SUMÁRIO:
I – Na aquisição de participações sociais e prestações suplementares por um sujeito passivo de IRC a uma sociedade com a qual tem relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, conforme resulta do artigo 63.º do CIRC.
II – Se, por um lado, o sujeito passivo não organizou o processo de documentação fiscal (dossier de preços de transferência) nos termos legalmente previstos e se, por outro lado, a AT aferiu a existência de relações especiais entre o sujeito passivo e a sociedade à qual adquiriu as participações sociais e prestações suplementares, demonstrando através do método do preço comparável de mercado que o preço praticado entre aqueles se afastou do preço normalmente contratado entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência, competia ao sujeito passivo o ónus da prova de que os pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência não estavam verificados.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, José Manuel Parada Ramos e Sofia Quental, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., S.A., NIF..., com sede no ..., ..., ...-... ... (“Requerente”), notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022..., que tem por objecto o acto de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) com o n.º 2021..., de 15 de Novembro de 2021, respeitante ao exercício de 2017, e correspondente demonstração de acerto de contas, de onde resultou um valor total a pagar de € 138.160,50, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral (“PPA”), artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, todos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro de 2011 (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação daqueles actos, bem como a condenação da AT no pagamento de uma indemnização em virtude da prestação indevida de garantia bancária.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 14 de Dezembro de 2022 pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 31 de Janeiro de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 20 de Fevereiro de 2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
5. Em 23 de Março de 2023, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e requerido a sua absolvição de todos os pedidos.
6. Em 27 de Março de 2023, foi proferido despacho arbitral no qual se dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Naquele despacho foi ainda conferida às partes a possibilidade de apresentarem alegações finais, direito que estas não pretenderam exercer.
II. SANEAMENTO
7. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e o pedido é tempestivo nos termos do artigo 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem excepções ou outras questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
8. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade anónima de direito português que tem como objecto social o apoio técnico à criação, desenvolvimento, expansão e modernização de empresas industriais, comerciais e de serviços no âmbito nacional e internacional, logística, auditoria, actividade de promoção e prospecção de mercados, comércio por grosso ou a retalho, importação e exportação de mercadorias, prestação de serviços de natureza contabilística e económica e a gestão da sua carteira de títulos;
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A Requerente é tributada em sede de IRC ao abrigo do regime normal de determinação do lucro tributável;
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No exercício de 2017, o Sr. B... detinha 70,72% do capital social da Requerente;
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No exercício de 2017, o Sr. B... era o administrador da Requerente;
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A Requerente é detentora da totalidade do capital social da sociedade de direito português “C..., S.A.” (“C...”), desde 18 de Dezembro de 1997;
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No exercício de 2017, B... era o administrador da C...;
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Entre 14 de Dezembro de 2011 e 5 de Janeiro de 2017, a C... deteve 80% do capital social da sociedade de direito angolano “D..., S.A.” (“D...”);
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A D... apresentou as demonstrações financeiras referentes aos anos de 2012 a 2014;
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Nos exercícios de 2012 a 2014 a D... apresentou baixos valores de rendimentos nas demonstrações financeiras;
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A D... não apresentou as demonstrações financeiras referentes aos anos de 2015 e 2016;
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A C... não procedeu a qualquer ajuste do valor contabilístico da participação na D...;
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Em 5 de Janeiro de 2017, a Requerente adquiriu à C..., 1.600 acções representativas de 80% do capital social da D..., e prestações suplementares sobre a D... com um valor nominal de € 916.470,35, pelo valor global de € 1.516.696,67 (daqui em diante referidas apenas por “operação de aquisição da D...” ou “operação vinculada”);
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Foi o Sr. B... que assinou o contrato de compra e venda celebrado entre a Requerente e a C..., em 5 de Janeiro de 2017, em representação de cada uma daqueles entidades;
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No contrato de aquisição da participação da D... pela Requerente, é indicado que o preço de € 1.516.696,67 foi pago por transferência bancária, da qual a C... deu no contrato a respectiva quitação;
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Pelos documentos registados na contabilidade não foram identificados na contabilidade da Requerente meios de pagamento à C... pela aquisição da participação na D...;
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Notificada a C... para identificar os meios de pagamento relativos à alienação à Requerente da participação detida na D..., respondeu aquela que o preço ficou em conta corrente;
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A Requerente e a C... não mencionaram no dossier fiscal de preços de transferência referente ao exercício de 2017, a operação de alienação da participação social e das prestações suplementares da D..., não tendo identificado a operação como estando sujeita regime previsto no artigo 63.º do CIRC;
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Em 15 de Dezembro de 2017, a Requerente alienou a participação no capital social da D..., bem como as prestações suplementares, ao Sr. E..., residente no Luxemburgo, pelo valor global de € 600.000,00;
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No contrato de aquisição da participação da D... pelo Sr. E..., estabeleceu-se que na data da sua celebração este último efectuava o pagamento do montante de € 400.000,00, sendo o restante pago em duas prestações iguais de € 100.000,00, sendo a primeira paga até ao final de 2019 e a segunda até ao final de 2020;
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Pelos documentos registados na contabilidade não foram identificados meios de pagamento do Sr. E... à Requerente pela aquisição da participação na D...;
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Notificada a Requerente para identificar os meios de pagamento relativos à alienação ao Sr. E... da participação detida na D..., respondeu aquela que em 28 de Fevereiro de 2019 foi feita uma transferência de € 30.000,00, em 4 de Fevereiro de 2020 foi feita mais uma transferência de € 100.000,00 e que em 5 de Abril de 2020 foi ainda feita uma transferência de € 150.000,00, no total de € 280.000,00;
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No exercício de 2017, o Sr. E... não tinha qualquer relação societária com a Requerente que lhe permitisse exercer, directa ou indirectamente, uma influência significativa nas decisões de gestão daquela;
