguinte, ser consideradas membros do pessoal do sujeito passivo na aceção dessa legislação, não obstante se poder considerar que as referidas despesas têm um nexo direto e imediato com as despesas gerais ligadas ao conjunto das atividades económicas deste sujeito passivo.
25 Para responder a esta questão, em primeiro lugar, recorde-se que o direito à dedução previsto no artigo 168.°, alínea a), da Diretiva 2006/112, faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante (v., neste sentido, acórdão de 29 de outubro de 2009, SKF, C-29/08, Colet., p. I-10413, n.º 55).
26 Com efeito, o regime das deduções destina-se a libertar completamente o empresário do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. Por conseguinte, o sistema comum do IVA garante a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados destas atividades, na condição de as mesmas estarem, em princípio, sujeitas ao IVA (v., nomeadamente, acórdão SKF, já referido, n.º 56 e jurisprudência referida).
27 Segundo jurisprudência assente, a existência de um nexo direto e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução é, em princípio, necessária para que o direito à dedução do IVA pago a montante seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar a extensão de tal direito. O direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito à dedução (acórdão SKF, já referido, n.º 57 e jurisprudência referida).
28 Porém, admite-se igualmente o direito à dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de um nexo direta e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução, quando os custos dos serviços em causa fazem parte das suas despesas gerais e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens que fornece ou dos serviços que presta. Estes custos têm, com efeito, um nexo direto e imediato com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo (v., nomeadamente, acórdão SKF, já referido, n.º 58 e jurisprudência referida).
29 Por outro lado, resulta da jurisprudência do Tribunal que a Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO L 145, p. 1; EE p.54), deve ser interpretada no sentido de que o transporte gratuito dos trabalhadores, assegurado pelo empregador entre o respetivo domicílio e o local de trabalho, com um veículo da empresa, satisfaz em princípio o uso privado dos trabalhadores e serve, por conseguinte, fins alheios à empresa. Todavia, quando as exigências da empresa, atentas certas circunstâncias particulares, como a dificuldade de recorrer a outros meios de transporte convenientes e as mudanças de local de trabalho, aconselham a que o transporte dos trabalhadores seja assegurado pelo empregador, não se pode considerar que esta prestação é efetuada para fins alheios à empresa (v., neste sentido, acórdão Fillibeck, já referido, n.º 34).
30 Importa, em segundo lugar, averiguar se a circunstância de um sujeito passivo não ser considerado, pela legislação nacional, empregador das pessoas que trabalham na sua empresa pode pôr em causa a existência do nexo direto e imediato entre as despesas incorridas a montante com o trabalho dessas pessoas e as despesas gerais ligadas ao conjunto das atividades económicas do sujeito passivo.
31 A este respeito, verifica‑se, em primeiro lugar, que o artigo 168.°, alínea a), da Diretiva 2006/112 só sujeita a existência do direito à dedução à condição de os bens e serviços adquiridos serem utilizados para os fins das operações tributadas do sujeito passivo que invoca este direito. De acordo com a jurisprudência referida nos n.os 25 a 29 do presente acórdão, o nexo que deve existir é de natureza puramente económica.
32 No processo principal, como se recordou no n.º 23 do presente acórdão, é pacífico que se pode considerar que os custos em causa têm um nexo económico com o conjunto das atividades da AES.
33 Em seguida, importa recordar que o Tribunal já decidiu que se deve considerar que o facto de o pessoal poder tirar proveito de uma prestação de serviços oferecida pelo empregador, mas efetuada no interesse da empresa, é acessório face às necessidades da empresa (v., neste sentido, acórdão Fillibeck, já referido, n.º 30).
34 Ora, a resposta à questão de saber se o fornecimento, a título gratuito, de um bem ou de uma prestação de serviços às pessoas que trabalham para o sujeito passivo é efetuado para as necessidades da empresa não depende da relação jurídica existente entre o sujeito passivo e essas pessoas.
