Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 376/2022-T
Data da decisão: 2023-08-11  IRS  
Valor do pedido: € 13.944,70
Tema: IRS – residência fiscal – Convenção para Eliminação da Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Brasil.
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SUMÁRIO:

 

- O reconhecimento para o Requerente do regime dos Residentes Não-Habituais não é nem um desenvolvimento, nem uma consequência do pedido primitivo. É aliás um pedido contraditório com o pedido inicial, considerando que o Requerente está a pedir para lhe ser reconhecido que não reside em Portugal para efeitos fiscais, alterando a sua morada de cadastro para o Brasil.

 

- A superioridade hierárquica dos tratados encontra-se proclamada quer no disposto nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena, bem como no n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, do que se conclui que o Direito Internacional convencional é colocado na ordem jurídica interna num grau hierárquico superior ao da lei e, em caso de conflito, que o tratado se sobrepõe à lei interna.

 

- Reportando-nos ao ano a que respeita o caso sub judice (2019), e com base na prova apresentada pelas Partes referente a esse ano, e acima estabelecida, não existe, nesse ano, uma conexão comprovada com Portugal da qual se possa concluir que, nesse ano, é em Portugal que o Requerente tem o seu centro vital de interesses.

 

 

 

 

 

 

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

 

 

O Árbitro Maria Antónia Torres, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, acorda no seguinte:

 

I. Relatório

 

1. A..., a seguir designado por “Requerente”,  com o NIF..., ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações subsequentes (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a seguir RJAT), apresentou, em 20 de Junho de 2022, pedido de pronúncia arbitral, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticionou a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) com o nº 2020..., de 2020, referentes aos seus rendimentos de 2019, bem como a correcção da sua morada fiscal no cadastro da AT, de residente para não-residente.

 

2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, a qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. Foram as partes devidamente notificadas dessa designação, à qual não se opuseram nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Em consonância com a al. c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o tribunal arbitral singular ficou constituído em 31 de Agosto de 2022.

 

3. No pedido de pronúncia arbitral (a seguir, petição inicial ou PI), o Requerente peticionou a anulação do acto tributário de liquidação de IRS acima referido, relativo ao período de 2019, bem como a correcção da sua morada fiscal no cadastro da AT, de residente para não-residente, para o que invoca, em súmula, os seguintes fundamentos:

 

O Requerente deslocou-se a Portugal em 2018 para recolher informações e tentar obter o passaporte português. Acabou por arrendar uma casa secundária para aqui passar longos períodos de férias com a sua família, e assim diminuir custos com a estadia, cogitando a hipótese de para aqui se mudar a título definitivo em algum momento posterior.

 

Refere o Requerente que lhe terá sido dito que, para arrendar uma casa teria que ter um número de identificação fiscal (“NIF”), razão pela qual se dirigiu à repartição de finanças e fez a sua inscrição indicando a sua morada do Brasil, tendo sido advertido que, após celebrar o contrato de arrendamento, deveria atualizar a sua morada nas finanças.

 

Logo após a celebração do contrato, seguindo as orientações que lhe haviam sido dadas pelos serviços de finanças, dirigiu-se à repartição de finanças para atualizar a sua morada, indicando a morada portuguesa, sem que tivesse percebido as consequências do seu ato ou tivesse para isto sido advertido, isto é, sem ter percebido que estava, com isto, a tornar-se residente para efeitos fiscais em Portugal, o que refere que nunca pretendeu.

 

Disseram-lhe, ainda, que aqui teria que entregar uma declaração de rendimentos por ter morada em Portugal, tendo-lhe ainda sido sugerido que aderisse ao regime do Residente Não Habitual (“RNH”), pois poderia obter algumas vantagens fiscais já que estava reformado.

 

Assim, apresentou o Requerente, no início de 2019, o pedido de inscrição ao RNH com efeitos, erradamente, a partir do ano de 2019.

 

Tal pedido foi indeferido, tendo sido sugerido, pelo próprio serviço de finanças de Coimbra, que convolasse o pedido para produzir efeitos a partir do ano de 2018, o que fez mediante requerimento por si manuscrito, assinado e entregue ao balcão do referido serviço. A este requerimento nunca o Requerente terá recebido resposta, eventualmente, segundo refere, porque foi um pedido atípico e sem formulário próprio ou modelo.

 

Simultaneamente, entregou a sua declaração de rendimentos de 2019, a qual preencheu por si mesmo e apenas com o “auxílio” da repartição de finanças, tendo-se declarado como residente por orientação daqueles serviços, em virtude de ter uma casa arrendada em Portugal.

 

Na sequência dessa entrega recebeu a nota de liquidação no valor de €13.994.70, da qual reclamou graciosamente através de mandatária que constituiu e que contestou a errónea qualificação dos rendimentos, ao invés de contestar a qualificação do Requerente como residente fiscal, quando era, de facto, não residente.

 

É, em virtude do indeferimento da reclamação graciosa, que o Requerente entra em contacto com os atuais mandatários e que o representam para efeitos desta impugnação.

 

Ora, refere o Requerente que, a residência fiscal é aferida - como menciona, e bem, a A.T. no ponto 12 da decisão do recurso hierárquico – “nos termos do direito interno de cada Estado…”.

Tal conduz-nos, no plano português, como é sabido, ao artigo 16.º do Código do Imposto sobre os Rendimentos das pessoas Singulares (“IRS”) que define, no plano interno, os critérios que determinam a residência fiscal.

Ora, a A.T. invoca a alínea b) daquele preceito tendo qualificado o Requerente “como residente em Portugal no ano de 2019, pois dispunha de habitação em condições que fazer supor [SIC] intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual – alínea b) do n.º 1 do art.º 16º do CIRS”, sendo este, aliás, o primeiro critério – e dir-se-á o único de facto relevante nesta matéria – invocado pela A.T.

