Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 647/2022-T
Data da decisão: 2023-08-29  IVA  
Valor do pedido: € 816.838,79
Tema: IVA – Direito à dedução – Pro rata na Locação financeira – Ofício-circulado n.º 30108.
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Sumário:

I - Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a Administração Tributária não pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação;

II – O normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva de harmonização legislativa de 1977, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Diretiva.

III – Termos em que, a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, não tendo o legislador feito uso  da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fração.

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins (Presidente), Nuno Maldonado Sousa  (vogal) e Maria Alexandra Mesquita (vogal) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), para formar o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 03-01-2023, decidem no processo identificado, nos seguintes termos:

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante designada por “Requerente” ou por “A...”, titular do número de identificação fiscal n.º..., com sede Rua  ..., n.º ..., ..., ..., ..., ...-... Lisboa,  requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e nos termos do artigo 10.º, n.º 1 e n.º 2 do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”). O seu pedido tem como objetivo a (a) anulação parcial das autoliquidações periódicas de IVA, “materializadas na declaração periódica de imposto com referência ao mês de dezembro de 2017” de IVA; (b) a restituição à Requerente o valor do IVA pago em excesso nas referidas declarações periódicas de imposto, no montante global de € 816.838,79; (c) o pagamento à Requerente de juros indemnizatórios contados desde a data da entrega da declaração periódica de IVA referente a Dezembro de 2017 até à restituição do imposto pago em excesso com referência a este ano. Subsidiariamente requer o reenvio prejudicial da ação para o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), nos termos da norma do artigo 267.º, alínea b) do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (“TUE”).

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 26-10-2022 e aceite pelo Presidente do CAAD em 28-10-2022 e foi notificado à Requerida em 31-10-2022.

Os árbitros identificados e signatários deste acórdão, manifestaram a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 16-12-2022 as partes foram notificadas da designação dos árbitros para constituir o Tribunal  Arbitral e não manifestaram intenção de os recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 03-01-2023.

A Requerida apresentou resposta (“R-AT”) em 03-02-2023, que concluiu afirmando que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente, por não provado e a AT absolvida do pedido mantendo-se na ordem jurídica os ato tributários impugnados. Foi nessa altura junto pela Requerida e foi devidamente incorporado nos autos, o processo administrativo digitalizado (“PA”), que ficou incorporado nos autos, digitalizado em dois ficheiros no formato pdf com, respetivamente, 200 e 231 páginas[1].

Em 17-05-2023 foi realizada a reunião do Tribunal Arbitral com as partes e foram ouvidas as testemunhas arroladas pela Requerente. Em momento posterior foram apresentadas alegações escritas pela Requerente.

 

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.A. Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

Nestes autos é Requerente a A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, titular do número de identificação de pessoa coletiva n.º...;

O ato cuja revisão é pedida é a autoliquidação de IVA no montante parcial de € 816.838,79, que se consubstanciou através da apresentação da declaração periódica do período de 2017/12, pelo B..., S.A., com o número de identificação fiscal ... (documento n.º 2 junto ao PPA e que consta no PA, vol. II, pp. 165-167).

O requerimento de revisão da autoliquidação referida em B) foi apresentado pela A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, tendo por objeto o ato tributário também citado em B).

A A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL começou a sua atividade em Portugal em 01-01-2020 (PA, vol. II pp. 161-162).

Em suma, constitui objeto da presente petição, o ato tributário de (auto)liquidação de IVA referente ao mês de Dezembro do ano 2017, nos termos do qual, por motivo de erro relativamente ao regime jurídico do direito à dedução do imposto vertido nos recursos de utilização mista adquiridos pela Requerente, esta procedeu à entrega,[2] em excesso, do montante de imposto de  € 816.838,79. 

Ora, na situação objeto do presente Pedido de Pronúncia Arbitral, entendeu a AT ser de indeferir o Pedido de Revisão Oficiosa apresentado pela Requerente com referência ao ato tributário de autoliquidação de IVA do mês de Dezembro de 2017, uma vez que, de acordo com o seu entendimento, não existe qualquer erro na autoliquidação de IVA de Dezembro de 2017. 

Nos presentes autos aduzidos com vista à Pronúncia Arbitral, vem a ora Requerente suscitar a pronúncia sobre a legalidade da autoliquidação de IVA relativa ao ano 2017, nos termos da qual a Requerente procedeu à dedução, segundo critérios provisórios, nas declarações periódicas referentes aos meses de Janeiro a Novembro do mesmo ano, do imposto por si incorrido em recursos de utilização mista, e segundo critérios definitivos, na declaração periódica referente ao mês de Dezembro do mesmo ano (cf. o n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA).

Em concreto, peticiona a ora Requerente a correção da declaração periódica referente ao mês de Dezembro de 2017, no que tange com a dedução de IVA incorrido na aquisição de recursos -  veículos automóveis, doravante citados como veículos - de utilização mista relativos às atividades de leasing e ALD por si desenvolvidas.

Ora, verificou a ora Requerente existir erro na autoliquidação efetuada no ano 2017, em virtude de, com referência aos recursos de utilização mista adquiridos no âmbito das atividades de leasing e ALD por si desenvolvidas, esta não ter procedido à dedução do IVA por si incorrido em conformidade com a legislação nacional e comunitária deste imposto. Em concreto, a Requerente desconsiderou, no cálculo da percentagem de dedução relativa ao ano 2017, os valores relativos às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação  financeira por si celebrados.

Na verdade, a ora Requerente apurou um critério de dedução específico definitivo para o ano 2017, que aplicado ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano (no montante de € 2.409.969,14), se materializou no valor de € 109.727,25 de IVA dedutível.

E, aplicando a percentagem de dedução de 39% ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, no montante de € 2.409.969,14, constata-se que a Requerente tinha o direito à dedução do IVA no valor de € 939.887,97.

Deve, pois, a autoliquidação efetuada com referência ao ano 2017 ser anulada na parte referente ao IVA que, por motivo de erro, não foi deduzido: correspondente a € 816.838,79. Tal montante consubstancia uma prestação tributária entregue em excesso pela Requerente e deve, por isso, ser-lhe restituída, acrescida de juros indemnizatórios desde a data de apresentação da declaração periódica relativa ao mês de Dezembro de 2017, até ao respetivo pagamento à Requerente, dado que, em seu entender, o erro na autoliquidação é imputável à AT, pois derivou da aplicação de instruções (normas regulamentares) e entendimentos por esta emanados.

E, uma vez que, conforme se demonstrará infra, a desconsideração, do cálculo do pro rata, dos montantes relativos às amortizações financeiras no âmbito da atividade de leasing se apresenta em desconformidade com a legislação nacional e comunitária do IVA, conclui-se que, com referência ao ano 2017, a Requerente deduziu imposto a menos do que aquele preceituado pela legislação em apreço.

Consequentemente, em virtude do método do crédito de imposto que rege o sistema comum do imposto a Requerente autoliquidou, com referência ao ano em análise, mais imposto do que aquele que era devido. Tal excesso de pagamento cifrou-se no montante de € 816.838,79.

Ora, perante a perceção de que, na supra referida declaração periódica de IVA, a Requerente havia liquidado e, consequentemente, entregue prestação tributária em excesso, apresentou, ao abrigo do disposto nos artigos 98.º do Código do IVA e 78.º da LGT, Pedido de Revisão Oficiosa da autoliquidação de imposto relativa ao referido período de imposto.

Pelo exposto, a autoliquidação de IVA efetuada pela Requerente, nas declarações periódicas de imposto relativas ao ano 2017, originou uma entrega em excesso de imposto ao Estado, no montante total de € 816.838,79 devendo, em virtude do supra exposto, ser corrigida, conforme de Direito.

Tenha-se ainda presente que a Requerente também peticiona a anulação parcial da “autoliquidação de IVA efectuada pela Requerente nas declarações periódicas de imposto relativas ao ano 2017, materializadas na declaração periódica de imposto com referência ao mês de Dezembro do mesmo ano” e a “Restituir à Requerente o valor do IVA pago em excesso nas supra referidas declarações periódicas de imposto”.

 

 

II.B. POSIÇÃO DA REQUERIDA

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

O presente tema do direito à dedução em sede de IVA, decorrente de atividades mistas, no segmento das locações financeiras de veículos, é matéria que se encontra pacificamente uniformizada pelos Acórdãos do STA 101/19; 84/19; 87/20; 32/20; 63/20 e o 113/20, 74/21.0BALSB, 75/21.9BALSB, 89/21.9BALSB, 118/21.6BALSB, 66/21.0BALSB, 48/20.9BALSB, 38/20.1BALSB, 128/20.0BALSB.

Em resumo, e para o que aqui interessa:
«O artigo 17.o, n.o 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como a do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista,

apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos»

Em bom rigor, aquilo que a Requerente se propõe provar, e que se revela essencial para este processo, nomeadamente se os gastos são sobretudo consumidos pela disponibilização de veículos, é uma absoluta falácia em face daquilo em que sustenta o pedido da presente ação.

Em primeiro lugar, é desde logo a própria Requerente que confessa, no artigo 122.o da p.i., que a sua atividade, inclusive no “caso vertente”, ou seja, no caso da locação financeira, é «tão-só a atividade financeira».

Ou seja, a “disponibilização” do veículo, situada num muito curto período de tempo, assume um caráter meramente instrumental, necessário para que o financiamento se efetive, dado ser o objeto do contrato, mas que não se reveste como a finalidade essencial do contrato de locação – que mais não é que uma modalidade de concessão de crédito, por via do leasing automóvel.

Ademais, o que pretende a Requerente é calcular a proporção do direito à dedução em sede de IVA por recurso ao método pro-rata, tal como previsto no artigo 23.o, n.o 4 do CIVA:

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.o e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma

actividade económica prevista na alínea a) do n.o 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

No caso concreto, e com base no aludido artigo, pretende a Requerente considerar a parcela da capital – que compõe, a par do juro e do IVA, a renda da locação financeira – na fração do numerador.

Note-se, desde logo, tal como confessado pela Requerente nos artigos 46.º e 47.º da p.i., que «relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa [...] no âmbito da aquisição de bens objecto dos contratos de locação financeira - v.g. a aquisição de uma viatura para subsequente locação financeira -, relativamente aos quais foi deduzido, na íntegra, o IVA suportado, em virtude de tais bens estarem directamente ligados a operações tributadas, realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira -, que conferem o direito à dedução.»

Isto é, a parcela do capital (e o IVA que lhe está associado), no âmbito da renda mensal por contrapartida da locação financeira, está intimamente ligada com o IVA suportado no preço de compra inicial do veículo, objeto do contrato de locação, e que é inicialmente deduzido através de uma imputação direta.

A consideração da parcela da amortização financeira na fração do numerador ao longo da vida útil do contrato de locação configurará uma dupla dedução de IVA concernente à mesma realidade – a compra do veículo e o posterior reembolso parcelar pelo locatário ao locador, através das rendas mensais.

A consideração, inaceitável, daquela parcela, a ser aceite pelo Tribunal arbitral, resultará numa percentagem de dedução de 39%, em vez dos 4,5%1 apurados pela aplicação do Ofício-Circulado n.º 30108, ponto 9.

O problema é que esta discussão é exclusivamente de direito e a apreciação e ponderação jurídica sobre se a parcela do capital deve ou não concorrer na fração do numerador em nada se relaciona com o facto de apurar se os custos gerais, indiferenciados, do Banco são mais consumidos nos atos de financiamento e de gestão de contratos de locação financeira, se nos atos de disponibilização de veículos.

