Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 579/2022-T
Data da decisão: 2023-09-11  IRC  
Valor do pedido: € 164.319,51
Tema: Procedimento de Inspecção Tributária – Violação do direito de audição por não inquirição de testemunhas - Falta de notificação prévia à realização da inspecção - Formalidades essenciais do procedimento.
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SUMÁRIO:

1- A inquirição das testemunhas requerida no exercício do direito de audiência prévia constitui “diligência complementar conveniente” de instrução do procedimento (artigo 104.º do CPA, subsidiariamente aplicável ao procedimento tributário), que, não tendo sido realizada sem que para tal a Administração Tributária apresente justificação, gera a anulabilidade do relatório final da inspecção.

2- Para os efeitos do disposto no artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária, um procedimento inspectivo em que ocorra a análise de elementos colhidos em diligências inspetivas externas é também um procedimento externo.

3- Não tendo o sujeito passivo inspecionado sido notificado previamente da recolha dos elementos que serviram de base às correções nem lhe tendo sido comunicado os seus direitos, deveres e garantias dos sujeitos passivos como inspecionado no procedimento de inspecção, foi preterida uma formalidade legal que inquina o procedimento onde os elementos recolhidos são utilizados, gerando a sua anulabilidade.

 

DECISÃO ARBITRAL

         Os árbitros Fernando Araújo (presidente), José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora (relator) e Filipa Barros, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 14 de Dezembro de 2022, proferem a presente decisão arbitral, nos termos seguintes:

        

1. Relatório:

A... LDA, pessoa coletiva nº..., com sede na ..., ...-..., ..., ...-...,  ..., serviço periférico local de ..., veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1  do artigo 2.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 Março, requerer a Constituição de Tribunal Arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRC n.º 2021 ..., emitida em 22.06.2021, e respeitante ao exercício de 2017, no montante de € 75.322,77, a liquidação de IRC n.º 2021... emitida em 23.06.2021 e respeitante ao exercício de 2018, no montante de € 29.494,79, e a liquidação de IRC nº 2021 ... emitida em 28.06.2021 no montante de € 24.737,28, assim como as coimas com os processos de contra-ordenação nº ...2021... no montante de € 83,13; processo nº ...2021..., no montante de € 6.530,57 e processo nº ...2021... no montante de € 2.418,74 €.

 

1.1 Tramitação e constituição do Tribunal Arbitral

O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 3/10/22 e aceite no mesmo dia, nos termos regulamentares aplicáveis, tendo a Requerente optado pela não designação de árbitro

Por despacho de 24/11/2022 do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, foram designados os árbitros, ora subscritores, tendo sido comunicada essa designação no mesmo dia às partes e não tendo havido reclamação da mesma, em 14/12/2022, foi comunicada às partes a constituição do Tribunal Arbitral;

A 31/1/2023, a requerida apresentou a sua Resposta e fez juntar aos autos o processo administrativo (PA), tendo, nessa mesma data, o CAAD notificado a requerente da Resposta da AT e da junção do PA.

Por despacho de 7/2/2023, foi notificada a Requerente para, no prazo de cinco dias, se pronunciar sobre a oposição da Requerida, na sua resposta, à produção da prova testemunhal indicada no pedido de pronúncia, bem como se mantinha interesse na produção dessa prova; e, em caso afirmativo, para indicar os pontos de facto sobre os quais ela deve incidir, mas nada disse.

Por despacho arbitral de 4/4/23, foi dispensada a reunião a que se refere o artº. 18º. do RJAT e notificadas as partes para alegações no prazo de 10 dias sucessivos, o que ambas as partes fizeram, tendo apresentado as suas alegações.

Por despachos de 2-6-2023 e de 31-7-2023, foi prorrogado o prazo para proferir a decisão pelo período de mais 2 meses.

 

1.2 – Posição da Requerente

Na sua petição, a Requerente começa por invocar como questões prévias, vícios que imputa ao Procedimento Inspectivo, invocando em primeiro lugar, a violação do direito de audição da Requerente previsto no artº. 60.º, número 1 da LGT, por a Autoridade Tributária não ter procedido à realização das diligências de prova, designadamente a inquirição das testemunhas arroladas, conforme constava do seu requerimento apresentado no exercício do direito de audição, não tendo a Administração Tributária, para além de não convocar as testemunhas arroladas para qualquer inquirição, também não ter referido no seu relatório por que razão desconsiderou essa audição, pelo que a Requerente entende que tal comportamento consubstancia uma “inegável” violação do direito de participação processual da Requerente, verificando-se a preterição de uma formalidade essencial, e, por via disso, a anulação das liquidações ora impugnadas.

Em segundo lugar, invoca a preterição de formalidade essencial decorrente da ausência da notificação prévia a que alude o artigo 49.º do RCPITA, ou seja, a falta de notificação ao sujeito passivo com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao início da inspecção, com a indicação ao sujeito passivo da sua realização e do seu objecto, assim como do âmbito inspectivo e do elenco dos direitos e deveres a cargo do sujeito passivo, tendo os funcionários da Administração Tributária “comparecido” subitamente na sede da Requerente, não tendo nessa data qualquer carta-aviso e, muito menos, qualquer “listagem” dos direitos e deveres do sujeito passivo. Por isso, entende que também, em consequência dessa omissão, deverão ser anuladas as liquidações impugnadas, em virtude da preterição da formalidade essencial prevista no artigo 49.º do RCPITA.

Em terceiro lugar, pretende ainda a anulabilidade dos actos de liquidação por preterição de formalidades do procedimento Inspectivo (art. 51.º, número 3 do RCPITA), por a Ordem de Serviço que impulsionou o procedimento Inspectivo à Requerente, com a referência DI2020..., ser assinada por «B... », na alegada qualidade de «Director-Financeiro» da Requerente, o que não é verdade pois o Técnico Oficial de Contas da Requerente, alegadamente é a Dra. C..., sendo certo que, sendo alega, o signatário da Ordem de Serviço não se encontra vinculado à Requerente por qualquer contrato de trabalho ou qualquer outro vínculo formal com a Requerente, designadamente no âmbito de qualquer contrato de prestação de serviços. Assim sendo, entende que a Ordem de Serviço padece de um vício irremediável, traduzido na violação de uma formalidade essencial e, por via disso, determinativa da anulação das liquidações ora impugnadas, porquanto a Requerente não foi validamente notificada do início do procedimento inspectivo.

