SUMÁRIO:
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Embora o princípio da especialização dos exercícios se reporte especificamente à «periodização do lucro tributável», como decorre do artigo 18.º do CIRC, a aplicação das tributações autónomas também tem de ser efectuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram as despesas.
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As tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, pelo que apenas poderão ter lugar quando se comprove que tenham ocorrido saídas de meios financeiros da empresa nesse exercício.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Paulo Lourenço e Dr. Fernando Miranda Ferreira, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 12-042023, acordam no seguinte:
1. Relatório
“A… & CIA, LDA”, NIPC …, com sede em …, …-… … - Vila do Conde, veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral, tendo por objeto mediato a apreciação da legalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2020 …. datada de 2020-01-13 respeitante ao exercício de 2016 e n.º 2020 … datada de 2020-01-31 respeitante ao exercício de 2017, nos montantes de, respetivamente, € 45.676,35 e € 34.928,96, sendo que os mesmos integram juros compensatórios nos correspondentes valores de €4.264,81 e €1.968,59, relativamente à parte destas liquidações que respeita à tributação autónoma, efetuada ao abrigo do disposto no n.º 1 do artº 88.º do CIRC, nos valores de € 40.303,45 (2016) e € 31.568,07 (2017).
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi, em 03-02-2023, aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, sendo, nos termos legais, notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira. O Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral, os referidos, notificando as partes dessa designação. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 12-04-2023.
A AT apresentou Resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Em 27-06-2023, realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.
As Partes apresentaram alegações.
Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não há nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos, com relevância para a matéria, em análise
2.1.1- A Requerente tem como CAE principal 47300 – Com. Ret. Combustível para Veículos a Motor, Estab. Espec. e como CAE secundários: 92000 – Lotarias e Outros Jogos de Aposta e, 47620 – Com. Ret. Jornais, Revistas e Art. Papelaria, Estab. Espec, estando enquadrada no regime geral de tributação em IRC.
2.1.2 A empresa foi objeto de uma ação inspetiva - efetuada pela Direção de Finanças do Porto, aos exercícios de 2016 e 2017, de âmbito parcial e incidência no IRC e IVA, a coberto das OI2019… e OI2019… - a qual visava o controlo dos fluxos de pagamentos com cartões de débito e crédito, por se terem verificado divergências entre o volume de negócios declarado pelo sujeito passivo e os valores declarados na declaração modelo 40, prevista no nº 4 do artº 63º-A da LGT.
2.1.3- No âmbito das referidas ordens de serviço e inspeção, foram efetuadas correções aos exercícios de 2016 e 2017, em sede de IRC, à matéria tributável, bem como ao imposto em falta, relativamente a tributações autónomas, nos valores de €40.303,45 e €31.568,07, respetivamente, sendo que, apenas estas, são objeto do presente processo. 2.1.4 - Consta da contabilidade da empresa que, no ano de 2016, foram efetuados dois lançamentos contabilísticos de regularização de saldos, no diário 12, com data de 01-00-2016: DocBaseV/2018 3 / 14 Lançamento 1: Débito
# 5898 – Valorização de ativos fixos tangíveis € 42.000,00 Crédito #1111 Caixa Sede €2.000,00 Crédito # 1114 –
Caixa … €40.000,00 Lançamento 5: Débito # 5898 – Valorização de ativos fixos tangíveis € 38.606,89 Crédito #2788905 – … Depósitos em Circulação €38.606,89.
2.1.5- Consta da contabilidade que, no ano de 2017, foi efetuado um lançamento contabilístico, com data de 3113-2017, no diário 9, sob o lançamento 19, movimentando as seguintes contas: Débito # 27885101 – … €
15.000,00 Débito # 27885101 – … € 48.136,13 Crédito #1111 Caixa Sede €15.000,00 Crédito # 21111002 – Crédito Local/1114 – Caixa … €48.136,13 9.
2.1.6- Através do lançamento 1 do diário de Caixa, a conta 21111002 – Crédito Local, foi movimentada “a débito por contrapartida da conta “1114 - Caixa …,” pelo montante de €51.336,13. Foi ainda registado a crédito desta conta o montante de €3.200,00, referente a comissões de TPA.