Isso porque a parcela do capital, que é reembolsada parcelarmente pelos locatários ao Banco:

1) não representa o trabalho – e os consumos indiferenciados decorrentes desse trabalho - da Requerente, no âmbito da locação financeira;

2) nem tem previsto na sua composição qualquer montante cujo propósito seja o de reembolsar o Banco dos custos indiferenciados cuja percentagem de IVA aqui reclama; 

Por este motivo, é errado que a Requerente parta para este processo alcandorada a uma percentagem de 39% - cujo cálculo obteve pela aplicação integral do artigo 23.o, n.º 4 do CIVA, isto é, obteve através da aplicação de norma jurídica -, mas que a justifique através da produção de prova no sentido de tentar, sem sucesso, qualificar a intensidade do trabalho e a complexidade da locação financeira.

Salvo o devido respeito, isso faria lógica somente no caso de a Requerente ter conseguido calcular a percentagem do direito à dedução por recurso ao método de afetação real, melhor dizendo, por recurso a um critério que permitisse compreender o peso dos consumos decorrentes da área de negócio da locação financeira na estrutura global de custos de todas as áreas de negócio da Requerente.

A Requerente até tem ao seu dispor um critério, que não aplica, mas que elucidaria melhor – seria mais aproximado da realidade e respeitador do princípio da neutralidade – que é o do peso da actividade de leasing na actividade de financiamento total do Banco.

Conforme relatório de contas de 2017, o peso da locação financeira situou-se em 4%, conforme documento n.o 2 que se junta, muito próximo da percentagem de dedução resultante da aplicação do ponto 9 do ofício circulado n.o 310308, e distante dos 39% reclamados pela Requerente na presente ação.

Nos termos do artigo 50.o da p.i., a Requerente confessa que não é viável recorrer ao método de afetação real, pela impossibilidade de encontrar critérios objetivos, rigorosos e precisos, que permitam o cálculo rigoroso dos consumos afetos à atividade de locação financeira.

Por esse motivo, recorreu ao método do pro-rata – método residual – para esse efeito, ainda que tal resulte, porque resulta, numa inflação artificiosa do direito de % à dedução do IVA, dado que considera na fração do numerador a parcela da amortização financeira que serve exclusivamente para reembolsar – e não remunerar – o capital que a instituição bancária desembolsou na compra do veículo, objeto do contrato de locação financeira.

A produção de prova testemunhal só teria cabimento se a Requerente se propusesse comprovar um critério de afetação real para calcular o direito à dedução que resultasse numa diminuta distorção da tributação.

O que não faz, pois, tal como confessa no artigo 50.º da p.i., não consegue achar um critério para esse efeito. Acontece que em causa está a aplicação de dois métodos forfetários concorrentes – o método pro-rata versus ofício-circulado (pro-rata mitigado) – os quais não contemplam qualquer tipo de prova, porquanto resultam antes de um método automático, criado pelo legislador (ou, no caso, imposto pela Administração Tributária) precisamente e também pela dificuldade de produção de prova inerente aos gastos que são consumidos tanto por atividades de crédito sujeitas como isentas de IVA.

Ou seja, concluindo como no início, a presente discussão é eminentemente jurídica, cabendo à Requerente, se assim quisesse e o entendesse, conjeturar um critério de afetação real que demonstrasse o real consumo dos gastos gerais pela locação financeira (e, dentro desta, os reais consumos dos atos de disponibilização de veículo).

O que não pode a Requerente nem esse Tribunal aceitar é o afastamento da aplicação de um método de imputação específica (ínsito no ofício-circulado) - e que configura um método forfetário – em benefício de um outro método forfetário – o pro-rata, nos termos do artigo 23.º, n.º 4 CIVA - e tentar justifica-lo por recurso a produção de prova, ficcionando para o efeito que o método que pretende aplicar é um método de afetação real e que o critério utilizado foi antes o das horas despendidas pelos trabalhadores afetos ao leasing nas diferentes tarefas da locação financeira (e não, como aconteceu na realidade, em que a Requerente obteve 39% de direito à dedução, que resultou da consideração da parcela do capital na fração do numerador).

Concluindo, os 39% que a Requerente reclama em termos de dedução de IVA e que obteve por aplicação do pro-rata (23.º, n.º 4 CIVA) não assumem – não podem assumir - o significado de que os atos de disponibilização de veículo da locação financeira consomem especificamente 39% dos custos gerais, indiferenciados, que o Banco suporta em todas as suas atividades: sujeitas e isentas.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. Fundamentação

IV.1.          MATÉRIA DE FACTO

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

A Requerente é uma sociedade comercial com sede em território nacional, configurando uma instituição de crédito, abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.o 298/92, de 31 de Dezembro.

Para efeitos de IVA, configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.

Caracteriza-se por ser um sujeito passivo "misto", uma vez que exerce actividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da actividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA, procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.

A ora Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IVA do último período do ano de 2017, na medida em que, por força da aplicação dos critérios estabelecidos no Oficio-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, não considerou no cálculo da percentagem de dedução definitiva prevista no artigo 23.º do CIVA o valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira (leasing e ALD).

A Requerente apurou uma percentagem de dedução inferior àquela que segundo o seu entendimento seria a correcta face às disposições legais em vigor, e que de acordo com os seus cálculos ascende a 39% (em vez do que originariamente apurou, 4,5%), o que, em sua perspectiva, se consubstanciou na entrega de prestação tributária (IVA) em excesso.

Deste modo, a Requerente solicita que o acto tributário de autoliquidação daí decorrente seja anulado na parte referente ao IVA que resulta da divergência de aplicação daquelas percentagens aos bens e serviços com utilização mista,

Bem como requer a restituição da importância acima mencionada, bem como os juros indemnizatórios respetivos, que considera serem devidos desde a data da apresentação da declaração periódica relativa ao período de dezembro de 2017 até à restituição do imposto pago em excesso, com base no pressuposto de que a responsabilidade do alegado erro na autoliquidação é imputável à AT, por decorrer da aplicação de instruções administrativas emanadas por esta e que a Reclamante considera ilegais.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[3], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

  1. Matéria de Direito

 

V.1. QUESTÃO PRÉVIA

 

Nos presentes autos cabe analisar a alteração, por parte da Requerente, do método de dedução na atividade de gestão da carteira própria de títulos.

 

A Requerente afirma que, no ano de 2017, procedeu à dedução de imposto incorrido de acordo com o disposto no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009. Assim, a Requerente adotou o coeficiente de imputação específico como método de dedução do imposto incorrido nos recursos de utilização mista, o que se traduziu na aplicação dum coeficiente de imputação específico de 3%.

 

No entanto, a Requerente considerou que esse método não se afigurava adequado para o apuramento da percentagem de dedução do IVA incorrido nos recursos que são utilizados pela atividade de gestão da carteira própria de títulos, dado que o mesmo não permite demonstrar a real utilização dos referidos recursos em cada uma das tipologias de operações desenvolvidas.

 

Essa atividade limita-se a consumir um conjunto muito limitado e bem definido de recursos ao nível dos serviços centrais, o que torna justificável a adoção do método da afetação real para os recursos afetos a essa área e, consequentemente, implica a revisão do cálculo do coeficiente de imputação específico.

 

Assim, a base tributável relativa à gestão da carteira própria de títulos deve ser desconsiderada do cálculo do coeficiente de imputação específico que havia apurado (3%), tendo a Requerente pretendido efetuar uma revisão do respetivo cálculo, que resultou numa percentagem de 4,5%.

 

Em consequência, a Requerente pretende recuperar adicionalmente o montante de imposto não deduzido ao longo do ano de 2017, e considera que tem o direito a regularizar o imposto em causa no prazo geral e supletivo de 4 anos, previsto no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, porque devido a erro de direito não procedeu ab initio à dedução do montante de IVA exigido pelo princípio da neutralidade.

 

Conforme ficou provado nos presentes autos, a Requerida entende que o procedimento adotado pela Requerente, relativamente à aplicação do método de afetação real integral na atividade de gestão da carteira própria de títulos, não fere o quadro jurídico em vigor, assente no disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA e no Oficio-Circulado n.º 30108. Nestes termos, a Requerida considera legalmente admissível que a Requerente tenha encontrado um critério objetivo para efeitos de dedução do IVA afeto à atividade de gestão da carteira própria de títulos. Sucede, porém, que para a Requerida verifica-se a inexistência de um erro na autoliquidação e, em consequência, a regularização do imposto decorrente da alteração retroativa do método de dedução só poder ser realizada nos termos do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, ou seja, até à declaração do último período de tributação do ano a que respeita.

 

Ora, tendo já sido ultrapassado esse prazo, a Requerida considera que deve improceder a regularização do correspondente imposto pretendida pelo Requerente.

 

Vejamos quem tem razão.

 

Cumpre referir, que a Requerente e a Requerida, pelo posicionamento constante dos autos e do procedimento administrativo, estão de acordo, que o procedimento, pretendido pela Requerente de aplicação do método de afetação real na atividade de gestão da carteira própria de títulos não suscita problemas de legalidade.

 

A concreta questão que se coloca agora nos autos prende-se com a posição da Requerida no sentido de que não está em causa um erro da Requerente, mas antes uma opção de alteração retroativa dos critérios de dedução relativos a bens de utilização mista. Daí resulta, segundo a Requerida, a improcedência da pretensão de regularização do correspondente imposto, que só pode ser realizada exclusivamente através do mecanismo previsto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, ou seja, na última declaração do período a que respeita.

 

Em face da questão, torna-se necessário começar por analisar a tipologia de erros em que pode incorrer o sujeito passivo.

 

Os erros materiais, de acordo com Afonso Arnaldo e Tiago Albuquerque Dias, são:

 “(…) os erros a que se refere o número 6 do artigo 78.º do Código do IVA se reconduzem às situações em que o sujeito passivo se equivoca na materialização do ato de dedução ou liquidação, nomeadamente, por lapso na transcrição de valores ou por razões aritméticas, i.e., em ambas as situações erros menores e evidentes".

 

Deste modo,

"estarão abrangidos por estes conceitos de erro (tipicamente) as situações em que o sujeito passivo se engana a efetuar uma operação aritmética, nomeadamente, quando pretende apurar o imposto dedutível contido numa fatura (com IVA incluído) de serviços de um fornecedor (erro de cálculo), ou, ainda que efetuando corretamente o cálculo, comete lapso na inscrição do montante do imposto a deduzir na declaração periódica (erro material)” – Cf., “Afinal qual o prazo para deduzir IVA? Regras de Caducidade e (In)segurança Jurídica”, in Cadernos IVA 2014, Sérgio Vasques (coord.), Coimbra, Almedina, 2014, p. 44 e ss.

 

Sobre o erro material o acórdão arbitral proferido no processo n.º 153/2018-T, do CAAD, afirma:

“(…) o erro material ou de cálculo é rectificável nos termos do art.º 78.º/6 do CIVA aplicável, que dispõe que: “A correção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efetuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respetivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.”. 

 

A propósito da contagem deste prazo de 2 anos, a AT considerou já, no Ofício-Circulado n.º 30.082, de 17 de Novembro de 2005, que:

 “A regularização deste tipo de erros é facultativa se for a favor do sujeito passivo e só pode ser efectuada no prazo de dois anos [...]. Para os erros verificados no preenchimento das declarações periódicas, a contagem do novo prazo far-se-á a partir da data da sua apresentação ou da data em que o prazo legal de apresentação termine, nos casos em que este não tenha sido observado” (sublinhado nosso), entendimento do qual não se vê fundamento para divergir.”