Não pretende o Requerente discutir que nos termos do direito interno a existência de uma habitação em condições que façam supor a intenção de manter e ocupar como residência habitual é um critério previsto na lei para determinação da residência fiscal em território português.

E, de facto, como se mencionou anteriormente, o Requerente tem uma casa arrendada em Coimbra desde 2018.

Mas, entende que se fossemos aferir da residência fiscal apenas com base na existência de um contrato de arrendamento de uma habitação secundária, seriamos obrigados a considerar todos estrangeiros e/ou nacionais não residentes em território português e que são arrendatários de um imóvel em Portugal, como aqui sendo residentes para efeitos fiscais.

 

Segundo o Requerente, este argumento é desprovido de qualquer lógica ou sentido podendo mesmo considerar-se perverso porque a verdade é que é efetivamente residente no Brasil, quer de facto, quer de direito.

 

No Brasil, o Requerente é proprietário – e não meramente arrendatário – de um imóvel no Rio de Janeiro, relativamente ao qual paga os devidos impostos no Brasil.

A residência fiscal no Brasil é aferida nos termos do artigo 12.º da Lei 9718/98 de 27 de Novembro, e artigos 2.º e 3.º da IN SRF n.º 208/2002 com as alterações subsequentes.

 

É precisamente essa a situação em que o Requerente sempre se encontrou. Uma vez que a sua residência habitual e permanente é no Brasil, todas as deslocações que tem feito a Portugal sempre foram com caráter temporário, pelo que nunca apresentou a Comunicação de Saída Definitiva do País.

 

Fosse o Requerente residente em Portugal, este problema não se colocava e os rendimentos que aufere no Brasil estariam isentos de qualquer imposto no Brasil, sendo tributados na integralidade em Portugal como residente e nos termos da convenção de dupla tributação entre Portugal e o Brasil (“CDT”), aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/2001.

 

Daqui resulta que sempre foi lá tributado pelos rendimentos auferidos como residente no Brasil, conforme resulta das declarações apresentadas em 2019 e 2020 e 2021, que se juntam em anexo como documentos 125, 126 e 127, sendo que em qualquer das declarações para os anos de 2019, 2020 e 2021, o Requerente declara-se, como de facto é, residente no Brasil.

 

Com base nos factos supra expostos, parece então que em relação ao Requerente se verifica uma situação de dupla residência fiscal.

Isto porque é considerado nos termos da legislação portuguesa como residente em Portugal para efeitos fiscais, mas também é residente fiscal no Brasil, também nos termos dos dispositivos legais supracitados.

 

Felizmente esta é uma situação que é resolvida pelo artigo 4.º da CDT, e que tem o valor de lei nos termos do artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

 

A parte inicial do artigo 4º n.º 2 alínea a) do CDT dá-nos o primeiro critério de desempate, isto é, no caso da pessoa singular ser considerada residente de ambos os Estados por virtude da legislação interna. 

 

Tal critério mostra-se dúbio a resolver o problema do Requerente porquanto este tem, em ambos os Estados, uma habitação permanente à sua disposição, ainda que, diga-se, no Brasil é proprietário de um imóvel, tendo, portanto, uma ligação forte ao Brasil, enquanto, em Portugal é um mero arrendatário de um imóvel tendo, portanto, uma ligação fraca a Portugal.

 

Não obstante, e sem conceder, este problema é resolvido pelo disposto na parte final desta alínea a) do n.º 2 e que prevê o critério de desempate para situações em que uma pessoa seja residente de ambos os Estados e é este o critério com maior relevo na situação do Requerente.

 

Determinando este preceito que o desempate se fará com base na determinação do Estado no qual o Requerente tem o seu centro de interesses vitais, teremos de analisar os factos concretos que o ligam a qualquer um dos dois Estados para perceber qual o Estado com o qual o Requerente tem ligações mais estreitas.

 

Ora, no Brasil o Requerente tem a propriedade e não o mero usufruto de um imóvel, do qual paga faturas de condomínio, e contas de telefone no Brasil.

 

Apresenta também declarações de rendimentos no Brasil – Imposto de Renda - nos anos de 2019 e 2020, na qual o Requerente se declarou como residente assim se sujeitando à tributação no Brasil, e que constam dos documentos 125 e 126, juntos à PI.

 

Teve o emprego que toda a vida teve na B... e que se demonstra facilmente olhando para as entidades que suportam a sua pensão de reforma, ambas ligadas à B..., e aufere rendimento integralmente de fonte Brasileira, o que resulta daquelas declarações de rendimento.

 

Em Portugal o Requerente tem, para 2019, (i) uma casa de férias arrendada em Coimbra, à semelhança de inúmeros outros cidadãos estrangeiros e nacionais não residentes, (ii) um veículo automóvel, (iii) despesas gerais familiares, num montante de €10.839,57, valor que nem se afigura muito avultado para uma família de quatro pessoas que potencialmente passa um ou dois meses de férias em Portugal, (iv) importâncias suportadas com a manutenção do veículo, (v) o início de atividade da sua cônjuge, (que no despacho de indeferimento nem valor tem indicado), desde já a este respeito se dizendo que são inúmeros os não residentes que têm atividade em Portugal e, nem isso, faz com que a sua esposa deixe de ser sua dependente pelo que serão, seguramente, de valor diminuto.

 

Sem conceder diga-se, ainda que, mesmo que por argumentare tantum quiséssemos considerar que os vínculos ao território brasileiro não são mais fortes que os vínculos ao território português - ideia que nos parece desprovida de sentido - e tivéssemos, por isso, que recorrer aos demais critérios previstos no CDT, então veja-se.

 

Prevê o critério da alínea b), do n.º 2 do artigo 4.º do CDT um terceiro critério para determinar a residência e é ele o Estado em que o Requerente permanece habitualmente.  Sendo esta uma diabolica probatio sempre se poderá inferir tal presença dos consumos de telefone e eletricidade os quais, como já anteriormente referirmos e agora repetimos, são permanentes mas variáveis.

