Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 752/2022-T
Data da decisão: 2023-07-13  IRS  
Valor do pedido: € 450.972,93
Tema: IRS. Declarações conjuntas. Caducidade do direito à liquidação.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A..., NIF ..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 7 de Dezembro de 2022, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IRS, relativamente aos anos de 2002, 2003 e 2004, nos montantes de, respectivamente, €150.992,43; €186.438,88 e €113.541,62 (liquidações n.os 2022..., 2022 ... e 2022...), com o montante agregado de €450.972,93.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 20 de Fevereiro de 2023; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 23 de Fevereiro de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 29 de Março de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Instada, por Despacho de 3 de Abril de 2023, a declarar o seu interesse na manutenção da prova testemunhal, a Requerente fê-lo de modo afirmativo, especificando os pontos sobre os quais essa prova incidiria (artigos 10º, 15º a 24º, e 31º do PPA).
  10. Por Despacho de 20 de Abril de 2023, foi determinada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.
  11. No dia 24 de Maio de 2023 realizou-se, nas instalações do CAAD e também por videoconferência, a reunião prevista no art. 18º do RJAT. Aí se recolheu a prova testemunhal. As partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, indicando-se o dia 21 de Agosto de 2023 como data-limite para a prolação e comunicação da decisão arbitral.
  12. A Requerente apresentou alegações em 1 de Junho de 2023.
  13. A Requerida apresentou as suas alegações em 16 de Junho de 2023.
  14. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  15. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  16. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente e o seu cônjuge, B..., casaram em 7 de Fevereiro de 1997.
  2. Em 17 de Março de 2003, 15 de Março de 2004 e 16 de Maio de 2005, a Requerente e o seu cônjuge submeteram declarações conjuntas de rendimentos (IRS mod. 3), respectivamente para os anos de 2002, 2003 e 2004, nelas se declarando casados.
  3. Em 5 de Maio de 2009 foi decretada a Separação de Pessoas e Bens, por mútuo consentimento, entre a Requerente e o cônjuge.
  4. O cônjuge da Requerente foi condenado, por decisão judicial (Processo n.º .../07... TELSB, Juízo Central Criminal de Lisboa – 20ª Secção), por um crime de fraude fiscal cometido no período de 2002 a 2004, sendo-lhe atribuídas transferências no montante de €1.244.697,04.
  5. Em cumprimento da decisão judicial condenatória, a AT procedeu a liquidações oficiosas de IRS, correctivas das anteriores declarações correspondentes aos anos de 2002, 2003 e 2004.
  6. Nelas se acrescentou apenas, no anexo E, valores de rendimentos de capitais imputados especificamente ao sujeito passivo “A”, o cônjuge da Requerente.
  7. A Requerente foi notificada dos actos tributários de liquidação de IRS, relativamente aos anos de 2002, 2003 e 2004, nos montantes de, respectivamente, €150.992,43; €186.438,88 e €113.541,62 (liquidações n.os 2022..., 2022 ... e 2022 ...), montante agregado de € 450.972,93.
  8. Em 7 de Dezembro de 2022, a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar:

  1. Que a Requerente desconhecesse por completo as acções que se encontravam a ser realizadas pelo seu cônjuge no período em causa;
  2. Que a Requerente desconhecesse se os valores foram transferidos para contas bancárias tituladas pelo seu cônjuge;
  3. Que a Requerente nunca tivesse beneficiado dos valores obtidos pela prática criminosa;
  4. Que as relações entre a Requerente e o cônjuge se tivessem degradado a ponto de quase não haver comunicação entre eles;
  5. Que existisse, nos anos de 2002 a 2004, uma verdadeira separação de facto, sem partilha de vida e sem formação de um agregado familiar;
  6. Que essa degradação de relações tivesse sido determinante para a separação decretada em 2009.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, e nas declarações prestadas na reunião de 24 de Maio de 2023.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
  6. Nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal (ou, subalternamente, as declarações de parte) cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam.
  7. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
  8. No que especificamente respeita à matéria que consideramos não-provada, ela foi objecto de prova testemunhal em 24 de Maio de 2023 – tendo as 3 testemunhas corroborado a factualidade invocada no PPA, e genericamente a inexistência de um verdadeiro agregado familiar já nos anos de 2002 a 2004.
  9. Sucede, contudo, que a decisão condenatória que recaiu sobre o cônjuge da Requerente na data de 15 de Julho de 2021, e que consta do processo administrativo anexo à resposta da Requerida, dá-nos uma imagem bem diversa, diríamos diametralmente oposta, sobre a realidade das relações da Requerente com o seu cônjuge:

 

 

