Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 648/2022-T
Data da decisão: 2023-08-09  IVA  
Valor do pedido: € 684.030,21
Tema: IVA. Locação financeira. Pro rata. Direito à dedução
Versão em PDF

Sumário:

 

1. Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a Administração Tributária apenas pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando esteja demonstrado casuisticamente que a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação.

2. O normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Directiva.

3. Termos em que a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do "coeficiente de imputação específico" indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, não tendo o legislador feito uso  da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fracção.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernanda Maças (árbitro-presidente), Dra. Magda Feliciano e Dr. David de Oliveira Silva Nunes Fernandes (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 3 de Janeiro de 2023, acordam no seguinte:

 

 

I-RELATÓRIO

 

A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante designada por “Requerente”, pessoa colectiva n.º..., com sede Rua ..., n.º ..., ..., ..., ..., vem, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária doravante designado como "RJAT"), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista:

 

a) Anular parcialmente a autoliquidação de IVA efectuada pela Requerente nas declarações periódicas de imposto relativas ao ano 2018, materializadas na declaração periódica de imposto com referência ao mês de Dezembro do mesmo ano, cuja percentagem de dedução ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista adquiridos deu lugar ao montante de €213.759,44 de IVA dedutível, percentagem essa calculada de acordo com os entendimentos veiculados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente as instruções ilegais do Ofício-circulado n.º 30108, quando, de acordo com a legislação nacional e comunitária do IVA, a percentagem de dedução deveria corresponder a 21%;

b) Restituir à Requerente o valor do IVA pago em excesso nas supra referidas declarações periódicas de imposto, no montante global de € 684.030,21;

c) Pagar à Requerente juros indemnizatórios, por estarem preenchidos os pressupostos do artigo 43.º da LGT, em particular do seu n.º 2, contados desde a data da entrega da declaração periódica de IVA referente a Dezembro de 2018 até à restituição do imposto pago em excesso com referência a este ano;

d) A título subsidiário, atenta a natureza institucional e a base legal em que assenta a arbitragem tributária, se e na medida em que não seja claro para o tribunal arbitral, não obstante a jurisprudência comunitária já produzida sobre a matéria, o alcance dos artigos 168.º e 173.º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, ou de qualquer outra norma da mesma Directiva que possa em seu juízo interferir com a boa solução deste caso concreto, deverá então este Tribunal Arbitral promover o reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar para o tribunal de justiça da união europeia, conforme previsto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), e no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao

IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, adiante AT.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 3.01.2023.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 16-12-2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 3-01-2022.

Por despacho do Presidente do Conselho Deontológico, de 21 de Março de 2023, foi determinada a substituição, como árbitro presidente do processo, do Exmo Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues pela Exma Conselheira Fernanda Maçãs.

 

A AT respondeu, defendendo a improcedência dos pedidos.

 

As Partes concordaram em que fosse aproveitada a prova testemunhal produzida no processo arbitral n.º 559/2022-T, que correu termos entre as mesmas, o que foi deferido por despacho de 24.02.2023.

Por despacho de 24.02.2023, foi decidido que o processo prosseguisse com alegações sucessivas.

 

As Partes apresentaram alegações.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não são suscitados obstáculos à apreciação do mérito da causa.

 

 

 

 

 

           

II- FUNDAMENTOS

 

II-1-Matéria de facto

 