 

Se o Requerente tivesse uma habitação com uma ligação elétrica mas os consumos fossem sempre os mesmos, sempre se poderia, eventualmente, dizer que talvez mesma não fosse habitada. No entanto, tal não acontece.

 

Todas as faturas de eletricidade e telefone apresentam sempre consumos variáveis, o que mostra que existe uma utilização efetiva da mesma.

 

Finalmente, e seguindo uma lógica exaustiva de argumentação, sem conceder, ainda que considerássemos que mesmo por este critério seria impossível determinar a residência do Requerente, o último critério de determinação previsto na lei é o da nacionalidade da pessoa, previsto na alínea d), do n.º 2 do artigo 4.º do CDT. Ora, até por este critério o Requerente seria considerado como residente para efeitos fiscais no Brasil e não em Portugal porquanto, ainda que sempre tenha desejado adquiri nacionalidade portuguesa originária e tenha dado início ao processo, em 2019 era, apenas, nacional do Brasil.

 

O Requerente tentou, também, por diversos meios, requerer a alteração da sua morada fiscal para o Brasil com efeitos retroativos a todo o período compreendido desde 2018, ano do seu primeiro registo, por lapso, como residente fiscal em Portugal e até ao presente momento, sem sucesso.

Foi-lhe, ainda, pedido que apresentasse um certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais Brasileiras, o qual tentou obter sem sucesso, tendo sido por estas informado que o pedido de certificado de residência fiscal se destinava a mitigar ou eliminar a dupla tributação de rendimentos e que só seria emitido caso o Requerente tivesse rendimentos obtidos no exterior, isto é, fora do Brasil onde é residente.

Como o Requerente não os tem foi-lhe negado, conforme documento que se junta como DOC. 128. Assim vê-se o Requerente impossibilitado de requerer a alteração retroativa da sua morada fiscal e não lhe foi admitido nenhum outro tipo de meio probatório por parte da A.T.

 

Do supra exposto somos, pois, obrigados a concluir que só mesmo distorcendo a realidade fática poderia o Requerente ser considerado como residente para efeitos fiscais em Portugal.

 

Considerando os vínculos e em termos comparativos temos:

- Propriedade de uma casa no Brasil por oposição a uma casa arrendada em Portugal.

- Pensão privada de fonte brasileira resultante de um emprego anterior desempenhado toda a vida no Brasil.

- Pensão pública de fonte Brasileira.

- Investimentos vários no Brasil, por oposição a nenhuns rendimentos ou investimentos em Portugal.

- Família e despesas com os familiares, por oposição a nenhuns contactos familiares ou da esfera íntima em Portugal.

 

4. A Requerida, na sua resposta, alega o seguinte:

 

O Requerente é residente em Portugal desde 11 de Maio de 2018, conforme foi declarado pelo próprio junto da Loja do Cidadão de Coimbra, aquando da sua inscrição no cadastro de contribuintes (documento nº....) e também nas declarações de rendimentos referentes aos anos de 2018 e de 2019 (nºs. ...- 2018 -...– ... e ... - 2019 - ... –..., respetivamente).

 

Em 30 de Junho de 2020, procedeu à entrega da declaração de rendimentos- mod.3 de IRS, do ano de 2019, declarando-se como residente em Portugal.

 

No quadro 6A do anexo J declarou rendimentos de pensões (privadas, decorrentes de emprego anterior), auferidos no Brasil, no total de € 61.330,71 e correspondente imposto no valor de € 14.555,71.

 

Em 4 de Julho de 2020 foi emitida a liquidação n.º 2020 ..., cujo valor de imposto a pagar foi de € 13.994,70, e que deu origem ao processo de execução fiscal nº. ...2020..., que se encontra suspenso.

 

Em 5 de Agosto de 2020, deduziu Reclamação Graciosa (doravante RG), à qual foi atribuído o nº. ...2020..., que foi indeferida por despacho do Sr. Diretor de Finanças de Coimbra, de 23 de Julho de 2021.

 

Em 15 de Setembro de 2021, apresentou Recurso Hierárquico, ao qual foi atribuído o n.º ...2021..., o qual foi indeferido por despacho do Sr. Diretor de Serviços das relações Internacionais de 16 de Março de 2022.

 

Alega o Requerente que o ato de liquidação, ora impugnado, respeita à errónea quantificação dos rendimentos, uma vez que que o imposto pago no Brasil não havia sido considerado na liquidação nº. 2020....

 

O Requerente fez constar da P.I. da RG apresentada que «Sendo residente fiscal em Portugal

que aufere pensões pagas no Brasil, estas apenas devem ser tributadas nesse Estado, de acordo com a Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Brasil (CDT), no seu nº. 1 do artº. 18º. (…)»

 

Em sede de direito de audição, o Requerente veio alegar que, por lapso, a natureza da pensão foi indicada como decorrente de emprego anterior quando, na verdade, a mesma provém da Segurança Social, aplicando-se assim o nº. 2, do artigo 18º daquela CDT.

 

Em sede de RG foi considerado que as pensões obtidas pelo Requerente não cabem no conceito de pensões constantes do comentário 28 da Convenção Modelo da OCDE, mas antes da definição de pensões resultantes de um emprego anterior.

 

Pelo que, na decisão proferida na RG, estava em causa a natureza das pensões e um eventual crédito de imposto, nunca tendo sido posta em causa a residência fiscal do Requerente assumida, desde logo, em Portugal.