 

O artigo 95.º-A, n.º 2, do CPPT contém um conceito de “erros materiais ou manifestos” indicando que nele se integram, “designadamente os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso”.

 

A AT, através do Ofício-Circulado n.º 30082, de 17-11-2005, da Direção de Serviços do IVA, procedeu à definição do que entende por erros materiais ou de cálculo, considerando que são:

 “aqueles que resultam de erros internos da empresa e não têm qualquer interferência na esfera de terceiros. Normalmente consistem em erros na transcrição das faturas para os registos ou dos registos para a declaração periódica, não compreendendo” as seguintes situações: “alteração do método de dedução do imposto nos sujeitos passivos mistos; apuramento de pro rata e regularizações de IVA sobre imóveis e outros bens do ativo imobilizado ou relativas à afetação de imóveis a fins distintos daqueles a que se destinam.”

 

O legislador, através de diversas normas, associa o erro de cálculo, designadamente erros aritméticos nas operações de cálculo do montante a deduzir, ao erro material.

 

Já o erro de direito verifica-se nas “situações em que, não obstante a correta representação da realidade factual, o sujeito passivo se equivoca na determinação da norma aplicável”, ou seja, em que existe um erro de enquadramento legal, por o sujeito passivo ter feito uma incorreta interpretação da situação fática ou uma errada aplicação do direito e, consequentemente, líquida ou deduz imposto a mais ou a menos.

 

No âmbito, da questão em discussão, torna-se útil mencionar o conteúdo das seguintes normas do Código do IVA.

 

O artigo 23.º, tem por epígrafe “Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista”, no n.º 6, dispõe o seguinte:

“A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1, calculada provisoriamente com base no montante das operações realizadas no ano anterior, assim como a dedução efectuada nos termos do n.º 2, calculada provisoriamente com base nos critérios objectivos inicialmente utilizados para aplicação do método da afectação real, são corrigidas de acordo com os valores definitivos referentes ao ano a que se reportam, originando a correspondente regularização das deduções efectuadas, a qual deve constar da declaração do último período do ano a que respeita.” (sublinhado nosso).

 

O artigo 98.º, n.º 2, com a epígrafe “Revisão oficiosa e prazo do exercício do direito à dedução”, tem o seguinte teor:

“Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respetivamente.” (sublinhado nosso)

 

De acordo com o artigo 22.º, n.º 2, do Código do IVA, a regra é a de que, ressalvadas as exceções especialmente previstas na lei, a dedução do IVA tem de ser feita na declaração periódica correspondente ao período em que o IVA a deduzir foi suportado, e não, livremente, em qualquer outra declaração periódica subsequente, já que tal é a forma de assegurar que o IVA é deduzido no mesmo período em que é suportado.

 

O caso previsto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA integra uma dessas exceções e permite aos sujeitos passivos, na declaração periódica do último período do ano a que respeitem, corrigir a sua dedução provisória, em função dos valores apurados no final do ano.

 

Coisa distinta – e não incompatível – com tal norma é o prazo do exercício do direito à dedução, que corresponde ao período de tempo durante o qual é permitido ao sujeito passivo fazer valer o direito à dedução que lhe caiba, em determinado período. Assim, o n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA estabelece um limite máximo de quatro anos quanto ao exercício daquele direito.

 

Não existindo qualquer limite temporal especial para exercício do direito à dedução com fundamento em erro de direito, será aplicável o regime geral sobre esta matéria que consta do artigo 98.º, n.º 2, do Código do IVA que, fixa um limite máximo de quatro anos.

 

Atualmente, afigura-se pacífico na jurisprudência fiscal que o prazo para o exercício do direito à regularização do IVA, em situações em que os sujeitos passivos hajam incorrido em erro no regime do direito aplicável à dedução do imposto incorrido na aquisição de recursos utilizados no âmbito da sua atividade, é o prazo geral e supletivo de 4 anos, estabelecido no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.

 

A este respeito o Acórdão do STA, de 28-06-2017, proferido no processo n.º 01427/14 é muito claro ao afirmar:

“O artigo 23.º do CIVA estabelece os «métodos de dedução relativa a bens de utilização mista», quando o sujeito passivo de IVA efetuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito a dedução. De acordo com o método de afetação real o sujeito passivo efetua a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados (artigo 23.º n.º 1 al. a) e nº 2). De acordo com o método de percentagem de dedução (pro rata) o sujeito passivo efetua a dedução na percentagem correspondente ao montante anual das operações que deem lugar a dedução (artigo 23.º n.º al. b) e n.º 2). Nos termos do n.º 4, do referido artigo 23.º, a percentagem de dedução resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução e no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma atividade económica. A especificidade do método de percentagem de dedução, prevista no n.º 1 alínea b), resulta do facto de o direito à dedução ser proporcional ao valor das operações tributáveis e isentas com direito à dedução sobre o total do volume de negócios. A aplicação dos métodos de dedução relativos a bens de utilização mista é juridicamente complexa pelo que o erro decorrente da aplicação deste regime jurídico não constituí nem erro material nem erro de cálculo.” 

 

Sobre esta questão, o Tribunal subscreve a posição expressa no acórdão arbitral proferido no processo n.º 646/2018-T, do CAAD, ao afirmar:

“(…) o Requerente não pretende alterar, retroactivamente, as opções que tomou relativamente aos métodos de apuramento do montante a deduzir correspondente à utilização de recursos mistos. O que está em causa, isso sim, é a verificação da correcta aplicação do método escolhido, ou seja, se daquele, aplicado nos termos legais, resulta o montante apurado em determinada (auto)liquidação, ou outro. Ressalvado o respeito devido, não será de ter por aceitável o entendimento de que, uma vez que o sujeito passivo pode optar por deduzir menos imposto do que aquele que resulta da aplicação dos critérios legais, sempre que tal ocorrer inexiste erro. Efectivamente, fosse assim, e nunca, em situação alguma, haveria erro em qualquer liquidação por ter sido deduzido imposto em montante inferior ao devido, já que o raciocínio em questão seria sempre válido em relação a qualquer tipo de dedução, dado que o sujeito passivo pode sempre optar por deduzir menos imposto do que aquele que, legalmente, lhe for possível, sem que daí advenham quaisquer consequências. Daí que, naturalmente, não seja de reconhecer, nesta matéria, razão à AT, considerando como o TCA-Sul, no seu acórdão 28-09-2017, proferido no processo 263/16.0BELLE, que: “1) Vigora no ordenamento jurídico português o dever de a Administração proceder à revisão dos actos tributários, no prazo de quatro anos a contar da data da exigibilidade do imposto, sempre que detecte uma situação de cobrança ilegal de tributos, seja por excesso, seja por defeito. 2) Existe erro de direito, fundamento do pedido de revisão do acto tributário, se na autoliquidação do imposto foi deduzido menos imposto do que o devido, por incorrecta aplicação do pro rata. Assim, estando em causa erros de direito, e não uma alteração retroativa dos critérios de dedução relativos aos bens e serviços de utilização mista, nenhum obstáculo se verifica à aferição e correcção de tais erros.”

 

No caso sub judice é convicção deste Tribunal que a opção da Requerente relativamente ao método de dedução na atividade de gestão da carteira própria de títulos expressa na autoliquidação constituiu um erro de direito. Assim, a Requerente tem o direito a regularizar o imposto em causa no prazo de 4 anos estabelecido no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA. Pelo exposto, o pedido arbitral é procedente neste ponto.

 

V.2. APRECIAÇÃO DA QUESTÃO DE FUNDO

 

V.2.A. ENQUADRAMENTO

 

A Requerente desenvolve atividade económica, tal como definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, que é tributada (nomeadamente, de locação financeira, enquadrável no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA), bem como atividade económica isenta (designadamente, concessão de crédito, nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA).

Em regra, o IVA que for suportado pelo sujeito passivo na aquisição dos meios utilizados exclusivamente na sua atividade económica tributada é totalmente dedutível e o IVA suportado na aquisição de meios utilizados apenas na atividade isenta ou não prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, não pode ser deduzido [artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA e artigo 168.º da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006].

No caso em apreço, está em causa a dedução de IVA relativamente a meios utilizados indiferentemente tanto na atividade tributada (como é a locação financeira), como na atividade económica isenta da Requerente (como sucede com a concessão de crédito).

Relativamente aos meios de utilização mista, utilizados indiferentemente «para efetuar tanto operações com direito à dedução (...) como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações» (artigo 173.º n.º 1, da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006).

Tratando-se de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º «o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução», nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do CIVA.

Esta percentagem de imposto dedutível, ou «pro rata de dedução», resulta, em regra, de uma fração que inclui no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução e no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução (artigos 174.º da Diretiva n.º 2006/112/CE e 23.º, n.º 4, do CIVA).

pro rata de dedução é determinado anualmente, sendo fixado em percentagem e arredondado para a unidade imediatamente superior, e é aplicável provisoriamente, a determinado ano, calculado com base nas operações do ano anterior ou estimado provisoriamente, pelo sujeito passivo, de acordo com as suas previsões, sob controlo da administração (artigo 175.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva n.º 2006/112/CE e n.ºs 6, 7 e 8, do artigo 23.º do CIVA).

Mas, o sujeito passivo pode optar por «efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação» (n.º 2 do artigo 23.º do CIVA).[4]

A utilização deste método de afetação real, em princípio opcional, passará a ser obrigatória se a Administração Fiscal o determinar, o que poderá fazer, nomeadamente, «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação» [alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º]. A Administração Fiscal poderá também impor «condições especiais».

Através do referido Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, a Administração Fiscal, entendeu que relativamente às «instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD», «o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”», pelo que fez utilização da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, determinando que estes sujeitos passivos utilizem a «afetação real» (ponto 8).

Segundo os pontos 8 e 9, a «afetação real» deverá fazer-se de suas formas:

– se for possível, faz-se «a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades» (ponto 8 daquele Ofício Circulado);

– se não for «possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALDs» (ponto 9 daquele Ofício Circulado); neste caso, fica afastada a aplicação da percentagem que resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º.

 

No caso em apreço há controvérsia sobre dois pontos essenciais:

 

- Saber se o artigo 23.º, n.º 2 do CIVA, ao permitir que a Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada na Diretiva do IVA – art. 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, al. c) da Sexta Diretiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços.»

 

- Saber se os custos os em que incorre a Requerente com os contratos de locação financeira são sobretudo determinados pelos inputs decorrentes dos atos de financiamento e gestão dos ditos contratos.

  

V.2.B. A JURISPRUDÊNCIA DO TJUE E DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

 

O TJUE pronunciou-se sobre uma situação deste tipo, atinente a instituição bancária que, tal como no caso concreto, desenvolve atividades de locação financeira que conferem direito à dedução e outras atividades financeiras que não conferem tal direito.

As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º)[5].

Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Diretiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que «os Estados-membros podem» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

No acórdão proferido em 10-07-2014, no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, o TJUE entendeu que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 «não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que «os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros».

Posteriormente, no acórdão de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17 (Volkswagen Financial Services (UK) Ltd), o TJUE, corrigindo a interpretação que entendeu que se podia fazer do decidido no acórdão Banco Mais, esclareceu que «não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C-183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega».