§1.º Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial com sede em território nacional, configurando uma instituição de crédito, abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
  2. Para efeitos de IVA, configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma;
  3. Caracteriza-se por ser um sujeito passivo "misto", uma vez que exerce actividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da actividade
  4. A Requerente é uma sociedade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma;
  5. A Requerente apurou uma percentagem de dedução de IVA inferior àquela que segundo o seu entendimento seria a correcta face às disposições legais em vigor, e que de acordo com os seus cálculos ascendia a 21% (em vez do que originariamente apurou, 4%), o que, em sua perspectiva, se consubstanciou na entrega de prestação tributária (IVA) em excesso;
  6. Em concreto, procedeu a Requerente ao cálculo do coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2018, em estrita consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA;
  7. Contudo, a Requerente verificou que, se no cálculo da referida percentagem de dedução tivesse incluído os montantes respeitantes às amortizações financeiras do contrato de leasing a percentagem de dedução definitiva apurada seria de 21%;
  8. A Requerente apresentou Pedido de Revisão Oficiosa da autoliquidação de imposto relativa ao referido período de imposto, ao abrigo do disposto nos artigos 98.º do Código do IVA e 78.º da LGT;
  9.  O referido Pedido de Revisão Oficiosa veio, por despacho de 22 de Julho de 2022, a ser indeferido;
  10. A Requerente juntou os manuais de procedimentos utilizados por todos os intervenientes do processo de leasing, sendo com base nos mesmos que se garante que os múltiplos processos seguem a mesma metodologia, que se consideram para os devidos efeitos como integralmente reproduzidos (cfr. docs 3 a 9 juntos com o Pedido arbitral);
  11. A tramitação de um processo de leasing na esfera da Requerente inicia-se com uma proposta por parte do cliente, seguida de uma análise de risco e de uma decisão pela Direcção da Requerente– culminando esta fase do processo com a emissão do contrato;
  12. Posteriormente verifica-se a entrega do bem locado, a qual depende de uma autorização prévia comunicada pela Requerente ao fornecedor do bem;
  13. A autorização de pagamento e o registo do empréstimo com vista à disponibilização dos bens locados dependerão de interacções entre a Requerente e os fornecedores dos bens locados (análise da documentação remetida pelo fornecedor com referência aos bens locados a adquirir pela Requerente com vista à sua locação aos clientes);
  14. A participação da Requerente no processo de legalização da viatura locada (no caso de leasing automóvel) passa por garantir o preenchimento do modelo único (para viaturas) e a legalização da viatura (cfr. doc n.º 4);
  15. Os fornecedores das viaturas são contactados para obtenção de cópia do comprovativo de legalização periodicamente;
  16. No que respeita ao pagamento dos impostos das viaturas financiadas em leasing referentes a anos anteriores, a Requerente recebe da Autoridade Tributária e Aduaneira as notificações para pagamento de Imposto Único de Circulação (“IUC”) e procede, seguidamente, à identificação do locatário ou contrato associado por forma a obter as guias de pagamento do imposto, disponibilizadas no Portal das Finanças. Posteriormente, a Requerente solicita, internamente, o seu pagamento e junta o comprovativo de pagamento à respectiva guia. Neste âmbito, a Requerente notifica o locatário, referindo a data limite para o débito do montante de imposto liquidado (cfr. doc 5 junto com o Pedido arbitral);
  17. Nos casos de infracções rodoviárias que envolvam viaturas locadas, uma vez recebido o pedido de identificação do condutor, a Requerente, atendendo à matrícula que consta da notificação recebida, procede à identificação do locatário da viatura, enviando uma carta ao cliente (com o original da notificação) e uma carta à entidade autuante na qual seja identificado o locatário (cfr. docs 5 e 6 juntos com o Pedido arbitral);
  18. Após recepção das cartas das seguradoras, a Requerente tem de verificar a informação prestada, nomeadamente a actualização do capital seguro, o cancelamento do seguro de contratos de leasing liquidados, a cessação de contratos de seguros por falta de pagamento de prémios e pedidos de cancelamento de apólices. Quando informada pela(s) Seguradora(s) da falta de pagamento dos prémios de seguro e pedidos de cancelamento de apólices relativamente a contratos activos, a Requerente remete notificação para a morada do cliente a solicitar apresentação de evidência de seguro válido, encetando, em simultâneo, as diligências necessárias junto da seguradora para reactivação do seguro;
  19. No âmbito dos contratos de leasing, perante a ocorrência de sinistros, a Requerente interage activamente com a(s) Seguradora(s), na disponibilização de informação a essas últimas (cfr. doc 7 junto com o Pedido arbitral);
  20. Por forma a facilitar as interacções com o cliente, a Requerente disponibiliza diversos meios de comunicação, desde os dois balcões abertos em território nacional (sitos em Matosinhos e em Lisboa), email, homebanking, site, ctt e ainda um call center aberto de segunda-feira a sexta-feira das 9:00h às 20:00h;
  21. O termo do leasing ou eventuais alterações do mesmo (e.g. cedência de posição contratual), implicam inúmeras interacções entre as áreas de gestão de carteira e a contabilidade e reporte financeiro, bem como a direcção comercial, merecendo destaque, nos casos de cessão de posição contratual, a tramitação associada à disponibilização da viatura locada ao cessionário- cf. Documentos 8 e 9 juntos aos autos;
  22. Para esse efeito a Requerente formou um departamento/direcção destinado/a apenas à recuperação do crédito em dívida, i.e. a partir do momento em que o cliente entra em incumprimento contratual, existe um departamento/direcção que, através de diversas equipas, procede à tentativa de recuperação dos montantes em falta;
  23. Verifica-se um efectivo e maioritário consumo de recursos de utilização mista relacionados com a disponibilização/gestão dos bens objecto de locação;
  24. Há assim uma afectação real e significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, considerando como afectas à disponibilização dos veículos a generalidade das tarefas que apenas ocorrem na prestação de serviços de locação financeira, designadamente:

i) Identificação do cliente quando haja lugar a pagamento de multas;

ii) Confirmação de que o cliente possui um seguro válido para a viatura e que o respectivo pagamento se encontra em dia;

iii) Legalização da viatura;

iv) Diversas interacções com a contabilidade;

v) Emissão de recibos e de facturas das rendas cobradas mensalmente pela

Requerente;

vi) Alterações de morada dos clientes, a pedido destes últimos;

vii) Alterações dos IBAN, a pedido dos clientes, dos quais são debitadas as rendas dos

contratos de leasing;

viii) Alterações dos titulares dos contratos, a pedido dos clientes;

ix) Apresentação dos valores de liquidação;

x) Facturação dos IUC’s (todos os anos);

xi) Interacções com a Autoridade Tributária, com os clientes e com as seguradoras.

 

 

§2.º Factos não provados

Não se provou a exacta medida da utilização dos custos gerais incorridos, os quais não são possíveis de alocar ou quantificar a cada tarefa/ação, tendo em conta as variadas tarefas em que se desdobra o leasing (i.e., não é exequível quantificar qual o IVA incorrido com referência à gestão dos contratos e financiamento e o IVA incorrido com referência à disponibilização dos bens).

Na verdade, da prova produzida resultam os tipos de actividades desenvolvidas pela Requerente e até que a maior parte desses custos gerais existem na segunda parte do contrato, mas não a quantificação da utilização de recursos de utilização mista afectos a qualquer delas.

Apurou-se que, no caso de leasing de veículos, que a actividade posterior à fase inicial de aquisição e formalização do contrato e registo da aquisição, inclui mais tarefas do que a fase inicial e estão previstas comissões específicas destinadas, na sua maioria, a ressarcir custos directos, mas não visam ressarcir os gastos gerais incorridos, até pela impossibilidade da sua quantificação.

Não se provou que, no caso em apreço, se verifiquem distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no supra referido Ofício-circulado n.º 30108, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.

De facto, no referido Ofício não se esclarece porque é que a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, não é justificada a existência de distorções significativas na tributação em consequência do recurso ao pro rata.

A AT apenas alegou de forma vaga uma distorção significativa, sem indicar os factos em que esta se concretizava e sem demonstrar a sua existência, limitando-se aos juízos conclusivos constantes do referido ofício.

 

 

§3.º Fundamentação da fixação da matéria de facto

A matéria de facto, para além da que se encontra aceite entre as partes, foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção sobre a mesma foi formada com base em prova documental, i.e., na documentação junta pela Requerente, bem como pela junção do processo administrativo, efectuada pela Requerida, e, ainda, pela prova testemunhal realizada em audiência de julgamento, na Decisão arbitral, processo n.º 559/2022-T.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada pelas partes, devendo, por isso, seleccionar a matéria factual com relevância directa para a decisão.

O Tribunal Arbitral apreciou livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

 

II-2- Matéria de direito

 

II-2-1- Apreciação da legalidade do acto tributário de autoliquidação impugnado, bem como do respetivo despacho de indeferimento

 

 Está em causa nos presentes autos apreciar a legalidade da autoliquidação de IVA relativo ao ano de 2018, materializado na declaração periódica de IVA do mês de Dezembro, no que respeita à dedução de IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista relativos à actividade de leasing e ALD desenvolvida pela Requerente.

Em termos sumários, defende a Requerente o direito à dedução do IVA, considerando no cálculo da percentagem do direito à dedução, os valores relativos às amortizações financeiras, no âmbito de contratos de locação financeira, atendendo a que os gastos são sobretudo consumidos pela disponibilização dos veículos.

Na verdade, considerando as amortizações financeiras do leasing no cálculo do critério da percentagem do direito à dedução relativo ao ano 2018, a Requerente defende ter direito à dedução de 21% do total do IVA incorrido, no valor de €897.789,65 e não de €684.030,21, conforme autoliquidação emitida de acordo com as instruções da AT.

Por sua vez, a AT alega que a autoliquidação de IVA de Dezembro de 2018 não está viciada de erro, tendo sido tal acto emitido em perfeita concordância com a Lei e com o Oficio-Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, considerando que as operações locação financeira constituem uma modalidade de crédito, cuja contrapartida remuneratória é constituída essencialmente por juros e outros encargos incluídos nas rendas, razão pela qual a restituição do capital financiado (amortização financeira).não deve ser incluído, enquanto parte integrante da renda, para a determinação afectação real

Mais defende a AT que o afastamento do critério de imputação específico previsto no Ofício- Circulado não contempla qualquer tipo de prova, porquanto resultam antes de um método automático, criado pelo legislador, só podendo a Requerente conjeturar um critério de afectação real que demonstrasse o real consumo dos gastos gerais pela locação financeira.