Relativamente às liquidações em si, entendeu a AT no Relatório de Inspecção Tributária que a Requerente não está enquadrada no CAE 17290 e, por conseguinte, como “indústria transformadora”, uma vez que não ocorre qualquer processo de transformação de matérias-primas em produtos novos.

Alega a AT no referido relatório que, em 2017, a Requerente pretendeu expandir e complementar a sua prática comercial e dedicar-se também à transformação e fabricação de papel, cartão e cartolina, pelo que passou a efectuar corte e transformação de papel em vários formatos à medida de cada cliente, com enquadramento no CAE 17290 – “…e outros artigos de pasta de papel, papel e cartão não incluídos nas posições anteriores”, pelo que entende que está preenchida uma condição essencial à elegibilidade no âmbito do RFAI, uma vez que a actividade principal (CAE 46762) assim como a secundária (CAE 17290) da Requerente tem cabimento nas divisões 10 a 33, referentes a indústrias transformadoras, acusando o relatório de Inspecção Tributária de fazer uso dos termos “Indústria transformadora” e de Transformação” de forma estrita e literal, para efeitos do enquadramento da elegibilidade do CAE 17290 na actividade desenvolvida pela Requerente.

Alega que, com a ampliação da actividade comercial nos termos do CAE 17290 e compra das novas máquinas integradas no âmbito do investimento para efeitos de RFAI, a Requerente passou a efectuar a transformação das bobines de papel em formatos à medida do cliente final, gerado por via disso desperdício da matéria-prima.

A AT entendeu não considerar que a transformação das bobines em formas diferentes de papel se enquadra numa “actividade que transforma por qualquer processo matérias-primas proveniente de várias actividades económicas em novos produtos”, invocando como um dos fundamentos o parecer do INE de 18/03/2021, que entende as actividades económicas, como a da Requerente se enquadra na subclasse CAE-Ver.46762, mas sem fundamentar essa opção.

Entende a Requerente que para efeitos de INE “a alteração, renovação, ou reconstrução substancial de qualquer bem, considera-se parte integrante de indústria transformadora, encontrando-se por via disso a actividade comercial da Requerente enquadrada nesse conceito, enquadrando-se também no conceito de “Transformação”, uma vez que este conceito engloba (…) “ o processo que modifica a natureza, composição ou forma das matérias-primas e dos produtos semi-acabados afim de se obterem novos produtos”.

Aliás, face a pedido de esclarecimento detalhado solicitado em 12 de Maio de 2021, veio o INE a emitir um parecer inequívoco onde pode ler-se que “a actividade de compra/importação de matéria-prima, cartolina em bobine transformada em formatos/folhas (excepto embalagens) à medida de cada cliente, embalado através de equipamentos industriais automáticos, destinada à industria têxtil e calçado, industria alimentar, farmacêutica e cosmética enquadra-se na subclasse CAE-Ver.3- 17290”

Com este novo projecto no âmbito da candidatura para efeitos de RFAI, o sujeito passivo adquiriu duas máquinas de corte e máquinas de cintar precisamente para fazer face a essa nova variante de negócio transformadora, bem como procedeu à construção do pavilhão, à compra das duas máquinas de corte e máquinas de cintar, assim como demais equipamentos adquiridos no âmbito do investimento no ano de 2017 conforme resulta do anexo 11 e página 41 do Relatório Final, aliadas à contratação de mão-de-obra qualificada para o efeito, permitiram à Requerente desenvolver este processo produtivo e de transformação de corte de papel.

Além disso, a ora Requerente adquiriu as aludidas máquinas de corte e de cintas em meados do ano de 2017, apenas tendo iniciado o corte e transformação do papel em início do ano de 2018, pois o processo de investimento foi feito por etapas, dentro dos trâmites previstos no âmbito do RFAI, dispondo de um programa informático “antigo” com algumas falências tecnológicas e limitações que não permitiam fazer essa separação das vendas de mercadorias transformadas das restantes (PRIMAVERA),  apenas sendo possível criar o campo “mercadorias”, sendo que que não resulta da lei qualquer imposição legal que exija a existência do inventário permanente registado na contabilidade da empresa.

Só em 2019 passa a ser possível à ora Requerente efectuar a separação e registar “vendas de produto acabado”, atendendo a que é adquirido pela mesma um novo programa informático inovador que lhe passa a permitir fazer essa separação, apenas exigindo a lei, para que a Requerente esteja enquadrada em termos de incentivo para efeitos de RFAI, que se verifique o processo produtivo.

Por fim, o facto de a ora impugnante já ter anteriormente a 2019 uma máquina de corte e vinco (adquirida em 2011) e uma máquina de cortar papel bobinado (adquirida em 2014), nada significa, segundo a Requerente, porque esta não dispunha de instalações para poder exercer esse tipo de actividade até 2017, data em que com o processo de investimento no âmbito do RFAI permitiu a construção do Pavilhão, sendo que tal equipamento foi adquirido num processo de insolvência em estado usado e avariado, com objectivo futuro de pugnar pela sua reparação de forma a futuramente ampliar o seu objeto social que englobasse a indústria de transformação.

Por isso, a ora Requerente cumpre com as condições de elegibilidade da actividade nos termos do art. 22º. do CFI, existindo uma clara violação do acto por violação de lei.

Acresce que a Requerente preenche a condição de criação e manutenção dos postos de no ano de 2017 previstas na al. f) do nº 4 do art. 22º do CFI, pois que a funcionária D... foi contratada para categoria de contabilista em 11/11/2015, por contrato a termo pelo período de seis meses, convertendo-se em contrato sem termo em 27/05/2017, existindo assim um erro de qualificação na apreciação deste requisito por parte da AT, o mesmo se passando com o funcionário E..., afecto à categoria de técnico administrativo, desempenhando funções de planeamento de produção, tendo a sua contratação ocorrido no seguimento da ampliação da actividade da Reclamante associada à transformação e corte de papel, pois a criação de posto de trabalho não fica prejudicada se o trabalhador elegível desempenhar funções auxiliares ou administrativas, desde que esses postos de trabalho tenham sido proporcionados pelo próprio investimento.