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A Requerente não efectuou qualquer ajustamento na declaração Modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2017, tendo deduzido uma menos-valia global no montante de € 916.696,67, em resultado da alienação da participação na D...;
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Em 15 de Abril de 2021, os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Viseu (“SIT”) instauraram, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2021..., um procedimento de inspecção tributária externo, de âmbito geral, ao IRC relativo ao período de tributação (exercício) de 2017;
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Em 9 de Novembro de 2021, através do ofício da Direcção de Finanças de ... n.º 2021/..., foi notificado o projecto de Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), no âmbito do qual foi proposta uma correcção de € 916.696,67 ao resultado tributável em IRC do exercício de 2017;
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Em virtude da referida correcção, a Requerente passou de uma situação de prejuízo fiscal no montante de € 333.813,52 para um lucro tributável de € 582.883,15;
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Na sequência das correcções constantes do RIT, a AT emitiu o acto de liquidação adicional de IRC com o n.º 2021..., respeitante ao exercício de 2017, e correspondente demonstração de acerto de contas, de onde resultou um valor total a pagar de € 138.160,50, sendo € 121.805,46 relativos a IRC e € 16.355,04 relativos a juros compensatórios;
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Em 2 de Maio de 2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra aquele actos de liquidação;
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Por despacho do Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de ..., datado de 5 de Setembro de 2022, foi indeferida a reclamação graciosa apresentada pela Requerente;
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O Serviço de Finanças de ... instaurou contra a Requerente um processo de execução fiscal, tramitado sob o n.º ...2022..., com vista à cobrança coerciva da importância de € 138.689,81, que corresponde ao IRC e juros compensatórios liquidados adicionalmente por referência ao exercício de 2017;
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Em 16 de Fevereiro de 2022, a Requerente apresentou junto do Serviço de Finanças de ... um requerimento para suspensão do processo de execução fiscal, ao qual juntou a garantia bancária n.º ..., prestada pelo F..., S.A. a favor da AT, no montante de € 175.230,59;
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Em 13 de Dezembro de 2022, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.
§2 – Factos não provados
9. Com relevo para a decisão da causa, inexistem factos que não se tenham consideram provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
10. Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não existindo um dever de pronúncia quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
12. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do PA junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Fundamento das correcções dos SIT e ordem de conhecimento dos vícios
13. Para efeitos de enquadramento prévio, foram, em síntese, os seguintes pressupostos nos quais os SIT fundamentaram as correcções ao resultado tributável declarado pela Requerente no exercício de 2017:
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Em Dezembro de 2017, a Requerente realizou uma menos-valia no montante de € 916.696,67, resultante da venda por € 600.000,00, a pessoa independente, de 1.600 acções representativas do capital social da D... e de prestações suplementares sobre a mesma sociedade, por ela adquiridas por € 1.516.696,77, em 5 de Janeiro do mesmo ano, à C..., entidade relacionada na acepção do artigo 63.º do CIRC;
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Verificando-se que a menos-valia assim realizada teve um impacto negativo de montante correspondente na matéria tributável declarada pela Requerente;
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Impacto fiscal que apenas ocorreu porque a Requerente foi titular dos referidos instrumentos de capital próprio por período inferior a 12 meses, ficando consequentemente excluída do regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C do CIRC;
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O que não sucederia se a participação tivesse sido mantida na titularidade da C... e tivesse por ela sido transmitida ao referido adquirente independente, pois nesse caso a menos-valia realizada seria desconsiderada para efeitos de apuramento do resultado tributável da transmitente, porque ficaria abrangida pelo aludido regime de participation exemption;
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O valor pelo qual a referida participação social foi adquirida pela Requerente à C... não cumpriu o princípio de plena concorrência, não tendo sido definido em termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis, conforme exigido pelo artigo 63.º do CIRC;
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Por conseguinte, foi corrigido aquele valor na esfera da Requerente com recurso ao método do preço comparável de mercado, acolhido no n.º 3, do artigo 63.º do CIRC, no artigo 6.º da Portaria 1446-C/2001 de 21 de Dezembro e nas recomendações da OCDE em matérias de preços de transferência;
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Considerando-se, para o efeito, como preço comparável de mercado, aquele pelo qual a participação em causa foi ulteriormente transmitida a uma parte não relacionada, já que as condições que se verificavam na data da aquisição não se alteraram substancialmente face às verificadas na data da alienação;
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A Requerente não logrou demonstrar e provar os motivos que originaram a perda de valor dessa participação no período decorrido desde a sua aquisição (5 de Janeiro de 2017) até à sua ulterior transmissão (15 de Dezembro de 2017).
14. Tendo isto presente, veio a Requerente invocar no PPA a ilegalidade das correcções feitas pelos SIT e da subsequente liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2017, com fundamento (i) na falta de verificação dos pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência, (ii) na falta de verificação dos pressupostos de aplicação do método comparável de mercado e (iii) na violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real.
15. Em cumprimento do disposto no artigo 124.º do CPPT aplicável ex vi artigo 19.º, n.º 1, alínea a), os vícios imputados aos actos tributários contestados serão apreciados na presente decisão com base na ordem estabelecida pela Requerente, ainda que a apreciação da falta de verificação dos pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência e do método comparável de mercado se faça em conjunto, dada a interligação das questões aí suscitadas.
§2 – Falta de verificação dos pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência e do método do preço comparável de mercado
16. O objecto do litígio no presente processo centra-se na aplicação, na esfera da Requerente, do regime jurídico de preços de transferência relativamente ao preço por esta pago à C... no âmbito da operação de aquisição da D... .
17. Os preços de transferência são “aqueles pelos quais uma empresa transfere bens corpóreos, ativos incorpóreos ou presta serviços a empresas associadas” e que são objecto de um regime específico “por forma a evitar a existência de abusos, decorrentes da prática de preços deturpados que permitisse, designadamente, transferências de lucros”, conforme sublinhou o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”) no acórdão de 13 de Dezembro de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 18/18.7BCLSB. No fundo, visa-se com este regime impedir que os sujeitos passivos utilizem abusivamente a especial relação que os une para diminuírem a tributação, garantindo que aqueles praticam preços que respeitam o princípio da plena concorrência.