 

§1.º- Legislação aplicável sobre o direito a dedução de IVA

 

Os artigos 168.º, 173.º e 174.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelecem o seguinte:

 

Artigo 168.º

Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

b)  O IVA devido em relação a operações assimiladas a entregas de bens e a prestações de serviços, em conformidade com a alínea a) do artigo 18.º e o artigo 27.º;

c)  O IVA devido em relação às aquisições intracomunitárias de bens, em conformidade com o artigo 2.o, n.º 1, alínea b), subalínea i);

d)  O IVA devido em relação a operações assimiladas a aquisições intracomunitárias, em conformidade com os artigos 21.º e 22.º;

e)  O IVA devido ou pago em relação a bens importados para esse Estado–Membro.

 

 

Artigo 173.º

1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.

O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo.

2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:

a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;

e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respectivo montante for insignificante. Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

 

Artigo 174.º

1. O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes:

a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º;

b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

Os Estados–Membros podem incluir no denominador o montante das subvenções que não sejam as directamente ligadas ao preço das entregas de bens ou das prestações de serviços referidas no artigo 73.º.

2. Em derrogação do disposto no n.º 1, no cálculo do pro rata de dedução não são tomados em consideração os seguintes montantes:

a) O montante do volume de negócios relativo às entregas de bens de investimento utilizados pelo sujeito passivo na sua empresa;

b) O montante do volume de negócios relativo às operações acessórias imobiliárias e financeiras;

c) O montante do volume de negócios relativo às operações referidas nas alíneas b) a g) do n.º 1 do artigo 135.º, se se tratar de operações acessórias.

3. Quando façam uso da faculdade prevista no artigo 191.º de não exigir a regularização em relação aos bens de investimento, os Estados–Membros podem incluir o produto da cessão desses bens no cálculo do pro rata de dedução.

 

Os artigos 16.º, 19.º, 20.º e 23.º do Código do IVA estabelecem o seguinte, no que está em causa no presente processo:

 

Artigo 16.º

Valor tributável nas operações internas

 

1 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.

2 - Nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é:

(...)

h) Para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário.

 

 

Artigo 19.º

Direito à dedução

1 - Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:

 

a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;

 

Artigo 20.º

Operações que conferem o direito à dedução

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

 

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

 

Artigo 23.º

Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

 

 

 

 

§2.ºA Jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo

 

Seguindo de perto a Jurisprudência produzida sobre a temática transcreve-se o exposto na Decisão do CAAD n.º 576/2021, de 14.02.2022:

“O TJUE pronunciou-se sobre uma situação deste tipo, atinente a instituição bancária que desenvolve actividades de locação financeira que conferem direito à dedução e outras actividades financeiras, que não conferem tal direito.

As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º) ( [1] ).

Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Directiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que «os Estados-membros podem» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

No acórdão proferido em 10-07-2014, no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, o TJUE entendeu que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 «não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que «os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros».

Posteriormente, no acórdão de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17 (Volkswagen Financial Services (UK) Ltd), o TJUE, corrigindo a interpretação que entendeu que se podia fazer do decidido no acórdão Banco Mais, esclareceu que «não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C-183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega».

Como se refere neste acórdão, pode impor-se

– «um método ou um critério de repartição diferente do método do volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução do IVA pago a montante mais precisa do que a resultante da aplicação do método do volume de negócios» (n.º 51);

– «qualquer Estado-Membro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução» (n.º 52);

– «os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios».

 

O método de cálculo do pro rata indicado pela Administração Tributária no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 não tem em conta o valor do veículo, pelo que contraria manifestamente o decidido pelo TJUE, neste acórdão do processo C-153/17, sendo consequentemente ilegal, por violação do Direito da União.

Por outro lado, como se refere no mesmo acórdão, este entendimento é aplicável «mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis (...) não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação» (n.º 59), como sucede no caso em apreço.

Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar  de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a actividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.

Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fracção, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fracção (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).

De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

Como resulta desta parte final, na perspectiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da reclamação graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.

No entanto, o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que só se pode concluir pela ilegalidade com um apuramento casuístico da utilização real dos bens e serviços de uso misto, isto é, quando « sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» ( [2] ).