2.1.7- Parte das diferenças encontradas, advêm dos anos anteriores e resultam da errada contabilização da transferência interna das raspadinhas da área de negócio designada … para a área de negócio designada Loja (ambas, exploradas pela Requerente). Transferência, essa, formalizada através de guias de remessa/documentos internos entre as duas áreas e negócio que, ao tratar tal transferência interna entre áreas como se de venda efetiva se tratasse, erradamente duplicou o registo, quer nas receitas (contas de disponibilidades), quer nos próprios proveitos.
2.1.8- Atendendo a que as regularizações de contas, em causa, não seriam meros registos contabilísticos, na medida em que tinham subjacente fluxos financeiros e refletiam a efetiva saída de dinheiro da empresa, relevada contabilisticamente, em 2016 e 2017, sem qualquer documento de suporte. E, desconhecendo-se a sua natureza, origem e finalidade, os SIT concluíram pela consideração de despesas não documentadas, tributadas autonomamente à taxa de 50%, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artº 88º do CIRC.
2.1.8.1- Foi apurado um imposto em falta, relativamente a 2016 de €40.303,45 (€ 80.606,89 (1) * 50%) e 2017: €
31.568,07 (€ 63.136,13 (2) * 50%) € 71.871,52.
2.1.9- A Requerente deduziu pedido de Revisão oficiosa, que mereceu despacho de indeferimento. Em 03-022023, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
2.2.1- Não se provou que tivesse havido saídas efetivas de disponibilidades da empresa durante os anos de 2016 e 2017.
2.2.2- Não se provou se - e em que concretas datas - tiveram lugar saídas de disponibilidades durante os anos anteriores a 2016.
2.2.3- Os factos foram dados como provados e não provados, com base nos documentos juntos pela Requerente, nos que constam do processo administrativo e ainda, com base nos depoimentos das testemunhas, nomeadamente no que respeita aos pontos 2.1.7. e 2.2.1. Sendo certo que os SIT, não colocaram em causa a contabilidade da Requerente, salientando que caso os saldos não se encontrassem corretos era à sociedade que competia a respetiva regularização. (Cfr ponto 32 da Resposta).
3. Matéria de direito
3.1- Posições das Partes
3.1.1- Entende a Requerente, em suma:
3.1.1.1- No que concerne à liquidação respeitante a 2016, o que se apresenta para decisão consiste em saber se o mero registo contabilístico de correção dos saldos que transitam de 2015, que foi efetuado nos movimentos de abertura do mês “zero” de 2016, é suscetível de constituir em si um facto tributário ocorrido nesse ano de 2016. - Não se nega que tais movimentos de regularização dos saldos envolveram, por um lado e de modo direto, as contas de disponibilidades, designadamente, as contas “1111 – Caixa” (€ 2.000,00), “1114 – Caixa …” (€ 40.000,00) e que, por outro lado, os restantes movimentos contabilizados afetaram, indiretamente, as próprias disponibilidades, uma vez que o montante de € 38.606,89, correspondente a meios financeiros gerados no seio da empresa e que deveriam ter sido objeto de depósito nas suas contas, embora consumidos por apropriação dos sócios, foi mantido em suspenso por lançamento a débito da conta “2788905 – … Depósitos em Circulação - O procedimento, aligeirado e simplista, adotado pela AT, que, apoiada num mero registo contabilístico lançado num elucidativo mês “zero”, entendeu nada mais ser merecedor de investigação, constitui um desprezo pelo princípio tributário do inquisitório ou da verdade material.
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É manifesto que nenhum movimento com efetiva substância económica poderia ter ocorrido em 2016, pois que a adoção, para as regularizações contabilizadas, do dito mês “zero” só pode significar que, em nenhum dos dias desse ano, se verificou desvio das disponibilidades da empresa. A forma contabilística adotada só pode ser interpretada no sentido da assunção de que os saldos, respeitantes a 2015 e que transitaram para 2016, se apresentavam incorretos e, por tal facto, não poderiam ser admitidos em 2016 sob pena de continuarem a viciar a real expressão patrimonial da empresa.
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Portanto, em primeira linha, há que concluir que a AT apenas carreou para o processo de liquidação do IRC, como prova da existência de factos tributários ocorridos em 2016 que poderiam consubstanciar despesas não documentadas, a evidência da regularização destes saldos lançada no mês “zero”, quando, afinal, essa evidência conduz manifestamente à conclusão de que os supostos movimentos de saída de meios financeiros da empresa nunca poderiam ter ocorrido em 2016.