18. À data dos factos, este específico regime encontrava-se consagrado no artigo 63.º do CIRC e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro (conjuntamente designado por “regime jurídico dos preços de transferência”) que, em termos sintéticos, impunham que entre entidades em situação de relações especiais – que praticam as designadas “operações vinculadas” – fossem contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados, em operações comparáveis, entre entidades independentes – que praticam as designadas “operações não vinculadas”. Para assegurar este desiderato, fixou-se no regime jurídico dos preços de transferência quais os factores que permitem aferir a comparabilidade entre operações e quais os métodos mais apropriados para determinar, relativamente a cada operação, qual o preço que seria normalmente acordado, aceite ou praticado entre entidades independentes.
19. No presente caso, não é controvertido entre as partes que a Requerente tinha o poder de exercer uma influência significativa nas decisões de gestão da C..., isto é, que estas eram entidades com relações especiais nos termos e para os efeitos previstos no artigo 63.º, n.ºs 1 e 4 do CIRC.
20. Não obstante, a verdade é que nem a Requerente nem a C... identificaram no dossier fiscal de preços de transferência referente ao exercício de 2017 a operação de aquisição da D... . O que se impunha, dado que esta operação ao ser realizada entre entidades relacionadas estava abrangida por aquele regime, de tal forma que a Requerente deveria ter aferido se o preço praticado estava ou não de acordo com o princípio de plena concorrência, nos concretos termos definidos no regime jurídico dos preços de transferência.
21. Foi precisamente isso que procuraram fazer os SIT no procedimento de inspecção tributária, recorrendo para o efeito ao método do preço comparável de mercado previsto na alínea a), do n.º 3 do artigo 63.º do CIRC e nos artigos 4.º, n.º 1, alínea a) e 6.º, n.ºs 1 e 2 da Portaria n.º 1446‑C/2001, de 21 de Dezembro, como forma de apurar se na aquisição da D... pela Requerente foram, ou não, estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre entidades independentes.
22. O método do preço comparável de mercado é um procedimento que pressupõe a comparação do preço praticado numa operação vinculada com o preço praticado, em circunstâncias comparáveis, numa operação não vinculada.
23. Nos termos do regime jurídico de preços de transferência, a adopção do método do preço comparável de mercado pressupõe o grau mais elevado de comparabilidade entre operações, seja ao nível do objecto e demais termos e condições da operação, seja na análise funcional dos intervenientes.
24. Para que duas operações cumpram aquele grau de comparabilidade exige-se, assim, que elas sejam “substancialmente idênticas, o que significa que as suas características económicas e financeiras relevantes são análogas ou suficientemente similares, de tal modo que as diferenças existentes entre as operações ou entre as empresas nelas intervenientes não são susceptíveis de afectar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado ou, sendo-o, é possível efectuar os necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas”, conforme resulta do disposto no artigo 4.º, n.º 3, da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.
25. A questão que se coloca nos presentes autos é saber se a operação de alienação da D... pela C... à Requerente (operação vinculada) e a operação de alienação da D... pela Requerente ao Sr. E... (operação não vinculada), asseguram o grau de comparabilidade necessário à aplicação do método do preço comparável de mercado.
26. Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, uma das situações em que o grau de comparabilidade está assegurado respeita ao caso em que o sujeito passivo realiza uma transacção da mesma natureza, que tenha por objecto um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares.
27. Esta é, precisamente, a situação que se verifica nas duas operações em comparação nos presentes autos, onde foram alienadas através de contratos de compra e venda as mesmas 1.600 acções representativas de 80% do capital social da D..., com o mesmo valor nominal de € 600.226,32, e as mesmas prestações suplementares feitas àquela sociedade, com o mesmo valor nominal de € 916.470,35.
28. Quanto aos termos e condições da operação, e conforme melhor se verá infra, eram substancialmente idênticas as circunstâncias geográficas e socio-económicas prevalecentes no mercado angolano ao qual se reporta o objecto transaccionado.
29. Conclui-se, portanto, que o objecto, a quantidade e a natureza das operações são exactamente os mesmos, sendo também substancialmente idênticas as condições em que aquelas ocorreram, de tal forma que estavam reunidos os pressupostos de aplicação do método do preço comparável de mercado.
30. Assegurado que está o grau de comparabilidade entre as operações, torna-se evidente a existência de uma elevada disparidade ao nível do preço praticado em cada uma delas, uma vez que na operação vinculada foi praticado o preço de € 1.516.696,77, enquanto na operação com uma entidade externa independente foi praticado o preço de € 600.000,00.
31. Sem prejuízo desta disparidade ser considerável e de as operações serem comparáveis, é ainda assim necessário ter em consideração que o valor normal de mercado das acções e das prestações suplementares de capital será expressão da situação económico‑financeira da sociedade e do mercado a que respeitam na data de referência da sua avaliação.
32. Uma vez que tal avaliação será, em regra, contemporânea ao momento da compra e venda entre as concretas entidades envolvidas na operação, o “preço normalmente contratado” não será necessariamente o mesmo na data da aquisição das acções e prestações suplementares por uma entidade e na data da sua alienação por essa mesma entidade. Aplicando este raciocínio ao caso aqui em juízo, o “preço normalmente contratado” não será necessariamente o mesmo na data da operação realizada pela Requerente com a C... e na data operação posteriormente feita com o Sr. E... .
33. Em bom rigor, a falta de coincidência entre o “preço normalmente contratado” em cada um daqueles momentos será, em teoria, tanto maior quanto maior for o hiato temporal decorrido e quanto maiores forem as diferenças sociais/económicas/financeiras do mercado e das empresas envolvidas na transacção, que poderão implicar (des)valorizações no preço contratado.