É, essencialmente, esta jurisprudência que o Supremo Tribunal Administrativo terá tendencialmente estabilizado com o acórdão uniformizador n.º 3/21, de 24-03-2021, proferido no processo n.º 87/20.0BALSB, publicado Diário da República, I Série, de 18-11-2021.

 

Assim, considerando a prova produzida nestes autos de que há uma afectação real e significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, considerando como afectas à disponibilização dos veículos a generalidade das tarefas que apenas ocorrem na prestação de serviços de locação financeira, designadamente:

i) Identificação do cliente quando haja lugar a pagamento de multas;

ii) Confirmação de que o cliente possui um seguro válido para a viatura e que o

respectivo pagamento se encontra em dia;

iii) Legalização da viatura;

iv) Diversas interacções com a contabilidade;

v) Emissão de recibos e de facturas das rendas cobradas mensalmente pela

Requerente;

vi) Alterações de morada dos clientes, a pedido destes últimos;

vii) Alterações dos IBAN, a pedido dos clientes, dos quais são debitadas as rendas dos

contratos de leasing;

viii) Alterações dos titulares dos contratos, a pedido dos clientes;

ix) Apresentação dos valores de liquidação;

x) Facturação dos IUC’s (todos os anos);

xi) Interacções com a Autoridade Tributária, com os clientes e com as seguradoras;

 

Todas estas actividades ocorrem apenas nos contratos de locação financeira de veículos, porque o veículo é propriedade da Requerente e é disponibilizado ao cliente durante o período de duração do contrato, pelo que são actividades geradas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento ou gestão dos contratos.

Trata-se de actividades que não ocorrem quando não há disponibilização dos veículos, mas apenas financiamento, como sucede nos contratos de mera concessão de crédito para a aquisição de veículos, em que os clientes adquirem os veículos para si próprios. 

Como resultou da prova produzida, as comissões cobradas aos clientes nos contratos de leasing apenas incluem os custos directamente quantificáveis, mas não as despesas gerais conexionadas com as actividades para que estas estão previstas, sendo certo que o TJUE (caso Volkswagen) tem defendido que esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização.

Da prova produzida quanto à actividade de leasing apurou-se que, além da actividade anterior à entrega dos veículos, destinada à sua disponibilização ao cliente, é significativa a actividade posterior à entrega dos veículos que é provocada pela disponibilização dos veículos, actividade que não ocorre nos contratos de mero financiamento (crédito automóvel) em que não é feita disponibilização dos veículos pela Requerente aos seus clientes.

Não se apurou a dimensão exacta de recursos de utilização mista não considerados no valor das comissões que são utilizados em cada uma das actividades referidas, nem há qualquer fundamento para concluir que sejam proporcionais ao número de pessoas que intervêm em cada uma das fases, designadamente os colaboradores afectos em permanência e parcialmente à actividade de leasing

De qualquer modo, apurou-se, como ficou dito, que, além da actividade anterior à entrega dos veículos, destinada à sua disponibilização aos clientes, é significativa que a actividade posterior à entrega dos veículos que é provocada pela sua disponibilização, actividade que não ocorre nos contratos de mero financiamento (crédito automóvel) em não é feita disponibilização dos veículos pela Requerente aos seus clientes. 

Assim, na linha do ponto 57 do acórdão do TJUE proferido no processo C-153/17, é de concluir que o método imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que não tem em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não se pode considerar que reflicta objectivamente a parte real das despesas efectuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.

Em consequência e contrariamente à ideia defendida pela AT de que os métodos forfetários – Pro Rata e Pro Rata mitigado – constituem métodos automáticos não susceptíveis de prova, à luz do direito nacional e comunitário e do princípio fundamental de IVA, que é o direito à dedução, os métodos alternativos de dedução de IVA têm de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exacta ( [3] ), que as actividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis actividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, foram de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos.

Isto é, utilizando a terminologia do ponto 33 do acórdão do TJUE C-183/13 Banco Mais, é convicção do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos e “não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes”.

De qualquer forma, pelo que se disse, fica-se, pelo menos perante uma situação de “fundada dúvida”, que deve ser processualmente valorada a favor da Requerente e não contra ela, por força do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, que é uma regra especial para situações em que esse tipo de dúvida subsiste, em processos jurisdicionais.

Por isso, a autoliquidação e a decisão da revisão oficiosa, que têm como pressuposto de facto que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, ser sobretudo determinada pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes e não pelas actividades conexas com a disponibilização dos veículos, enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto.

Essas autoliquidação e decisão da revisão oficiosa enfermam ainda por erro sobre os pressupostos de direito, ao terem subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como foi, de forma genérica, sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.