 

Contudo, tendo como base a mesma liquidação, o Requerente, em sede de RH, vem alegar que em 2019 não era residente em Portugal, contrariando todas as suas declarações anteriores (concretamente em sede de RG) e também os indícios de residência em Portugal, tais como:

 

a) despesas suportadas com rendas pagas relativas à fracção ‘C’, do imóvel com o artigo matricial nº...., sito na freguesia de  ..., concelho de Coimbra, que corresponde à morada do Requerente e cujo contrato de arrendamento data de 2018;

 

b) propriedade do veículo automóvel com a matrícula..., cujo respetivo imposto (IUC) do ano de 2019, foi pago em 2019/05/03;

 

c) despesas gerais e familiares num total de € 10.839,57, incompatíveis com a falta de residência em Portugal;

 

d) importâncias suportadas com a manutenção e reparação de veículos automóveis;

 

e) início de atividade declarado pela sua cônjuge, C... (NIF:...), na loja do cidadão de Coimbra, com efeitos a 2 de Setembro de 2019.

 

Mas mais, em sede de RG, o Requerente já havia entregue um Certificado de Residência Fiscal (doravante CRF), emitido em 9 de Março de 2021 pelas Autoridades Fiscais do Brasil, para efeitos de aplicação da CDT Portugal-Brasil e para o período compreendido entre 5 de Maio de 2018 e 5 de Maio de 2019.

 

No referido documento, o Estado brasileiro atesta que considerou o Requerente como seu residente fiscal nesse período.

 

Contudo, não poderá deixar de se considerar que a residência fiscal é aferida nos termos do direito interno de cada Estado e nos termos do ordenamento jurídico interno, o Requerente foi qualificado como residente em Portugal no ano de 2019, pois dispunha de habitação em condições que fazer supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual –alínea b) do n.º 1 do art.º 16º do CIRS.

 

Acresce que, com base no citado CRF, o Requerente poderia ter solicitado a alteração retroativa de residência fiscal tendo em conta o período temporal indicado no mesmo. Porém, não o fez.

 

Mas mesmo que fosse considerado como não residente em Portugal até 5 de Maio de 2019, encontrava-se obrigado a declarar em Portugal as pensões obtidas no Brasil a partir dessa data, nos termos do nº. 1 do artigo 15º do CIRS.

 

Pelo que a AT considerou o Requerente residente em Portugal durante o ano de 2019, para efeitos de aplicação da CDT celebrada entre Portugal e o Brasil, ficando sujeito a IRS pela universalidade dos seus rendimentos, conforme o estipulado no n.º 1 do artigo 15.º do CIRS.

 

Pelo que quer a RG, quer o RH apresentados foram indeferidos.

 

Conforme consta no processo administrativo, o Requerente foi notificado para pagamento da liquidação n.º 2020..., ora impugnada, até 31 de Agosto de 2020, tendo deduzido reclamação graciosa n.º ...2020..., a qual foi expressamente indeferida e do mesmo notificada em 11 de Agosto de 2021.

 

Contudo, segundo a Requerida, o que resulta evidente é que os fundamentos invocados em sede de reclamação graciosa são completamente diferentes daqueles que o Requerente veio invocar em sede de recurso hierárquico, também este indeferido e notificado em 16 de Março de 2022.

 

O n.º 1 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo

Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, dispõe que o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado:

             

“a) No prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico;

 

b) No prazo de 30 dias, contado a partir da notificação dos actos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 2.º, nos restantes casos.”

 

E os n.ºs 1 e 2 do art. 102.º do CPPT, sob a epígrafe “Impugnação judicial. Prazo de apresentação” dispõe que:

 

“1 - A impugnação será apresentada (…) a partir dos factos seguintes:

                                                                                                            

  1. Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;

 

  1. Notificação dos restantes actos tributários, mesmo quando não dêem origem a qualquer liquidação;

 

  1. Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;

 

d) Formação da presunção de indeferimento tácito;

 

  1. Notificação dos restantes actos que possam ser objecto de impugnação autónoma nos termos deste Código;

 

  1. Conhecimento dos actos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores.

 

2 - Em caso de indeferimento de reclamação graciosa, o prazo de impugnação será de 15 dias após a notificação.”

 

Ora, entende a Requerida que, tendo o despacho que recaiu sobre a reclamação graciosa sido notificado ao Requerente a 11 de Agosto de 2021 e o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado em 20 de Junho de 2022, o prazo de 120 dias que o Requerente tinha para apresentar o pedido arbitral encontra-se ultrapassado, sendo o mesmo intempestivo. 

 

Logo, tendo o recurso hierárquico natureza facultativa, para além da enorme discrepância dos fundamentos agora invocados nesta sede, se o Requerente optou por esta via administrativa e se o mesmo lhe foi indeferido, não pode fazer renascer a prerrogativa processual que antes não usou no momento próprio, tratando-se assim de uma forma artificial para estender o prazo de impugnação judicial. 

 

Daí decorre ser extemporâneo o pedido arbitral apresentado pelo Requerente referente ao ato de liquidação em apreço.

 

A extemporaneidade constitui excepção peremptória, nos termos do art. 576.º do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo art. 29.º do RJAT), que importa a absolvição da A.T. quanto ao pedido, uma vez que impede o efeito jurídico dos factos articulados pelo Requerente.

 

Não obstante, continua a Requerida referindo que o Requerente alega, em síntese, que, no ano de 2019 era residente fiscal no Brasil, e, por conseguinte, não era residente em Portugal, solicitando assim a anulação da liquidação de IRS. E que, ainda que seja considerado residente em Portugal, devido ao facto de ser igualmente residente no Brasil, se está perante uma situação de dupla residência fiscal a ser dirimida nos termos do n.º 2 do artigo 4.º da Convenção da Dupla Tributação entre Portugal-Brasil.