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O conceito de efetividade das saídas não se coaduna com esta flexibilidade de datas e exercícios de tributação, ficando provado à saciedade que a AT não conhece o momento dessas saídas, e também não o quis conhecer, já que nada investigou, entendendo que só será de relevar o exercício em que a regularização surge contabilizada. - No que diretamente interessa à decisão do presente pedido de anulação das liquidações, sem prejuízo do que se alegou nos pontos anteriores quanto à falta de prova da existência de qualquer saída efetiva de dinheiro durante o exercício de 2016, há que concluir que, perante a documentação apresentada, as saídas efetivas de numerário, nos montantes de € 17.314,40 e € 21.292,49, ocorreram, respetivamente, durante os anos de 2013 e 2014, e não, como considerou a AT no seu RIT, naquele ano de 2016.
3.1.1.2 - Por outro lado, estando em causa retificações de saldos que envolvem, diretamente ou indiretamente, as contas de numerário, designadamente, as contas “1111 – Caixa” (€ 15.000,00), “1114 – Caixa …” (€ 48.136,13), não se torna possível, por se estar a tratar de movimentos a dinheiro, comprovar o momento em que os mesmos ocorreram, pelo que, como nunca se pôs em causa desde o procedimento de inspeção, haverá que admitir que a imputação dos movimentos seja efetuada ao exercício de 2017.
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E, foi assim que o requerente, quando convidado, no decurso do procedimento de inspeção, a esclarecer o motivo subjacente aos registos contabilísticos daquelas regularizações, informou que estas tinham a natureza de “… acertos de valores de caixa …” e que tinha ocorrido um lapso na contabilização efetuada, porquanto tinham sido lançadas na conta “27885101 – …” quando “… deveriam ter sido consideradas na conta de sócio”.
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Origem e destino que a AT aceita, já que, considerando que os movimentos correspondiam a saída de meios monetários líquidos da empresa e admitindo que foram os sócios os beneficiários dos mesmos, apenas refuta a possibilidade do seu enquadramento como empréstimos concedidos pela empresa àqueles, em razão da sua atribuição não ter sido efetuada a coberto de escritura pública, conforme determina o artº 1143º do Código Civil. - Ora, embora se perceba a recusa de enquadramento das verbas em causa como empréstimos, natureza que, em rigor, nunca foi diretamente alegada, deveria a AT ter-se limitado a retirar as devidas consequências na plena satisfação da presunção legal estabelecida no artº 6º, nº 4, do CIRS. Pois que, de acordo com aquela norma, as verbas de que os sócios beneficiam, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, devem ser consideradas, por presunção, atribuídas a título de lucros ou adiantamento dos lucros. Ao invés, a AT sem nunca contrariar que as saídas de dinheiro tiveram como destinatários os sócios e arguindo, apenas, não poder admitir que as mesmas foram atribuídas ao abrigo de mútuo celebrado, envereda pela tributação autónoma por considerar verificada e comprovada a existência de despesas não documentadas.
Existe, portanto, manifesta contradição entre os factos expostos e admitidos e a conclusão que dos mesmos a AT retira, em razão do que se deverá considerar que o ato tributário de liquidação por aplicação do nº 1 do artº 88º do CIRC, carece de fundamentação e, perante tal vício, deverá ser anulado.
3.1.1.3 - Em conclusão A liquidação referente a 2016 encerra vício legal por se reportar a factos que não respeitam a esse exercício, sendo que ficou provado que os montantes de € 17.314,40 e € 21.292,49 respeitam, respetivamente, a 2013 e 2014 e que o restante valor terá que ser imputado ao exercício de 2015.
-Por seu lado, a liquidação de 2017, face à fundamentação expendida pela AT, que apenas refuta a possibilidade de enquadramento das verbas em causa como mútuo, só poderia conduzir à aplicação da presunção legalmente estabelecida no nº 4 do artº 6º do CIRS, ou seja, à tributação como distribuição de lucros ou adiantamento dos mesmos.
Termos em que, como o vosso douto suprimento se solicita a anulação da Decisão de indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa e consequentemente das liquidações em crise, na parte respeitante às tributações autónomas, nos valores de € 40.303,45 (2016) e € 31.568,07 (2017), bem como dos correspondentes juros compensatórios.