35 Além disso, como resulta do n.º 26 do presente acórdão, o sistema comum do IVA garante, através do regime das deduções, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados destas atividades, na condição de as mesmas estarem, em princípio, sujeitas ao IVA.
36 Ora, seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA obrigar um sujeito passivo a suportar IVA sobre despesas, como as em causa no processo principal, relativamente às quais é pacífico que, como resulta da decisão de reenvio, foram efetuadas para as necessidades de uma atividade económica que está ela própria sujeita a IVA, pelo facto de o sujeito passivo não ser o empregador, na aceção da legislação nacional, das pessoas que trabalham para a sua empresa e para cujo trabalho essas despesas foram efetuadas.
37 Por último, importa salientar que a interpretação segundo a qual, numa situação como a do processo principal, o sujeito passivo pode beneficiar, em aplicação dos artigos 168.°, alínea a), e 176.° da Diretiva 2006/112, do direito à dedução das despesas efetuadas para as necessidades da sua empresa é também a mais conforme aos objetivos do sistema do IVA de garantir a segurança jurídica e a correta e simples aplicação das disposições da referida diretiva (v., neste sentido, acórdão de 9 de outubro de 2001, Cantor Fitzgerald International, C‑108/99, Colet., p. I-7257, n.º 33).
38 Com efeito, ao dissociar o direito à dedução do IVA pago a montante, relativo a despesas efetuadas para a necessidades da atividade económica de um sujeito passivo, da relação jurídica que vincula o sujeito passivo às pessoas que trabalham para a sua empresa e para cujo trabalho essas despesas são efetuadas, esta interpretação permite uma gestão simples do regime de deduções estabelecido pelo sistema do IVA e contribui para assegurar a cobrança fiável e correta do IVA (v., neste sentido, acórdãos de 6 de outubro de 2011, Stoppelkamp, C-421/10, Colet., p. I-9309, n.º 34, e de 26 de janeiro de 2012, ADV Allround, C-218/10, n.º 31).
39 Atendendo a estas considerações, há que responder à primeira questão que os artigos 168.°, alínea a), e 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional nos termos da qual um sujeito passivo, que incorre em despesas com serviços de transporte, vestuário de trabalho, equipamento de proteção pessoal e viagens de serviço de pessoas que trabalham para este sujeito passivo, não tem direito à dedução do IVA relativo a estas despesas, porque as referidas pessoas lhe são disponibilizadas por outra entidade e não podem, por conseguinte, ser consideradas membros do pessoal do sujeito passivo na aceção dessa legislação, não obstante se poder considerar que as referidas despesas têm um nexo direto e imediato com as despesas gerais ligadas ao conjunto das atividades económicas do referido sujeito passivo.
Quanto à segunda questão
40 Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-Membro introduza, na data da sua adesão à União, uma limitação ao direito à dedução, por aplicação de uma disposição legislativa nacional que prevê a exclusão do direito à dedução de bens e serviços destinados a entregas ou prestações a título gratuito ou a atividades alheias à atividade económica do sujeito passivo, quando semelhante exclusão não estava prevista na legislação nacional em vigor até à data dessa adesão.
41 Para responder a esta questão, há, antes de mais, que observar que a interpretação da legislação nacional, a fim de determinar o seu conteúdo no momento da adesão de um novo Estado-Membro à União e de estabelecer se essa legislação teve por efeito alargar, após esta adesão, o âmbito das exclusões existentes, é, em princípio, da competência do órgão jurisdicional de reenvio (v., neste sentido, acórdão de 22 de dezembro de 2008, Magoora, C-414/07, Colet., p. I‑10921, n.° 32).