 

O Requerente apresentou, em sede de procedimento administrativo, como comprovativos de residência no Brasil, entre outros, os seguintes documentos:

 

- “Declaração de ajuste anual – Imposto sobre a renda – Pessoa física – Exercício 2019 – Ano-calendário 2018”, em nome do contribuinte, e na qual é identificado endereço no Brasil;

 

- “Declaração de ajuste anual – Imposto sobre a renda – Pessoa física – Exercício 2020 – Ano-calendário 2019”, em nome do contribuinte, e na qual é identificado endereço no Brasil;

 

- “Atestado de Residência Fiscal no Brasil” emitido em 19/03/2021 pela autoridade fiscal brasileira, certificando ao abrigo da CDT Portugal-Brasil que o contribuinte foi residente fiscal no Brasil no período compreendido entre 05/05/2018 e 05/05/2019.

 

Em sede de pedido de pronúncia arbitral, o Requerente anexa um documento emitido em 2 de Fevereiro de 2022 pela autoridade fiscal brasileira, no qual é indeferido o pedido de emissão de certificado de residência fiscal, em virtude de não existirem rendimentos obtidos no estrangeiro.

 

Ora, considerando que o Requerente apresenta elementos que indiciam a residência no Brasil como a Declaração de Ajuste Anual – Ano-calendário 2019 e Atestado de Residência Fiscal no Brasil (muito embora parcial), bem como documento emitido pela autoridade fiscal brasileira a indeferir pedido de certificado de residência fiscal por inexistência de rendimentos obtidos no estrangeiro, suscita-se a dúvida se o Requerente, no ano de 2019 (1/1/2019 a 31/12/2019), foi considerado residente fiscal no Brasil nos termos do Artigo 4.º da CDT Portugal-Brasil, sendo certo que, face aos elementos exibidos já não lhe é possível apresentar mais prova quanto ao alegado.

 

Pelo que foi aberto um procedimento de troca de informação com urgência, no sentido esclarecer:

i) se o contribuinte, na totalidade do ano de 2019, foi considerado residente fiscal no Brasil ao abrigo da Convenção, por forma a permitir aplicar a regras de desempate previstas no n.º 2 do artigo 4.º da Convenção;

 

ii) na eventualidade de a autoridade fiscal brasileira apurar que o contribuinte é residente fiscal no Brasil nos termos da Convenção, identificar qual(is) os critérios que conduziram a essa qualificação;

 

iii) esclarecer o motivo pelo qual em 19/03/2021 foi emitido “Atestado de Residência Fiscal no Brasil” sem indicação de rendimentos obtidos no estrangeiro, e, posteriormente, em 02/02/2022, foi indeferido pedido semelhante efetuado pelo contribuinte;

 

iv) indicar qual o documento comprovativo de residência fiscal no Brasil, a ser emitido nos casos em que a certificação de residência fiscal se destina unicamente a comprovar a residência fiscal, e consequentemente a sujeição plena a imposto (full tax liability), para efeitos de aplicação das regras de desempate previstas no n.º 2 do artigo 4.º da Convenção.”

 

À data, a DSRI informou relativamente a esse procedimento que “(…) somos a informar que o mesmo se encontra pendente da obtenção de resposta a um pedido de troca de informações às autoridades fiscais do Brasil e relativamente à situação em concreto em apreço.

Essa solicitação foi enviada no dia 2 de Agosto do corrente ano e voltamos a insistir no pedido no passado dia 21 de Setembro dada a urgência associada a este processo judicial. No entanto, ainda não obtivemos resposta a esse nosso pedido e logo que as autoridades fiscais brasileiras nos remetam os esclarecimentos solicitados procederemos então à elaboração da proposta de pronúncia da Sra. Subdirectora-Geral.”.

 

Assim, a abertura do referido procedimento tem como finalidade o esclarecimento da inscrição do Requerente como RNH e, consequentemente, a manutenção ou revisão oficiosa do ato de liquidação de IRS n.º 2020 ..., objeto da presente impugnação. Encontra-se, no entanto, e conforme referido, pendente.

 

5. Por despacho de 7 de Fevereiro de 2023 foi dispensada a reunião prevista no art. 18.º do RJAT e notificadas as Partes para a produção de alegações escritas, o que vieram ambas a apresentar.

 

6. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente representadas (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03).

 

7. Para além da exceção invocada pela Requerida, que será apreciada na sequência da fixação da factualidade relevante, o processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

II. QUESTÕES A DECIDIR

 

8. O objeto do presente litígio concerne à legalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), com o nº 2020..., de 2020, referente aos rendimentos de 2019 do Requerente, bem como a correcção da sua morada fiscal no cadastro da AT, de residente para não-residente.

 

9. Nas alegações o Requerente apresentou “numa lógica de argumentare tantum, nos termos do artigo 265.º, n.º 2 do CPC” uma ampliação do pedido para, alternativamente, se reconhecer o regime do RNH e, consequentemente, por essa via declarar ilícita a liquidação de IRS.

De acordo com o citado artigo, pode o pedido ser ampliado se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo. Tal como se explana no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 05 de Junho de 2018, com o  apoio na doutrina e jurisprudência ali citada: “(…) A ampliação pressupõe que dentro da mesma causa de pedir a pretensão primitiva se modifica para mais, o que permite distingui-la da cumulação de pedidos em que a um pedido fundado em determinado facto se junta um outro, fundado em facto diverso, ou seja em ato ou facto jurídico diferente com individualidade e autonomia perfeitamente diferenciada dos pedidos primitivos. (…).

 

Ora, entendemos que pedir o reconhecimento para o Requerente do regime dos Residentes Não-Habituais não é nem um desenvolvimento, nem uma consequência do pedido primitivo. Aliás, são de alguma forma pedidos contraditórios, considerando que o Requerente está a pedir para lhe ser reconhecido que não reside em Portugal para efeitos fiscais, alterando a sua morada de cadastro para o Brasil, e o regime dos Residentes Não Habituais tem como requisito base a residência fiscal em Portugal. Pelo que se considera improcedente a solicitação de ampliação do pedido inicial.

 

10. A resolução de todas estas questões pressupõe o apuramento e fixação da factualidade relevante, o que se passa a realizar.