 

§3.º- Inconstitucionalidade do método de dedução previsto no Oficio-Circulado 30108

 

Seguindo de perto o que a este propósito ficou consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 348/2022-T, aí se pode ler que :“Embora o artigo 173.º, n.º 2, da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português, além do mais, «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. 

“Na verdade, entre os métodos para efectuar a dedução prevista no CIVA, não se inclui o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, mas sim, quanto a métodos que utilizam uma percentagem de dedução, apenas o indicado no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA e que o que foi permitido ao Estado Português pela Directiva, por via legislativa, não era permitido à Direcção-Geral dos Impostos, através de Ofício-Circular. 

“Coloca-se, por isso, a questão de saber se, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP (atinentes ao princípio da legalidade tributária), é permitida a criação normas inovatórias sobre métodos de efectuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável), por via de Ofício-Circulado emitido pela Direcção-Geral de Impostos, como se prevê no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, o que é uma questão distinta da de saber se o Estado Português, por via legislativa, podia criar tais métodos, à face do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE.  

“Esta questão da compatibilidade com a CRP do referido artigo 23.º, n.º 2, do CIVA e do Ofício-Circulado referido, não é uma questão de interpretação do Direito da União, mas sim uma questão de Direito Nacional, uma questão de inconstitucionalidade de normas e não da correcção ou incorrecção da sua aplicação. 

“Esta questão de inconstitucionalidade não é, assim, a de saber se, à face do Direito da União Europeia, do CIVA e do Ofício-Circulado n.º 30108, a Administração Tributária podia impor ao Sujeito Passivo o método previsto no ponto 9 deste Ofício-Circulado, mas sim a de saber se aquele artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional se interpretado como permitindo à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP. 

“As regras sobre o direito à dedução de IVA, de que resulta o montante do imposto suportado pelo sujeito passivo, são regras de incidência objectiva. Na verdade, são normas de incidência, em sentido lato, uma vez que estabelecem o an e o quantum do IVA a pagar pelo contribuinte.   

“Como bem refere ANA PAULA DOURADO, O princípio da legalidade fiscal. Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Coimbra, Almedina, 2007, p. 110: "a «incidência» tem que ser interpretada em sentido amplo, porque se a legalidade fiscal tem funções garantistas, e se os impostos, mesmo que entendidos como deveres fundamentais, são limites imanentes ao direito de propriedade individual, então o alcance das funções da legalidade fiscal diz respeito a todos os elementos que contribuem para o cálculo do montante de imposto a pagar, ou à definição do an e do quantum dos impostos. Eles constituem afinal a própria essência da relação obrigacional fiscal, ou até se quisermos do conceito de imposto, uma vez que este se traduz, em concreto, pelo montante a pagar por um determinado sujeito passivo".

“Assim, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, recusa-se a aplicação do  artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009,  segundo a qual, a Administração Tributária  poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.  Consequentemente, o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.”

 

 

§ 4.º- Falta de prova de «distorções significativas da tributação»

 

Não obstante ser de aceitar a possibilidade da AT impor o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado 30108, como se refere na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA, a aplicação de tal método está condicionada à verificação de “distorções significativas” de concorrência.

A AT defende que a aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o direito comunitário e as normas de direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do Código do IVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.

A Requerente defende que não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.

Na verdade, não se referem no Ofício-Circulado n.º 30108 em que consistem as “distorções significativas na tributação” que resultam da aplicação do método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, formulando-se nesse sentido um juízo conclusivo, cujos fundamentos não se demonstram. A afirmação feita no ponto 8. do Ofício-Circulado de que “aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas” é também conclusiva e obscura, pois não se esclarece quais as aludidas vantagens ou prejuízos, nem para quem, nem em que consiste a falta de coerência que se invoca.

De qualquer forma, o procedimento que a AT impôs no referido Ofício-Circulado tem a potencialidade de provocar distorções significativas na tributação, como bem demonstram JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS ( [4] ), relativamente à locação financeira com rendas mensais constantes:

«Ora não se consegue demonstrar que o expurgo da amortização financeira contribui para uma sintonia mais fina na determinação da parcela de imposto dedutível. Bem ao invés, demonstra-se que o procedimento que a AT quer obrigar o sujeito passivo a adoptar provoca distorções significativas de tributação e não consegue de modo algum o objectivo que a lei, no artigo 23.º, n.º 3, atribui ao método da afectação real – o objectivo de efectuar a dedução de “com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços [de uso “promíscuo”] em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito.