Existe assim invalidade do acto de liquidação, por violação de lei, pois a ora Requerente preencheu os requisitos cumulativos legalmente previstos para atribuição do benefício para efeitos de RFAI, motivo pelo qual não pode a AT excluir os investimentos concretizados em 2017 e 2019.

 

1.3 – Posição da Requerida

Na sua resposta, a Requerida começa também e naturalmente por responder às questões prévias suscitadas pela Requerente, no seu requerimento inicial.

Assim, entende que não ocorreu violação do direito de audição invocado pela Requerente em relação ao pedido de audição de testemunhas, porque, ao longo dos 59 parágrafos que compõem o direito de audição, não é feita qualquer alusão de que a ora Requerente pretendia que a AT ouvisse as duas testemunhas, não tendo sido esse aspecto referido expressamente.

No dia em que os Inspetores se deslocaram à empresa, foram precisamente essas duas testemunhas, além do gerente F..., que prestaram todos os esclarecimentos relacionados com a actividade da empresa.

Não havendo dúvidas de que a Administração Tributária está sujeita ao princípio do inquisitório, disposto no artigo 58.º da LGT devendo, no âmbito do procedimento tributário, realizar todas as diligências e recolher todas as provas necessárias à descoberta da verdade material, independentemente da iniciativa do contribuinte, na concretização dos princípios do Procedimento de Inspeção Tributária, incumbe à Administração Tributária a direção do procedimento e a realização de todas as diligências necessárias e não se vislumbra que a prestação de prova testemunhal pudesse afastar os elementos que permitiram à AT evidenciar o facto de que atividade exercida não se enquadrar na definição de “indústria transformadora”, pelo que, uma prova testemunhal discrepante com os meios probatórios obtidos nunca poderia ser relevante para a prova de um facto essencial.

A preterição de formalidade essencial decorrente da ausência de notificação prévia a que alude o artigo 49º do RCPITA também não existe, pois a Requerente sabe que, tendo tomado conhecimento com a assinatura do Despacho e que consta no relatório da inspeção que lhe foi notificado, a deslocação dos funcionários à empresa foi efetuada no âmbito do despacho DI2020... que visou a consulta, recolha e cruzamento de documentos destinados a controlar o direito à dedução à coleta do benefício fiscal relativo a RFAI, conforme retratado no documento disponível nas aplicações informáticas que equipam a Autoridade Tributária e Aduaneira e que se reproduz.

Além disso, “não há lugar à notificação prévia do procedimento de inspeção quando o procedimento vise apenas a consulta, recolha ou cruzamento de documentos destinados à confirmação da situação tributária do sujeito passivo ou obrigado tributário”.

Tendo por base os elementos obtidos naquele procedimento de consulta e recolha e os elementos inscritos nas declarações fiscais entregues pela Requerente, concluíram os serviços da inspeção pela existência de divergências relevantes e suscetíveis de motivar correções, em face do que foram abertas as ordens de serviço internas nºs OI2021..., OI2021... e OI2021....

Salienta ainda que é do conhecimento da Requerente que as correções contestadas foram efetuadas ao abrigo de ações de inspeção internas, pois tal informação consta a fls. 6 do relatório elaborado pela inspeção tributária.

No que respeita à preterição de formalidades do procedimento inspetivo, artigo 51º, nº 3 do RCPITA 27, a Requerente não ignora e sabe que tem uma ligação comercial/contrato de prestação de serviços com a sociedade “G..., Lda.”, sociedade que lhe presta serviços de consultadoria e gestão e que tem como sócio gerente B..., exatamente a pessoa que assinou o despacho e que a Requerente desconhece, pois como consta do Balancete Analítico junto aos autos, a folhas 70 do processo administrativo e Anexo 1 ao relatório elaborado pelos serviços da inspeção se evidencia que a sociedade “G..., Lda” é seu fornecedor, conforme refletido na conta SNC 221110012.

Quanto à questão de fundo, alega relevantemente que , em 30.06.2017, a Requerente adicionou ao seu objeto social “fabricação outros artigos pasta papel e cartão” enquadrada no CAE 017290, a figurar como atividade secundária e, em 04.04.2019, adicionou uma segunda atividade secundária ao seu objeto social “fabricação de outras embalagens de papel e de cartão” enquadrada no CAE 017212, sendo que, no período de 2017, o sujeito passivo A..., a ora Requerente, procedeu a uma dotação no montante de 109.931,78 euros, a qual foi sendo parcialmente utilizada ao longo dos períodos de 2017 e 2018 por deduções à coleta inscritas no campo 355 do quadro 10 da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC dos mesmos, conforme “print” parciais abaixo dos respetivos Anexos D.

Pedido à Requerente que justificasse as dotações do período de 2017, no montante de 109.931,78 €, e do período de 2019 no montante de 32.000,00 €, declaradas no quadro 07 do Anexo D, a Requerente informou com a junção de documentação, mas os serviços da inspeção tributária constataram que a Requerente considerou como investimento para efeitos de RFAI o início da construção de um armazém e a aquisição de duas máquinas de corte de papel, uma máquina de corte de bobines para embalar e transportar o papel e uma lavadora de pavimentos.

Porém, alega a requerida que os referidos investimentos deverão ser analisados por forma a ser confirmado que o setor em que se encontram enquadrados está previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 2.º do CFI, aplicável ao RFAI por força da remissão presente no nº 1 do artigo 22.º do CFI, condição fundamental para que a sociedade possa beneficiar do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), previsto no Código Fiscal do Investimento (CFI), mas os serviços da inspeção tributária da Direção de Finanças de ..., concluíram que a atividade desenvolvida pela Requerente não se encontra enquadrada no CAE 17290, logo não se encontra inserida no conceito de “Indústria transformadora”.

Essa falta de enquadramento da atividade exercida pela Requerente nos setores previstos no n.º 2 do artigo 2.º do CFI, determinou a correção dos valores deduzidos à coleta a título de RFAI nos períodos de 2017, 2018 e 2019 e a desconsideração das dotações do período, bem como a exclusão dos investimentos concretizados em 2017 e 2019 quanto à totalidade dos ativos considerados elegíveis, nos montantes de 439.727,14 € e 128.000,00 €.

73. E, certo é que as atividades em que a Requerente se encontra registada estão compreendidas no âmbito das indústrias transformadoras: • Fabricação de outros artigos pasta papel, papel e cartão, enquadrada na CAE: 017290 (divisão 17); • Fabricação de outras embalagens de papel e de cartão” enquadrada na CAE: 017212 (divisão 17).

