SUMÁRIO:
1. A norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, tem de ser lida à luz das finalidades e regras do registo automóvel e constitui mera presunção juris tantum de propriedade.
2. As facturas emitidas pela locatário no final dos contratos, para efeitos de IVA, são meio idóneos para ilidir a presunção;
3. Sendo julgado procedente um pedido de pronúncia arbitral, e estando o imposto pago, são devidos juros indemnizatórios, mas apenas a partir da data em que a Administração Tributária tenha tomado conhecimento da identidade do verdadeiro proprietário e tenha não tenha corrigido a liquidação.
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, sociedade anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., ...–..., ...-... ..., ao diante, apenas a Requerente, veio, aos 13 de Março de 2023, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ( ao diante, apenas o RJAT), apresentar um pedido de pronúncia arbitral.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O p.p.a. tem por objecto imediato o acto de indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º ...2022..., notificado através do ofício n.º ...-..-..., de 21-12-2022 e por objecto mediato 18 (dezoito) actos de liquidação de imposto único de circulação (IUC), relativamente a 18 (dezoito) veículos automóveis, no montante global de € 1305,80 (mil trezentos e cinco euros e oitenta cêntimos), lá melhor identificados. Com o pedido de anulação, a Requerente solicita o reembolso do indevidamente pago, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, calculados à taxa legal.
Nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, o Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou a signatária como árbitro singular em 5 de Maio de 2013.
Na mencionada data foram as partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, não tendo as mesmas manifestado a intenção de recusar a designação do árbitro.
Em conformidade com o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 23 de Maio de 2023.
Nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a Requerida foi notificada, em 23 de Maio de 2023, para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso entendesse, solicitar a produção de prova adicional, devendo no mesmo prazo ser remetida cópia do processo administrativo.
A 22 de Junho de 2013, a Requerida veio apresentar a sua Resposta e juntar aos autos o processo administrativo. Defendeu-se por impugnação, sustentando a legalidade das liquidações efectuadas e defendeu a inutilidade da audição de testemunhas oferecidas pela Requerente e da realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, dado ter considerado estar em causa apenas uma questão de direito, tendo concluído pelo pedido de improcedência do pedido de pronúncia arbitral e pela manutenção dos respectivos actos tributários.
Em 22 de Junho de 2023, o Tribunal, após um exame preliminar da documentação existente e da profusa explanação da posição das partes, dispensou a audição das testemunhas, e a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e, dada a ausência de produção de prova, as alegações, tendo fixado como data-limite para a prolação do despacho o dia 15 de Julho de 2023.
II - SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.
O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.
III - DA POSIÇÃO DAS PARTES
Da Requerente
A Requerente alega que é uma instituição de crédito e que uma parte substancial da sua actividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira (LSG) ou de aluguer de longa duração de veículos automóveis (ALD), destinados à aquisição por empresas e particulares.
Esses contratos obedecem, de uma forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contactada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e, inclusive, o seu preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente e, de seguida, procede à sua entrega a esse cliente, assumindo este a qualidade de locatário.
Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
Estão em causa no pedido de pronúncia um conjunto de 18 veículos que foram objecto deste tipo de contratos, e nos termos dos quais foi transferida a sua propriedade, como o atestam as facturas de venda, delas constando o valor residual do bem locado, acrescido de despesas e de IVA, afirmando que nas datas respeitantes aos factos tributários que originaram as liquidações do IUC já não era locadora nem proprietária dos veículos pelo que não pode assumir a qualidade de sujeito passivo.
A Requerente tem vindo a proceder à apresentação dos competentes pedidos de registo e propriedade em nome dos actuais proprietários, instruindo os pedidos com as facturas de venda, enquanto meio de prova.
Em termos de direito, a Requerente pretende ver esclarecida a questão da qualidade de sujeito passivo e da responsabilidade pelo pagamento do IUC.
Discorre sobre a tese da presunção (in)ilidível, referindo que a jurisprudência arbitral tem de forma maioritária realçado que nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG ou de ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do imposto, pelo que, por maioria de razão, após o termo do contrato, quando o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, esta é (ou se torna) proprietária.