3.1.2 - A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, entre o mais, o seguinte:
3.1.2.1- Atendendo que as referidas regularizações de contas, não são meros registos contabilísticos, na medida em que têm subjacente fluxos financeiros e refletem a efetiva saída de dinheiro da empresa, relevada contabilisticamente em 2016 e 2017, sem qualquer documento de suporte, desconhecendo-se a sua natureza, origem e finalidade, os SIT concluíram – e bem- estar-se na presença de despesas não documentadas.
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Antes de mais, importa referir que, a primeira condição para a relevância da contabilidade é que ela exista e esteja em condições de justificar os movimentos que reflete e que afetam o património e os resultados da empresa. Em termos materiais, a contabilidade engloba não só os livros e registos - alguns dos quais são obrigatórios e devem obedecer a determinados formalismos - mas também os documentos justificativos.
3.1.2.2- O significado de “despesas não documentadas” reconduz-se a saídas de meios financeiros do património empresarial por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias sem suporte documental.
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Aliás deve-se ter em conta se as regularizações contabilísticas podem/têm impacto a nível fiscal. Por outro lado, refira-se o mencionado no RIT, quando invoca o nº 3 do artº 123º do CIRC, que admitindo atrasos na contabilidade de 90 dias, o sujeito passivo poderia ter efetuado, se assim, o tivesse entendido, as regularizações no exercício de 2015. Tendo os exfluxos financeiros ocorrido no exercício de 2016, é neste exercício que devem ser considerados. - Pelas suas características específicas, as «despesas não documentadas» afastam a aplicação do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do art.º 18.ºdo CIRC, assente no critério de competência económica. Com efeito, este critério é materialmente insuscetível de aplicação às «despesas não documentadas», na medida em que se desconhece a natureza e a causa das transações correspondentes. Quando se trata de estabelecer a respetiva imputação a um dado exercício apenas pode ser utilizado o critério de competência de caixa. Em todo o caso, mesmo este critério da competência de caixa só é praticável se se estiver perante «despesas não documentadas» relevadas contabilisticamente, em conta apropriada de “gastos”, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também refletido nas contas de meios monetários.
3.1.2.3- O artº 1143º do Código Civil, menciona que, o contrato de mútuo de valor superior a € 25 000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2.500,00 se o for por documento assinado pelo mutuário.
Ora, na situação em análise estamos perante valores sujeitos a escritura pública, que a Requerente não veio, nesta fase, ou em qualquer uma das anteriores apresentar, sendo que era a si que lhe cabia o ónus da prova.
Acrescendo a sujeição do mesmo a imposto de selo, não vindo mais uma vez comprovar o seu pagamento. Por outro lado, também não pode colher o argumentado quanto à presunção prevista no nº 4 do artº 6º do CIRS, ou seja, que as verbas de que os sócios beneficiem, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, devem ser considerados por presunção, atribuídas a título de lucros ou adiantamento de lucros, na medida em que não foram efetuados quaisquer lançamentos na conta de sócios ou mesmo a apresentação de documento que o comprove, como por exemplo atas.
Assim sendo, estão reunidos os pressupostos para aplicação do nº 1 do artº 88º do CIRC, pois estamos na presença de despesas não documentadas que devem ser tributadas autonomamente, no período de tributação de 2017, soçobrando os argumentos da Requerente e mantendo-se na ordem jurídica os atos presentemente impugnados.
3.2- Decidindo
3.2.1- Interessa salientar que - no que respeita ao conceito de despesas não documentadas e sua relevância na análises de casos como o que nos ocupa - não se desconhece que se divide, de forma relevante, a jurisprudência arbitral, defendendo parte dela, o entendimento simbolicamente evocado no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T.
Também, no respeitante á evocação do princípio da especialização dos exercícios nestas demandas, o entendimento da jurisprudência está longe ser uniforme.
3.2.2- Ainda assim, entende-se, não ser de desviar o rumo argumentativo e decisório feito constar no Proc. n.º 487/2018-T CLS e voto vencido do Presidente deste Tribunal no Proc. nº 235/2020-T
3.2.2.1- (…) O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos»), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.
Assim, as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita determinar a natureza da despesa ou o seu beneficiário.
Mas, para ocorrerem despesas, é necessário que se comprove que ocorreram essas saídas de meios financeiros da empresa.