34. São estas as razões que levam a que tenha sido consagrado no artigo 15.º da Portaria 1446/C-2001, de 21 de Dezembro, em conformidade com as orientações da OCDE em matérias de preços de transferência, o princípio da contemporaneidade da informação, segundo o qual devem ser desconsideradas as alterações ocorridas e as informações obtidas ex post, que as partes não conheciam à data e que não conformaram a formação dos preços contratados.
35. A respeito deste princípio, vejam-se as seguintes considerações feitas pelo Tribunal Arbitral, no acórdão proferido em 8 de Maio de 2019, no processo n.º 274/2018-T:
“Em regra, os termos e condições das operações vinculadas devem ser determinados com informação disponível e conhecida à data da realização das mesmas. Tal informação deve ser contemporânea da existente à data da realização das transacções. Aliás, como acontece nas operações realizadas entre partes independentes e na generalidade das transacções económicas.
Para estes efeitos, deve o contribuinte efectuar uma análise económica dos termos e condições da operação que pretende levar a cabo, de modo a suportar a sua decisão caso os termos e condições estabelecidos para essa transacção venham a ser questionados pela AT.
Este é o entendimento da OCDE nos seus relatórios relativos a matérias de preços de transferência, entendimentos e princípios seguidos por Portugal e vertidos na legislação portuguesa referente à matéria de preços de transferência.
Neste sentido, descrevem-se infra os comentários efectuados pela OCDE (à data dos factos em causa nos autos) sobre esta matéria, conforme os seus pontos 5.3 e 5.4 do seu relatório abaixo referido, que transcrevemos (sublinhado e negrito nossos):
“5.3 Todo o contribuinte dever-se-ia esforçar por determinar os seus preços de transferência ao nível fiscal em conformidade com o princípio de plena concorrência, tendo por base as informações de que possa razoavelmente dispor no momento dessa determinação. Consequentemente, o contribuinte deve normalmente examinar se os seus preços de transferência são calculados correctamente no plano fiscal antes de fixar esses preços. Por exemplo, seria desejável que o contribuinte examinasse se dados comparáveis estariam disponíveis relativamente a operações no mercado livre. O contribuinte poderia igualmente verificar, baseando-se nas informações de que dispuser, se as condições em que os seus preços de transferência foram estabelecidos no decurso de anos procedentes se alteraram, uma vez que os preços de transferência para o ano em curso devem ser fixados tendo por base estas considerações.
5.4 Quando o contribuinte examina se o modo como estabelece os seus preços de transferência está correcto sob o ponto de vista fiscal, deveria também em paralelo adoptar os mesmos princípios de gestão prudente quando se tratar de avaliar uma decisão empresarial de complexidade e de importância similares. É previsível que a aplicação destes princípios exija ao contribuinte a elaboração ou referência a provas documentais, que poderiam servir de documentação dos esforços envidados para cumprir o princípio da plena concorrência, constando destes documentos, as informações em que se basearam os preços de transferência, os factores tomados em consideração e o método selecionado.
O princípio da contemporaneidade foi vertido na legislação portuguesa no n.º 1 do artigo 15.º da Portaria n.º 1446/C-2001 de 21 de Dezembro (adiante transcrito).
Da análise dos princípios da OCDE e das regras estabelecidas pela Portaria acima referida aplicáveis quanto à contemporaneidade da informação, temos conceptualmente três momentos que poderão ser estabelecidos como relevantes para a data de reporte das informações relevantes:
(i) realização da transacção: em consonância com o princípio estabelecido pela OCDE (e o que faz mais sentido em termos económicos), estes dados devem ser conhecidos à data da realização da operação;
(ii) fim do período de tributação: formulação adoptada pela Portaria que regulamenta a preparação e manutenção do “dossier” de preços de transferência, mais consentâneo com o princípio de que o facto gerador para impostos periódicos ocorre no último dia do período de tributação, e que tal ajustamento ocorreria ainda dentro do respetivo exercício fiscal e, em princípio, já estaria reflectido nas contas;
(iii) limite do prazo para a entrega da declaração periódica de rendimentos (modelo 22): situação de recurso que permitiria ainda fazer reflectir a situação de plena concorrência dentro do mesmo período de tributação.”. (negrito nosso)
36. Ressalva-se, em todo o caso, que o princípio da contemporaneidade da informação não obsta a que se possam utilizar como comparáveis informações de transacções ocorridas em momento posterior, exigindo-se tão só que não tenham existido alterações relevantes susceptíveis de influenciar o preço normalmente contratado. E mesmo que tais alterações tenham ocorrido, resulta tão só daquele princípio que devem ser feitos os ajustamentos adequados na medida dessas alterações, identificando-se e quantificando-se os efeitos provocados pelas diferenças existentes, que devem ser de natureza secundária, procedendo-se aos ajustamentos necessários para os eliminar, por forma a determinar um preço ajustado correspondente ao da operação não vinculada comparável.
37. Dito isto, cabe então analisar se as condições da D... e do mercado em que esta se insere se alteraram ou não de tal modo que justifique a disparidade entre o preço contrato na operação vinculada e na operação não vinculada.
38. A ilação de que se verificaram alterações significativas que justificam a diferença do preço praticado deveria desde logo resultar da informação e documentação constante do dossier de preços de transferência preparado pela Requerente. O que, in casu, não se afigura possível, na medida em que tal obrigação não foi cumprida relativamente à operação aqui em apreciação.
39. Não obstante, “[o] facto de a Requerente não ter preparado o “dossier” de preços de transferência nos termos previstos nas regras aplicáveis à data, não preclude a possibilidade de demonstrar ex post o que devia ter demonstrado ex ante – como já vimos. No entanto, o não cumprimento das suas obrigações declarativas e acessórias em matéria de preços de transferência faz impender sobre a Requerente o ónus da prova de que a avaliação feita pela AT não é correcta (de facto e, ou, de Direito) e que o preço que ela própria tinha adoptado era, não obstante a falta de elementos de documentação, um preço de plena concorrência.”, conforme sublinhou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 8 de Maio de 2019, no processo n.º 274/2018-T, já anteriormente citado.