42 Em seguida, há que recordar que, no quadro de um processo nos termos do artigo 267.° TFUE, baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, a apreciação dos factos da causa é da competência do órgão jurisdicional nacional. Todavia, a fim de lhe dar uma resposta útil, o Tribunal de Justiça pode, num espírito de colaboração com os órgãos jurisdicionais nacionais, fornecer‑lhe todas as indicações que considere necessárias (v., neste sentido, acórdão Magoora, já referido, n.º 33).
43 A este respeito, importa notar que o artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 contém uma cláusula de «standstill» que prevê, para os Estados que aderem à União, a manutenção das exclusões nacionais do direito à dedução do IVA que eram aplicáveis antes da data da respetiva adesão (v., neste sentido, acórdão de 19 de setembro de 2000, Ampafrance e Sanofi, C-177/99 e C-181/99, Colet., p .I-7013, n.º 5). Todavia, a cláusula de «standstill» prevista no artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 não permite a um novo Estado-Membro modificar a sua legislação interna, por ocasião da sua adesão à União, num sentido que afaste essa legislação dos objetivos dessa diretiva. Uma modificação desse tipo seria contrária ao próprio espírito dessa cláusula (v. acórdão Magoora, já referido, n.º 39).
44 O objetivo desta disposição é, pois, permitir aos Estados-Membros, enquanto aguardam a aprovação, pelo Conselho, do regime comunitário das exclusões do direito à dedução do IVA, manter em vigor qualquer regra de direito nacional relativa à exclusão desse direito efetivamente aplicada pelas suas autoridades no momento da entrada em vigor das disposições da Diretiva 2006/112 (v., neste sentido, acórdão Magoora, já referido, n.º 35).
45 Em contrapartida, recorde-se que, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, uma legislação nacional de um Estado-Membro não constitui uma derrogação permitida pelo artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112, se tiver por efeito alargar, após a entrada em vigor desta diretiva, o âmbito das exclusões existentes e efetivamente aplicadas, afastando-se assim do objetivo da mesma (v., neste sentido, acórdão Magoora, já referido, n.os 37 e 38).
46 Nestas condições, a revogação, à data da adesão da República da Bulgária à União, de disposições internas e as respetivas substituições, nesta mesma data, por outras disposições internas não permitem, por si só, presumir que o Estado-Membro em causa desrespeitou o artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112, desde que, contudo, essa substituição não tenha conduzido a um alargamento, a partir da referida data, das exclusões nacionais anteriores.
47 No processo principal, cabe, pois, ao órgão jurisdicional de reenvio, que, como foi recordado no n.º 41 do presente acórdão, tem competência exclusiva para interpretar o seu direito nacional, apreciar se as alterações introduzidas, quando da adesão da República da Bulgária à União, no direito em causa tiveram por efeito, face às disposições nacionais anteriores, alargar o âmbito de aplicação das limitações do direito à dedução do IVA pago a montante e que incidiu sobre a aquisição de bens e serviços que podem ser considerados como tendo um nexo direito e imediato com as despesas gerais ligadas ao conjunto das atividades económicas de um sujeito passivo.
48 Neste contexto, há que notar, porém, que, nos termos do próprio pedido de decisão prejudicial, a alteração introduzida na ZDDS à data da adesão da República da Bulgária à União teve por efeito alargar o âmbito de aplicação das limitações face à situação existente antes desta adesão, pois nenhuma das limitações taxativamente enumeradas pela ZDDS em vigor antes da adesão em questão tinha um nexo com o destino das entregas ou das prestações a título gratuito, o que, atendendo à jurisprudência recordada no n.º 44 do presente acórdão, é contrário ao artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112.
49 A circunstância de o Tribunal ter decidido, no n.º 72 do seu acórdão de 16 de fevereiro de 2012, Eon Aset Menidjmunt (C-118/11), que o artigo 70.°, n.º 1, da ZDDS não limita o direito à dedução na aceção do artigo 176.° da Diretiva 2006/112, não pode, por si só, pôr esta constatação em causa.