Afirma que a Requerida, conforme decorre da análise do indeferimento do recurso hierárquico, fundamenta os actos de liquidação no facto de, nos períodos o IUC se tornou exigível, a propriedade dos veículos automóveis em causa ainda se encontrar registada na Conservatória do Registo Automóvel (CRA) em nome da Requerente, solução que esta rejeita porque os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam nessa direcção, mas também porque tal não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis constantes dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 9.º do Código Civil (CC).
Argumenta que o registo de propriedade automóvel não é constitutivo do contrato de compra e venda, antes tem efeito puramente probatório relativo, invocável por terceiros para efeitos de registos (conceito que não abrange a AT) e ilidível mediante prova do contrário, transcrevendo, em abono da referida tese, extractos do entendimento de Agostinho Guedes, publicado na Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas n.º 23 (2013).
Por outro lado, a Requerente entende que, à luz dos elementos de interpretação racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC – no actual e novo quadro de tributação automóvel –o sujeito passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo visa compensar.
Do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico) extrai-se, continua, a observação preliminar de que desde a entrada em vigor do DL 59/72 sempre o legislador consagrou (ou quis consagrar) a presunção (segundo crê, ilidível) de os sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontram registados.
Da conjugação do artigo 349.º do CC, relativo à matéria de presunções, e do artigo 73.º da LGT, a conclusão a tirar é que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC constituiu uma presunção juris tantum e não juris et de jure.
Defende que uma interpretação do n.º 1 do artigo 3.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIUC, levada ao extremo, poderia levar a que veículos abatidos fora das normas legais aplicáveis, permanecessem sujeitos ao imposto uma eternidade, salientando ainda que o próprio CIUC contém normas que apelam a realidades não registadas, caso dos veículos com matrícula estrangeira que permanecem em Portugal para além dos prazos de admissão temporária.
Finalmente, alude ao artigo 17.º A do CIUC, introduzido pelo artigo 215.º da Lei 82-B/2014, de 31 de Dezembro, para referir que não é mais do que uma clarificação das normas de incidência subjectiva do IUC – 82.º do pedido de pronúncia, pelo que, face ao exposto, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário. Acrescenta que o artigo 17.º A não contempla uma regra de incidência subjectiva, mas versa sobre os efeitos fiscais da regularização da propriedade e inicia com a expressão “sem prejuízo do disposto no artigo 3.º” precisamente porque a pessoa que está inscrita como proprietária do veículo automóvel e que por essa razão é considerada pela AT como sujeito passivo de IUC pode apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem.
Em abono da sua posição, a Requerente menciona um conjunto de decisões arbitrais, transcrevendo, por vezes, no que lhe importa demonstrar, alguns excertos.
Debruçando-se sobre o valor probatório das facturas, a Requerente alude de novo ao estudo de Agostinho Guedes, dele transcrevendo que a prova pode ser feita “(…) por qualquer meio, uma vez que a lei não exige para este contrato forma escrita. Assim, e designadamente, a prova pode ser feita por confissão, verbal ou escrita, por testemunhas ou por documento. Neste último caso, por exemplo a prova pode ser feita por apresentação de uma declaração de venda (incluindo a declaração preparada para efeito de registo) ou de uma factura/recibo da venda do veículo”.
Sobre esta questão do valor probatório das facturas, a Requerente refere também um conjunto de decisões arbitrais.
Finalmente, a Requerente discorre sobre a interpretação da AT maximalista da receita tributária e cerceadora do princípio da equivalência.
Alude ao princípio da igualdade tributária, que se desdobra na capacidade contributiva e da equivalência, apoiando o seu raciocínio em textos doutrinais de Sérgio Vasques e citando Casalta Nabais, para fazer emergir o princípio da praticabilidade que “implica que o legislador não vá tão longe na determinação das soluções legais quanto seria de exigir, permitindo deixar à administração uma dada margem de livre decisão, sob pena de nos depararmos com soluções impraticáveis», e realça a importância do princípio da equivalência no campo da incidência subjectiva para a resolução do litígio”.