 

III. Fundamentação de Facto

 

A. Factos provados

 

11. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

 

I. O Requerente é residente em Portugal desde 11 de Maio de 2018, conforme foi declarado pelo próprio junto da Loja do Cidadão de Coimbra, aquando da sua inscrição no cadastro de contribuintes (documento nº. ...) e também nas declarações de rendimentos referentes aos anos de 2018 e de 2019 (nºs. ...- 2018 - ... – ... e ...- 2019 - ...–..., respetivamente).

 

II. Tem uma casa arrendada em Portugal desde 2018, com algumas despesas gerais associadas no montante de €10.839,57.

 

III. Após o contrato de arrendamento solicitou um NIF Português.

 

IV. Apresentou o Requerente, no início de 2019, o pedido de inscrição ao RNH com efeitos, erradamente, a partir do ano de 2019.  Tal pedido foi indeferido.

 

V. Simultaneamente, em 30 de Junho de 2020, entregou a sua declaração de rendimentos de 2019, tendo-se declarado como residente em Portugal.

 

VI. No quadro 6A do anexo J declarou rendimentos de pensões (privadas, decorrentes de emprego anterior), auferidos no Brasil, no total de € 61.330,71 e correspondente imposto no valor de € 14.555,71.

 

VII. Em 4 de Julho de 2020 foi emitida a liquidação n.º 2020 ..., cujo valor de imposto a pagar foi de € 13.994,70, e que deu origem ao processo de execução fiscal nº. ...2020..., que se encontra suspenso.

 

VIII. Em 5 de Agosto de 2020, deduziu Reclamação Graciosa (doravante RG), à qual foi atribuído o nº. ...2020..., que foi indeferida por despacho do Sr. Diretor de Finanças de Coimbra, de 23 de Julho de 2021.

 

IX. Em 15 de Setembro de 2021, apresentou Recurso Hierárquico, ao qual foi atribuído o n.º ...2021..., o qual foi indeferido por despacho do Sr. Diretor de Serviços das relações Internacionais de 16 de Março de 2022.

 

X. No Brasil, o Requerente é proprietário de um imóvel no Rio de Janeiro, relativamente ao qual paga impostos e tem despesas gerais associadas (eletricidade e telefone).

 

XI. O Requerente entrega as suas declarações de impostos no Brasil, tendo sido sempre lá tributado pelos rendimentos auferidos como residente no Brasil, conforme resulta das declarações apresentadas em 2019 e 2020 e 2021, que se juntam em anexo como documentos 125, 126 e 127 à PI, sendo que em qualquer das declarações para os anos de 2019, 2020 e 2021, o Requerente declara-se residente no Brasil.

 

XII. O Requerente trabalhou na B..., grupo do qual recebe a sua pensão de reforma, auferindo rendimento integralmente de fonte Brasileira.

 

XIII. O Requerente obteve um certificado de residência fiscal, emitido em 19/03/2021 pela autoridade fiscal brasileira, certificando ao abrigo da CDT Portugal-Brasil que o contribuinte foi residente fiscal no Brasil no período compreendido entre 05/05/2018 e 05/05/2019.

 

XV. Tendo pedido posteriormente um outro certificado, não lhe foi concedido, tendo sido  informado pela autoridade fiscal brasileira que o pedido de certificado de residência fiscal se destinava a mitigar ou eliminar a dupla tributação de rendimentos e que só seria emitido caso o Requerente tivesse rendimentos obtidos no exterior, isto é, fora do Brasil. E que tal não sendo o caso, não haveria enquadramento para a emissão do certificado. Nessa resposta a autoridade fiscal brasileira trata, efectivamente, o Requerente enquanto residente no Brasil.

 

 

 

B. Factos não Provados

 

12. Com relevo para a decisão da causa em face das alegações das partes, o Tribunal considera não existirem factos não provados.

 

C. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

13. A convicção do Tribunal fundou-se no exame e análise crítica dos documentos juntos aos autos com a PI e constantes do PA e no reconhecimento de factos realizado pela Requerida.

 

 

IV. Da exceção alegada

 

A título prévio cumpre sanear o processo, apreciando para o efeito a matéria de exceção invocada pela Requerida na sua resposta, a saber, a da caducidade do direito de ação, por apresentação extemporânea do pedido de pronúncia arbitral (PPA), na medida em que a decisão neste ponto condiciona ou prejudica o conhecimento da questão de direito suscitadas pelas partes.

Relativamente à extemporaneidade, a AT vem dizer que o Requerente optou por apresentar recurso hierárquico, tendo a decisão de indeferimento do mesmo sido dada a conhecer por ofício de 16 de Março de 2022. Ora, entende a Requerida que a interposição do recurso hierárquico não suspende o prazo de interposição do PPA, porque é facultativo, pelo que o PPA teria sido interposto fora do prazo legal para o efeito.

Vejamos.

Determina o art. 10.º, 1, a), RJAT, que "o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n. 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico."

Diz-nos Jorge Lopes de Sousa, Guia da Arbitragem Voluntária, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 164-165, que "o prazo de 90 dias previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT aplica-se também aos pedidos de declaração de ilegalidade de indeferimento de recursos hierárquicos [quer o indeferimento seja expresso, quer seja tácito, a que se faz referência expressa na alínea a)], bem como ao indeferimento de reclamações graciosas de atos de liquidação [é a estas que se reportava o n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, que se refere na mesma alínea a), não era, por isso, aplicável o prazo de 15 dias, previsto no n.º 2 do artigo 102.º do CPPT para a impugnação judicial de decisões expressas de reclamações graciosas, que veio a ser revogado pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro]. A remissão operada pelo n.º 1 do artigo 10.º do RJAT para o n.º 2 do artigo 102.º do CPPT é restrita ao termo inicial do prazo para a apresentação do pedido de pronúncia arbitral, não abrangendo, por isso, o prazo mais restritivo de 15 dias para a impugnação, a contar da notificação do indeferimento (expresso) da reclamação graciosa. Assim, formando-se indeferimento tácito ou havendo lugar a notificação do indeferimento expresso, da reclamação graciosa, os contribuintes dispõem sempre de um prazo de 90 dias para o efeito de apresentação do pedido de pronuncia arbitral".

