Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 709/2022-T
Data da decisão: 2023-07-27  IRC  
Valor do pedido: € 189.276,91
Tema: IRC – Inspeção - Caducidade do direito a liquidar
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SUMÁRIO:

I – O procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias.

II – Resulta das disposições legais e regulamentares que não só o procedimento de inspeção tributária é finalisticamente vinculado (ou seja, só poderá ser instaurado tendo em vista a prossecução de determinadas finalidades), como também que o carácter interno ou externo do mesmo não poderá ser arbitrariamente fixado pela Administração Tributária.

III – Não é à Autoridade Tributária que compete definir o que se trata por procedimento interno ou externo com base nas competências, na medida em que o que preside à sua distinção é a afetação dos direitos e garantias do sujeito passivo, implicando o contrário uma manipulação dos prazos de caducidade envolvidos e disciplinados pelos artigos 45.º e 46.º da LGT.

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Jorge Bacelar Gouveia e Luciano dos Santos Carvalho, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., LDA, contribuinte com o NIPC ... e sede na Rua ..., ..., ..., ..., tendo por base a apreciação da legalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), respeitante ao exercício de 2018, no montante de € 189.276,91, o qual integra juros compensatórios no valor de € 25.488,21, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, nº 1, al. a), e 10º, nº 1, al. a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), apresentar PEDIDO DE CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL  EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL, solicitando a anulação na totalidade da liquidação de IRC efetuada com base no procedimento de inspeção desenvolvido ao abrigo das credenciais com os nºs OI2019... e OI2021..., as quais surgem espelhadas no Relatório de Inspeção Tributária (RIT).

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 24 de novembro de 2022.

A Requerente não procedeu à nomeação de arbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 16 de Janeiro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 3 de fevereiro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta a 8 de março de 2023, defendendo-se por impugnação.

Por despacho de 21 de abril de 2023, o TAC, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c), do RJAT, dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a matéria de exceção invocada pela Requerida já foi devidamente objeto de contraditório.

Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido de Pronúncia Arbitral, quer na Resposta, o TAC dispensou a produção de alegações escritas tendo o processo prosseguido para a prolação da sentença. 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

III.1    Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

 

Ao procedimento de inspeção foi conferida pela AT a natureza de ação interna, constatando-se que, por tal facto, foram desprezadas diligências com extrema relevância para assegurar ao impugnante a plena satisfação dos seus direitos.

 

Embora formalmente a AT tenha cindido, artificialmente, o procedimento de inspeção em duas ações distintas, uma titulada pela credencial OI2019... (2017) e a outra pela credencial OI2021... (2018), o procedimento deve ser encarado como único.

 

Acresce que o nº 2 do art. 36º do RCPITA estabelece que o procedimento de inspeção deve ser realizado de forma contínua e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início, sem prejuízo da ampliação deste prazo nas circunstâncias legalmente estabelecidas.

 

Assim, a obrigação da AT seria aproveitar da prerrogativa ínsita no art. 15º do RCPITA, procedendo à extensão para o exercício de 2018 do procedimento de inspeção iniciado para 2017, prosseguindo com as suas diligências de forma a respeitar o prazo máximo legalmente estabelecido para firmar as suas conclusões.

 

Por outro lado, ao nível de ambas as credenciais, nunca a Requerente foi notificada, conforme o RCPIT prescreve, no seu art. 49°, da “Notificação prévia para procedimento de inspeção”, conforme o evidencia a sua epígrafe, pelo que a Requerente, não obstante ter sido objeto de ação inspetiva, jamais recebeu a dita "carta-aviso".

 

A carta-aviso, que antecipa o início da ação inspetiva, define o âmbito e extensão do procedimento, bem como apela para os direitos, deveres e garantias dos sujeitos passivos, com a concomitante possibilidade de estes poderem regularizar voluntariamente, antes do início do procedimento de inspeção e com o aproveitamento da redução das coimas como legalmente se encontra preconizado, quaisquer faltas que tenham cometido, pelo que se apresenta de extrema relevância para os interesses dos visados pelos atos inspetivos.

 

A Requerente também não foi notificada, conforme o art.º 51º do RCPITA, do início da inspeção, quando o seu nº 1 determina, claramente, a necessidade de entrega de uma cópia da ordem de serviço (credencial) ao sujeito passivo ou obrigado tributário, o qual deve assinar a mesma indicando a data da notificação, a qual, para todos os efeitos, determina o início do procedimento de inspeção.

 

Por último, regista-se que a Requerente também não foi notificada da designada nota de diligência, documento que o art. 61.º do RCPITA consagra para dar por concluídos os atos de inspeção.