E, por estas razões, a referida atividade de corte das cartolinas mediante as especificações dos clientes desenvolvida por A..., aqui Requerente, não é passível de se enquadrar na CAE: 017212- Fabricação de outras embalagens de papel e de cartão”.

83. Em face do supra exposto, pode-se concluir que a atividade desenvolvida pela Requerente não está enquadrada nas atividades secundárias para as quais está registada, a saber CAE: 017290 - «Fabricação de outros artigos pasta papel, papel e cartão» e CAE: 017212- «Fabricação de outras embalagens de papel e de cartão».

A actividade da Requerente após o projeto continuou a consistir no comércio de cartolina, cortado de acordo com as especificações dos clientes, portanto manteve-se na atividade de comércio por grosso de cartolina, embora com maior valor acrescentado, pois passou a realizar o seu corte, sendo a conclusão que é possível retirar da análise aos documentos contabilísticos, nomeadamente extratos de conta, balancetes e IES (Informação Empresarial Simplificada) dos períodos de tributação de 2017 e 2018, onde não são registadas quaisquer vendas de produtos acabados, mas apenas vendas de mercadorias e apenas no ano de 2019 é feita alusão a vendas de produtos acabados e a compras de matérias-primas, verificando-se, contudo, que as faturas de vendas são todas registadas inicialmente na conta 711113 - Vendas de mercadorias.

Por isso, a atividade desenvolvida pela Requerente não se enquadra na definição de “indústria transformadora” uma vez que não ocorre qualquer processo de transformação de matérias-primas em novos produtos.

Além disso, da análise à documentação recolhida, os serviços da inspeção concluíram que, em 2017 a Requerente não cumpre o requisito relativo à criação e manutenção de postos de trabalho, nos termos do artigo 22º, nº 4, alínea f) do CFI, sendo que, por forma a aferir das condições de criação e de manutenção da criação de postos de trabalho, os serviços da inspeção tributária procederam à análise de diversa documentação, conforme detalhado no ponto III.1.4 do relatório da inspeção. Da análise realizada concluíram que, no final de dezembro de 2017 o número de trabalhadores com contrato sem termo ascendia a 2 e a média dos 12 meses precedentes cifrava-se em 2,58. 107. Desta forma, não existiu a criação de qualquer posto de trabalho em 2017.

 

2. Despacho saneador:

            O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT e é o competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são as legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

 

3. Fundamentação de facto.

Considerando os articulados das partes, os documentos juntos e o processo administrativo, são considerados provados os factos que a seguir se indicam.

 

3.1 - Factos provados:

De acordo com a alegação das partes e dos documentos juntos e com interesse para a decisão final dos presentes autos, estão provados os seguintes factos:

a) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica ao comércio e representação de artigos de papel e cartão, agente comercial, comissionista e similares no comércio por grosso do papel e cartão, corte e transformação de papel, cartão, cartolina e artigos derivados, transformação e fabricação de artigos e embalagens de pasta de papel, papel, cartão e similares. (certidão permanente do registo comercial da requerente na parte 13 do processo administrativo junto com a resposta e acordo das partes e relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e sob o nº 1 com a resposta)

b) No ano de 2021, a ora Requerente foi objecto de um procedimento de inspecção tributária, credenciado pelas ordens de serviço internas números OI2021..., OI2021... e OI2021... que teve como objecto o controlo da situação tributária da Requerente, assumindo um âmbito parcial em sede de IRC, e incidindo sobre os períodos de tributação de 2017, 2018 e 2019 (acordo das partes e Relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e sob o nº. 1 com a resposta)

c) A referida inspecção tributária foi de âmbito externo, tendo incluído procedimentos e diligências realizadas nas instalações da requerente, não se demonstrando que tenha sido enviada qualquer carta-aviso ou outro meio de comunicação a alertar para tal acção (acordo das partes e relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e sob o nº. 1 com a resposta)

d) Por notificação enviada por registo simples em 26/4/21, foi a Requerente notificada do Projecto de Conclusões e Relatório, no qual se propunham as seguintes correcções: €67.470,35 (IRC/2017), €31.749,28 (IRC/2018) e €42.712,16 (IRC/2019), sendo que em 2018 não resulta imposto a pagar, mas reembolso de € 29.494. (provado pelo documento 7)

e) Em 12.05.2021, a Requerente exerceu o direito de audição, terminando o seu requerimento com a junção de documentos e a indicação de prova testemunhal para tal efeito, que não veio a ser produzida. (provado pelo documento 8 junto com a p.i.)

f) Pelo ofício número ..., de 04.06.2021, vieram os Serviços de Inspecção Tributária a emitir o Relatório final de Inspecção Tributária, no qual, não se aceitam as razões apresentadas pela Requerente em sede de direito de audição, mantendo integralmente as correcções realizadas em sede de IRC. (provado pelo documento 9 junto com a p.i.)

 g) Neste relatório não é feita qualquer referência à prova testemunhal indicada no direito de audição, nem se indicam fundamentos para a consideração da inutilidade da inquirição no quadro geral das diligências de prova realizadas, sendo que, na página 51 do mesmo relatório, se escreve que “no decurso da visita às instalações do sujeito passivo, e da consulta ás declarações fiscais e contabilísticas, verifica-se o seguinte” (provado por acordo das partes e relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e com a resposta)

h) No parecer do Chefe de Divisão de 31/5/2021, escreve-se “após acção interna e externa de análise dos pressupostos da criação e utilização do benefício concluiu-se pela dedução indevida à colecta do IRC”.  (provado pelo relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e com a resposta)

i) Notificada das demonstrações de liquidação de IRC, as quais incorporam as correcções realizadas em sede de inspecção, a Requerente liquidou totalmente os montantes devidos a esse título, por força do processo executivo instaurado com o nº ...2021... e Apensos, pagando a quantia de € 8.949,38 de coimas e € 155.287,07 de imposto. (provado pelos documentos 4,5 e 6 juntos com a pi)

j) Em consequência do RIT elaborado com base na Ordem de Serviço apresentada no início do procedimento inspectivo à Requerente, sob a referência DI2020... foram instaurados à ora requerente os processos de contraordenação nº ...2021..., nº ...2021... e nº ...2021..., tendo a mesma sido sancionada com as coimas respectivamente no montante de € 83,13, no montante de € 6.530,57 e no montante de € 2.418,74 €. (provado pelos documentos 4, 5 e 6 juntos com a pi).