Como se refere neste acórdão, pode impor-se

– «um método ou um critério de repartição diferente do método do volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução do IVA pago a montante mais precisa do que a resultante da aplicação do método do volume de negócios» (n.º 51);

– «qualquer Estado-Membro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução» (n.º 52);

– «os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios».

 

O método de cálculo do pro rata indicado pela Administração Tributária no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 não tem em conta o valor do veículo, pelo que contraria manifestamente o decidido pelo TJUE, neste acórdão do processo C-153/17, sendo consequentemente ilegal, por violação do Direito da União.

Por outro lado, como se refere no mesmo acórdão, este entendimento é aplicável «mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis (...) não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação» (n.º 59), como sucede no caso em apreço.

Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar  de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a atividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.

Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fração, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fração (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).

De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

Como resulta desta parte final, na perspetiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.

No entanto, o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que só se pode concluir pela ilegalidade com um apuramento casuístico da utilização real dos bens e serviços de uso misto, isto é, quando «sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos»[6].

É, essencialmente, esta jurisprudência que o Supremo Tribunal Administrativo terá tendencialmente estabilizado com o acórdão uniformizador n.º 3/21, de 24-03-2021, proferido no processo n.º 87/20.0BALSB, publicado Diário da República, I Série, de 18-11-2021.

Formulando um juízo de facto, no caso em apreço, resulta claramente da prova produzida que há uma afetação real e significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, considerando como afetas à disponibilização dos veículos a generalidade das tarefas que apenas ocorrem na prestação de serviços de locação financeira, designadamente:

– como controle da legalização dos veículos e sanação de eventuais irregularidades;

– pagamento ao fornecedor e disponibilização do veículo ao cliente;

– proceder a registos e suas alterações; controle periódico da existência de seguros de veículos;

– proceder a contactos com concessionárias das autoestradas, relativos a clientes que não pagam as portagens;

– proceder a contactos com as entidades policiais; obter  assessoria jurídica e fazer contactos com escritórios de advogados por causa de infrações estradais praticadas pelos clientes;

– assegurar o pagamento do Imposto Único de Circulação, que é feito pela Requerente e debitado ao cliente;

– contactos com seguradoras, quando ocorrem acidentes; obter serviços de tradução, quando necessários, relativos a acidentes no estrangeiro;

– nos casos de incumprimento, procurar  recuperar o veículo, por vezes requerendo providências cautelares;

– proceder à venda do veículo quando o cliente não opta pela compra;

 

Todas estas atividades ocorrem apenas nos contratos de locação financeira de veículos, porque o veículo é propriedade da Requerente e é disponibilizado ao cliente durante o período de duração do contrato, pelo que são atividades geradas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento ou gestão dos contratos.

Trata-se de atividades que não ocorrem quando não há disponibilização dos veículos, mas apenas financiamento, como sucede nos contratos de mera concessão de crédito para a aquisição de veículos, em que os clientes adquirem os veículos para si próprios. 

Assim, atividades relacionadas com a gestão dos contratos de locação financeira serão (como sucede com os contratos de concessão de crédito) apenas as que se reportam aos próprios contratos, como são a maior parte daquelas para que estão previstas comissões comuns para os contratos de leasing e crédito automóvel, designadamente o reembolso antecipado parcial ou total, o processamento mensal das rendas ou prestações, a recuperação de valores em dívida e alterações contratuais, além de algumas exclusivas dos contratos de locação financeira, como são a transmissão da posição jurídica do locatário e alteração de registos.

Como resultou da prova produzida, as comissões apenas incluem os custos diretamente quantificáveis, mas não as despesas gerais conexionadas com as atividades para que estas estão previstas (como são as despesas de eletricidade, água, limpeza, despesas com informática, gastos de conservação dos edifícios, mobiliário e maquinaria neles existentes, etc.). 

Não se apurou a dimensão exata de recursos de utilização mista não considerados no valor das comissões que são utilizados em cada uma das atividades referidas, nem há qualquer fundamento para concluir que sejam proporcionais ao número de pessoas que intervêm em cada uma das fases, designadamente porque, além dos colaboradores afetos em permanência à atividade de leasing, há intervenções nessa atividade dos seus colaboradores em cada um dos seus 306 balcões em que é feito o atendimento direto dos clientes.

De qualquer modo, apurou-se que, além da atividade anterior à entrega dos veículos, destinada à sua disponibilização aos clientes, é significativa a atividade posterior à entrega dos veículos que é provocada pela sua disponibilização, atividade que não ocorre nos contratos de mero financiamento (crédito automóvel) em não é feita disponibilização dos veículos pela Requerente aos seus clientes.

Assim, na linha do ponto 57 do acórdão do TJUE proferido no processo  C-153/17, é de concluir que o método imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que não tem em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não se pode considerar que reflita objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.

Por conseguinte, este método não é suscetível, neste caso concreto em apreço, de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exata, que as atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, foram de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos. Como disse a testemunha C…, referindo-se às atividades próprias dos contratos de locação financeira que não existem nos contratos de concessão de crédito, «o que vem a seguir à utilização do dinheiro é que dá trabalho».

Isto é, utilizando a terminologia do ponto 33 do acórdão do TJUE C-183/13 Banco Mais, é convicção  do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e «não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes».

De qualquer forma, pelo que se disse, fica-se, pelo menos perante uma situação de «fundada dúvida», que deve ser processualmente valorada a favor da Requerente e não contra ela, por força do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, que é uma regra especial para situações em que esse tipo de dúvida subsiste, em processos jurisdicionais.

Por isso, a autoliquidação e a decisão sobre a revisão oficiosa, que têm como pressuposto de facto que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, ser sobretudo determinada pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes e não pelas atividades conexas com a disponibilização dos veículos, enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto.

Essas autoliquidação e decisão da revisão oficiosa enfermam ainda por erro sobre os pressupostos de direito, ao terem subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como foi, de forma genérica, sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.

            

V.2.C. INCONSTITUCIONALIDADE DA PREVISÃO DE UM MÉTODO DE DEDUÇÃO NÃO PREVISTO EM DIPLOMA DE NATUREZA LEGISLATIVA

 

Embora o artigo 173.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português, além do mais, «obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.

Na verdade, entre os métodos para efetuar a dedução prevista no CIVA, não se inclui o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, mas sim, quanto a métodos que utilizam uma percentagem de dedução, apenas o indicado no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA e que o que foi permitido ao Estado Português pela Diretiva, por via legislativa, não era permitido à Direcção-Geral dos Impostos, através de Ofício-Circular.

Esta questão de saber se, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa (CRP) - atinentes ao princípio da legalidade tributária -, é permitida a criação normas inovatórias sobre métodos de efetuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável), por via de Ofício-Circulado emitido pela Direcção-Geral de Impostos, como se prevê no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é uma questão distinta da de saber se o Estado Portuguêspor via legislativa, podia criar tais métodos, à face do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva n.º 2006/112/CE.

Esta questão da compatibilidade com a CRP do referido artigo 23.º, n.º 2, do CIVA e do Ofício-Circulado, que se vem citando, não é apenas uma questão de interpretação do Direito da União, mas sim, desde logo, uma questão de Direito Nacional, uma questão de inconstitucionalidade de normas e não da correção ou incorreção da sua aplicação.

As regras sobre o direito à dedução de IVA, de que resulta o montante do imposto suportado pelo sujeito passivo, são regras de incidência objetiva. Na verdade, são normas de incidência, em sentido lato, as que «definem o plano de incidência, ou seja, o complexo de pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação».

Neste sentido, tanto são normas de incidência as que determinam o sujeito ativo e passivos da obrigação tributária, como as que indicam qual a matéria coletável, a taxa e os benefícios fiscais.

Assim, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, recusa-se a aplicação do  artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009,  segundo a qual, a Administração Tributária  poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta para os sujeitos passivos,  terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.

Consequentemente, o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.

Assim, é nosso entendimento que uma interpretação segundo a qual os n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA permitem à AT através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstrato, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fração a parte da renda correspondente à amortização), é material e formalmente inconstitucional por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (artigo 103.º, n.º 2, da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP).

Não tendo tal solução sido prevista legislativamente, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicá-la, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, pelo que uma interpretação segundo a qual o n.º 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA lhe confere, à AT, tal possibilidade, também é violadora do princípio da legalidade da atuação da AT (artigos 266.º, n.º 2, da CRP).

Termos em que se conclui que o IVA a liquidar deve incidir sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; sendo igualmente claro que o numerador da fração que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respetivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras.

 

 

 

 

 

V.2.D.  ILEGALIDADE DA IMPOSIÇÃO ATRAVÉS DE NORMA ADMINISTRATIVA DE UM MÉTODO DE EXECUÇÃO DO DIREITO À DEDUÇÃO NÃO PREVISTO LEGISLATIVAMENTE

 

Como é sabido, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da AT de natureza geral e abstrata, publicitadas circunscreve-se à esfera administrativa, resultando apenas e da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da AT, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, não vinculando os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os tribunais.

Neste contexto importa relembrar que, como nos ensina Saldanha Sanches: “Estas orientações administrativas, sob a forma de circulares ou sob outras formas, são uma interpretação da lei fiscal e um instrumento unificador das decisões (…) da administração.

(…).

Com a estrutura formal duma norma jurídica – uma vez que não são a aplicação do Direito a um caso concreto, mas têm antes um carácter geral e abstrato -, as circulares valem o que valer a interpretação que fazem da lei. Como se afirmou sem ambiguidades num acórdão do STA que analisa uma determinada orientação administrativa, “o valor da doutrina dessa circular será apenas o da sua valia intrínseca. Contém uma doutrina que será boa ou má, válida ou inválida, como qualquer outra doutrina”. Estar contida numa decisão administrativa não amplia nem reduz a sua força convincente, nem cria uma presunção de legalidade ou ilegalidade.” [7]

Assim, como bem notam os Professores Doutores Guilherme Xavier de Basto e António Martins analisando o designado Caso Banco Mais julgado pelo TJUE[8], “O Acórdão parece fundamentar a sua decisão final – no sentido de que o direito comunitário não se opõe a que um Estado membro obrigue um banco que exerce, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, que corresponde aos juros (com exclusão, portanto, daquela outra parte que corresponde a “amortização financeira”) – no que é hoje o artigo 173º, nº 2 alínea c) da diretiva (citando o artigo 17º, nº 5, terceiro parágrafo, alínea c) da 6ª diretiva, aplicável aos factos tributários controvertidos no processo).

Ora, nessa disposição, atrás transcrita, do que se trata é de autorizar os Estados a, afastando-se da regra mais geral da percentagem de dedução, efetuar a dedução “com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”. O método dito da afetação real é uma alternativa ao método da percentagem de dedução ou do pro rata, mas não consiste em alteração do algoritmo de cálculo dessa percentagem, o qual está estabelecido no artigo 174º da daquela diretiva e envolve a construção de uma fração em que no numerador se inclui “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução” (alínea a) do nº 1) e no denominador “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução” (alínea b) do mesmo nº).