 

Todas estas obrigações foram desprezadas pela AT na convicção de que poderiam realizar todas as diligências de investigação que lhe aprouvessem camuflando a sua ação sob a capa de dois procedimentos internos, o primeiro para realizar toda a investigação e a apreensão dos factos relativos à documentação e registos contabilísticos e o segundo para concretizar as conclusões que os mesmos suscitavam.

 

Atentos os objetivos que a AT buscou, realizar uma análise à contabilidade, e os meios de que se serviu, solicitação de documentação das áreas que considerou relevantes para as suas avaliações, não se tratou de um procedimento interno, mas, materialmente, de um procedimento externo, pelo que eram devidos, sob pena de anulabilidade das liquidações, todos os prazos e formalidades aqui assinaladas.

 

E, se as diligências ao abrigo da segunda credencial, ao servirem-se de toda aprova adquirida no âmbito da primeira, não terão requerido atos inspetivos, não se pode olvidar que, se a ação inicial tem a natureza de procedimento externo, necessariamente a segunda, que mais não é que a extensão da primeira, também terá de ser considerada realizada de forma externa.

 

É manifesto que a AT não se pode resguardar numa interpretação literal do art. 13º do RCPITA e afirmar que não realizou qualquer ato de inspeção nas instalações da Requerente ou de outro contribuinte.

 

Tanto mais que, para se obterem documentos e registos contabilísticos, não se mostra necessária qualquer deslocação às instalações das empresas.

 

A interpretação do art. 13º do RCPITA no sentido de que, após meses de solicitação “interna” de documentos e registos contabilísticos, seria suficiente e necessária uma única deslocação física à empresa para alterar a qualificação do procedimento para externo, resulta perfeitamente absurda por não atender à substância dos factos e do objetivo da norma.

 

Na verdade, o procedimento deve-se qualificar como externo sempre que o seu objeto for investigar factos e realidades que não detetáveis pela mera consulta das declarações e registos contabilísticos que, à partida estejam na posse da AT, em consequência do normal cumprimento das obrigações dos diferentes contribuintes.

 

Esta interpretação encontra-se sustentada nas posições assumidas pelos tribunais em profusa jurisprudência, como sejam os acórdãos do TCA Sul de 9/12/2008, no recurso 02504/08, de 10/7/2012, no recurso nº 05289/12, de 1/10/2014, no recurso 4817/11, e do TCA Norte, de 13/11/2014, no processo 01854/10.8BECBR, e, mais recentemente, no acórdão de 03/11/2022, também do TCA Norte, no recurso nº 794/10.5BEPRT, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

 

A falta da notificação do início da inspeção conforme art. 49º, com as formalidades aí prescritas, bem como a notificação da ordem de serviço, conforme o artigo 51º, e das inerentes formalidades, e ainda a notificação do fim das diligências de inspeção, conforme artigo 61º, todos do RCPITA, terá de conduzir à anulabilidade das liquidações impugnadas.

 

III.2    Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

Os factos são os constantes do processo administrativo (adiante PA).

A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto a construção de edifícios residenciais e não residenciais.

A coberto da OI2019..., foi efetuado o procedimento interno de inspeção ao exercício de 2017.

Da análise efetuada, verificaram os SIT que, na conta de Gastos com o Pessoal, foram contabilizados, nesse ano, na subconta 638 - Outros Gastos com o Pessoal, gastos no valor de 782.594,31€.

Questionada sobre este montante, esclareceu que o mesmo se refere à participação nos resultados de 2017 (lançamento nas contas 6382/27831), lançado a débito da conta 638 por contrapartida, a crédito, da conta 278 - Outros Devedores e Credores.

Solicitado o documento de suporte deste registo contabilístico, a Requerente remeteu cópia da ata da Assembleia Geral nº 25, de 31/03/2018, onde, para além da aprovação das contas de 2017, se deliberou aprovar a participação nos resultados, à gerência e aos trabalhadores, na importância de 782.500,00€.

Perante estes dados os SIT interrogaram o contabilista certificado, acerca da data do pagamento desta importância de € 782.500,00 e dos respetivos beneficiários e este informou que, embora tenha sido deliberado a distribuição de resultados, no final do exercício de 2018 o pagamento ainda não tinha sido efetuado por dificuldades de tesouraria.