40. Assim sendo, ao não ter a Requerente cumprido com as obrigações declarativas que lhe competiam, e ao terem os SIT fundamentado no RIT as razões pelas quais consideraram que o preço praticado na operação não vinculada era o preço que seria normalmente contratado corrigindo nessa medida para efeitos fiscais o valor declarado na operação vinculada, cabia à Requerente o ónus da prova de demonstração da falta de verificação dos pressupostos de aplicação do regime jurídico de preços de transferência, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT.
41. Neste preciso sentido, referiu o TCAS no acórdão de 16 de Dezembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 1882/14.4BENST que:
“I – Cumpre à Autoridade Tributária e Aduaneira a verificação dos pressupostos de aplicação da norma relativa a preços transferências averiguando da existência de relações especiais entre o Contribuinte e as entidades envolvidas, e que as operações efetuadas se afastaram das que ocorreriam entre entidades independentes e numa situação de plena concorrência.
II - Cabe ao sujeito passivo a demonstração de que foram respeitados os princípios inerentes aos preços de transferência, nomeadamente organizando e apresentando o processo de documentação fiscal, para justificar que as aquisições dos bens foram efetuadas ao valor de mercado.”.
42. Em suma, cabia à Requerente demonstrar que apesar de se verificar uma discrepância entre o preço pelo qual adquiriu à C..., em 5 de Janeiro de 2017, a participação financeira na D... e o preço pelo qual a transmitiu a uma entidade independente, em 15 de Dezembro do mesmo ano, respeitou os ditames impostos pelo princípio de plena concorrência.
43. Para cumprir tal desiderato, invocou a Requerente no PPA que o seu propósito em 5 de Janeiro de 2017 era passar a deter de forma directa e manter posteriormente na sua esfera a participação e as prestações suplementares da D..., o que era evidenciado pelo facto de estas não se encontrarem registadas contabilisticamente como estando em imparidade. Referiu também a Requerente que, naquela data, inexistia qualquer potencial comprador, sendo que era intenção da Requerente manter na sua esfera o investimento no mercado angolano. Alegou ainda a Requerente que a inexistência de informação pública relevante e fiável referente à alienação de acções de entidades angolanas, assim como de créditos a pagar por entidade angolana, não permitiu identificar naquela data uma operação comparável.
44. Foi este conjunto de razões que, segundo a Requerente, levou a que naquela operação o preço tivesse sido fixado pelo valor nominal/de aquisição/custo histórico dos activos transmitidos, enquanto critério contabilístico mais comum, referindo ainda a Requerente que seria artificial adquirir a titularidade das acções e prestações suplementares por um montante diferente dos valores nominais, já que antes de 5 de Janeiro de 2017 nenhum acontecimento tinha ocorrido que suscitasse a necessidade de alterar expressão contabilística daqueles.
45. Já quanto ao preço que foi fixado no momento da venda das acções em 17 de Dezembro de 2017, sublinhou a Requerente que o mesmo resultou da conjugação de um conjunto de circunstâncias. Em primeiro lugar, da incerteza sobre o futuro socioeconómico de Angola agravada pelo período pós‑eleitoral que então se vivia e pelo receio de uma retracção acrescida no mercado e na gestão das relações daquele país com o exterior, designadamente ao nível cambial e ao nível da possibilidade de fazer pagamentos para Portugal. Em segundo lugar, do facto de a D... não se encontrar a desenvolver projectos de dimensão relevante que justificassem a manutenção das operações naquele país. Em terceiro lugar, da existência de uma incompatibilidade ao nível da estratégia de gestão da empresa com o accionista local que não permitia assegurar o controlo dessa gestão. Em quarto lugar, do facto de a D... constituir para a Requerente um investimento que nunca teve retorno.
46. Analisando estes argumentos, não acompanha desde logo o presente Tribunal Arbitral que a aquisição de activos a entidades relacionadas pelo seu valor nominal/de aquisição/custo histórico corresponda ao critério contabilístico mais comum em detrimento do preço fixado em condições de mercado, conforme pretende sustentar a Requerente. Pelo contrário, o que se afigura a regra é que os preços sejam fixados de acordo com o princípio da plena concorrência, daí a existência do regime jurídico de preços de transferência. É também por isto que no plano contabilístico, por força do princípio da prudência adoptado pelo Sistema de Normalização Contabilística, se exige às empresas que monitorizem o valor registado das participações socias que detêm de forma a apurar se o mesmo está ou não sobredimensionado, já que as diminuições do activo, ainda que potenciais, devem ser relevadas contabilisticamente, ajustando-se assim o seu valor ao valor efectivo de mercado.
47. Relativamente aos demais argumentos, considera este Tribunal Arbitral que os mesmos não traduzem razões válidas bastantes para justificar a desvalorização de cerca de 40% que se verificou no preço praticado em 17 de Dezembro de 2017 face ao preço anteriormente praticado em 5 de Janeiro daquele mesmo ano. Pelo contrário, o que evidenciam os argumentos da Requerente e o acervo probatório constante dos autos, designadamente do RIT, é que naquele período não ocorreu qualquer alteração substancial ao nível do mercado, da estratégia empresarial e da viabilidade financeira e comercial da D... .
48. Conforme salientou a Requerida, a D... não apresentou as suas demonstrações financeiras dos anos de 2015 a 2016, o que já evidenciava, em 5 de Janeiro de 2017, a existência de incompatibilidades ao nível da gestão da empresa com o investidor local.
49. Em 5 de Janeiro de 2017, não surgiu nenhum comprador para a participação da D... a não ser a Requerente o que, segundo as regras da experiência, já reflectia a falta de viabilidade, ainda que potencial, dos projectos desenvolvidos por aquela sociedade, bem como o facto de o investimento no mercado angolano através da D... poder não assegurar retorno financeiro.