 

Deve, porém, analisar-se se essa faculdade que o TJUE admite que os Estados membros exerçam, foi efetivamente tomada pelo legislador português. A resposta, a nosso ver, é negativa e a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no nº 4 do artigo 23º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é obviamente um ofício-circulado, que não é mais que um regulamento interno que apenas obriga os serviços, mas não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”

Neste contexto, salientam que, “As distorções de tributação que o legislador nacional previu que poderiam existir na modulação do direito à dedução são, na nossa lei, resolvidas através da imposição ao sujeito passivo do método da afetação real (nº 3, alínea b) do artigo 23º, ou, quando elas resultam de o sujeito passivo ter optado por esse método, da imposição de o abandonar (parte final do nº 2 do mesmo artigo). Também é certo que a lei consente que, no caso de opção pelo método da afetação real, a administração possa impor ao sujeito passivo “condições especiais”, que a lei não define, mas que não consistem em alteração do pro rata de dedução.”

Igualmente neste sentido, José Maria Montenegro[9] conclui, adequadamente em nosso entendimento, que o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da fração do pro rata de dedução, pelo que o que é permitido pelo artigo 23.º, n.º 3, do CIVA, não estando em causa uma alteração ao modo como o sujeito passivo apurou o seu pro rata, tratando-se sim, nos termos legais, de uma alteração do método de dedução. Assim, como nota o autor, no Caso Banco Mais, o direito nacional não terá sido analisado com o rigor e a profundidade desejável, sendo que a pertinência da resposta do Tribunal dependia de ser verdadeiro o pressuposto de que a lei portuguesa concede poderes à AT, através de uma decisão administrativa, de alterar a composição do pro rata de dedução. Ora, não dando a nossa lei esses poderes, as respostas do Tribunal não contribuem para legitimar a interpretação que a AT tem vindo a querer impor.

Note-se que no Caso VW Financial Services[10], veio o TJUE acrescentar, que “não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros, de maneira geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega” (cfr. n. 56).

Aditando que ainda que, “sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 57).

Neste contexto conclui o TJUE que, “(…) os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 59).

No mesmo sentido, como já antes referimos, vão a maioria das decisões do Tribunal Arbitral.

Assim, na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 309/2017, de 20 de novembro de 2017, conclui-se que, “(…) embora a Diretiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. (…).

Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.

(,,,)

Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade (…).”

Também na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 339/2018, de 25 de Março de 2019, se conclui que, “A Requerente sustenta, todavia, que o artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA não transpõe para o direito interno a disposição do artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Diretiva de harmonização legislativa de 1977, baseando-se essencialmente no seguinte argumento: enquanto a Diretiva permitia que os Estados-membros autorizassem ou obrigassem o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens ou serviços, o legislador nacional não conferiu à Administração essa prerrogativa, limitando-se a permitir o controlo dos critérios objetivos que o sujeito passivo tenha utilizado quando opte pelo mecanismo da afetação real.”

Veja-se igualmente a Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 498/2018, de 28 de Maio de 2019, nos termos da qual se decide que, “Assim, ter-se-á de concluir que a faculdade concedida à Autoridade Tributária pelo n.º 3 do artigo 23.º não inclui a faculdade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução que, assim, só pode ser utilizada nas situações em que está prevista diretamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4 do mesmo artigo. Embora à luz da referida jurisprudência, se possa admitir que a Diretiva IVA permitia ao legislador interno «obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», a verdade é que este não usou tal prerrogativa, pelo que não pode a mesma ser aplicada internamente por ausência de base legal”.

Na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 581/2018, de 17 de Junho de 2019, conclui-se no mesmo sentido que, “Pelo que a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é um Ofício-Circulado, que não é mais que uma instrução interna que apenas obriga aos serviços, mas que não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”

Acresce que importa atender que, como se faz notar na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 769/2019, de 2 de Abril de 2020, “Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é diretamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a atos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal…”

Atente-se no voto de vencida no âmbito do Processo n.º 887/2019, de 12 de outubro de 2020, que, no tocante ao Caso Banco Mais, conclui que, “neste caso o TJUE considerou que a Sexta Diretiva do IVA não se opõe a que os Estados membros apliquem, numa determinada operação, um método ou critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daquele outro método. Ora, analisado o Acórdão (…), conclui-se que parte de uma premissa que não está correta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.”

Por seu turno, como se conclui na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 335/2018, de 14 de Dezembro de 2020, “(…) tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução. (…) Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».” “Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.” “Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.”

Veja-se ainda a Decisão proferida no Processo n.º 58/2020-T, de 21 de Janeiro de 2021, em conformidade com a qual se deve recusar a aplicação do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA “na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, segundo a qual, a Administração Tributária poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.”

Igualmente no Processo n.º 58/2020-T, se salienta que, “em face da jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo, a possibilidade de impor o método de cálculo do pro rata de dedução quanto a recursos de utilização mista previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, no que concerne aos contratos de locação financeira efetuados por bancos, não é admitida generalizadamente, antes «tal situação será excecional», dependendo de se verificar, casuisticamente, que a utilização dos «bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» (processo C-183/13, Banco Mais, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, e de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, e de 04-03-2020, processos n.ºs 7/19.4BALSB e 052/19.0BALSB, entre muitos outros).”

Note-se que, no contexto deste Processo, o Tribunal Arbitral, a propósito do Acórdão do TJUE no âmbito do Caso VW Financial Services, vem concluir que, “na linha desta jurisprudência, tendo em conta que a obrigatoriedade da jurisprudência do TJUE implicará o acatamento da mais recente quando ela se modifica, tem de entender-se que o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, tem de considerar-se não suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE” (cfr. página 75 da referida decisão do Tribunal Arbitral).

De entre esta extensa panóplia de Decisões cumpre ainda salientar a proferida no Processo n.º 576/2021-T, de 14 de Fevereiro de 2022.

Nesta Decisão, inicia o Tribunal Arbitral por analisar a decisão proferida no referido Caso VW Financial Services, nos seguintes termos: “Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar  de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a atividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.

Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fração, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fração (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).

De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar»”.

Termos em que se conclui que, “Como resulta desta parte final, na perspetiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da revisão, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.”

De salientar em particular que veio ainda nessa Decisão reiterar-se o entendimento de que é necessário fazer um “apuramento casuístico” da utilização real dos bens e serviços de uso misto, em concreto, se é ou não sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

Termos de acordo com os quais o Tribunal Arbitral considerou expressamente que a autoliquidação então sindicada enfermava de erro sobre os pressupostos de direito, ao ter subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efetuada pela AT, de forma genérica, “sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.”

O Tribunal chega mesmo a considerar que o método previsto no referido n.º 9 do Ofício-Circulado, por não ter “em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, em situação que se comprova uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos”, não tem potencialidade para “garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE, como entendeu o TJUE no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd.”

Mas importa salientar que o Tribunal entende que, entre nós, a imposição daquele método apenas poderia ser feita por via de diploma legislativo e não de circular administrativa, pelo que a sua imposição “viola os princípios constitucionais da legalidade e da hierarquia das normas e o princípio administrativo da legalidade [artigos 103.º, n.º2, e 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e 55.º da LGT]”. Acrescendo que o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à AT “impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.”

Assim como, conclui, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da CRP, “se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108”.

No tocante à invocada decisão do STA, importa salientar que, distintamente do invocado pela AT, admite claramente antever a possibilidade de realização da prova sobre a utilização dos recursos mistos, designadamente por parte do sujeito passivo, de forma a apurar a adequação do critério e da taxa do pro rata por si utilizada – ou, neste caso, da taxa de dedução que pretende ver aplicada, por oposição ao previsto no Ofício-Circulado n.º 30108.

 

Idêntica orientação foi seguida no Processo n.º 259/2022, de 6.1.2023.

 

Face ao exposto, concluímos que a Requerente tem razão ao invocar que, atenta a jurisprudência comunitária e nacional neste âmbito, há que retirar as seguintes conclusões:

  • A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal;

 

  • Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos; e,

 

  • Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade;

 

  • Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

 

 

V.2.E. FALTA DE PROVA DE «DISTORÇÕES SIGNIFICATIVAS DA TRIBUTAÇÃO»

 

De qualquer forma, mesmo que por mero exercício académico se aceitasse a possibilidade de a Administração Tributária impor o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado 30108, este só seria aplicável, como se refere na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação».

A Administração Tributária defende que a aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o direito comunitário e as normas de direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do CIVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.

A Requerente defende que não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no supra referido Ofício-Circulado n.º 30108, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.

Na verdade, não se referem no Ofício-Circulado n.º 30108 em que consistem as «distorções significativas na tributação» que resultam da aplicação do método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, formulando-se nesse sentido um juízo conclusivo, cujos fundamentos não se demonstram. A afirmação feita no ponto 8. do Ofício-Circulado de que «aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas» é também inconclusiva e obscura, pois não se esclarece quais as aludidas vantagens ou prejuízos, nem para quem, nem em que consiste a falta de coerência que se invoca.

De qualquer forma, o procedimento que a Administração Tributária impôs no referido Ofício-Circulado tem a potencialidade de provocar distorções significativas na tributação, como bem demonstram JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS[11] relativamente à locação financeira com rendas mensais constantes:

«Ora não se consegue demonstrar que o expurgo da amortização financeira contribui para uma sintonia mais fina na determinação da parcela de imposto dedutível. Bem ao invés, demonstra-se que o procedimento que a AT quer obrigar o sujeito passivo a adotar provoca distorções significativas de tributação e não consegue de modo algum o objetivo que a lei, no artigo 23.º, n.º 3, atribui ao método da afetação real – o objetivo de efetuar a dedução de “com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços [de uso “promíscuo”] em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito.

Em financiamentos cujo reembolso é efetuado em prestações periódicas, sabe-se que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, esta dada pela diferença entre renda total e juro pago. Nas sucessivas prestações, quer em termos de rendas constantes quer de rendas variáveis, como a seguir melhor se verá numericamente, a parte imputável a juros vai flutuando ao longo do tempo de duração do contrato».

Sendo assim, que consequência tem o apuramento do IVA dedutível segundo o método imposto pela AT de expurgar a amortização do cálculo da parcela dedutível? Tem a consequência de fazer flutuar a percentagem de IVA dedutível ao longo do tempo de duração do contrato.

Esta flutuação, porém, só teria razão de ser se houvesse fundamentos para crer que ao longo desse tempo a intensidade do uso dos inputs promíscuos flutuava também na mesma onda. Ora, é bem claro que não há qualquer razão para crer que seja assim. A intensidade do uso desses bens e serviços será eventualmente a mesma, ou se não for, não é através de uma percentagem de dedução calculada como quer a AT que poderá ser apurada essa eventual diferença de intensidade.

A solução imposta pela AT provoca, ela sim, distorções na tributação. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de atividade cujas operações conferem direito à dedução.

A pretensão da AT em aperfeiçoar o apuramento do imposto dedutível só poderia eventualmente ser conseguida impondo um verdadeiro método de afetação real, não um pro rata manipulado, sem significado e adequação ao objetivo pretendido de evitar distorções significativas na tributação».

 

Assim, não se poderia sequer considerar demonstrado que, na situação em apreço, a  determinação do pro rata baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar «distorções significativas da tributação», havendo, antes, a certeza de que essas distorções resultam do método imposto pela Administração Tributária.

Pelo exposto, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, a autoliquidação e a decisão da revisão enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto.

 

V.2.F. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

 

As distorções da tributação que resultam da aplicação do método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 são amplificadas em termos incompatíveis com o princípio  constitucional da igualdade,  pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, adotada pelo Pleno no acórdão de  30-09-2020, processo n.º 26/20.8BALSB, em que entendeu que a jurisprudência do Acórdão Banco Mais, apenas é aplicável quando o sujeito passivo é um banco, e já não quando é uma sociedade financeira de crédito que utilize para as suas operações tributadas recursos de utilização mista não quantificáveis.