k) Em 30/11/2021, a Requerente reclamou graciosamente do Relatório da Inspeção Tributária, o qual veio a ser indeferido, em 28/06/2022, por decisão final por parte da AT. (provado pelos documento 11 e 9 juntos com a p.i e relatório da inspecção tributária junto sob o nº. 9 com a pi e com a resposta))

l) Em 19 de Abril e 12 de Maio de 2021, o INE emitiu parecer sobre o conceito de indústria transformadora da Requerente e seu enquadramento no CAE. (provado pelos documentos 15 e 16 juntos com a p.i.)

m) A trabalhadora D... foi contratada para categoria de contabilista em 11/11/2015, por contrato a termo certo pelo período de seis meses, e manteve-se ao serviço em 2017, 2018 e 2019. (provado pelo documento 19 junto com a pi)

n) A Requerente tinha ao seu serviço um trabalhador com o nome de E... afecto à categoria de técnico administrativo, desempenhando funções de planeamento de produção. (provado por acordo das partes e relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e com a resposta)

o) A Requerente apresentou a 3-10-2022, o presente pedido de pronúncia no Tribunal Arbitral.

 

 

3.2 Factos não provados e fundamentação da matéria de facto considerada provada.

          Não existem outros factos não provados com interesse para a decisão deste processo.

         Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela requerente e no que consta do processo administrativo e também os factos que as partes estão de acordo em considerar provados, conforme resulta do por si alegado em sede de requerimento inicial e das respostas que lhe sucederam.

        

 

4. Matéria de direito

 

4.1 - Questões a resolver:

Como questões a resolver, temos as questões suscitadas no requerimento inicial, sendo três de violação de lei por preterição de formalidades essenciais no âmbito do procedimento inspetivo e apenas uma relativamente ao fundo da causa, que tem a ver com o alegado erro sobre a qualificação da impugnante como indústria transformadora.

As alegadas violações da lei por preterição de formalidades essenciais são as seguintes:

- violação do direito de audição, por não terem sido inquiridas as testemunhas arroladas na resposta apresentada pela impugnante em sede de direito de audição, nem sequer ter sido indicado qualquer fundamento para essa não audição;

- violação do dever de notificação prévia, pois não foi enviado à Requerente, antes do início da inspecção, qualquer aviso de que a mesma se ia realizar, quer por carta, quer por qualquer outro meio de comunicação, bem como não foi indicada listagem de direitos e deveres da impugnante em sede de inspecção;

- por fim, não foi a ora impugnante notificada da ordem de serviços que permitiu a inspecção, porque a assinatura constante da ordem de serviço, não é de qualquer funcionário da ora impugnante, nomeadamente do seu Técnico Oficial de Contas, que é pessoa diferente da que assinou essa ordem de serviço.

 

A questão de fundo, se não procederem os alegados vícios formais, prende-se, como se referiu, com a qualificação da actividade da ora Requerente como indústria transformadora ou não, entendendo a AT que não, pelo que procedeu às liquidações adicionais de IRC, considerando que a ora Requerente não exerce actividade enquadrada nos sectores previstos no nº. 2 do artº. 2º. do Código Fiscal do Investimento, tendo em conta os códigos de actividade definidos pela Portaria n.º 282/14, de 30 de Dezembro.

O art. 124.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), subsidiariamente aplicável à arbitragem tributária ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT, estabelece, relativamente à ordem do conhecimento dos vícios na sentença, que, “[n]a sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação” (n.º 1 do art. 124.º), sendo que, em cada um dos grupos, a apreciação é feita pela seguinte ordem: “no primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”; “no segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público, ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior” (cfr. als. a) e b) do n.º 2 do art. 124.º).

Dados os vícios invocados pela Requerente,  cumpre atender ao disposto na al. b) do n.º 2 do art. 124.º do CPPT, pelo que, caso seja estabelecida pelo impugnante uma relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos (vd. o art. 101.º do CPPT que prevê que: “O impugnante pode arguir os vícios do ato impugnado segundo uma relação de subsidiariedade”), deve-se respeitar essa ordem – como se escreveu no acórdão do STA de 18.6.2014, proc. n.º 01942/13, “sempre que o impugnante estabeleça uma ordem de precedência do conhecimento dos vícios geradores de anulabilidade é essa ordem que deve ser seguida pelo juiz, não lhe sendo permitido alterá-la, assim como não lhe é permitido alterar a ordem do conhecimento dos vícios geradores de nulidade ou de inexistência, que se encontra legalmente estabelecida”.

No caso presente, nas suas alegações o Requerente começa por atacar os actos impugnados com fundamento em vícios de natureza formal e só depois é que analisa a eventual ilegalidade dos actos praticados pela AT.

Por isso, vamos começar pela análise dos vícios de natureza formal e depois consideraremos os actos que têm mais a ver com a actividade da ora requerente.

 

 

4.2 – Da não inquirição das testemunhas arroladas em sede de direito de audição:

            Conforme vem provado no facto provado da al. e),em 12.05.2021, a requerente exerceu o direito de audição, terminando o seu requerimento com a junção de documentos e a indicação de prova testemunhal para tal efeito, que não veio a ser produzida.” (provado pelo documento 8 junto com a pi)”.

            Com efeito, a indicação de meios de prova complementares é uma forma de exercício do direito de participação consagrado nos artigos 60.º, n.º 1 da LGT e 60.º do RCPITA, embora à AT não se imponha o dever de realizar todas diligências requeridas pelo contribuinte no decurso do procedimento ou realizar todas aquelas que o interessado venha a entender a posteriori como necessárias face ao conteúdo da decisão final que tenha sido adotada.

No entanto, a não realização das diligências instrutórias requeridas deve ser objeto de fundamentação, sob pena do contribuinte se ver confrontado com a situação limite em que os serviços omitam diligências essenciais à averiguação da situação tributária de tal modo que não se encontre justificação plausível ou compreensível para a correção fiscal apresentada.