50. Quanto às concretas “peculiaridades do mercado angolano” e às vicissitudes que o mesmo suscitava, designadamente ao nível da falta de informação pública e fiável quanto aos preços praticados nas transacções e quanto à realidade socioeconómica do país, não se terão verificado alterações substanciais em Dezembro de 2017 face ao que se verificava em Janeiro de 2017. Isto mesmo acaba por ser reconhecido pela Requerente ao afirmar que “o contexto macroeconómico de Angola não era favorável ao investimento estrangeiro no período de 2017, vivendo-se uma profunda crise financeira, económica e cambial desde finais de 2014 decorrente da quebra nas receitas com a exportação de petróleo”. (negrito nosso)
51. Todos estes factos não eram desconhecidos da Requerente ou pelos menos eram por esta cognoscíveis. Por um lado, porque em 5 de Janeiro de 2017 a Requerente já detinha indirectamente 80% do capital social da D... através da detenção da totalidade do capital social da C... . Por outro lado, porque a Requerente partilhava com a C... o administrador Sr. B..., que foi quem assinou o contrato de compra e venda celebrado entre a Requerente e a C..., em 5 de Janeiro de 2017, em representação de cada uma daqueles entidades.
52. Consequentemente, os fundamentos elencados pela Requerente para justificar a disparidade entre os preços praticados perdem “força”, até porque a factualidade acabada de enunciar acaba por tornar incongruente a suposta intenção de aquisição da D... por razões de organização empresarial e por existir um propósito de assegurar o investimento no mercado angolano, quando no final de contas a participação foi vendida 11 meses depois da aquisição e sem que os pressupostos que conformaram a decisão se tivessem alterado.
53. De resto, acaba mesmo por ser a Requerente a reconhecer que o valor praticado na operação não vinculada era realmente o valor de mercado da participação social e das prestações suplementares da D..., ao referir que “optou por aceitar a proposta efetuada pelo Sr. E... e alienou a este a sua participação na D... em 15 de dezembro de 2017 pelo montante máximo que, em sede de negociação, o comprador estava disposto a pagar”. (negrito nosso)
54. Em suma, conclui-se, em primeiro lugar, que ao ter a segunda operação de alienação ocorrido entre entidades independentes, e ao não terem existido ou sido provadas alterações significativas na esfera da D..., nas circunstâncias do mercado e nas partes intervenientes (para além da existência ou não de relações especiais), nada impedia que a alienação posterior fosse utilizada pelos SIT como referência para aferir o preço de plena concorrência que deveria ter sido praticado, não existindo qualquer lesão do princípio da contemporaneidade da informação.
55. Conclui-se também, em segundo lugar, que a Requerente não cumpriu o ónus da prova que sobre si recaía, já que não logrou identificar qualquer facto ocorrido entre o período de 5 Janeiro a 15 de Dezembro de 2017, que não estivesse já reflectido na primeira daquelas datas, e que fosse susceptível de provocar um alteração no valor da participação alienada. Dito de outro modo, não demonstrou a Requerente que o preço praticado na aquisição à C... das acções e respectivas prestações suplementares da D... é susceptível de ser considerado conforme ao que seria normalmente acordado entre entidades independentes numa situação de plena concorrência.
56. Apesar de estar nesta fase assente a existência de relações especiais, bem como o facto de a Requerente não ter provado que o preço praticado na aquisição à C... teve por base referenciais de mercado, é ainda necessário aferir se a prática de condições não conformes ao princípio da plena concorrência conduziu ao apuramento de uma matéria tributável distinta da que seria apurada em tais condições.
57. De um ponto de vista teórico, as divergências entre os valores de mercado e os valores efectivamente praticados na aquisição de um activo terão forçosamente repercussões fiscais no apuramento do IRC na esfera da entidade compradora, independentemente do seu carácter imediato ou diferido. Com efeito, a fixação de um preço inferior ao de mercado irá reflectir-se quer no apuramento do quantitativo de uma mais ou menos-valia na ulterior venda do activo, quer na sua depreciação na matéria tributável de IRC (caso se trate de activos depreciáveis), quer mesmo ao nível de outros impostos tais como o IVA, IMT ou Imposto do Selo (caso estes impostos sejam aplicáveis e utilizem como base tributável o preço contratado entre as partes).
58. No presente caso, as repercussões de não ter sido praticado um valor de mercado na aquisição da D... pela Requerente manifestam-se na esfera jurídico‑tributária desta no momento do apuramento do resultado obtido com a ulterior venda da participação ao Sr. E... . Simplificando, o facto de ter sido praticado na aquisição um valor superior ao de mercado foi determinante no apuramento de um resultado negativo e respectivo quantum, isto é, de uma menos-valia, na posterior alienação daquele activo a uma entidade independente e por um valor, aí sim, de mercado.
59. Ainda para mais quando a Requerente não pagou sequer a totalidade do preço contratado, apesar do contrário resultar dos termos contratuais fixados com a C... . Em boa verdade, o que o conjunto de operações aqui em análise indicia é que a Requerente adquiriu a participação social e as prestações suplementares da D... por um preço acima do valor de mercado precisamente com o propósito de assegurar uma menos-valia fiscal dedutível no apuramento do IRC. Este efeito fica ainda mais evidente, atendendo à tributação diferenciada dos resultados originados com a venda dos activos em causa, face ao período de 11 meses da sua detenção e consequente não aplicação do regime de participation exemption previsto no artigo 51.º-C do CIRC e que foi aplicado na esfera da C... .
60. Conclui-se, portanto, que estavam verificados todos os pressupostos de que dependia a aplicação do regime jurídico de preços de transferência à operação de aquisição da D... pela Requerente, objecto de correcção pelos SIT.
61. Regista-se ainda que carece de fundamento a pretensão da Requerente de que a haver um ajustamento à matéria tributável com base na aplicação do regime de preços de transferência, o mesmo deveria ser originalmente dirigido à C..., devendo as correcções a efectuar na esfera da Requerente resultar do ajustamento correlativo previsto na lei. Não se vislumbra no artigo 63.º do CIRC, nem na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, nem nas orientações da OCDE em matérias de preços de transferência, qualquer ordenamento ou primazia quanto aos destinatários dos ajustamentos que mereçam ser efectuados à matéria colectável por incumprimento do princípio de plena concorrência numa determinada transacção.