  1. Não é relevante, para a decisão de mérito neste processo, apurar-se quem faltou à verdade: se a Requerente e as testemunhas neste processo, se o cônjuge da Requerente no processo-crime.
  2. Embora se deva referir que não tendo sido contestada a exactidão da cópia da referida sentença, junta ao processo administrativo, e constituindo esta documento autêntico, a sua força probatória é plena (arts. 368º, 369º e 371º, 1 do Código Civil), não podendo ser contrariada por prova testemunhal.
  3. Mas o que releva, aqui, é somente que esta flagrante contradição não permite dar como provados alguns factos alegados pela Requerente no seu PPA, e nomeadamente aqueles que foram objecto da prova testemunhal.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

  1. A Requerente sustenta, em primeiro lugar, que desconhecia toda a actividade criminosa do cônjuge.
  2. E sustenta, de seguida, que nunca tirou qualquer benefício dessa actividade.
  3. E sustenta, ainda, que nunca participou da elaboração das declarações fiscais no período de referência, sendo que os valores então declarados não lhe eram, sequer, previamente comunicados.
  4. Acrescenta que nunca teve intervenção, e menos ainda gestão, em qualquer das sociedades ligadas à actividade criminosa.
  5. Alegando que a imputação de rendimentos ao agregado familiar é ilegítima por existir, à data, uma separação de facto, violando-se, com aquela imputação, o princípio da proporcionalidade.
  6. Por outro lado, a Requerente sustenta a caducidade da liquidação, por duas razões distintas.
  7. Em primeiro lugar, por se ter ultrapassado o prazo legal de caducidade de 4 anos constante do art. 45º, 1 da LGT – já que em 2007, momento em que foi instaurado o processo judicial contra o cônjuge da Requerente, tinha caducado o direito à liquidação do IRS de 2002, não podendo entrar em vigor, por isso, o alargamento de prazo previsto no art. 45º, 5 da LGT.
  8. Em segundo lugar, pelo facto de a Requerente não ter sido parte no processo judicial, não lhe sendo, por isso, oponível a regra do art. 45º, 5 da LGT.
  9. Termina pedindo a anulação das liquidações.
  10. Em alegações, a Requerente coloca ênfase na prova testemunhal, e retoma os argumentos quanto à caducidade e à não-oponibilidade do prazo do art. 45º, 5 da LGT à Requerente.

 

III. B. Posição da Requerida

 

  1. Na sua resposta, a Requerida assinala que a pretensão principal da Requerente, a de deixar de figurar como sujeito passivo do imposto, não pode proceder, visto que o art. 13º, 2 do CIRS, na redacção vigente à data dos factos, colocava nessa posição o agregado familiar, incluindo neste, naturalmente, os cônjuges não separados de pessoas e bens, obrigados por regra à entrega de uma única declaração, e sujeitos a tributação conjunta (independentemente, como é óbvio, de quem tivesse efectivamente preenchido a declaração).
  2. Se era assim para as declarações, tinha que ser assim para as liquidações oficiosas, que não poderiam ter um diferente âmbito subjectivo, até para efeitos da aplicação dos arts. 21º e 22º da LGT.
  3. Acresce que, a verificar-se uma separação de facto como agora a Requerente alega, podiam os cônjuges ter optado por declarações separadas (art. 59º do CIRS), mas não usaram de tal faculdade; nem o fizeram posteriormente, e agora está precludida a possibilidade de fazê-lo, estando ultrapassados largamente todos os prazos de substituição de declarações ou de revisão de liquidações.
  4. Por outro lado, as liquidações oficiosas só tiveram por objecto, e só podiam ter, os rendimentos que figuravam na decisão judicial condenatória e que respeitavam aos anos de 2002 a 2004; não tendo a AT qualquer prerrogativa de alterar qualquer outro elemento das liquidações de IRS dos anos de 2002 a 2004, nomeadamente a questão da imputação subjectiva dos rendimentos entre os sujeitos passivos.
  5. A Requerida aventa a hipótese de a Requerente pretender apenas salvaguardar o seu património pessoal face à dívida de imposto, em vez de verdadeiramente atacar a legalidade das liquidações oficiosas: só que, lembra, nesse caso o tema, abarcado em dispositivos como os dos arts. 21º e 22º, 3 da LGT, ou dos arts. 220º e 239º do CPPT, extravasa da competência dos tribunais arbitrais, situando-se no plano, não já da legalidade, mas da exigibilidade da dívida de imposto.
  6. Quanto à invocada caducidade do direito à liquidação, a Requerida retira, do nº 5 do art. 45º da LGT (“Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano”), um sentido diverso daquele que a Requerente lhe atribui – não lendo na norma a exigência de que o inquérito criminal seja instaurado dentro do prazo do art. 45º, 1 da LGT, sob pena de uma tal interpretação frustrar os objectivos gerais do processo-crime, no qual muitas situações de ocultação e dissimulação de riqueza e de rendimentos são incompatíveis com prazos normais de inspecção e auditoria tributárias, dissociando o tratamento fiscal do tratamento penal de uma mesma situação – ou, pior ainda, criando, num condenado por prática de crime fiscal, a expectativa de tutela da sua situação tributária, relativamente aos próprios factos objecto da condenação.
  7. Quanto à não-oponibilidade do art. 45º, 5 à Requerente, a Requerida invoca jurisprudência do TCAS e do STA, no sentido de que nem sequer é exigível, para efeitos do alargamento do prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no art. 45º, 5 da LGT, a par de uma “identidade objectiva” entre facto tributário e facto objecto de inquérito criminal, uma identidade subjectiva, entre o arguido ou agente e o sujeito passivo de imposto – o que se aplicará, por maioria de razão, a uma situação em que o arguido é cônjuge da Requerente, e ambos são o sujeito passivo do imposto.
  8. Concluindo pela manutenção, na ordem jurídica, das liquidações controvertidas.
  9. Em alegações, a Requerida recapitula os seus argumentos principais, com destaque para o facto de as liquidações oficiosas serem, para a AT, um acto vinculado, na medida em que a Requerente era, e continua, casada com quem foi condenado, por decisão judicial, por um crime de fraude fiscal – condenação que tornou legalmente necessárias as liquidações oficiosas.