Na verdade, nas situações em que não seja possível a afetação real, não se aplicando o «coeficiente de imputação específico» quando o sujeito passivo é uma sociedade financeira, será aplicável ao cálculo do pro rata o regime do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, incluindo-se no numerador da fração o valor total das rendas [que é na totalidade tributado, nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 16.º do CIVA], enquanto se o sujeito passivo for um banco apenas será incluída no numerador a parte das rendas que corresponde aos juros.

Além das distorções de tributação que resultam da não inclusão do valor total das rendas na fração quando o sujeito passivo é um banco, a aplicação do método referido apenas aos bancos é incompaginável com o princípio da igualdade, pois duas situações idênticas de sujeitos passivos mistos que realizem concomitantemente operações de locação financeira e operações isentas teriam uma tributação em IVA (derivada da restrição do direito à dedução) consideravelmente distinta.

A distorção da tributação provocada pelo método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 deteta-se também quando se compara a limitação do direito à dedução quanto a recursos afetos à locação financeira quando é efetuada por um banco com a de um sujeito passivo que apenas se dedique à atividade de locação financeira.

Na verdade, o sujeito passivo que apenas se dedique à locação financeira poderá, sem qualquer limitação, deduzir a totalidade do IVA suportado nos bens e serviços que adquira para exercer essa atividade, pois ela é totalmente tributada, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea h) do CIVA, e o artigo 20.º, n.º 1, deste Código assegura o direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos para realização das operações de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Em última análise, à luz da referida jurisprudência, bastará apenas a realização de uma única operação de concessão de crédito, a par de milhares de operações de locação financeira, para o direito de dedução do IVA suportado com os custos gerais passar de total a insignificante.  

Assim, o princípio da igualdade (proporcionalidade) exigirá que ao locador financeiro que, além dessa atividade tributada, desenvolve também atividade isenta, possa deduzir o IVA na parte proporcional ao volume de  negócios daquela atividade.

Por isso, são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como  a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.

 

V.2.G. CONCLUSÕES

 

A Administração Tributária questiona a quantificação das percentagens de pro rata indicadas pela Requerente.

Na verdade, a ora Requerente apurou um critério de dedução específico definitivo para o ano 2017, que aplicado ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano (no montante de € 2.409.969,14), se materializou no valor de € 109.727,25 de IVA dedutível.

Diferentemente, caso na autoliquidação em causa se tivesse procedido à inclusão das amortizações financeiras do leasing no cálculo do critério da percentagem de dedução referente ao ano 2017, esta reportar-se-ia a 39%.

E, aplicando a percentagem de dedução de 39% ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, no montante de € 2.409.969,14, constata-se que a Requerente tinha o direito à dedução do IVA no valor de € 939.887,97.

 

 

Deve, pois, a autoliquidação efetuada com referência ao ano 2017 ser anulada na parte referente ao IVA que, por motivo de erro, não foi deduzido: correspondente a € 816.838,79.

Tal montante consubstancia uma prestação tributária entregue em excesso pela Requerente e deve, por isso, ser-lhe restituída, acrescida de juros indemnizatórios desde a data de apresentação da declaração periódica relativa ao mês de Dezembro de 2017, até ao respetivo pagamento à Requerente, dado que, em seu entender, o erro na autoliquidação é imputável à AT, pois derivou da aplicação de instruções (normas regulamentares) e entendimentos por esta emanados.

Neste âmbito, a Requerente demonstra, na tabela infra, o montante de imposto dedutível, cujo reconhecimento do direito à dedução se peticiona:

 

Apuramento da percentagem de dedução do ano 2017 – amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira

 

Apuramento inicial

Apuramento revisto

Numerador

Operações que conferem o direito à dedução

€ 5.102.098,29

€ 52.599.828,62

Total Numerador

€ 5.102.098,29

€ 52.599.828,62

 

Denominador

Operações que conferem o direito à dedução

€ 5.102.098,29

€ 52.599.828,62

Operações que não conferem o direito à dedução

€ 85.112.734,43

€ 85.471.429,30

Total Denominador

€ 90.214.832,72

€ 138.071.257,92

Coeficiente

39%

IVA incorrido

€ 2.409.969,14

IVA a regularizar

€ 816.838,79

 

 

 

A utilização pela Requerente do método do pro rata, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, decorre da sua própria estrutura empresarial, pois as operações de locação financeira em causa implicam a utilização de recursos comuns, quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens.

 

Assim, podemos concluir o seguinte:

  • Sendo a atividade de leasing integralmente tributada e não isenta de IVA [artigo 16.º, n.º 2, alínea h], do CIVA], a Requerente pode, em princípio, deduzir todo o IVA suportado com aquisição de bens e serviços utilizados nessa atividade;
  • Em face da jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo, a possibilidade de impor o método de cálculo do pro rata de dedução quanto a recursos de utilização mista previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, no que concerne aos contratos de locação financeira efetuados por bancos, não é admitida generalizadamente, antes «tal situação será excecional», dependendo de se verificar, casuisticamente,  que a utilização dos «bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» (processo C-183/13, Banco Mais, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, e de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, e de 04-03-2020, processos n.ºs 7/19.4BALSB e 052/19.0BALSB, entre muitos outros);
  • Não se tendo apurado que no ano de 2017 a utilização dos bens e serviços de utilização mista tivesse sido sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de leasing, não se verifica uma situação em que possa ser imposto o referido método de dedução;
  • É convicção do Tribunal Arbitral que as atividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis atividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, serão de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos;
  • É convicção do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e «não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes»;
  • Em qualquer caso, o método previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado 30108, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, em situação que se comprova uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não tem potencialidade para garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE, como entendeu o TJUE no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd;
  • O artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP;
  • A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal;
  • Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos; e,
  • Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade;
  • Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios;
  • Não se demonstrou que o método do pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA provoque «distorções significativas da tributação», pelo que não se verifica o pressuposto em que o Ofício-Circulado n.º 30108 assenta a imposição da aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no seu n.º 9, e, consequentemente, a imposição na situação dos atos enferma de erro sobre os pressupostos de facto;
  • São materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como  a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108;
  • Não tendo sido a hipotética não correspondência à realidade das percentagens indicadas pela Requerente um fundamento do indeferimento da revisão que manteve a autoliquidação, não pode ser invocado como fundamento de improcedência da pretensão da Requerente.

 

Pelo exposto, a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade e errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do CIVA, e da alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.

Consequentemente, a autoliquidação relativa ao período de 2017, em que foi dada execução a essa imposição, enferma de vício de violação de lei, na parte correspondente à errada aplicação do método de cálculo do pro rata de dedução, o que justifica a sua anulação bem como da decisão de indeferimento da revisão que a manteve, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

 

 

 

V.2.H. REENVIO PREJUDICIAL PARA O TJUE

 

Decorre do exposto que procede o pedido de pronúncia arbitral, inclusivamente com aplicação da jurisprudência do TJUE citada quanto às questões de Direito da União Europeia, pelo que não se justifica, nestas circunstâncias, o reenvio prejudicial, pedido subsidiariamente.

 

 

V.3. RESTITUIÇÃO DE QUANTIA PAGA EM EXCESSO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

Como se refere na decisão da matéria de facto, considerou-se provado que a Requerente pagou a quantia autoliquidada (o que não é controvertido), embora não se tenha apurado quando fez o pagamento.

A Requerente apurou um critério de dedução específico definitivo para o ano 2017, que aplicado ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano (no montante de € 2.409.969,14), se materializou no valor de € 109.727,25 de IVA dedutível.

Diferentemente, caso na autoliquidação em causa se tivesse procedido à inclusão das amortizações financeiras do leasing no cálculo do critério da percentagem de dedução referente ao ano 2017, esta reportar-se-ia a 39%.

E, aplicando a percentagem de dedução de 39% ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, no montante de € 2.409.969,14, constata-se que a Requerente tinha o direito à dedução do IVA no valor de € 939.887,97.

Deve, pois, a autoliquidação efetuada com referência ao ano 2017 ser anulada na parte referente ao IVA que, por motivo de erro, não foi deduzido: correspondente a € 816.838,79.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

“Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”

 

Conforme já referido, a Requerente considera que deveria ter calculado a percentagem de dedução definitiva de 2017, aplicável ao IVA incorrido nos designados recursos comuns da sua atividade, nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, a qual, com referência a 2017, ascende a 39%, e não a 4,5% (apurada de acordo com o Ofício-Circulado supra mencionado).

Neste sentido o IVA, este Tribunal entende que a Requerente deveria ter deduzido adicionalmente um montante que ascende a um total de € 816.838,79.

 

No caso em apreço, conclui-se que há erro na autoliquidação que se considera imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira por força do disposto no n.º 2 deste artigo 43.º da LGT, na medida em que a Requerente atuou em sintonia com a orientação genérica que do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108.

Os juros indemnizatórios devem ser contados desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento da quantia autoliquidada, que deverá ser apurada em execução do presente acórdão, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT e ex-vi do artigo 29.º o RJAT, o artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de anulação parcial das autoliquidações periódicas de IVA, materializadas na declaração periódica de imposto com referência ao mês de dezembro de 2017 de IVA;

E em consequência:

  1. Ordenar a devolução à requerente dos referidos montantes, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados da data do seu pagamento até integral reembolso.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de € 816.838,79.

 

  1. CUSTAS

O valor da taxa de arbitragem é fixado em € 11.628,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerida.

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de agosto de 2023

Os árbitros,

 

(Guilherme W. d'Oliveira Martins  (Presidente)

 

 

 

Nuno Maldonado Sousa, com declaração de voto contrário à decisão adotada, que consta infra (vogal)

           

Maria Alexandra Mesquita (vogal)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto do árbitro Nuno Maldonado Sousa

Votei contra a decisão tomada neste acórdão, nem tanto pela orientação seguida quanto ao fundo da questão, mas por entender que um processo, quer corra num tribunal judicial constituído diretamente termos constitucionais ou num tribunal arbitral, é sempre o exercício do legítimo direito de ação e obedece, ante de mais, às regras próprias dos processos judiciais, que são verificadas no saneamento (quando não antes, pela própria Secretaria). É aqui – na fase do saneamento - que se verificam as condições da ação e os pressupostos processuais. No caso dos autos havia de ter sido apreciada no saneamento a  exceção dilatória da legitimidade da Requerente.

Nos termos da norma do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT é aplicável ao processo arbitral a disciplina sobre organização e processo nos tribunais administrativos e tributários, o que nos remete para o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”). Nos termos da norma do artigo 9.º, n.º 1, o autor ( aqui a Requerente) é considerado parte legitima quando alegue ser parte na relação material controvertida. Por seu turno, a norma do artigo 89.º, n.º 4, alínea e), considera que a ilegitimidade é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (n.º 2 do mesmo artigo). Creio que é esta a situação dos autos, pelas razões que explico seguidamente.

Para apreciar esta questão havia que considerar:

a) Nestes autos é Requerente a A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, titular do número de identificação de pessoa coletiva n.º ...;

b) O ato cuja revisão é pedida é a autoliquidação de IVA no montante parcial de € 816.838,79, que se consubstanciou através da apresentação da declaração periódica do período de 2017/12, pelo B..., S.A., com o número de identificação fiscal....

c) O requerimento de revisão da autoliquidação referida em b) foi apresentado pela A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, tendo por objeto o ato tributário também citado em b).

d) A A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL começou a sua atividade em Portugal em 01-01-2020.