É que a inquirição das testemunhas requerida no exercício do seu direito de audiência prévia constitui “diligência complementar conveniente” de instrução do procedimento (artigo 104.º do CPA, subsidiariamente aplicável ao procedimento tributário), que, não tendo sido realizada sem que para tal a Administração Tributária apresente justificação, gera a anulabilidade do despacho de reversão que foi proferido. – Cfr. Ac. do STA de 22/4/2015, proferido no processo 0511/14, publicitado em http://www.dgsi.pt/jsta.

A AT na sua resposta nos presentes autos – ponto 3 – confirma que esse requerimento existiu, mas entende que, nesse requerimento não é indicado que factos se pretendiam provar ou que as mesmas testemunhas devessem ser notificadas, acrescentando que, nem o artº. 60º. da LGT, nem o artº. 60º. do RCPITA admitem essa prova testemunhal, alegando no ponto 7 que “foram precisamente essas duas testemunhas, além do gerente – F..., que prestaram todos os esclarecimentos relacionados com a actividade da empresa”.

            Resulta evidente da resposta da AT que não foi realizada a diligência de inquirição de testemunhas requerida.

            Refere a AT que não era admissível a prova testemunhal, o que é desmentido pelo disposto no artº. 72º. da LGT, que refere serem admissíveis todos os meios de prova, o que não é infirmado em lado algum do RCPITA.

            Além disso, na sua resposta, a AT pretendeu justificar a não inquirição com a invocação da sua desnecessidade e de já terem sido ouvidas as pessoas em causa. Porém, essa fundamentação devia constar do relatório da inspecção tributária, na parte de resposta à audição prévia e ele é totalmente omisso sobre esse ponto. Daí que não possa aceitar-se como válida a justificação constante da resposta apresentada nos presentes autos, por violadora do disposto no artº. 52º. e 153º. do Código do Procedimento Administrativo – Cfr., neste sentido, o Ac. do STA de 28/10/2020, proferido no processo 02887/13.8BEPRT e publicitado em http://www.dgsi.pt/jsta.

No caso concreto, é importante o esclarecimento quanto à verificação do requisito da existência de um “processo de transformação de matérias primas” no âmbito dos investimentos realizados pela Requerente para alargamento e reconversão da sua atividade, pelo que parece que seria conveniente a inquirição das testemunhas arroladas em fase de direito de audição, cabendo à AT fundamentar, caso assim não entenda, a respetiva rejeição (neste sentido, o ac. do STA de 22.04.2015, proferido no proc. 0511/14, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.

            Ademais, no caso em apreço, permanece a dúvida se as conclusões do RIT assentam exclusivamente em erro de direito ou (também) em erro sobre os pressupostos de facto. Para este efeito, sublinhe-se que é a própria AT que refere, quer em sede de RIT, quer em sede de resposta ao Pedido de Pronúncia Arbitral, que para ver esclarecidas as suas dívidas sobre natureza da atividade exercida pela Requerente questionou o INE, tendo concluído, através de uma resposta resumida a um parágrafo, que se tratava de uma atividade de “comércio por grosso”. 

            Por conseguinte, na situação em causa, e em face das dúvidas confessadas, que de resto não parecem suscetíveis de ultrapassar por meio de uma consulta ao INE, teria sido conveniente inquirir as testemunhas apresentadas em sede de direito de audição, no sentido de aferir em que medida os investimentos concretizados na construção do edifício e na aquisição de máquinas novas, bem como a alteração do CAE da Requerente operada a 30-06-2017, representaram ou não uma efectiva reconfiguração da atividade exercida anteriormente, e se enquadram no conceito de atividade produtiva de transformação.

            Face ao exposto, a desconsideração não justificada de meios de prova oferecidos pela Requerente, configura o vício de forma de falta de audição da ora impugnante no processo de inspecção, conforme o exigido pelos artºs. 60.º da LGT e artº. 60.º do RCPITA, em conformidade com os princípios e formalidades absolutamente essenciais, desde logo impostas pelos artigos 266.º e 267.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e conforme jurisprudência uniforme deste CAAD e dos tribunais fiscais, como ainda da doutrina, nos termos citados pela requerente nas suas alegações.

            Permitimo-nos citar por ser mais impressivo o Ac. do TCAS de 15/12/2021, proferido no processo 1130/11.9BELRA, publicitado em http://www.dgsi.pt/jsta.

            Deste modo, verifica-se a violação pelo RIT do direito de participação da requerente na decisão do processo tributário, pela violação do direito de audição da requerente, determinado nos artigos 60.º da LGT e 60.º do RCPITA o que constitui uma preterição de uma formalidade essencial, da qual resulta a anulação das liquidações que constituem o objecto da impugnação.

 

 

4.3 – Do vício da falta de notificação prévia à realização da inspecção:

            1. Nos termos do artigo 49.º n.º 1, determina o RCPITA que:

“1 - O procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início.

2 - A notificação prevista no número anterior efectua-se por carta-aviso elaborada de acordo com o modelo aprovado pelo director-geral dos Impostos, contendo os seguintes elementos:

a) Identificação do sujeito passivo ou obrigado tributário objecto da inspecção;

b) Âmbito e extensão da inspecção a realizar.

3 - A carta-aviso conterá um anexo contendo os direitos, deveres e garantias dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários no procedimento de inspecção.”

 

            Da factualidade dada como provada, consta na al. c) que a “inspecção tributária teve actividade externa nas instalações da requerente, não se demonstrando que tenha sido enviada qualquer carta-aviso ou outro meio de comunicação a alertar para tal acção (acordo das partes e relatório da inspecção tributária sob o nº. 9 com a pi e sob o nº. 1 com a resposta)”.

            Na sua resposta, a AT reconhecendo que apenas com a deslocação às instalações da requerente e com a assinatura das ordens de serviço, teve a requerente conhecimento dessa actividade inspectiva.

            Para tanto, invoca – artº. 21 da sua resposta - que a deslocação dos funcionários à empresa foi efetuada no âmbito do despacho DI2020... que visou a consulta, recolha e cruzamento de documentos destinados a controlar o direito à dedução à coleta do benefício fiscal relativo a RFAI, conforme retratado no documento disponível nas aplicações informáticas que equipam a Autoridade Tributária e Aduaneira e que reproduz, pelo que – artº. 22 da resposta - não há lugar à notificação prévia do procedimento de inspeção quando o procedimento vise apenas a consulta, recolha ou cruzamento de documentos destinados à confirmação da situação tributária do sujeito passivo ou obrigado tributário, conforme o disposto no artº. 50º., nº. 1, al. a) do RCPITA.