Aqui chegados, os SIT encerraram o procedimento inspetivo relativo ao exercício de 2017 e propuseram a emissão de nova ordem de serviço interna para o exercício de 2018 (0 I2021...), a fim de se promover a correção do IRC nos termos do n.º 5 do artigo 23.º -A do Código do IRC.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. A coberto da OI2019..., foi efetuado o procedimento interno de inspeção ao exercício de 2017.
  2. Da análise efetuada, verificaram os SIT que, na conta de Gastos com o Pessoal, foram contabilizados, nesse ano, na subconta 638 - Outros Gastos com o Pessoal, gastos no valor de 782.594,31€.
  3. Questionada sobre este montante, esclareceu que o mesmo se refere à participação nos resultados de 2017 (lançamento nas contas 6382/27831), lançado a débito da conta 638 por contrapartida, a crédito, da conta 278 - Outros Devedores e Credores.
  4. Solicitado o documento de suporte deste registo contabilístico, a Requerente remeteu cópia da ata da Assembleia Geral nº 25, de 31/03/2018, onde, para além da aprovação das contas de 2017, se deliberou aprovar a participação nos resultados, à gerência e aos trabalhadores, na importância de 782.500,00€.
  5. Perante estes dados, os SIT interrogaram o contabilista certificado, acerca da data do pagamento desta importância de € 782.500,00 e dos respetivos beneficiários e este informou que embora tenha sido deliberado a distribuição de resultados, no final do exercício de 2018 o pagamento ainda não tinha sido efetuado por dificuldades de tesouraria.
  6. Os SIT encerraram o procedimento inspetivo relativo ao exercício de 2017 e propuseram a emissão de nova ordem de serviço interna para o exercício de 2018 (0 I2021...) a fim de se promover a correção do IRC nos termos do n.º 5 do artigo 23.º -A do Código do IRC.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

III. 2. Matéria de Direito

 

Cabe unicamente no presente processo verificar se, de facto, ocorreram dois procedimentos inspetivos ou se, pelo contrário e como pugna a AT, apenas um, com especial impacto no prazo de caducidade.

Compulsada a matéria de facto dada como provada, a conclusão a tirar terá de ser a de que tudo indica que terão ocorrido duas ações de inspeção externa.

Ora, dispõe o artigo 2.º do RCPIT, no seu n.º 1, que:

«O procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias.»

Concretizando esta previsão, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que:

«Para efeitos do número anterior, a inspeção tributária compreende as seguintes atuações da administração tributária:

a) A confirmação dos elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

b) A indagação de factos tributários não declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

c) A inventariação e avaliação de bens, móveis ou imóveis, para fins de controlo do cumprimento das obrigações tributárias;

d) A prestação de informações oficiais, em matéria de facto, nos processos de reclamação e impugnação judicial dos atos tributários ou de recurso contencioso de atos administrativos em questões tributárias;

e) O esclarecimento e a orientação dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários sobre o cumprimento dos seus deveres perante a administração tributária;

f) A realização de estudos individuais, sectoriais ou territoriais sobre o comportamento dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a evolução dos sectores económicos em que se insere a sua atividade;

g) A realização de perícias ou exames técnicos de qualquer natureza tendo em conta os fins referidos no n.º 1;

h) A informação sobre os pressupostos de facto dos benefícios fiscais que dependam de concessão ou reconhecimento da administração tributária ou de direitos que o sujeito passivo, outros obrigados tributários e demais interessados invoquem perante aquela;

i) A promoção, nos termos da lei, do sancionamento das infrações tributárias;

j) A cooperação, nos termos das convenções internacionais ou regulamentos comunitários, no âmbito da prevenção e repressão da evasão e fraude;

l) Quaisquer outras ações de averiguação ou investigação de que a administração tributária seja legalmente incumbida.»

Relativamente aos fins do procedimento de inspeção tributária, o artigo 12.º do RCPIT refere que aquele poderá ter uma de duas finalidades, a saber:

«a) Procedimento de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;

b) Procedimento de informação, visando o cumprimento dos deveres legais de informação ou de parecer dos quais a inspeção tributária seja legalmente incumbida.»

 

No que diz respeito ao lugar da realização, o artigo 13.º do RCPIT esclarece que:

«Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:

a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;

b) Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.»

 

Do acervo normativo que se vem de expor, resulta não só que o procedimento de inspeção tributária é finalisticamente vinculado (ou seja, só poderá ser instaurado tendo em vista a prossecução de determinadas finalidades), como também que o caráter interno ou externo do mesmo não poderá ser arbitrariamente fixado pela Administração Tributária, resultando antes da necessidade ou não de realizar atos de inspeção “em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”.

 

Como se escreveu no processo arbitral 14/2012-T:

«5 – O critério de distinção entre procedimentos de inspeção internos e externos extrai-se do art. 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária, em que se esclarece que o procedimento é interno «quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos» e é externo «quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso».