62. Por fim, regista-se também que carece de sentido o argumento de que a AT deveria ter suscitado a aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso prevista no artigo 38.º da LGT para proceder à correcção do preço praticado na aquisição da D... à C... .
63. Por um lado, porque as correcções feitas pelos SIT não visaram alterar a qualificação jurídica do negócio realizado nem as partes a que este respeita em virtude da ausência de racionalidade ou substância económica do negócio. Se os SIT compararam os efeitos fiscais da operação vinculada e da operação não vinculada foi para avaliar as consequências no apuramento do IRC de não ter sido observado pela Requerente as regras dos preços de transferência, justificando assim a necessidade da sua aplicação.
64. Por outro lado, admitir que a razão inerente à compra das acções e prestações suplementares da D... à C... era transferir a menos-valia a elas inerente da esfera desta para a Requerente, evitando a sua exclusão da base tributável por aplicação do regime de participation exemption, significa reconhecer que as duas entidades em situação de relações especiais já teriam conhecimento da menos-valia latente (e eventualmente do valor de venda que viria a ser praticado), que com essa transacção intermédia passaria a ter relevância fiscal. O que revelaria que o preço praticado na primeira transacção se apresentava, desde logo, desconforme com o efectivo valor conhecido pelas partes que seria praticado no contrato a celebrar ulteriormente, justificando-se, assim, uma correcção do mesmo no âmbito do regime dos preços de transferência.
65. Em face de tudo o exposto, improcede o vício de ilegalidade invocado pela Requerente com base na falta de verificação dos pressupostos de aplicação do regime jurídico dos preços de transferência e do método do preço comparável de mercado.
§3 – Violação dos princípios constitucionais da tributação pelo lucro real e da liberdade de iniciativa económica
66. Invocou ainda a Requerente que a correcção pelos SIT da menos-valia apurada pela Requerente com a alienação da participação social e das prestações suplementares da D... com base na aplicação do regime jurídico de preços de transferência violava os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real que decorrem dos artigos 13.º e 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), bem como numa violação dos princípios da liberdade de iniciativa económica, da liberdade de organização empresarial e de funcionamento eficiente dos mercados no quadro de uma equilibrada concorrência entre as empresas e demais agentes económicos, os quais dispõem de suporte no artigo 61.º, n.º 1, alínea c), e artigo 81.º, alínea f), ambos da CRP.
67. O princípio da tributação das empresas essencialmente pelo lucro real previsto no artigo 104.º, n.º 2 da CRP, enquanto decorrência do princípio geral da igualdade previsto no artigos 13.º da CRP, consagra na esfera das empresas uma máxima de tributação de acordo com a capacidade contributiva por estas revelada. De acordo com este princípio, a tributação das empresas deve ter por base o lucro efectivamente atingido, vedando-se como regra a tributação assente em critérios de lucros normais ou médias, e impondo-se a consideração de todos os rendimentos e de todos os gastos concretizados num determinado exercício fiscal.
68. A respeito deste princípio, referiu o Tribunal Constitucional (“TC”), no acórdão n.º 753/2014, proferido em 12 de Novembro de 2014, no processo n.º 247/2014, o seguinte:
“Em matéria de tributação de pessoas coletivas, a Constituição consagrou expressamente o princípio segundo o qual «a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real» (artigo 104.º, n.º 2).
Este princípio reflete o direito do contribuinte de ser tributado sobre os lucros efetivamente verificados, e que são variáveis de ano para ano, e não sobre os lucros normais, isto é, sobre os lucros que a empresa poderia obter operando em condições normais e que poderiam exceder ou ficar aquém dos efetivamente obtidos. Neste sentido, o preceito constitucional constitui uma concretização dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade fiscal.
A tributação segundo o lucro real pressupõe que a determinação do lucro tributável seja efetuada de acordo com a contabilidade da empresa, com base na documentação e comprovação das receitas e dos custos do sujeito passivo, e, por isso, exige um sistema fiável de informação sobre os resultados empresariais. Não sendo possível determinar o rendimento real da empresa através de métodos contabilísticos, a base da tributação terá de ser definida, não através dos lucros efetivamente auferidos, mas dos lucros presumivelmente realizados, assim se compreendendo que a norma constitucional explicite que a tributação incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real (neste sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1100).
Por outro lado, a tributação segundo o lucro real não impede que a Administração Tributária possa efetuar correções administrativas à declaração do sujeito passivo que possam levar à desconsideração de custos comprovados como custos fiscais e à consequente alteração da quantificação do lucro tributável (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3ª edição, Coimbra, págs. 368-369).
(…) o artigo 104.º, n.º 2, não institui um critério absoluto e rigoroso de tributação das empresas segundo o lucro real, apontando antes para uma aproximação tendencial entre a matéria coletável e os lucros efetivamente auferidos, sem excluir o recurso a rendimentos presumidos e a métodos indiciários. Além disso, como vimos, a dedução de custos e perdas está estritamente associada à sua indispensabilidade para a atividade económica da empresa.
Perante o efetivo risco de regulação tributária nos grupos societários por efeito de uma estratégia de transferência de capital social entre empresas, a não dedutibilidade dos gastos apurados nessas transações mostra-se justificada pela relevância dos interesses que determinam a restrição.”.
69. Compreende-se, portanto, que este não é um princípio absoluto, impondo-se, pelo contrário, a sua concatenação com outros princípios que conformam o sistema jurídico‑tributário, tais como o princípio do combate à elisão e evasão fiscal e o princípio da sustentação das finanças públicas. Ora, o regime jurídico dos preços de transferência previsto no artigo 63.º do CIRC é um regime que visa precisamente combater situações abusivas de redução da tributação concertadas entre partes especialmente relacionadas, assegurando simultaneamente que a tributação das empresas atinge o seu lucro real, desconsiderando consequentemente a prática de preços inferiores aos que normalmente seriam contratados e que não respeitam o princípio da plena concorrência.