            Por fim, acrescenta que “tendo por base os elementos obtidos naquele procedimento de consulta e recolha e os elementos inscritos nas declarações fiscais entregues pela Requerente, concluíram os serviços da inspeção pela existência de divergências relevantes e suscetíveis de motivar correções, em face do que foram abertas as ordens de serviço internas nºs OI2021..., OI2021... e OI2021...”, conforme o alegado no ponto 23 dessa mesma resposta.

Como referem Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira Mestre, no seu REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA (RCPIT) ANOTADO E COMENTADO, Universidade do Minho, 2013, pág. 46:

“Na questão da classificação do procedimento de inspecção como interno ou externo importa sublinhar o que denominamos de “aparência de procedimentos”. Esta “aparência de procedimentos” traduz-se nas situações em que embora os procedimentos sejam formalmente classificados pela Administração tributária de determinada forma, na realidade e materialmente, em função dos actos praticados, os mesmos não correspondem à classificação que lhes foi atribuída.

Esta desconformidade pode e deve ter efeitos quanto ao resultado final do procedimento, devendo os efeitos ser valorados contra a própria Administração, uma vez que esta se encontra vinculada ao princípio da legalidade. Em concreto, significa isto que embora um procedimento seja classificado pela Administração como interno, na prática o mesmo pode vir a demonstrar-se, em função dos actos praticados, como externo, da mesma forma que um procedimento classificado como externo, por força dos actos praticados pode traduzir-se num procedimento interno, embora a primeira hipótese tenha menos probabilidades de vir a suceder.

A qualificação dada pela Administração a um procedimento não tem carácter vinculativo, se vier a revelar-se que o conteúdo dos actos praticados for contrário à qualificação dada, isto é, a classificação formal do procedimento será, posteriormente, validada, ou não, pelos actos que a Administração tributária praticar.

Numa situação em que os actos materialmente praticados revelam a existência de um procedimento distinto daquele que foi formalmente indicado pela Administração, ou seja, um procedimento externo “de facto” embora formalmente qualificado como interno, os vícios referentes à falta de notificação prévia ao sujeito passivo exigida pelo artigo 49.º n.º 1 do RCPIT, bem como a ausência de ordem de serviço exigida pelo artigo 46.º n.º 2 do RCPIT devem ter como consequência a invalidade de uma eventual liquidação, nomeadamente devem levar à sua anulação.”

 

            Além disso, resulta evidente do RIT que foi com base nos elementos recolhidos nessa actividade externa que foram elaboradas as conclusões do mesmo e fundamentadas as liquidações adicionais ora em apreciação.

Isso mesmo é confirmado pelo despacho do Chefe de Divisão considerado provado na al. h) dos factos provados, onde o mesmo expressamente refere que “após acção interna e externa de análise dos pressupostos da criação e utilização do benefício concluiu-se pela dedução indevida à colecta do IRC”. 

            Aliás, no RIT refere-se expressamente que “da visita às instalações verificou-se que não há qualquer separação das atividades de comércio e “produção” e que todas as bobines de papel assim que entram no armazém são classificadas contabilisticamente como mercadorias (...)”;

Mais adiante, no ponto III1.5 do RIT, volta a referir-se a presença de inspetores nas instalações da Requerente.

Por isso, não obstante a AT classificar o procedimento como “interno”, pode afirmar-se com segurança que houve uma deslocação às instalações da Requerente para obter elementos que não se encontravam à sua disponibilidade, designadamente, e conforme resulta do RIT,  para observar as máquinas existentes, observar as matérias primas utilizadas, averiguar a forma de organização do processo produtivo, o que, materialmente, constituem diligências externas para os efeitos do disposto no artigo 13.º do RCPITA.

Por conseguinte, o procedimento levado a cabo nos presentes autos além de incluir diligências internas, consistiu também em acções que se enquadram na classificação de procedimento inspectivo externo, não havendo lugar à dispensa de notificação prévia a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º do RCPITA.

            Acresce que, como referem os autores citados – Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira Mestre, ob. cit, pág. 167 -, mesmo nos casos de excepção, a dispensa a notificação em todas estas situações, não se dispensa a entrega ao visado da listagem dos direitos, deveres e garantias dos inspeccionados (n.º2), constituindo a não observância deste preceito uma preterição de formalidade, susceptível de comprometer a validade dos actos subsequentes.

 

            2. Ora, é evidente da acção da inspecção tributária nas instalações da ora Requerente, que essa actividade não foi a de mera recolha, consulta ou cruzamento de dados, que aliás, na sua resposta a AT nem indica quais, mas antes a investigação da real situação da empresa que, a AT entendia que não podia beneficiar de apoio ao investimento.

            Por isso, apesar das ordens de serviço referirem uma mera inspecção interna, o certo é que, como se referiu, na prática a mesmo veio a demonstrar-se, em função dos actos praticados, como externa, sendo que o julgador não está sujeito à qualificação que as partes dão aos actos ou contratos, mas antes tem de subsumir os factos ao legalmente determinado. – Cfr., neste sentido, o Ac. do STA, de 17-12-2019, proferido no processo 072/13.8BEMDL, publicitado em http://www.dgsi.pt/jsta.

            Como se refere neste acórdão, o critério mobilizado pelo legislador para saber se existe o dever de notificação prévia a que alude o seu artigo 49.º é o da classificação quanto ao lugar da realização, a que alude o seu artigo 13.º, para a partir daí saber se o procedimento de inspecção deve ser classificado como uma acção externa ou interna.

            Acresce ainda que, em lado algum das peças processuais apresentadas pela AT nos presentes autos, nem do RIT resulta que tenha sido entregue ao requerente ou a quem alegadamente o representava a listagem dos direitos, deveres e garantias dos inspecionados.

            Deste modo, não tendo o sujeito passivo inspeccionado sido notificado previamente da recolha dos elementos que serviram de base às correções e não tendo sido demonstrado que tomou prévio conhecimento da diligência inspectiva respectiva ou que existia e foi invocado fundamento para o dispensar, foi preterida uma formalidade legal que inquina o procedimento onde os elementos recolhidos são utilizados, pois essa formalidade é uma formalidade essencial do procedimento inspectivo e da validade dos actos nele praticados e dos resultados obtidos. – Cfr., neste sentido, os Acs. do STA de 19/09/2018, proferido no processo n.º 01460/17 e de 17-12-2019, proferido no processo 072/13.8BEMDL, ambos publicitados em http://www.dgsi.pt/jsta.