O Requerente pode optar, para atacar a decisão, ou por utilizar as instâncias judiciais ou as arbitrais.

Do art. 10.º, 1, a), RJAT, resulta o prazo de 90 dias para o Requerente apresentar o pedido de constituição do Tribunal Arbitra a contar da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico. Decorrido esse prazo, e caso o Requerente não tenha submetido a sua pretensão à apreciação do Tribunal Arbitral Tributário, o ato tributário, ainda que eventualmente viciado e anulável, consolida-se não podendo ser atacado.

 Curiosamente, na parte final do art. 10.º, 1, a), RJAT, o legislador prescindiu da expressão "consoante o que ocorra em primeiro lugar", que utiliza no art. 59.º, 1, 4, parte final, CPTA. Importa, obviamente, retirar as devidas consequências que resultam dessa omissão.

Com efeito, de acordo com Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª edição, Encontro da Escrita, 2012, p. 483, em comentário ao art. 57.º, LGT, "tratando-se de uma faculdade de acesso à via contenciosa, da não impugnação do indeferimento tácito não advém consequências negativas para o interessado, designadamente a não impugnação no prazo legal não tem como corolário a caducidade do direito de vir a impugnar o acto expresso de indeferimento quando ele, tardiamente, venha a ser praticado, não se formando, por isso, o chamado caso decidido ou resolvido". E, na p. 484, "Se após ter decorrido o prazo para formação do indeferimento tácito, mas antes de apresentação da impugnação contenciosa, for proferido um acto expresso de indeferimento da pretensão formulada em procedimento tributário, o único acto impugnável será o acto expresso."

Tendo isto ciente, e aplicando o art. 10.º, 1, a), 2.ª parte, RJAT, e o entendimento interpretativo que dele se colhe, se ao Requerente é enviado ofício datado de 16 de Março de 2022, que capeia a decisão de indeferimento do recurso hierárquico interposto, e se o PPA é apresentado junto do CAAD a 20 de Junho de 2022, considerando o prazo para se considerar notificada a decisão é manifesto que o PPA apresentado é tempestivo, nos termos do art. 10.º, 1, a), RJAT.

A idêntica conclusão também chegamos aplicando o disposto nos arts. 99.º e 102.º, e), CPPT, pois a decisão que indeferiu o recurso hierárquico apreciou a legalidade do ato de liquidação em causa (indeferimento expresso — cf. art. 97.º, 1, d), CPPT) e o PPA foi apresentado no limite dos 90 dias a contar do termo inicial previsto no citado 102.º, e), idem.

Por conseguinte, improcede a exceção de caducidade do PPA suscitada pela Requerida.

 

V. Do Mérito. Fundamentação de Direito

 

De acordo com o artigo 16º do Código do Imposto sobre as Pessoas Singulares (CIRC), são consideradas residentes em território Português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

 

“a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;


b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;


c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;

d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.


2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.”

 

No caso sub judice, o Requerente declarou-se ele próprio residente em Portugal em dois momentos: (i) na sua inscrição no cadastro de contribuinte em 11 de maio de 2018 e (ii) nas suas declarações de IRS relativas ao ano de 2018 e 2019. Pelo que se encontra registado para efeitos fiscais na qualidade de residente em Portugal. Tem ainda uma casa arrendada em Portugal, com algumas despesas gerais associadas.

 

No que ao Brasil concerne, o Requerente apresentou as suas declarações de rendimento sempre enquanto residente e obteve um certificado de residência fiscal das autoridades tributárias brasileiras que cobre parcialmente o ano de 2019. Acresce que, quando o Requerente vem posteriormente solicitar um novo certificado de residência, as autoridades fiscais no Brasil indeferem o pedido por ausência de rendimentos de fonte não Brasileira, mas claramente não sendo questionado o facto do Requerente ser residente no Brasil.

 

Face a este contexto, parece, de facto, ser o Requerente formalmente considerado nos dois países enquanto residente para efeitos fiscais. Facto que é expressamente aceite pelo Requerente na PI e não verdadeiramente contestado pela Requerida que aguarda uma clarificação do Brasil quanto ao tema.

 

Assim sendo, entende-se que estamos perante uma situação de dupla residência fiscal, que deverá ser então enquadrada ao nível da Convenção para Eliminação da Dupla Tributação (CDT) celebrada entre Portugal e o Brasil.

 

A Dupla tributação é o conceito através do qual, no Direito Tributário, se designam os casos de concurso de normas. Este concurso caracteriza-se pela verificação de que o mesmo facto se integra na previsão de duas normas diferentes.

 

Há um concurso de normas de Direito Tributário quando o mesmo facto se integra na incidência de duas normas distintas, dando origem à constituição de mais do que uma obrigação de imposto. No caso concreto, trata-se das normas de enquadramento da residência fiscal em dois países distintos.

 

Por forma a eliminar a dupla tributação internacional, e obviar às consequências negativas que a mesma representa para o desenvolvimento da atividade económica internacional, foram colocados à disposição dos Estados, dois tipos de instrumentos, a saber: a) as medidas unilaterais – disposições internas dos Estados (v.g. artigo 81.º do Código do IRS) – e; b) as medidas bilaterais – tratados ou convenções de dupla tributação internacional.

 

A superioridade hierárquica dos tratados encontra-se proclamada quer no disposto nos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena, bem como no n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, do que se conclui que o Direito Internacional convencional é colocado na ordem jurídica interna num grau hierárquico superior ao da lei e, em caso de conflito, que o tratado se sobrepõe à lei interna.