Considera que, caso se admita a tese da presunção inilidível defendida pela AT, “de que o sujeito passivo deverá ser necessariamente a pessoa em nome da qual se encontre registada a propriedade do veículo automóvel, incluídas as entidades locadoras”, a norma seria inconstitucional por violação do principio da equivalência consagrado no artigo 13.º da CRP e cita, em apoio dessa tese, o Acórdão n.º 348/97, de 29 de Abril de 1997, do Tribunal Constitucional sobre a ilegitimidade constitucional das presunções absolutas, na medida em que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva prevista na respectiva lei, e dando conta que o artigo 73.º da LGT é um reflexo de tal interpretação.
Da Requerida:
Por seu turno, a Requerida, na resposta ao pedido de pronúncia arbitral, vem dizer, no essencial, o seguinte:
Na tarefa interpretativa deve estar sempre presente o escopo do regime instituído com a reforma da tributação automóvel, designadamente com o IUC. A sistemática do imposto, nomeadamente no âmbito de incidência subjectiva, o facto constitutivo da obrigação do imposto mostra que o legislador quis expressa e intencionalmente, no âmbito da liberdade de conformação legislativa, que o IUC assentasse na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
Os antecedentes legislativos em matéria de incidência subjectiva do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos e do Regulamento do Imposto de Circulação e Camionagem mostram que o legislador do IUC se quis afastar de uma presunção, estando essas motivações bem demonstradas na Proposta de Lei n.º 118/X que foi enviada à Assembleia da República
Interpretado à luz do elemento literal, a expressão considerando-se em vez de presumindo-se não é mera semântica, foi uma opção legislativa dos princípios e normas orientadoras descritas no despacho que criou Grupo de Trabalho que levou a cabo a Reforma da Tributação Automóvel.
À luz de uma interpretação racional e teleológica o entendimento não pode ser outro que não seja o legislador ter pretendido expressa e intencionalmente que fossem considerados sujeitos passivos dos impostos aqueles que figuram no registo sendo esta a interpretação que preserva a unidade do sistrema jurídico-fiscal.
O registo automóvel português é um elemento estruturante da determinação de tributação com base no qual se determina o sujeito passivo do imposto por referência ao sujeito activo do imposto.
Sob os efeitos do registo automóvel, mesmo admitindo que do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, no âmbito tributário o legislador quis que a incidência subjectiva do IUC fosse aferida pela inscrição do titular do direito de propriedade no registo automóvel, tornando esta inscrição como uma realidade evidente, assente na fé pública emanada pelo registo.
A operacionalidade do imposto passou pela criação de um sistema que, com poucos recursos, assegurasse que se conseguissem promover as liquidações de IUC dentro dos prazos de caducidade.
As regras do registo foram sendo adaptadas de forma a, por exemplo, permitir que qualquer uma das partes o requeresse e foram criados regimes excepcionais de regularização da propriedade, como aconteceu em 2008 ou em 2014, casos dos Decreto-Lei n.ºs 20/2008 e 177/2014 sendo elucidativo o preâmbulo deste último, com a aprovação do artigo 17.º A do CIUC.
A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 ao n.º 1, do artigo 3.º do CIUC mostra que o legislador pretendeu que o sujeito passivo do imposto fosse indiscutivelmente o proprietário constante do registo, independentemente de ser ou não o titular do direito real de propriedade sobre o veículo, de forma a serem ultrapassadas as dificuldades interpretativas evidenciadas nalguma jurisprudência judicial e arbitral sobre a natureza juris tantum da presunção.
A jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais tem feito uma inequívoca distinção entre a redacção originária do artigo 3.º, n.º 1, e a que decorreu da alteração do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, caso do acórdão do STA, de 2020-06-03, Processo 467/14.OBEMDL 356/18, de que a alteração não tem natureza interpretativa.
Nos acórdãos do TCAN n.ºs 00611/134 BEVIS e 1271/14. 0BEPNF, reafirma-se o facto de o legislador ter afastado qualquer presunção legal, transcrevendo-se deste último um largo excerto com a conclusão de que o Decreto-Lei n.º 41/2016 afastou qualquer presunção quanto a quem pode ser proprietário.