            Deste modo, também a dupla omissão da falta de notificação prévia da realização de um processo inspectivo, com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início, bem como a comunicação dos direitos, deveres e garantias dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários no procedimento de inspecção, nos termos prescritos no artº. 49º. do RCPITA constitui a omissão de uma formalidade essencial prevista na lei, pelo que tem como consequência a invalidade dos elementos probatórios obtidos, bem como as consequências dos actos praticados, por constituir uma ilegalidade, que, nos termos do artº. 99º. do CPPT, constitui fundamento de impugnação das liquidações efectuadas.

 

4.4 – Do conhecimento dos restantes vícios invocados:  

            Resulta do exposto que se ocorrem nos presentes autos, a omissão de formalidades legais que constituem formalidades essenciais do procedimento inspectivo, a formalidade da não inquirição das testemunhas arroladas em sede de direito de audição, que constitui uma violação deste direito de audição da requerente e sobretudo a omissão da formalidade da falta de notificação prévia da requerente à realização da inspecção.

            Deste modo, fica prejudicado o conhecimento do restante vício formal invocado, posterior à existente da falta da formalidade da notificação prévia e o conhecimento da questão de fundo, por se basear em processo inspectivo inválido, nos termos referidos.

 

4.5 – Julgamento da questão de direito:

            Consequentemente, tem de proceder o presente pedido de pronúncia arbitral, com a anulação da liquidação de IRC n.º 2021..., emitida em 22.06.2021, e respeitante ao exercício de 2017, no montante de € 75.322,77, a liquidação de IRC n.º 2021... emitida em 23.06.2021 e respeitante ao exercício de 2018, no montante de € 29.494,79, e a liquidação de IRC nº 2021 ... emitida em 28.06.2021 no montante de € 24.737,28, assim como das coimas aplicadas nos processos de contra-ordenação nº ...2021... no montante de € 83,13; processo nº ...2021..., no montante de € 6.530,57 e processo nº ...2021... no montante de € 2.418,74 €, por dizerem respeito a essas liquidações.

            Este era o pedido da al. a) do petitório formulado pela requerente no seu PPA, pelo que não há que conhecer dos restantes pedidos formulados, pois que os mesmos foram subsidiariamente deduzidos para a hipótese de improcedência do pedido da al. a), o que não acontece.

 

5. Decisão

         Nestes termos, decide-se julgar procedente o presente pedido de pronúncia arbitral e consequentemente:

a) anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo ora requerente.

b) anular em consequência, a liquidação de IRC n.º 2021..., emitida em 22.06.2021, e respeitante ao exercício de 2017, no montante de € 75.322,77, a liquidação de IRC n.º 2021... emitida em 23.06.2021 e respeitante ao exercício de 2018, no montante de € 29.494,79, e a liquidação de IRC nº 2021... emitida em 28.06.2021 no montante de € 24.737,28, assim como as coimas aplicadas nos processos de contra-ordenação nº ...2021... no montante de € 83,13; processo nº ...2021..., no montante de € 6.530,57 e processo nº ...2021... no montante de € 2.418,74 €, por dizerem respeito a essas liquidações.

c) Custas pela requerida.

 

 

8. Valor do processo

         De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 164.319,51, indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

9. Custas

         Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante total das custas a pagar em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da requerida.

 

Lisboa, 11-09-2023

 

Os árbitros,

 

 

 

Fernando Araújo

 

(vota vencido, nos termos da declaração que junta)

 

 

 

José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora (Relator)

 

 

 

Filipa Saraiva Barros

 

Texto elaborado com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO – Proc. nº 579/2022-T

 

 

Entendo que não foi preterida qualquer formalidade essencial.

 

Quanto às alegadas preterições:

 

1- Preterição da inquirição das testemunhas em sede de direito de audição.

 

Não se me afigura que fosse essencial ouvir as testemunhas:

  1. seja porque se tratava das mesmas pessoas que, na companhia do Gerente, receberam os Inspectores no dia da visita à empresa, tendo prestado todos os esclarecimentos relacionados com a actividade da empresa (p. 2/30 da Resposta, sendo que a Requerente não contesta isso);
  2. seja porque essas mesmas duas pessoas foram arroladas como testemunhas no presente processo, e, depois de instada a Requerente a declarar se tinha interesse na produção da prova testemunhal (Despacho de 6/2/2023), ela nem sequer respondeu, prescindindo dessa prova perante este tribunal;
  3. seja porque, dada a clara suficiência da prova documental em apoio das pretensões da Requerente, a prova testemunhal nada iria acrescentar àquela prova documental para efeitos de descoberta da verdade material, em qualquer dos momentos relevantes que conduzem ao presente processo (o que explica a renúncia a essa prova, pela Requerente, no presente processo).

 

2- Preterição da formalidade de notificação prévia nos termos do art. 49º do RCPITA.

 

Houve um primeiro momento de recolha de elementos nas instalações da Requerente, assente num despacho que não tinha de ser notificado (art. 50º, 1, a) do RCPITA).

O procedimento de inspecção resultou de 3 ordens de serviço e foi sempre interno, para efeitos do art. 13º do RCPITA, como consta do próprio RIT (p. 6/66 do Doc. 9 junto com o PPA). Sendo interno, não se exige a notificação prévia do art. 49º do RCPITA. Também aqui não há uma formalidade essencial que tenha sido preterida.

 

3- Preterição da formalidade de assinatura por um TOC.

 

Trata-se de uma leitura incompleta do nº 3 do art. 51º do RCPITA, que prevê a possibilidade de outros assinarem, mesmo não sendo representantes do obrigado tributário; além de que logo o nº 4 do mesmo artigo esclarece que a falta de assinatura não obsta ao início do procedimento inspectivo. Logo, não é uma formalidade essencial.

 

Em conclusão:

 

Entendo, em consequência, que nada obstava a que o presente tribunal apreciasse o mérito da causa, especificamente pronunciando-se sobre o preenchimento, ou não, por parte da Requerente, dos requisitos para aplicação do RFAI.

 

 

 

 

(Fernando Araújo)