 

O critério de distinção entre procedimentos de inspeção internos e externos assenta, assim, na existência ou não de atos praticados fora dos serviços da Administração Tributária para obtenção dos elementos relevantes: se os atos se praticaram exclusivamente nesses serviços, está-se perante um procedimento interno; se algum ou alguns atos necessários para apurar os factos tributários foram praticados fora desses serviços, «total ou parcialmente», está-se perante um procedimento externo.”.

E, mais adiante, na mesma decisão:

“A inspeção só será qualificável como interna quando foi efetuada com base em documentos não obtidos através de atos inspetivos exteriores aos serviços.”.

 

Ora, tendo em conta os critérios expostos, ter-se-á de considerar que, contrariamente ao que sustenta a AT, em 2017 ocorreu uma ação de inspeção externa, visando a Requerente e os mesmos exercícios a que se reportam os atos tributários objeto do presente processo arbitral, o que, de resto, foi assumido pela Requerida, e é facto provado: “Os SIT encerraram o procedimento inspetivo relativo ao exercício de 2017 e propuseram a emissão de nova ordem de serviço interna para o exercício de 2018 (0 I2021...), a fim de se promover a correção do IRC nos termos do n.º 5 do artigo 23.º -A do Código do IRC.”

 

Igualmente não procede o argumento de que os atos de 2017 não podem ser considerados integrantes de um procedimento inspetivo externo, porquanto é nosso entender que não é à Autoridade Tributária que compete definir o que deve ser objeto de procedimento interno ou externo com base nas competências dos seus diversos departamentos ou direções, na medida em que o que preside à sua distinção é a afetação dos direitos e garantias do sujeito passivo quando é objeto de atividade inspetiva.

A ser defensável o contrário, isso implicaria que a AT poderia escolher internamente o organismo ou direção para definir ou não se estamos perante uma ação inspetiva, manipulando assim, como é evidente no caso concreto, os prazos de caducidade envolvidos e disciplinados pelos artigos 45.º e 46.º da LGT.

 

Conclui-se, deste modo, que ocorreram duas ações inspetivas respeitantes ao mesmo sujeito passivo (a Requerente), imposto e período de tributação, verificando-se:

A) A inexistência de decisão do dirigente máximo do serviço a determinar a primeira;

B) A existência de uma decisão do dirigente máximo do serviço a determinar a segunda, tendo por base os factos verificados em 2017, os mesmos que foram objeto da primeira ação, mesmo com impacto em 2018.

E tudo isto numa dupla e grave violação do disposto no artigo 63.º/4 da LGT.

Aqui chegados, cumpre determinar quais as consequências de tal dupla violação.

Como se escreveu já no processo arbitral 164/2013-T:

«tem-se por bom que, tal como expressamente se refere no preâmbulo do RCPIT, a regulamentação do procedimento de inspeção tributária visa “essencialmente a organização do sistema, e consequentemente a garantia da proporcionalidade aos fins a atingir, da segurança dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões.»

Ou seja, a regulamentação do procedimento de inspeção tributária tem, em primeira linha, uma finalidade essencialmente organizatória (ordenatória) e, na perspetiva dos sujeitos passivos, visará essencialmente definir quais as condições em que os efeitos jurídicos próprios de tal procedimento se refletirão, eficazmente, na sua esfera jurídica, para além de assegurar a sua participação nas decisões que venham a ser tomadas.

Relativamente a este último aspeto, diga-se, desde já, que, atento o princípio geral da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, consagrado no artigo 60.º da LGT, sempre estaria o essencial dos interesses juridicamente relevantes daqueles, na matéria, devidamente salvaguardados, independentemente da concreta regulamentação do procedimento de inspeção tributária. Acresce, ainda a este propósito, que o procedimento de inspeção tributária não tem, primacialmente, uma natureza decisória (daí que, por exemplo, o respetivo ato final – o relatório – não seja diretamente impugnável, na medida em que não é, em si mesmo, lesivo), mas meramente preparatória ou acessória, pelo que a necessidade de salvaguarda da participação dos contribuintes “na formação das decisões”, no seu âmbito, será altamente diminuta.

Deste modo, a principal finalidade, sempre na perspetiva dos sujeitos passivos, da regulamentação do procedimento de inspeção tributária, e da respetiva observância pela Administração Tributária, residirá na fixação dos condicionalismos legalmente necessários para que se reflitam eficazmente na esfera jurídica dos contribuintes os efeitos jurídicos próprios do procedimento em questão, maxime a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos pela Administração Tributária, nos termos do artigo 46.º/1 da LGT, bem como a sujeição dos visados às garantias e prerrogativas da inspeção tributária (artigos 28.º e 29.º do RCPIT), e à aplicação de medidas cautelares (artigos 30.º e 31.º do RCPIT).