O acórdão do TCA Norte n.º 888/13.5 DEPRT conclui no sentido de o Decreto-Lei ter introduzido um novo enquadramento jurídico, conclusão que é igualmente reafirmada na jurisprudência do CAAD.
Realça que o relevo que a Requerente atribui ao princípio da equivalência não tem essa amplitude, tratando-se de uma norma de carácter programático, sem carácter vinculativo, como decorre da doutrina. A Requerida cita, para o efeito, um comentário de A. Brigas Afonso e Manuel Fernandes: “o princípio da equivalência, que agora impregna a fiscalidade automóvel, vai valendo como norma programática e como referencial que ajuda o decisor político a legitimar a tributação especial neste importante sector económico”.
Por fim, rebate o argumento da Requerente de que a AT sabia ou devia saber que os automóveis em causa já não eram propriedade da mesma no momento (ano mais concretamente) em que os impostos deveriam ter sido pagos, mencionando uma contradição entre a anulação e o registo de locação financeira de um determinado veículo, que extrapola para os demais, concluindo pela falta de fiabilidade e credibilidade da prova apresentada.
Em conclusão, pugna pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
IV- MATÉRIA DE FACTO
Há que salientar que o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do actual CPC).
Factos Provados:
Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados (pedido de constituição arbitral, Resposta da Requerida e alegações de mabas as partes), à prova documental junta aos autos, julgam-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão de mérito:
a) A Requerente é uma instituição de crédito que se apresenta actualmente como um dos maiores bancos especializados a operar no financiamento ao sector automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito e empréstimos pessoais com presença no mercado nacional, em que uma parte substancial da sua actividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira destinados à aquisição de veículos automóveis, por empresas e particulares.
b) Esses contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contactada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e, inclusive, o seu preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente, e de seguida, procede à sua entrega ao cliente, assumindo este a qualidade de locatário.
c) Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA.
d) A Requerente celebrou contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira para os veículos indicados na em f) tendo os locatários, no final desses contratos e nos respectivos termos, adquirido os veículos;
e) A Requerente emitiu, por conseguinte, as respectivas facturas de venda.
f) Com referência àqueles veículos, foram emitidas as liquidações de IUC relativas ao mês de Março de 2021 constantes do seguinte quadro:
g) À data do facto gerador daquelas liquidações, a Requerente já tinha emitido as facturas de venda relativas àqueles veículos automóveis.
h) À data do facto gerador, todos os veículos automóveis se encontravam ainda registados no nome da Requerente.
i) A Requerente apresentou reclamação graciosa daquelas liquidações de imposto a 10 de Novembro de 2021.
j) Notificada do despacho que indeferiu aquela reclamação, dele interpôs recurso hierárquico;
l) A Requerente pagou os montantes de imposto liquidados.
Factos não provados
Não foram julgados não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.
Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
Para a convicção do Tribunal Arbitral, relativamente aos factos provados e não provados, relevaram os documentos juntos aos autos, os quais se mostraram idóneos sobre os factos em discussão nos presentes autos.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.
De resto, estão documentalmente comprovados e não foram objecto de controvérsia entre a Requerente e a Requerida.
V - MATÉRIA DE DIREITO - QUESTÕES DECIDENDAS
Face às posições das partes, são estas as questões às quais o Tribunal é chamado a pronunciar-se:
a) A norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consubstancia uma ficção, insusceptível de demonstração em contrário, ou continua a ser susceptível de uma interpretação presuntiva;
b) A prova documental junta ao processo pela Requerente é, ou não, um meio idóneo e apto para firmar a propriedade dos locatários no final dos contratos;
c) No caso de procedência de uma decisão arbitral favorável à Requerente e encontrando-se a dívida de IUC já paga, atento o facto da mesma ter sido reclamada e indeferida hierarquicamente, com a sua anulação, são, ou não, devidos juros indemnizatórios.