Em financiamentos cujo reembolso é efectuado em prestações  periódicas, sabe-se que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, esta dada pela diferença entre renda total e juro pago. Nas sucessivas prestações, quer em termos de rendas constantes quer de rendas variáveis, como a seguir melhor se verá numericamente, a parte imputável a juros vai flutuando ao longo do tempo de duração do contrato».

Sendo assim, que consequência tem o apuramento do IVA dedutível segundo o método imposto pela AT de expurgar a amortização do cálculo da parcela dedutível? Tem a consequência de fazer flutuar a percentagem de IVA dedutível ao longo do tempo de duração do contrato.

Esta flutuação, porém, só teria razão de ser se houvesse fundamentos para crer que ao longo desse tempo a intensidade do uso dos inputs promíscuos flutuava também na mesma onda. Ora, é bem claro que não há qualquer razão para crer que seja assim. A intensidade do uso desses bens e serviços será eventualmente a mesma, ou se não for, não é através de uma percentagem de dedução calculada com quer a AT que poderá ser apurada essa eventual diferença de intensidade.

A solução imposta pela AT provoca, ela sim, distorções na tributação. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de actividade cujas operações conferem direito à dedução.

A pretensão da AT em aperfeiçoar o apuramento do imposto dedutível só poderia eventualmente ser conseguida impondo um verdadeiro método de afectação real, não um pro rata manipulado, sem significado e adequação ao objectivo pretendido de evitar distorções significativas na tributação».

 

Assim, não se pode considerar demonstrado que, na situação em apreço, a determinação do pro rata baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar “distorções significativas da tributação”, não sendo possível aceitar como dedutível da simples utilização de outro método, a verificação do pressuposto legal (“distorções significativas”) subjacente à actuação da AT.

Pelo exposto, os actos tributários aqui sindicados, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do Código do IVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto.

 

§5.º- Princípio da igualdade

 

As distorções da tributação que resultam da aplicação do método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 são amplificadas em termos incompatíveis com o princípio  constitucional da igualdade,  pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, adoptada pelo Pleno no acórdão de  30.09.2020, processo n.º 26/20.8BALSB, em que entendeu que a jurisprudência do Acórdão Banco Mais, apenas é aplicável quando o sujeito passivo é um banco, e já não quando é uma sociedade financeira de crédito que utilize para as suas operações tributadas recursos de utilização mista não quantificáveis.

Na verdade, nas situações em que não seja possível a afectação real, não se aplicando o “coeficiente de imputação específico” quando o sujeito passivo é uma sociedade financeira, será aplicável ao cálculo do pro rata o regime do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, incluindo-se no numerador da fracção o valor total das rendas (que é na totalidade tributado, nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IVA), enquanto se o sujeito passivo for um banco apenas será incluída no numerador a parte das rendas que corresponde aos juros.

Além das distorções de tributação que resultam da não inclusão do valor total das rendas na fracção quando o sujeito passivo é um banco, a aplicação do método referido apenas aos bancos é incompaginável com o princípio da igualdade, pois duas situações idênticas de sujeitos passivos mistos que realizem concomitantemente operações de locação financeira e operações isentas teriam uma tributação em IVA consideravelmente distinta.

A distorção da tributação provocada pelo método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 detecta-se também quando se compara a limitação do direito à dedução quanto a recursos afectos à locação financeira quando é efectuada por um banco com a de um sujeito passivo que apenas se dedique à actividade de locação financeira.

Na verdade, o sujeito passivo que apenas se dedique à locação financeira poderá, sem qualquer limitação, deduzir a totalidade do IVA suportado nos bens e serviços que adquira para exercer essa actividade, pois ela é totalmente tributada, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea h) do CIVA, e o artigo 20.º, n.º 1, deste Código assegura o direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos para realização das operações de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Em última análise, à luz da referida jurisprudência, bastará apenas a realização de uma única operação de concessão de crédito, a par de milhares de operações de locação financeira, para o direito de dedução do IVA suportado com os custos gerais passar de total a insignificante. 

Assim, o princípio da igualdade (proporcionalidade) exigirá que ao locador financeiro que, além dessa actividade tributada, desenvolve também actividade isenta, possa deduzir o IVA na parte proporcional ao volume de negócios daquela actividade.

Por isso, são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do Código do IVA, se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.

Por outro lado, sendo obrigatória para os Tribunais Nacionais a jurisprudência do TJUE, pois as normas do Direito da União "são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União" (artigo 8.º, n.º 4, da CRP), as interpretações que contrariem essa jurisprudência violam esta norma constitucional.  Assim, decorrendo do acórdão do TJUE de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17, que à face dos artigos 168.° e 173.°, n.° 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE e do princípio da neutralidade,  "os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios" e sendo este o caso do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, os n.ºs 2, 3, alínea b), e 4 do artigo 23.º do CIVA são materialmente inconstitucionais, por violação daquele artigo 8.º, n.º 4, da CRP, se interpretados nos termos referidos naquele Ofício-Circulado. 