O reconhecimento de «um débito por um valor que não corresponde à realidade financeira e económica, não possuindo qualquer documento de apoio contabilístico, cujo valor probatório fosse possível delimitar as características da operação económica subjacente aquele registo contabilístico, designadamente, o quê, o porquê e o para quem», que a Autoridade Tributária e Aduaneira sublinha na sua Resposta como o facto relevante para tributação autónoma como despesa não documentada, não constitui, em si mesmo, qualquer despesa, pois, só por si, não altera a situação patrimonial da empresa.
… a mera movimentação de contas do activo (bancos e outros devedores) não implica a realização de qualquer «despesa», não afectando, só por si, o património da sociedade.…..
…a tributação autónoma de despesas não documentadas pressupõe a demonstração da existência das operações que são tributadas subjacentes …a «movimentos a crédito da conta de disponibilidades» de que, no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, resultou a diferença entre o saldo da conta 12 e os valores reais dos depósitos bancários.
Por outro lado, a conclusão retirada pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que terão ocorrido «pagamentos diversos em exercícios anteriores, consubstanciados em movimentos a crédito da conta de disponibilidades», não permite identificar quais os exercícios em que esses invocados pagamentos possam ter ocorrido.….
…A ser assim, como defende a Requerente, não haverá fundamento para liquidar tributação autónoma com referência ao exercício de 2016 e 2017, pois, em sede de IRC, inclusivamente quanto às tributações autónomas previstas no CIRC, vigora por força do princípio da anualidade que se enuncia no artigo 8.º do CIRC. Na verdade, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, pelo que no exercício de 2015 apenas poderão ser tributadas autonomamente despesas que tenham ocorrido nesse exercício. De qualquer modo, mesmo que a Autoridade Tributária e Aduaneira, apesar do teor literal daquela expressão, estivesse a referir-se também ao exercício de 2015, é inequívoco que a conclusão que a Autoridade Tributária e Aduaneira retirou é a de que não foi apenas no exercício de 2015 que terão ocorrido as invocadas tributações autónomas, mas também numa pluralidade de exercícios anteriores não identificados, pelo que pelo menos nessa parte respeitantes a exercícios anteriores (não determinada) seria ilegal a liquidação no âmbito da liquidação adicional respeitante ao exercício de
3.2.2.2- Voto vencido/235/2020-T
(…) …. Antes de mais, há que esclarecer que, embora o princípio da especialização dos exercícios se reporte especificamente à «periodização do lucro tributável», como decorre do artigo 18.º do CIRC, a aplicação das tributações autónomas também tem de ser efectuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram. Na verdade, por um lado, às tributações autónomas em sede de IRC aplicam-se todas as normas do CIRC que não sejam incompatíveis, pois elas incluem-se no IRC, como decorre do teor expresso da alínea a) do n.º 1 do artigo
23.º-A do CIRC.
Assim, aplicam-se às tributações autónomas em IRC, por exemplo, as regras relativas à apresentação de declarações, autoliquidação, liquidação adicional e todas as outras que sejam necessárias para sua aplicação. Assim, também quanto às tributações autónomas previstas no CIRC vigora o princípio da anualidade, que se enuncia no artigo 8.º do CIRC, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».
Por isso, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, e a respectiva liquidação reporta-se a cada período fiscal. Não se tratará daquele princípio de especialização dos exercícios que, com atenuações derivadas do princípio da solidariedade dos exercícios, se aplica à determinação do lucro tributável, mas trata-se de uma regra que é aplicável generalizadamente em IRC, inclusivamente quanto às tributações autónomas.
….
A prova do momento da ocorrência das despesas e o facto tributário são, obviamente, coisas diferentes a existência de despesas e o momento em que ocorrem, e a prova da sua existência e o momento em que a prova é obtida. O facto tributário, que justifica a tributação, é a existência de despesas, que não se confunde com a prova da sua ocorrência. Na tese que fez vencimento, o momento da ocorrência do facto tributário acaba por ser aquele em que se fez a contagem física da caixa, o que se reconduz à possibilidade de multiplicação ilimitada dos factos tributários, pois sempre que fosse efectuada uma contagem e fosse detectada uma falta de valores na caixa física estar-se-ia perante um novo facto tributário: isto é, houve um facto tributário no dia 17-12-2018, porque foi feita uma contagem, mas, se fosse feita nova contagem no dia seguinte, haveria aí um novo facto tributário, pois ainda não haveria os valores em caixa.