70. Este conclusão é passível de ser extraída do seguinte excerto do acórdão do TC n.º 252/2005, proferido em 10 de Maio de 2005, no processo n.º 560/01, onde se referiu o seguinte:
“(…) a possibilidade de uma relação entre entidades poder ditar uma construção artificiosa do rendimento tributável, admitindo [o artigo 57.º, n.º 1, do CIRC correspondente ao artigo 63.º do CIRC vigente no presente caso] uma correcção do quantum tributário em face da expressão que aquele [rendimento tributável] assume, na ausência de tal vínculo relacional, entre sujeitos independentes. E, nesse quadro de actuação, a norma é idónea para dar a conhecer ao(s) seu(s) destinatário(s) qual a expressão quantitativa do facto tributário que é relevada. O que determina igualmente a circunstância de esse lucro ser totalmente apreensível pelo sujeito passivo, na medida em que, quer a modelação concreta dos factos tributários, quer a sua expressão contabilística tem como razão de ser a não evidenciação do lucro real que emergeria em circunstâncias semelhantes perante relações entre pessoas independentes.”. (negrito nosso)
71. Não se verifica, assim, qualquer violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real, muito pelo contrário.
72. Quanto à alegada violação dos princípios da liberdade de iniciativa económica, da liberdade de organização empresarial e de funcionamento eficiente dos mercados que decorrem dos artigos 61.º, n.º 1, alínea c), e 81.º, alínea f), da CRP, constata-se que ao contrário do sustentado pela Requerente, os SIT não fizeram quaisquer juízos de adequação e oportunidade sobre o preço de compra da D... que tivessem resultado numa intrusão inadmissível no espaço de liberdade de iniciativa económica e gestão empresarial da Requerente. Pelo contrário, os SIT limitaram-se a actuar no estrito cumprimento do princípio da legalidade, comparando as várias operações efectuadas pela Requerente de forma a analisar se estavam ou não verificados os pressupostos de aplicação do regime de preços de transferência.
73. Vejam-se a este respeito as considerações feitas pelo TC no acórdão n.º 197/2016, proferido em 13 de Abril de 2016, no processo n.º 465/2015, que apesar de respeitarem ao regime da tributação autónoma são aqui inteiramente aplicáveis, deixando claro que as correcções ao abrigo do regime jurídico de preços de transferência também não violam estes princípios com tutela constitucional:
“A recorrente alega ainda, sem qualquer outro desenvolvimento, a violação da liberdade de iniciativa e de organização empresarial (artigo 80.º, alínea c)), da liberdade de gestão empresarial (artigo 81.º, alínea f)), da garantia de existência do sector privado (artigo 82.º, n.ºs 1 e 3) e da proibição de intervenção por parte do Estado na gestão das empresas privadas (artigo 86.º, n.º 2).
Não se vê em que termos - nem a recorrente esclarece - é que a simples tributação autónoma de despesas das empresas [correcção do preço ao abrigo do regime jurídico de preços de transferência, no presente caso] no estrito quadro do sistema fiscal, visando a satisfação das necessidades financeiras do Estado, põe em causa a garantia institucional do setor privado, e de que modo é que essa medida fiscal pode representar uma intervenção indevida do Estado na gestão das empresas privadas.
É também muito evidente que, por efeito de uma medida de política fiscal, não é posta em causa a liberdade de iniciativa económica, seja esta entendida no sentido da liberdade de iniciativa ou da liberdade de organização empresarial.
Como o Tribunal tem afirmado, a liberdade de iniciativa económica que pode retirar-se do disposto no n.º 1 do artigo 61.º e da alínea c) do artigo 80.º da CRP, visa garantir, no contexto de uma economia de mercado, que a produção e distribuição de bens ou serviços não seja vedada à ação dos privados, que terão assim um direito a uma atividade não obstaculizada por intervenções desrazoáveis ou injustificadas dos poderes públicos. Tal implica que no âmbito de proteção da norma contida no n.º 1 do artigo 61.º se conte, não apenas a liberdade de iniciar uma certa atividade económica mas também a liberdade de organização e de ordenação dos meios institucionais necessários para levar a cabo a atividade que entretanto se iniciou (acórdão n.º 304/2010).
Essa liberdade não é afetada pelo sistema fiscal, que tem, além do mais, uma função de regulação da economia.
(…) O ponto é que a atividade das empresas, como a de quaisquer outros contribuintes, se encontra subordinada a critérios de fiscalidade que estão legalmente definidos. E. desse modo, os atos de gestão empresarial que adotem, no quadro de liberdade de iniciativa económica, poderão originar o pagamento de imposto quando preencham os correspondentes requisitos de incidência tributária”.
74. Dito isto, conclui-se que os actos tributários contestados também não implicam qualquer violação dos princípios constitucionais da liberdade de iniciativa económica, da liberdade de organização empresarial e de funcionamento eficiente dos mercados.
75. Perante tudo o exposto, julgam-se improcedentes os referidos vícios de ilegalidade invocados pela Requerente.
§4 – Indemnização por prestação indevida de garantia
76. Nos termos do 53.º da LGT, a atribuição de uma indemnização por prestação indevida de garantia como forma de suspender o processo de execução fiscal está dependente de se vir a determinar, na sequência de processo de impugnação administrativa ou judicial, que o imposto que deu origem à dívida não era devido, porque ilegal, tendo assim aquela dívida sido total ou parcialmente anulada. Como no presente processo não se julgaram procedentes as ilegalidades imputadas aos actos tributários contestados pela Requerente, improcede também o pedido de atribuição de indemnização por prestação de garantia.
V. DECISÃO
Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, absolver a Requerida de todos os pedidos.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 138.160,50.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.060,00, a suportar pela Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de Agosto de 2023
A Árbitra Presidente,
Carla Castelo Trindade
(Relatora)
O Árbitro Adjunto,
José Manuel Parada Ramos
A Árbitra Adjunta,
Sofia Quental