Assim, e no seguimento do que se vem de expor, entende-se que a violação de normas reguladoras do procedimento de inspeção tributária terá, essencialmente, a consequência de obstar a que ocorram determinados efeitos próprios daquele procedimento, como a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos, ou a obrigação de abertura das instalações dos visados à inspeção tributária.

Em suma, entende-se que o procedimento de inspeção tributária não visa tutelar a participação do contribuinte no processo de recolha de informações e elementos pela Administração Tributária, nem, muito menos, obrigar a que esta instaure tal procedimento para proceder à recolha de informações e elementos que lhe seja lícito obter, nos termos gerais do ordenamento jurídico, fora daquele procedimento. De igual modo, o procedimento de inspeção tributária não visará, em primeira linha, pelo menos, assegurar, pela sua observância, a fidedignidade ou idoneidade da informação ou elementos recolhidos.

Este, de resto, tem sido o entendimento do STA, podendo consultar-se a este respeito o Ac. proferido no processo 0955/07, em 27-02-2008, em cujo sumário se lê:

«Os procedimentos inspetivo e de liquidação são distintos entre si, ainda que este tenha carácter meramente preparatório ou acessório, o que não significa que as ilegalidades nele cometidas se projetem, fatalmente, na liquidação, invalidando-a.»

Verifica-se, assim, que a realização de duas ações de inspeção externa, visando o mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação - a primeira sem decisão fundamentada do dirigente máximo do serviço - em violação do disposto no artigo 63.º/4 da LGT, não se projeta “fatalmente, na liquidação, invalidando-a”, mas, simplesmente, preclude o segundo procedimento de produzir os efeitos que lhe seriam próprios, enquanto ação inspetiva externa, como sejam, por exemplo, a suspensão do prazo de caducidade, nos termos do artigo 46.º/1 da LGT e as garantias do exercício da função inspetiva, reguladas nos artigos 28 e ss. do RCPITA, o que será não só suficiente, mas também adequado, à salvaguarda dos interesses em causa, corretamente detetados pela Requerente, quando afirma que a norma em causa visa evitar que o “mesmo sujeito passivo seja sobrecarregado mais que um vez com os incómodos que as ações de fiscalização externas são suscetíveis de lhe provocar”.

Deste modo, face ao exposto, entendendo-se que a violação do artigo 63.º/3 da LGT, na redação aplicável, só por si, não se projeta “fatalmente, na liquidação, invalidando-a”, e não se apurando que no âmbito da primeira ação inspetiva se tenha efetuado qualquer relatório, retirando conclusões dos elementos recolhidos, que tenham sido contrariadas no relatório final da segunda ação inspetiva, deverá improceder o primeiro vício imputado por aquela, aos atos tributários sub iudice.

 

Por isso, no caso seria apenas de equacionar a eventual suspensão do prazo de caducidade nos termos do n.º 1 do artigo 46.º da LGT. Nos termos da referida norma, “O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo do seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação”.

Ora, no caso, e no que diz respeito à primeira das ações de inspeção externa realizadas, não se apura que haja ocorrido “notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa”.

Por outro lado, e como se viu já, a segunda ação inspetiva externa, por ilegal – designadamente por falta de decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço – é insuscetível de produzir os efeitos que lhe são próprios, maxime no que diz respeito à suspensão do prazo de caducidade, quer isto significar que o acerto de liquidação datado de 20-06-2022 vai muito para além do prazo de caducidade, já computados os seis meses de suspensão, não respeitantes ao processo inspetivo exclusivo de 2017, mas encarando como um todo os anos de 2017 e 2018.

Deste modo, e por todo o exposto, tendo as liquidações datadas de 20-06-2022, referentes ao ano de 2018, objeto do presente processo sido emitidas para lá do prazo de caducidade, serão as mesmas ilegais, por violação do artigo 45.º/1 da LGT, devendo como tal ser anuladas, ficando, deste modo, prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pela Requerente.

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral e anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), respeitante ao exercício de 2018, no montante de € 189.276,91, com as legais consequências.
  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 189.276,91, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.672,00, a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 27 de julho de 2023.

 

Os Árbitros:

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

 

(Jorge Bacelar Gouveia)


 

(Luciano dos Santos Carvalho)



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.