E assim sucessivamente, a mesma apropriação de quantias seria suporte de multiplicação de tributações autónomas todas as vezes (duas, três, cinco, dez ou mais) que fosse efectuada uma contagem física e se verificasse que continuava a faltar aquele valor em caixa física.
Esta seria uma hipotética solução legislativa tão desacertada e desproporcionada, por razões que suponho serem óbvias, que tem de se presumir não ter sido legislativamente adoptada, por força da presunção que impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas. E, da mesma forma, as mesmas despesas não documentadas que, pelo menos parcialmente, mas na sua maior parte terão ocorrido antes de 2014 poderiam ser repetidamente tributadas, tanto antes da data em foi feita a contagem como posteriormente, ad eternum, sempre que se fizer uma nova contagem que confirme que continua a falta de valores na caixa física. Esta tese, para além de contrariar o texto do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, que identifica as despesas e não a contagem física da caixa como o facto tributário sujeito a tributação autónoma, é também incompatível também com o n.º 14 do mesmo artigo que impõe a conexão das despesas com determinado período de tributação.
Para além disso, esta tese, que prescinde do momento da realização das despesas para efeitos da sua tributação autónoma, é incompatível com o regime da caducidade do direito de liquidação, que, em sede tributações autónomas de IRC, impõe a irrelevância fiscal de factos muito antes de 2014, segundo indicia o elevado saldo devedor da conta 11-Caixa, que, num restaurante com pequeno volume de negócios que deixa entrever a necessidade de acumulação de apropriações durante muitos anos, para ser atingido aquele valor de mais de e 200.000,00. ocorridos em períodos fiscais há mais quatro anos em relação àquele em que se emite a liquidação. E esta tese, ao permitir tributar com tributações autónomas despesas ocorridas em qualquer momento do passado, desde que a contagem se faça dentro do prazo de caducidade, é também incompatível com a proibição da retroactividade das leis fiscais (artigo 103.º, n.º 3, da CRP), pois, em última análise, permite, por essa via, tributar, inclusivamente, despesas realizadas antes da introdução no nosso sistema jurídico das tributações autónomas (há
20, 30 ou mais anos) e aplicar as taxas actuais a despesas que foram realizadas quando as taxas eram menores.
….
Quanto à repressão das práticas irregulares
A tese que fez vencimento é perceptivelmente influenciada por preocupações de protecção da eficácia da Administração Tributária, pretendendo afastar uma interpretação que entende que «confere a sujeitos passivos de IRC incumpridores uma via segura para práticas de ‘caixa aberta’, que esvaziam sem nada documentarem nem contabilizarem, com o previsível resultado» e «para que tais práticas de evasão fiscal sejam bem sucedidas, ficando imunes à aplicação da lei, que as saídas tampouco sejam contabilizadas, assim inviabilizando a aplicação a tais esvaziamentos de caixa do princípio da especialização dos exercícios, caso este fosse entendido como aplicável a mais do que aquilo que está na lei». Não são indicadas as normas jurídicas ou princípios hermenêuticos de que decorra que as normas fiscais devam ser interpretadas de forma a favorecer a Administração Tributária e contra os contribuintes. Antes pelo contrário, o entendimento legislativo sobre a ponderação dos valores conflituantes a nível probatório quando se confrontam a Administração Tributária e dos contribuintes é no sentido de que, na dúvida sobre a realidade factual, se favorecem os contribuintes (artigo 100.º , n.º 1 do CPPT) e não a Administração Tributária. Para além disso, é o legislador que, fixando prazos de caducidade de prescrição para a generalidade dos impostos, demonstra que é preferível, na perspectiva legislativa, prescindir da receita fiscal em favor da segurança jurídica, mesmo nos casos de evasão fiscal, inclusivamente nos casos de factos relacionados com práticas evasivas de omissões de declarações e territórios usualmente conexionados com evasão fiscal (operações com off-shores), como mostram os artigos 45.º, n.º 7, e 48.º, n. 4, da LGT. Nestes casos, os prazos são alargados, mas há prazos, apesar da praticamente certa existência de práticas de evasão fiscal.