 

De acordo com o referido CDT, no seu artigo 4º nº 2:

 

— Quando, por virtude do disposto no nº 1, uma pessoa singular ou física for residente de ambos os Estados Contratantes, a situação será resolvida do seguinte modo:

a) Será considerada como residente apenas no Estado em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados, será considerada residente do Estado com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais);

b) Se o Estado em que tem o centro de interesses vitais não puder ser determinado ou se não tiver uma habitação permanente à sua disposição em nenhum dos Estados, será considerada residente apenas do Estado em que permanece habitualmente;

c) Se permanecer habitualmente em ambos os Estados ou se não permanecer habitualmente em nenhum deles, será considerada como residente apenas do Estado de que for nacional;

d) Se for nacional de ambos os Estados ou não for nacional de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados Contratantes resolverão o caso de comum acordo.

 

Senão vejamos. De acordo com “Klaus Vogel on double taxation conventions - fifth edition”, o artigo 4º destina-se a definir o significado de residente de um Estado contratante e a resolver os casos de dupla residência. Ou seja, os casos em que ambos os Estados reclamam a residência do sujeito passivo, tornando necessário aferir a que conceito de residência se deve dar primazia.

 

No parágrafo segundo do mesmo artigo 4º, trata-se precisamente desse tema: quando um individuo é considerado residente nos dois Estados, qual dos Estados deve ter primazia.

Ora, este é o caso em apreço. Ambos os Estados, Brasil e Portugal, tratam o Requerente como seu residente e, dessa forma, tributando-o como tal.

Nesse caso, estabelece o acima referido artigo 4º, que deve dar-se primazia ao Estado em que o indivíduo detiver a propriedade ou a posse de uma habitação permanente, isto por oposição a ficar num sítio que é evidentemente de utilização apenas para uma curta estadia.

De acordo com os comentários de Klaus Vogel, tanto se considera como habitação permanente uma casa que seja da propriedade do indivíduo, como aquela que seja arrendada. O relevante é que esteja à disposição do individuo em contínuo e não apenas para as suas estadias. Tem de existir a possibilidade de lá ficar a qualquer momento.

No caso em concreto, o Requerente tem no Brasil uma casa que é sua propriedade e em Portugal uma casa arrendada com carácter de permanência. Ambas as habitações parecem ter, em suma, o carácter de permanência que o artigo 4º refere. 

Ora, continua o mesmo artigo 4º, estabelecendo que se o indivíduo tem uma habitação permanente nos dois estados, a preferência é dada ao Estado onde tem o seu centro vital de interesses. Ou seja, é dada preferência ao Estado onde estão as suas relações pessoais e económicas mais próximas, o seu centro vital de interesses.

Klaus Vogel nos comentários acima citados refere ainda, com relevância para o caso sub judice, que se um indivíduo tem uma habitação num dos Estados e estabelece uma segunda habitação num outro Estado, mantendo a primeira habitação, o facto de ele reter a primeira habitação no ambiente onde sempre viveu, onde trabalhou, onde tem a sua família e as suas posses, pode, juntamente com outros elementos, demonstrar que ele mantém o seu centro vital de interesses no primeiro Estado.

Ou seja, o facto do Requerente ter estabelecido uma segunda habitação em Portugal não é indicativo, por si só, que tenha mudado para cá o seu centro vital de interesses, de acordo com o estabelecido no referido artigo 4º.

Têm de ser considerados para efeitos de identificação do centro vital de interesses, a família, as relações sociais, culturais, a ocupação, as actividades políticas, o local de onde o indivíduo administra o seu património, etc. No geral, conforme referido nos comentários à convenção modelo, há que aferir com que Estado são mais próximas as relações pessoais e económicas do indivíduo.

Ora, reportando-nos ao ano a que respeita o caso sub judice (2019), e com base na prova apresentada pelas Partes referente a esse ano, e acima estabelecida, não existe, nesse ano, uma conexão comprovada com Portugal da qual se possa concluir que, nesse ano, é em Portugal que o Requerente tem o seu centro vital de interesses.

Á contrário, as relações pessoais e económicas do Requerente com o Brasil são comparativamente (e naturalmente) mais relevantes no ano em apreço. Toda a sua vida pessoal e económica tem origem no Brasil conforme resulta da prova efectuada e tida acima como provada. Isto não significa que em anos subsequentes o seu centro vital de interesses não passe a ser Portugal, mas em 2019, e com base na prova efectuada, não se pode retirar essa conclusão.

O Requerente mantém a sua primeira habitação, de que é proprietário, no Brasil, país onde sempre viveu e trabalhou, do qual recebe as suas únicas fontes de rendimento, no qual entrega as suas declarações fiscais enquanto residente, pelo que face à disposição acima citada, se entende que fica demonstrado que ele mantém no Brasil o seu centro vital de interesses.

Pelo que, entende este Tribunal que, no ano de 2019, e ao abrigo da Convenção para Eliminação da Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Brasil, deve o Requerente ser considerado como residente para efeitos fiscais no Brasil, e não em Portugal.

 

VI. Decisão

 

Termos em que se decide:

  1. julgar improcedente a excepção invocada pela Requerida;

b) julgar improcedente o pedido de alargamento da petição pelo Requerente;

c) julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade, com consequente anulação, do acto tributário impugnado com o nº 2020..., de 2020, relativo ao ano de 2019, no montante total de 13.944,70 (treze mil novecentos e quarenta e quatro euros e setenta cêntimos);

 

 

VII. Valor do Processo

 

Fixa-se, em conformidade com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no art. 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o valor do processo em €13.944,70 (treze mil novecentos e quarenta e quatro euros e setenta cêntimos), que constitui a importância do imposto que foi indicada como objeto de impugnação na liquidação sindicada.

 

VIII. CUSTAS

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918 (novecentos e dezoito euros) nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de Agosto de 2023

 

 

 

A Árbitro

 

 

 

(Maria Antónia Torres)