Cumpre, pois, apreciar e decidir:
Quanto à primeira questão:
A reforma da fiscalidade automóvel teve na sua génese os estudos efectuados por um Grupo de Trabalho (GT), mandado constituir por Despacho Conjunto dos Ministros de Estado e das Finanças e do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (Despacho Conjunto n.º 290/2006, de 27 de marco, (2.ª série), em que se definiram um conjunto de orientações e princípios, designadamente, de eficiência, eficácia e simplicidade, e se recomendou, sempre que possível, o recurso a soluções electrónicas e a busca de soluções integradas que permitissem segurança e eficácia nas liquidações e cobranças através do envolvimento em processos de transmissão electrónica de dados e acesso à informação de entidades externas.
Os trabalhos desse GT suportaram a Proposta de Lei n.º 118/X, de 7 de marco de 2007.
A versão inicial do referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, preceituava que “São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados”.
A solução legislativa encontrada foi a de recolher as informações necessárias às operações de cobrança do IUC numa base de dados de uma entidade externa – o registo automóvel – por razões de eficácia e simplicidade e tendo em conta as finalidades e a natureza dos dados constantes do registo.
Esta redacção é, de facto, diferente daquele que o Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de Dezembro adoptava para o Imposto sobre Veículos: “O imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”, redacção que transitou sucessivamente para o Decreto-Lei n.º 782/74, de 31 de Dezembro, para o Decreto-Lei n.º 81/76, de 28 de Janeiro e finalmente para o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de Junho, legalmente designado por «Imposto Municipal sobre Veículos», aplicável aos automóveis ligeiros de passageiros e motociclos.
E é esta diferença que vem sustentando a posição da AT, de que, em sede de IUC se consagrou uma presunção inilidível, de que quem consta do registo como proprietário do veículo na data em que se verifica o facto tributário o é, para efeitos unicamente tributários e sem prejuízo das regras civis da transmissão da propriedade.
Em qualquer caso, a verdade é que, mesmo tendo-se substituído a expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” e tendo-se eliminado a expressão “até prova em contrário”, a norma fiscal da incidência subjectiva esteve e está subordinada às regras do registo automóvel.
Ora, o Código do Registo Automóvel preceitua que o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.
A propriedade de um veículo automóvel é facto obrigatoriamente sujeito a registo, nos termos daquele Código, sendo que quer o CRA quer o Regulamento do Registo Automóvel fixam prazos máximos para o registo dos actos a ele obrigatoriamente sujeitos, sob várias cominações, designadamente, de natureza financeira.
Nos casos de locação financeira ou ALD - actividade desenvolvida pela Requerente - o CRA prescreve que o registo é feito mediante requerimento subscrito pelo vendedor, na sequência do exercício do direito de propriedade ou de aluguer de longa duração registado, acompanhado da factura correspondente à venda ou de documento de quitação.
O legislador fiscal – atentas as finalidades do registo, a mera presunção que ele gera e os prazos para ele estabelecidos – não podia desconhecer que, pese embora a expressão “considerando-se” que resolver utilizar, que a informação que obtinha do registo quanto ao proprietário do veículo automóvel constituía mera presunção, que o visado podia ilidir, mediante prova cabal do contrário.
O legislador converteu a base de dados dos registos de propriedade automóvel numa base de dados fiscal constituída por sujeitos passivos, abstraindo-se da formação da sua constituição e da respectiva natureza declarativa, pretendendo assim com esta mudança que as questões que se suscitavam com a titularidade da propriedade formal versus propriedade efectiva não levantassem dificuldades à liquidação e cobrança do imposto. Não pretendeu, porém, com isso subverter as finalidades do registo e criar uma presunção inilidível de propriedade, mas apenas facilitar a cobrança do imposto, transferindo para o sujeito passivo o ónus da prova, dotando a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto e socorrendo-se de uma presunção, ilidível, baseada nas regras e funções do registo automóvel.
Outra solução violaria o princípio da proporcionalidade e, bem assim, em bom rigor, o da capacidade contributiva, como bem sustenta a Requerente.