Da mesma forma, mesmo em relação aos agentes dos crimes mais graves, fiscais e não fiscais, há prazos de prescrição. É esta a opção do nosso Estado de Direito. Desta perspectiva, o prazo eterno e inesgotável para liquidar tributações autónomas por despesas não documentadas em situações deste tipo, que resulta, na tese que fez vencimento, da transposição do facto tributário para o momento da contagem, independentemente de poderem ter decorrido dezenas de anos sobre o momento da realização das despesas, não é, seguramente, uma opção legislativa no nosso Estado de Direito, em que a lei deve ser interpretada «tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil) e de forma a garantir a coerência valorativa e axiológica, que é corolário daquela unidade. No nosso Estado de Direito, mesmo estes cidadãos que presumivelmente têm estas práticas evasivas e criminosas (muitas vezes com valores gigantescos, como vem sendo cada vez mais do domínio público) têm direito a serem julgados por órgãos independentes e imparciais, que com objectividade e rigor apliquem as leis, respeitando os critérios axiológicos e valorativos definidos legislativamente e não lhes sobrepondo os próprios critérios pessoais dos julgadores sobre o que deve ser a correcta aplicação da justiça e a prossecução do interesse público, mesmo que esses critérios sejam bem intencionados e correspondam ao que os julgadores entendem pessoalmente que devia ser a lei, se fosse a eles próprios e não ao legislador que a lei atribui poder legislativo… (…).
3.2.3- Veja-se, noutro prisma, mas mesma conclusão, o segmento do Acórdão exarado no processo 504/2022T
Com a tributação autónoma em causa visa-se obter a receita, apesar do desconhecimento da identidade de quem obteve o proveito (que, por isso, não a tributará, com toda a probabilidade). O sistema reconhece a confidencialidade do titular, mas não abdica da receita, via tributação do agente pagador, de forma autónoma. Nada disso ocorre na situação dos autos: os titulares são conhecidos; os movimentos contabilísticos são claros – e não existe qualquer movimento de proveito/despesa mas de acerto de saldos.
3.2.4- Na conformidade de tudo o exposto, não se poderá, pois, considerar - com referência aos anos da contagem, sem verificação de efetiva saída de disponibilidades - qualquer facto de relevância fiscal, que imponha tributação.
3.2.4.1 -Repercutindo no caso dos autos, não subsistem dúvidas de que existia uma divergência entre o valor de vários saldos das contas inscritas na contabilidade e realidade, reportados aos anos anteriores a 2015, sendo certo não haver qualquer evidência da verificação de libertação de disponibilidades da empresa nos anos 2016 e 2017.
3.2.4.2 - Relativamente a 2017, ainda que imputadas ao sócio, consubstanciam, também, regularizações de saldos de contas anteriores, pelo que vale o mesmo raciocínio de regularização adiantado para o ano de 2016.
De todo o modo, ainda que se considerasse como verificado um facto tributário em 2017, no caso, constituindo tais imputações e recebimentos pelo sócio, rendimentos de capitais, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do Código do IRS, ficariam sujeitos a tributação no momento em que são colocados à disposição (artigo 7.º, n.º 3, alínea a) -2, do Código do IRS) à taxa liberatória prevista no n.º 1 do artigo 71.º, do mesmo Código, por retenção na fonte a efetuar pela Requerente, de acordo com o disposto no respetivo artigo 101.º, nunca se poderia ter, como legalmente efetuada, a liquidação a título de tributação autónoma.
3.2.5- Assim, as liquidações impugnadas enfermam de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, ao imputar aos exercícios de 2016 e 2017 despesas não documentadas e consequente tributação autónoma…. vício este que justifica a anulação dos atos tributários respetivos, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT e 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT.
3.2.6- Fica, deste modo, prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pelas Partes.
3.3. Juros compensatórios
As liquidações de juros compensatórios têm como pressuposto as respectivas liquidações de IRC e tributações autónomas (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios que afectam estas, justificando-se também a sua anulação, na parte correspondente às liquidações anuladas.
4. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral, em:
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Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral
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Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade do indeferimento da Revisão oficiosa, bem como das liquidações do IRC e juros compensatórios, respeitantes aos anos de 2016 e 2017, anulando-se, consequentemente, os correspondentes atos tributários.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de
Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €77.907,64, valor económico do dissenso e indicado pela Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 19 de setembro de 2023,
Os árbitros,
Jorge Lopes de Sousa – Árbitro-presidente
Fernando Miranda Ferreira – Árbitro vogal e relator
Paulo Lourenço – Árbitro Vogal