50 Com efeito, por um lado, o Tribunal precisou, no n.º 73 desse acórdão, que um Estado-Membro não pode recusar aos sujeitos passivos, que optaram por tratar como bens da empresa os bens de investimento utilizados simultaneamente para fins profissionais e para fins privados, a dedução integral e imediata do IVA devido a montante sobre a aquisição desses bens, à qual têm direito em conformidade com a jurisprudência assente do Tribunal.
51 Por outro lado, como resulta dos n.os 45 e 46 do presente acórdão, há também que ter em conta a aplicação efetiva das disposições nacionais relativas às exclusões do direito à dedução do IVA e dos efeitos daí resultantes para os sujeitos passivos.
52 Ora, como decorre do n.º 39 do presente acórdão, a Diretiva 2006/112 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a referida na primeira questão, que tem por efeito privar um sujeito passivo do direito à dedução do IVA pago a montante, que incidiu sobre despesas que possam ser consideradas como tendo um nexo direto e imediato com as despesas gerais associadas ao conjunto das atividades económicas do referido sujeito passivo.
53 Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio interpretar, na medida do possível, o seu direito interno à luz do teor e da finalidade da Diretiva 2006/112, para alcançar os resultados por esta prosseguidos, privilegiando a interpretação das normas nacionais mais conforme com essa finalidade, de modo a chegar, assim, a uma solução compatível com as disposições da referida diretiva (v., neste sentido, acórdão de 4 de julho de 2006, Adeneler, C-212/04, Colet., p. I-6057, n.º 124), e, se necessário, deixando de aplicar todas as disposições contrárias da lei nacional (v., neste sentido, acórdão de 22 de novembro de 2005, Mangold, C-144/04, Colet., p. I‑9981, n.º 77).
54 Face a todas estas considerações, há que responder à segunda questão que o artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-Membro introduza, na data da sua adesão à União, uma limitação ao direito à dedução em aplicação de uma disposição legislativa nacional que prevê a exclusão do direito à dedução de bens e serviços destinados a entregas ou prestações a título gratuito ou a atividades alheias à atividade económica do sujeito passivo, quando semelhante exclusão não estava prevista na lei em vigor até à data dessa adesão.
Cabe ao órgão jurisdicional nacional interpretar as disposições nacionais em causa no processo principal, na medida do possível, em conformidade com o direito da União. Caso essa interpretação se venha a revelar impossível, o órgão jurisdicional nacional é obrigado a deixar de aplicar essas disposições, por incompatibilidade com o artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112.
Quanto à terceira questão
55 Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não é necessário responder à terceira questão.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:
1) Os artigos 168.°, alínea a), e 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional nos termos da qual um sujeito passivo, que incorre em despesas com serviços de transporte, vestuário de trabalho, equipamento de proteção pessoal e viagens de serviço de pessoas que trabalham para este sujeito passivo, não tem direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado relativo a estas despesas, porque as referidas pessoas lhe são disponibilizadas por outra entidade e não podem, por conseguinte, ser consideradas membros do pessoal do sujeito passivo na aceção dessa legislação, não obstante se poder considerar que as referidas despesas têm um nexo direto e imediato com as despesas gerais ligadas ao conjunto das atividades económicas do referido sujeito passivo.
2) O artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado-Membro introduza, na data da sua adesão à União Europeia, uma limitação ao direito à dedução em aplicação de uma disposição legislativa nacional que prevê a exclusão do direito à dedução de bens e serviços destinados a entregas ou prestações a título gratuito ou a atividades alheias à atividade económica do sujeito passivo, quando semelhante exclusão não estava prevista na lei em vigor até à data dessa adesão.
3) Cabe ao órgão jurisdicional nacional interpretar as disposições nacionais em causa no processo principal, na medida do possível, em conformidade com o direito da União. Caso essa interpretação se venha a revelar impossível, o órgão jurisdicional nacional é obrigado a deixar de aplicar essas disposições, por incompatibilidade com o artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112.”