Além da matéria factual citada a Requerente recorreu, entre outro mais, ao seguinte circunstancialismo:

5.º

Em suma, constitui objecto da presente petição, o acto tributário de (auto)liquidação de IVA referente ao mês de Dezembro do ano 2017, nos termos do qual, por motivo de erro relativamente ao regime jurídico do direito à dedução do imposto vertido nos recursos de utilização mista adquiridos pela Requerente, esta procedeu à entrega,[12] em excesso, do montante de imposto de  € 816.838,79. 

24.º

Ora, na situação objecto do presente Pedido de Pronúncia Arbitral, entendeu a AT ser de indeferir o Pedido de Revisão Oficiosa apresentado pela Requerente com referência ao acto tributário de autoliquidação de IVA do mês de Dezembro de 2017, uma vez que, de acordo com o seu entendimento, não existe qualquer erro na autoliquidação de IVA de Dezembro de 2017. 

31.º

Nos presentes autos aduzidos com vista à Pronúncia Arbitral, vem a ora Requerente suscitar a pronúncia sobre a legalidade da autoliquidação de IVA relativa ao ano 2017, nos termos da qual a Requerente procedeu à dedução, segundo critérios provisórios, nas declarações periódicas referentes aos meses de Janeiro a Novembro do mesmo ano, do imposto por si incorrido em recursos de utilização mista, e segundo critérios definitivos, na declaração periódica referente ao mês de Dezembro do mesmo ano (cf. o n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA).

32.º 

Em concreto, peticiona a ora Requerente a correcção da declaração periódica referente ao mês de Dezembro de 2017, no que tange com a dedução de IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista relativos às actividades de leasing e ALD por si desenvolvidas.

33.º 

Ora, verificou a ora Requerente existir erro na autoliquidação efectuada no ano 2017, em virtude de, com referência aos recursos de utilização mista adquiridos no âmbito das actividades de leasing e ALD por si desenvolvidas, esta não ter procedido à dedução do IVA por si incorrido em conformidade com a legislação nacional e comunitária deste imposto.

34.º

Em concreto, a Requerente desconsiderou, no cálculo da percentagem de dedução relativa ao ano 2017, os valores relativos às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação  financeira por si celebrados.

36.º 

Na verdade, a ora Requerente apurou um critério de dedução específico definitivo para o ano 2017, que aplicado ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos nesse ano (no montante de € 2.409.969,14), se materializou no valor de € 109.727,25 de IVA dedutível.

38.º 

E, aplicando a percentagem de dedução de 39% ao total do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, no montante de € 2.409.969,14, constata-se que a Requerente tinha o direito à dedução do IVA no valor de € 939.887,97.

39.º 

Deve, pois, a autoliquidação efectuada com referência ao ano 2017 ser anulada na parte referente ao IVA que, por motivo de erro, não foi deduzido: correspondente a € 816.838,79.

 40.º 

Tal montante consubstancia uma prestação tributária entregue em excesso pela Requerente e deve, por isso, ser-lhe restituída, acrescida de juros indemnizatórios desde a data de apresentação da declaração periódica relativa ao mês de Dezembro de 2017, até ao respectivo pagamento à Requerente, dado que, em seu entender, o erro na autoliquidação é imputável à AT, pois derivou da aplicação de instruções (normas regulamentares) e entendimentos por esta emanados.

55.º 

E, uma vez que, conforme se demonstrará infra, a desconsideração, do cálculo do pro rata, dos montantes relativos às amortizações financeiras no âmbito da actividade de leasing se apresenta em desconformidade com a legislação nacional e comunitária do IVA, conclui-se que, com referência ao ano 2017, a Requerente deduziu imposto a menos do que aquele preceituado pela legislação em apreço. Consequentemente, em virtude do método do crédito de imposto que rege o sistema comum do imposto a Requerente autoliquidou, com referência ao ano em análise, mais imposto do que aquele que era devido. Tal excesso de pagamento cifrou-se no montante de € 816.838,79.

56.º 

Ora, perante a percepção de que, na supra referida declaração periódica de IVA, a Requerente havia liquidado e, consequentemente, entregue prestação tributária em excesso, apresentou, ao abrigo do disposto nos artigos 98.º do Código do IVA e 78.º da LGT, Pedido de Revisão Oficiosa da autoliquidação de imposto relativa ao referido período de imposto.

252.º

Pelo exposto, a autoliquidação de IVA efectuada pela Requerente, nas declarações periódicas de imposto relativas ao ano 2017, originou uma entrega em excesso de imposto ao Estado, no montante total de € 816.838,79 devendo, em virtude do supra exposto, ser corrigida, conforme de Direito.

 

Tenha-se ainda presente que a Requerente também peticiona a anulação parcial da “autoliquidação de IVA efectuada pela Requerente nas declarações periódicas de imposto relativas ao ano 2017, materializadas na declaração periódica de imposto com referência ao mês de Dezembro do mesmo ano” e a “Restituir à Requerente o valor do IVA pago em excesso nas supra referidas declarações periódicas de imposto”.

Ressalta à saciedade que a autoliquidação que gerou a entrega de imposto pela a autoliquidação de IVA no montante parcial de € 816.838,79, que se consubstanciou através da apresentação da declaração periódica do período de 2017/12, pelo BANCO B..., S.A., com o número de identificação fiscal ..., não foi feita pela mesma pessoa que é Requerente nestes autos, que é a A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, titular do número de identificação de pessoa coletiva n.º ... . Quer dizer, o sujeito da relação jurídico tributária não é nominalmente o mesmo e haveria que averiguar se à Requerente lhe assiste o direito de suceder à primeira entidade, na situação de crédito de imposto que afirma existir. Se esse pressuposto – a legitimidade – não se verificar, nada mais haveria que apurar nestes autos.

Havia assim em sede de saneamento que apurar (i) se a Requerente é parte legítima nesta instância arbitral; (ii) sendo a resposta negativa, se esse vício é suscetível de ser sanado; (iii) se a Requerente era parte legitima no procedimento de revisão cujos vícios também pretende ver esclarecidos.

Como resulta da singela matéria de facto identificada nesta declaração de voto, a Requerente, A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, NIF ..., não existia sequer em dezembro de 2017, data em que foi praticado o ato impugnado, que é a declaração periódica de IVA de dezembro de 2017, apresentada pelo denominado B..., S.A., com o número de identificação fiscal ... . Nada no PPA afirma o direito de ação tributária do B..., S.A, sujeito da relação tributária posta em crise, e que esse direito se encontre na hipotética esfera jurídico-tributária da A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL. É claro que não pode deixar de colocar a hipótese de as posições jurídicas discutidas nos autos, não terem já como sujeito, nem a  Requerente (sucursal), nem o B..., S.A., com o número de identificação fiscal ..., na decorrência de alegado processo de fusão transfronteiriça, com o B..., S.A., sociedade sedeada em França e que essa alegada operação tenha implicado a passagem de todas as atividades anteriormente desenvolvidas pelo B..., S.A. para uma sucursal em Portugal do B..., S.A.” e que, em virtude dessa putativa operação “todos os direitos e obrigações, activos e passivos do B..., S.A.”, tivessem sido transferidos para a ora Requerente. No entanto, a ter havido tal translação de direitos para a Requerente, enquanto sucursal ou para entidade de quem é delegada depois da putativa fusão, cabia à Requerente o ónus de as alegar e nenhuma das sucessivas operações, se é que existiram, foram alegadas no PPA, nem provadas, para depois serem submetidas e validadas por este Tribunal e tratando-se como se trata de factos constitutivos ou essenciais do direito que a Requerente reclama, era seu ónus alegá-los ab initio, nos termos do artigo 108.º, n.º 1 do CPPT em consonância com a norma do artigo 5.º, n.º 1 do CPC.

É certo que a norma do artigo 110.º, n.º 2 do CPPT prevê a possibilidade de o juiz convidar o autor a suprir qualquer deficiência ou irregularidade do petitório. A este propósito Lopes de Sousa, que aqui sigo, faz notar que se trata das deficiências ou irregularidades sanáveis, pelo menos sempre que o erro, na identificação do autor, não for considerado manifestamente indesculpável (artigo 98.º, n.º 5)[13] e crê-se que a interpretação desta norma, numa perspetiva integrada do processo arbitral, que se encontra pulverizado por inúmeros regimes (artigo 1.º do CPTA, artigo 6.º, n.º 1 do CPC e artigo  110.º do CPPT) deve levar a que se procure a unidade do sistema jurídico prevista no artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil e eleger o regime comum, constante do artigo 6.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, restringindo a possibilidade de promoção pelo juiz da sanação de irregularidades e deficiências, àquelas que este mesmo regime as permite, afastando a possibilidade de retificação posterior dos factos essenciais, ou constitutivos, que cabe à  parte apresentar, para impulsionar o processo (1.º do CPTA, 5.º, n.º 1 do CPC e 108.º, n.º 1 do CPPT). Mas mesmo que se adotasse a perspetiva mais protetora do sujeito passivo, sempre haveria que medir a intensidade do erro na identificação do sujeito dos atos jurídico-tributários praticados e considerar que não se tratava de erro manifestamente indesculpável, como exige a norma do artigo 99.º, n.º 5 do CPPT. Crê-se que só se pode considerar o erro da Requerente como manifestamente indesculpável, levando em consideração que o erro não abrange apenas a identificação do autor ou requerente, mas também a qualidade de sujeito de todos os múltiplos atos relatados no PPA. Note-se que se trata de uma instituição financeira multinacional, com ampla prática e vastos recursos, devidamente patrocinada por Ilustre Advogada, e que surge na sequência de uma complexa operação de fusão transfronteiriça, certamente preparada e executada por juristas e outros técnicos de elevado gabarito, que não podem ignorar que as sucursais em Portugal não têm personalidade jurídica e que mesmo a sua capacidade judiciária é limitada. Não se pode aceitar que uma entidade com a citada notoriedade possa imputar a uma entidade destituída de personalidade jurídica, atos praticados anteriormente por pessoa jurídica e desvalorizar esse erro, sob pena do esvaziamento da regra, que não teria nunca aplicação, interpretação que é inconcebível face à norma do artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil, interpretada a contrario sensu; todas as normas do nosso ordenamento são suscetíveis de ser aplicadas a casos concretos, sob pena de se fazer impender sobre o legislador menor capacidade de expressão. Se este não é um caso de erro indesculpável, provavelmente nenhum outro erro de identificação o será.

Aliás, o tratamento típico destas situações exclusivamente à luz do direito processual civil, aplicável por remissão da norma do artigo 29.º, al. e) do RJAT, levaria à mesmíssima solução.

Se se vir o tratamento da legitimidade ao nível do direito processual civil, começando por reafirmar que a ilegitimidade é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que dá lugar à absolvição da instância (artigo 577.º, al. e), 578.º e 576.º, n.º 2 do CPC), o mesmo é dizer que a falta do pressuposto processual não depende de alegação das partes e o Tribunal, detetando-a, terá de a apreciar, como regulam as já citadas normas. Quando o julgador se confronta com a falta ou irregularidade de determinado pressuposto processual, coloca-se sempre a questão de saber se tem o dever de gestão processual de ex officio suprir a falta de pressupostos processuais (artigo 6.º, n.º 2 do CPC) ou o convite à parte interessada para ultrapassar as irregularidades sanáveis (artigo 590.º, n.º 2, al. a) do CPC), institutos aplicáveis ao processo administrativo e por remissão ao processo arbitral ex-vi artigo 8.º-A, n.º 3 do CPTA.