 

II-3- Reenvio prejudicial para o TJUE

 

Decorre do exposto que procede o pedido de pronúncia arbitral, inclusivamente com aplicação da jurisprudência do TJUE citada quanto às questões de Direito da União Europeia, pelo que não se justifica, nestas circunstâncias, o reenvio prejudicial, pedido subsidiariamente.

 

 

II-4- Restituição de quantia paga em excesso e juros indemnizatórios

 

Tendo a Requerente procedido ao pagamento do IVA resultante dos actos tributários, em análise, pede a restituição do imposto indevidamente suportado, no montante de €684.030,21, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, contados desde a data da entrega da declaração periódica de IVA referente a Dezembro de 2018 até à restituição do imposto pago em excesso com referência a este ano.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

Ora, resultando da prova produzida que a Requerente, aplicando no cálculo do pro rata a percentagem de 4% em vez de 21%, pagou a mais €684.030,21, cujo reembolso a Requerente tem direito, por ter pago indevidamente.

No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

No caso em apreço, conclui-se que há erro na autoliquidação que se considera imputável à AT por força do disposto no n.º 2 deste artigo 43.º da LGT, na medida em que a Requerente actuou em sintonia com a orientação genérica que do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108.

Os juros indemnizatórios devem ser contados desde a data em que a Requerente efectuou o pagamento da quantia autoliquidada, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

 

III. DECISÃO

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Recusar com fundamento em inconstitucionalidade, por ser incompatível com os 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, a aplicação do artigo 23.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CIVA, na interpretação que consta do ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009;
  2. Recusar com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), a aplicação das normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, na interpretação de que permitem a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108;
  3. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação parcial da autoliquidação de IVA (referente ao ano de 2018), materializada na declaração de Dezembro, ora impugnada ;
  4. Anular a referida autoliquidação, na parte em que foi deduzido IVA em montante inferior ao que resulta do cálculo do pro rata nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, com inclusão do valor total das rendas de locação financeira, por enfermar de erros sobre os pressupostos de facto e de direito;
  5. Anular o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que manteve a autoliquidação;
  6. Julgar procedente o pedido de restituição da quantia paga em excesso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais.

 

 

IV-VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €684.030,21.

 

V- CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €10 098, 00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifiquem-se as Partes.

Notifique-se o Ministério público. 

 

Lisboa, 9 de Agosto de 2023

 

Os Árbitros

 

 

___________________

(Fernanda Maças)

 

 

_____________________

(Magda Feliciano)

 

 

___________________________________

(David de Oliveira Silva Nunes Fernandes)
 

 



[1]  Neste sentido, entre muitos, podem ver-se os seguintes acórdãos do STA: de 25-10-2000, processo n.º 25128, Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, página 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2593.

[2] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, em que se entendeu que, na sequência decisão do TUJE proferida no processo C-183/13, tinha sido necessário ampliar a matéria de facto «no sentido de apurar se, no caso concreto, no âmbito de operações de locação financeira para o sector automóvel, a utilização de bens e serviços de utilização mista (afectos a actividades que conferem direito a dedução de IVA e a actividades isentas) foi, ou não, principalmente determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira que a recorrente celebrou com os seus clientes ou pela disponibilização dos veículos». (negrito nosso)

Na mesma linha, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, refere-se a necessidade de ser reapreciada a matéria de facto «para que se possa decidir se a fórmula de cálculo do pro rata utilizada pela Administração Tributária, em concreto, pode fundamentar as correcções efectuadas e que conduziram aos actos de liquidação impugnados». (negrito nosso)

 

[3] J.P. REMÉDIO MARQUES, Acção declarativa à luz do Código revisto, 3.ªed., página 559:

«Dado que a demonstração da realidade dos factos nunca pode aspirar à certeza absoluta – a verdade acerca dos acontecimentos do mundo externo e do mundo psíquico é sempre contingente e é "filtrada" pela consciência do próprio sujeito –, a prova visa apenas formar no espírito do juiz um estado de convicção de que determinada facto respeitante a uma ocorrência alegada pela parte terá provável e razoavelmente acontecido.

  A prova visa assim criar no espírito do julgador a convicção psicológica (certeza subjectiva) da realidade de um facto assente na certeza relativa do mesmo».

[4] Em “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, publicado em Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 10, n.º 1, página 27 e seguintes, 46-47.