IV.2.B.4. Conclusão e decisão
Vista e considerada a fundamentação e a decisão tomada pelo TJUE nestes processos, a identidade das questões em causa com a que temos de decidir nestes autos e, concordando com o seu sentido e fundamento, este Tribunal Arbitral decide pela procedência do pedido de pronúncia arbitral, reconhecendo o primado do direito europeu sobre o direito nacional e a força jurídica das decisões do TJUE como mencionado supra.
Adicionalmente e como nota Clotilde Celorico Palma, com parecer junto ao processo, importa em especial salientar que se trata de uma despesa que, pela sua natureza é equiparável ao transporte interno de trabalhadores dentro do perímetro de uma fábrica, e portanto nem sequer passível de ser facilmente desviada para consumos privados, pelo que devem ser aplicadas as regras gerais exercício do direito à dedução do IVA suportado. Esta é, como foi acabada de analisar, a interpretação que resulta claramente das notas explicativas dos atos comunitários em causa, bem como da jurisprudência emanada do TJUE neste contexto.
IV.2.C. Juros indemnizatórios
No que se refere ao direito a juros indemnizatórios, o TJUE vem decidindo de forma uniforme que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só o direito à restituição do imposto, como também o direito a juros, como pode ver-se pelo Acórdão de 18-04-2013, proferido no processo n.º C-565/11 (e outros nele citados):
21 “Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto” (Cfr. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgesellschaft, C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e, C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail, n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich, n.º 66).
23 A esse respeito, o TJUE já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (Cfr. neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).”
Assim, compete a cada Estado-Membro regular as condições em que tais juros devem ser pagos, como sejam, a taxa de juros concretamente e o respetivo modo de cálculo.
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”
A Autoridade Tributária e Aduaneira propugna pela inexistência de erro imputável aos serviços.
Não obstante, entendemos que não lhe assiste razão, conforme já referido supra.
Como vem sendo sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da prática de um ato ilegal, por iniciativa da Administração Tributária, mesmo em situações em que a ilegalidade derive “apenas” de desconformidade com o direito da União Europeia:
– “em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação.
- Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art, 43.º da L.G.T., havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.” Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31-10-2001, processo n.º 26167, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2466, e de 24-04-2002.
Em idêntico sentido, veja-se o acórdão do STA de 07-11-2001, proferido no Processo n.º 26404 (publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2593):
“Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado”;
E em outro Acórdão o STA decidiu:
“há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária”, cfr Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-11-2001, processo n.º 26415, publicado em Apêndice ao Diário da República 13-10-2003, página 2765
“os juros indemnizatórios previstos no art. 43ºda LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação.” Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-11-2001, proferido no Processo n.º 26223, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2824.
Por outro lado, no caso dos autos em análise, não obstante resultar objetivo que as liquidações foram realizadas pelo sujeito passivo (autoliquidação), não é menos seguro que a Requerente suscitou pedido de informação vinculativa no âmbito da qual a AT veio, efetivamente, a sufragar o entendimento decorrente das autoliquidações objeto do Pedido de Revisão Oficiosa, que o mesmo significa afirmar que a AT tomou posição em concreto.
Posição essa, não só através da informação vinculativa emitida, como igualmente e não menos relevante, em sede de Pedido de Revisão Oficiosa, vinculando-se relativamente àquela que era a sua interpretação quanto à matéria de fundo objeto deste pleito, conferindo assim respaldo ao comportamento declarativo da Requerente, no sentido da insusceptibilidade de dedução de tal IVA incorrido.
Destarte, apurando-se como ora se conclui nos presentes autos, pela ilegalidade da decisão da AT de indeferir o Pedido de Revisão Oficiosa na qual entendeu não ser lícito à Requerente proceder à dedução do IVA incorrido em apreço, não poderá, em consequência, deixar de se reconhecer que a AT deveria ter em sede administrativa, ela própria, reconhecido a desconformidade que lhe havia sido suscitada.