Pelo que a resposta dada à primeira questão sub judice é a de que a norma de incidência subjectiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consubstancia uma mera presunção juris tantum, susceptível de demonstração em contrário, de propriedade do veículo;
Quanto à segunda questão:
A transmissão de veículos automóveis não é um negócio formal e o registo da propriedade automóvel tem subjacente uma mera declaração para registo, subscrita pelas partes.
Para ilisão da presunção que decorre do registo, atenta a natureza não formal do negócio, não é necessária a declaração para registo, que se destina, como o próprio nome indica, ao registo automóvel.
Na verdade, após alguma divergência decisória é actualmente mais ou menos pacífico, em nome de uma certa coerência e unidade do sistema fiscal, que as facturas que são emitidas no âmbito de impostos, como o IVA (artigo 29.º, n.º 1, alínea b), que no caso dos operadores económicos viabiliza a dedução do imposto e a sua contabilização como custo) e o IRC (artigos 23.º, n.º 6 e 123.º n.º 2), para efeitos de comprovar operações de venda e de prestação de serviços, originando, em regra, liquidações e cobranças subsequentes, não poderão deixar de ser meio idóneo para prova da alienação do veículo automóvel e ilisão da presunção de propriedade.
Pelo que também é positiva a resposta à segunda questão sub judice: a prova documental junta ao processo pela Requerente é meio idóneo e apto para firmar a propriedade dos locatários no final dos contratos.
Finalmente, quando à terceira e última questão:
O artigo 43.º, n.º 1 da LGT preceitua que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. Por sua vez, o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT estipula que é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário. A alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo estabelece como um dos efeitos da decisão arbitral o restabelecimento da situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários, estando compatibilizado com o artigo 100.º da LGT, segundo o qual a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litigio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.
Sendo anulados actos de liquidação e estando pago o imposto liquidado, a consequência da decisão anulatória é, portanto, o dever de reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
No presente caso, a Requerida, liquidou o imposto a quem na base de dados da CRA figurou como titular da propriedade do veículo, tendo-se limitado a, no exercício das respectivas competências e adstrita ao princípio da legalidade administrativa, liquidar imposto de acordo com a informação constante do registo, como lhe impõe a lei. Assiste-lhe, portanto, razão quando afirma que que não tinha condições para saber quem era o sujeito passivo na data das liquidações de imposto, inexistindo, nessa data, qualquer erro ou ilegalidade que lhe seja imputável.
Todavia, a Requerente apresentou reclamação graciosa, a que se seguiu um recurso hierárquico, indeferido e, nessa via administrativa, deu conhecimento à AT da situação de facto existente em relação à titularidade dos veículos e juntou prova capaz de ilidir a presunção.
A Requerida teve, portanto, oportunidade, a partir desse momento, de reponderar os pressupostos de facto que afectavam as liquidações, delas extraindo as respectivas consequências em termos de direito. Poderia e deveria, a partir desse momento, ter anulado as liquidações e reposto a legalidade. Pelo que são devidos juros indemnizatórios, se não a partir da data das liquidações objecto do p.p.a., a partir da data do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, à taxa que decorre dos artigos 43.º, n.ºs 1 da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil e Portaria 291/2003, de 8 de Abril, devidos até efectivo e integral reembolso do imposto pago pela Requerente.
VI - DECISÃO
Nestes termos, decide-se julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:
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Anular a decisão que incidiu sobre o recurso hierárquico apresentado pela Requerente;
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Anular as liquidações de IUC sub judice;
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Condenar a Requerida no reembolso das quantias pagas pela Requerida, acrescida de juros indemnizatórios contados, à taxa legal, desde a decisão de indeferimento da reclamação graciosa até efectivo e integral reembolso;
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Condenar a Requerida a suportar as taxas de arbitragem.
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Fixa-se o valor do processo em € 1.305,80, de harmonia com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.
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Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, aplicável por remissão do seu artigo 4.º n.º 1, as custas são fixadas no valor de € 306.
Notifique-se.
Porto e CAAD, aos 15 de Julho de 2023
O Árbitro Singular
Eva Dias Costa