Veja-se o contributo da doutrina contemporânea da atual conceção do dever de gestão processual, expresso nas normas do artigo 87º, n.º 1, al. a) do CPTA e do artigo 6.º, n.º 2 do CPC. Na doutrina civilística Abrantes Geraldes et ali. manifestam-se, em geral, no sentido da insanabilidade da ilegitimidade singular (entenda-se, a que não resulte da falta de litisconsórcio necessário)[14].

De modo consentâneo a jurisprudência tem também acompanhado essa interpretação da lei, como se lê no recente acórdão do STA de 13-04-2023 [Adriano Cunha], processo n.º 09/06.0BELRS-A[15], onde se deixou claro que “o dever de gestão processual estatuído nos arts. 87º nº 1 a) do CPTA e 6º nº 2 do CPC apenas permite o suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação.”. Ora, no caso dos autos está em causa o pressuposto da legitimidade, que, como se viu, assume a figura da incapacidade judiciária por extensão, no caso particular dos atos das sociedades comerciais praticados pelas suas sucursais, e tem possibilidade muito limitada de sanação, resumindo-se praticamente ao caso dos atos tributários praticados pelas sucursais, em nome da sociedade comercial de que dependem.

Como no caso dos autos não estão em causa atos praticados pela sucursal, as normas do artigo 13.º, n.º 1 e 14.º do CPC, interpretadas a contrario sensu, seria, quanto a mim, de concluir pela inexistência da capacidade por extensão e consequentemente pela ilegitimidade da Requerente.

Note-se que se chega exatamente à mesma conclusão, analisando a legitimidade, vendo o modo em que a Requerente desenhou a sua ação. Para Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha[16] “ao definir como parte legítima o autor que alegue ser parte na relação material controvertida, o legislador evidencia o propósito de construir todo o sistema judiciário em torno da figura da relação jurídica, afastando, à partida, qualquer interpretação restringente dos direitos processuais dos administrados no seu relacionamento com a administração (…)”; ou noutras palavras dos mesmos autores, na lei processual administrativa a legitimidade “(…) é aferida pela relação jurídica controvertida, tal como é apresentada pelo autor. Deste modo há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade[17], sendo por isso indiferente, para a verificação da legitimidade, saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca ou contra quem é feito valer, matéria que diz respeito à questão de fundo e poderá, quando muito determinar a procedência da ação”[18]. Também é irrelevante saber se o problema em causa não se reconduz à capacidade judiciária das sucursais, que não têm personalidade jurídica, como se infere das normas do artigo 13.º, n.ºs 1 e 2 do CPC; a Requerente configura a relação jurídica subjacente como se fosse ela própria o ente jurídico que pratica os atos, i.e, como se tivesse personalidade jurídica e não o faz como mero órgão de administração local dentro da estrutura da sociedade.

No mesmo sentido do conceito de legitimidade tem apontado a jurisprudência, como se pode ver no acórdão do STA de 21-06-2011, [Fernanda Xavier], processo n.º 0756/09[19], em que se sumariou “II - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor[20] (artº26º, nº3 do CPC).” Mesmo a jurisprudência que se aproxima da solução, ligeiramente mais ampla, recolhida no Código de Processo Civil, reconhece que “V - Interessado para efeitos de legitimidade é todo aquele que espera obter de anulação do acto impugnado um certo benefício e se encontra em condições de o poder receber, devendo o seu interesse ser directo, ou seja de repercussão imediata nele interessado, pessoal quando a repercussão de anulação se projecta na sua própria esfera jurídica, e ainda legítima quando é protegida pela ordem jurídica”, como se afirma no sumário de acórdão do STA de 09-04-2002, [João Belchior], no processo n.º 047994[21]. Parece evidente que o sujeito ativo da relação jurídica trazida a juízo é verdadeiramente a sucursal, relação essa constituída com a prática dos atos que levaram à apresentação da declaração periódica de IVA que se pretende anular. É também de notar que a Requerente não apresenta sinais – factos constitutivos – de ser a mesma pessoa jurídica, nem a sua narrativa permite concluir desse modo, pois a Requerente – constituída em 2020, apresenta-se sempre como o sujeito dos factos com relevância tributária (v.g. a prática do o ato tributário de (auto)liquidação de IVA, a aquisição dos recursos de utilização mista adquiridos e a sua utilização e a entrega do imposto) praticados no passado, que sabemos terem afinal sido praticados pelo sujeito da relação jurídico-tributária que foi o B..., S.A.. Haveria assim que concluir que a Requerente A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, NIF..., com início de atividade em Portugal em 01-01-2020, não é parte legítima nesta ação anulatória.

Para ser parte legítima na ação, a Requerente teria de alegar e provar o facto translativo da transmissão para si da posição na relação jurídica tributária, e tal transmissão haveria de ser feita com especial idoneidade, como lhe exigem as normas do artigo 36.º, n.º 2 da LGT, que afirma a impossibilidade de mudança dos elementos essenciais, da relação jurídica por vontade das partes; é óbvio que a identidade do sujeito da relação jurídica não pode deixar de se entender que é um seu elemento essencial.

Por outro lado, note-se que o princípio da proteção dos créditos tributários, está lapidarmente inscrito na regra do artigo 29.º da LGT que expressa que os créditos tributários não são suscetíveis de cessão a terceiros (n.º 1) e que as obrigações tributárias não são suscetíveis de transmissão inter vivos (n.º 2), sem prejuízo das situações excecionadas por via legal, que têm também de ser alegadas, como facto constitutivo que são, e devidamente provadas, pelos meios legais idóneos.

A Requerente não alegou nenhum facto constitutivo do seu direito; na realidade a Requerente alegou factos eventualmente constitutivos de um eventual direito do B..., S.A.. Haveria assim que concluir que a Requerente é parte ilegítima nesta ação anulatória.

Além da citada liquidação, em si, a Requerente pediu ainda que fosse verificada a legalidade da decisão de indeferimento pela AT do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, do acto tributário de autoliquidação de IVA do mês de Dezembro de 2017, requerendo, a respetiva declaração de ilegalidade e anulação (4.º do PPA). Veja-se se nessa peça, que se encontra em todo o volume I do PA e a pp. 1-52 do volume II, a Requerente apresenta a constituição do seu direito de forma igual àquela que usa no seu PPA, já criticada nesta declaração de voto.

O pedido de revisão oficiosa é proposto pela A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, NIF..., com data de entrada nos Serviços da AT em 04-11-2021, tendo como objeto “a autoliquidação de IVA, referente ao ano de 2017, materializada na declaração periódica de imposto com referência ao mês de Dezembro de 2017”. Nesta peça a Requerente também afirma que foi a Requerente que procedeu à liquidação do IVA, incorrido na aquisição de recursos de utilização mista relativos às atividades que ela própria desenvolveu (artigos 13.º, 21.º, 22.º, 23.º e 26.º), que foi a Requerente que determinou incorretamente os coeficientes por referência a 2017 (artigo 14.º), ou que o fez de forma provisória (artigo 21.º), que foi a Requerente que deduziu menos imposto (artigo 15.º) e que foi a Requerente que procedeu ao ajustamento/regularização das deduções (artigo 16.º), mas não invoca nem prova que sucedeu aos créditos que pretende na posição do B..., S.A, sujeito da relação tributária sob revisão, pelo que não é possível concluir, como a Requerente faz em 28.º do requerimento de revisão, que “constata-se que a Requerente tinha o direito à dedução do IVA no valor de €939.887,97”, pela singela razão que não foi a Requerente que efetuou nenhuma das operações que enumera, porque não as podia ter praticado, pois o sujeito de todas as operações, próprias do métier bancário e de natureza tributária, foi o B..., S.A., com o número de identificação fiscal... un.

A norma do artigo 78.º, n.º 1 da LGT confere a possibilidade de requerimento de revisão dos atos tributários, pela entidade que os praticou, por iniciativa do sujeito passivo e neste, estipula expressamente o direito de audição da Requerente, que dele não se vê que tenha feito uso. É o artigo 78.º, n.º 1 da LGT que fixa a legitimidade para pedir a revisão dos atos tributários. Como os atos que se pretendiam revistos não foram praticados pela Requerente, o processo não era admissível, quer dizer, a Requerente padecia de legitimidade para o fazer. E também aqui a ilegitimidade é de conhecimento oficioso, pelo que havia que a afirmar e negar provimento ao pedido de revisão.

            Pelas razões que expus, votei vencido e considero que a ação arbitral deveria ter tido diferente sorte, designadamente deveria concluir pela ilegitimidade da Requente e pela consequente absolvição da Requerida da instância, mantendo-se na ordem jurídica o acto impugnado.

 

 

(Nuno Maldonado Sousa

 



[1] Quando se referencia determinada página do PA, indica-se a numeração que consta no leitor do ficheiro e não a numeração manuscrita na margem direita. Quando se referencia “volume 1” quer-se referir o ficheiro “PA1_compressed pdf” e por volume 2 pretende-se referir o ficheiro “2 (PA2_compressed(1).pdf)

[2] Os sublinhados que constam desta sucessão de reprodução de artigos, são da autoria do relator.

[3] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[4] A utilização deste método é obrigatória de se tratar de bem não utilizados na atividade económica definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.

[5] Neste sentido, entre muitos, podem ver-se os seguintes acórdãos do STA: de 25-10-2000, processo n.º 25128, Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, página 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2593.

[6] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, em que se entendeu que, na sequência decisão do TUJE proferida no processo C-183/13, tinha sido necessário ampliar a matéria de facto «no sentido de apurar se, no caso concreto, no âmbito de operações de locação financeira para o sector automóvel, a utilização de bens e serviços de utilização mista (afetos a atividades que conferem direito a dedução de IVA e a atividades isentas) foi, ou não, principalmente determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira que a recorrente celebrou com os seus clientes ou pela disponibilização dos veículos».

[7] Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª Ed., 2007, pp.125-126.

[8] “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, a.10n.1(Primavera2017), pp. 27-56.

 

[9] Veja-se José Maria Montenegro, “Comentário ao acórdão «Fazenda Pública contra Banco Mais, SA» de 10 de Julho de 2014, Proc. C- 183/13”, em Anuário de Direito Internacional, 2014/2015, pp. 313-323.

[10] Decisão proferida no âmbito do Proc. C-153/17, de 18 de Outubro de 2018.

[11] Em “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, publicado em Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 10, n.º 1, página 27 e seguintes, 46-47.

[12] Os sublinhados que constam desta sucessão de reprodução de artigos, são da autoria do subscritor da declaração de voto.

[13] Jorge Lopes de Sousa – Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado. Volume II. 6.ª edição. Lisboa. Áreas Editora: 2011, p. 228, §4

[14] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Coimbra. Almedina: 2018, p. 32, §6.

[15] Acessível em www.dgsi.pt, consultado em 26-06-2023.

[16] Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha – Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 3.ª edição revista, Coimbra, Almedina, 2010. Veja-se em especial pp. 70-71.

[17] O sublinhado é da autoria do subscritor da declaração de voto.

[18] Loc. cit.

[19] Acessível em www.dgsi.pt/, consultado em 24-06-2023.

[20] O sublinhado é da autoria do subscritor da declaração de voto.

[21] Ibidem.