Ao não o fazer, isto é, ao não reconhecer o direito à dedução, tornou-se a Requerida a partir de tal decisão, autora desse mesmo erro, leia-se, ilegalidade.
Neste mesmo sentido, secunda-se o entendimento de Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, Áreas Editora, Lisboa, p. 537, escreve: “Nas situações em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (como sucede, nomeadamente, nos referidos casos de autoliquidação (…) o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos. Será indiferente, para este efeito de imputabilidade do erro, gerador de dívida de juros indemnizatórios, que se trate de caso de impugnação administrativa necessária ou facultativa, pois, em qualquer dos casos, a decisão da impugnação (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) é um acto da autoria da Administração Tributária, pelo que o eventual erro ser-lhe-á imputável, a partir do momento em que o praticou”.
Ao assim não decidir, em sede de Revisão Oficiosa, a Requerida assumiu uma decisão ilegal que só a ela pode ser imputada.
Pelo exposto decide-se pelo direito da Requerente a juros indemnizatórios.
Os juros indemnizatórios devem ser contados da data em que cada umas das autoliquidações foram pagas pela Requerente, e não desde o dia 23/05/2022, data em que a AT indeferiu a pretensão de dedução do IVA sobre a factualidade em apreço.
Juros indemnizatórios estes a contar até ao integral reembolso da Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, devendo o apuramento do seu quantum ser efetuado em sede de execução de julgado, considerando os termos da condenação que ora se determina.
IV.2.D. Do reenvio prejudicial para o TJUE
Quanto ao pedido de reenvio prejudicial, este Tribunal considera não existirem fundamentos que justifiquem esse reenvio, uma vez que TJUE, já decidiu processos com questões idênticas à que está aqui em apreciação, como supra mencionamos. Assim, não se suscitam dúvidas a este Tribunal Arbitral sobre o sentido da decisão a proferir, e em especial quanto a matérias que poderiam ser objeto de apreciação pelo TJUE em sede de reenvio prejudicial, dada a existência de decisões do TJUE idênticas às questões prejudiciais suscitadas e cujo sentido supra se deixaram expressas.
-
DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide julgar o pedido arbitral procedente e, em consequência:
-
Anular o indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa impugnado;
-
Anular parcialmente as autoliquidações de IVA de janeiro de 2018 a dezembro de 2019, no montante de € 626.886,29, valor que deve ser reembolsado à Requerente;
-
Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, contados da data em que cada uma das autoliquidações foi paga, até ao seu integral reembolso;
-
Condenar a Requerida nas custas do processo até ao valor correspondente ao montante em que deveria ter consistido o pedido da Requerente ab initio (€ 626.886,29)¸ e condenar a Requerente no remanescente, mesmo não tendo decaído, situação apenas atribuível à Requerente.
-
Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 711.376,44, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
-
Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 10.404,00, sendo, pelas especificidades aludidas no segmento decisório, na proporção de € 9.168,00 a cargo da Requerida e de € 1.236,00 a cargo da Requerente, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT e uma vez que, mesmo tendo sido o pedido julgado integralmente procedente, é a Requerente responsável pela tramitação por valor mais elevado do que aquele que afinal veio a própria a considerar ser devido.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Setembro de 2023.
Os Árbitros,
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)
(A. Sérgio de Matos)
(João Taborda da Gama)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção da proveniência.
[2] Vd. o acórdão do STA 2 Sec., de 20.03.2019, proc. 0558/15.0BEMDL 0176/18, relator Aragão Seia, em que se lê: “Está-se aqui, perante aquilo que doutrinal e jurisprudencialmente se designa por ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação, que se distingue da «ilegalidade em concreto» por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação. No mesmo sentido, STA 2 Sec., 19.04.2017, proc. 01113/16, relator Casimiro Gonçalves; STA Pleno Sec. CT, ac. de 05.07.2007, relator Pimenta do Vale.