 

 

III. C. Fundamentação da decisão

 

A) A CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO RELATIVAMENTE A 2002

 

  1. Determina o art. 124º do CPPT que, na sentença, seja dada prioridade ao conhecimento dos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado, antes da consideração dos vícios invocados que conduzam à sua anulação (n.º 1), devendo conhecer-se em primeiro lugar os vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos (n.º 2, alínea a)).
  2. Porque a caducidade constitui vício que afecta a validade substancial dos actos tributários impugnados, e o decurso do respectivo prazo conduz à preclusão do direito do Estado de promover a liquidação dos impostos que lhe sejam eventualmente devidos[1], assim se assegurando uma estável e eficaz definição da situação tributária dos sujeitos passivos, impõe-se começar pela apreciação deste vício invocado pela Requerente.
  3. Vimos que ela invoca que o art. 45º, 5 da LGT apenas é aplicável aos factos tributários relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal dentro do prazo geral de caducidade, de quatro anos, estabelecido pelo n.º 1 do mesmo artigo, e não àqueles cujo prazo de caducidade já se tenha completado à data da instauração do processo de inquérito.
  4. Deste modo, entende a Requerente que, tendo sido instaurado em 2007 o processo de inquérito no âmbito do qual foram apurados os factos tributários, já se encontrava, à data da sua abertura, precludido o direito à liquidação do imposto referente aos rendimentos do ano de 2002.
  5. Defende ainda, como vimos, que o regime do art. 45º, 5 da LGT não lhe é aplicável, porquanto não foi instaurado inquérito criminal relativamente a factos por si praticados, nem teve qualquer intervenção naquele processo judicial, encontrando-se caducadas, quanto a si, também as liquidações de IRS dos anos de 2003 e de 2004.
  6. Considerámos também os argumentos apresentados pela Requerida, na sua resposta e nas suas alegações, mormente argumentos teleológicos de conjugação do regime fiscal com o regime penal
  7. Cumpre apreciar.
  8. Por um lado, temos o prazo de caducidade de quatro anos do direito à liquidação (art. 45º, 1 da LGT); por outro lado, temos o regime do n.º 5 do mesmo art. 45º da LGT, aditado pela Lei n.º 65-A/2005, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2006), Lei que, no seu art. 57º, 2, estabelecia que essa extensão do prazo era aplicável aos prazos de caducidade em curso à data de entrada em vigor daquela lei, ou seja, em 1 de Janeiro de 2006.
  9. O prazo de caducidade do direito à liquidação de IRS do ano de 2002, com termo inicial de contagem em 1 de janeiro de 2003, apenas se completaria em 31 de dezembro de 2006, encontrando-se em curso, à data da entrada em vigor da Lei n.º 65-A/2005.
  10. Contudo, tal não significa, por si só, que o alargamento do prazo de caducidade seja aplicável a todos os prazos de caducidade em curso em 1 de Janeiro de 2006 – certamente não o foi, nem podia logicamente sê-lo, a situações relativamente às quais não tinha sido ainda, naquela data, instaurado inquérito criminal (por absurdo, suspender-se-iam todos os prazos de caducidade até se saber em definitivo quais conduziriam, ou não, a futuros inquéritos criminais).
  11. Lembremos, por outro lado, que, ao remeter para o nº 1 do art. 45º da LGT, o nº 5 usa o pretérito perfeito “foi”, deixando claro que se refere a circunstâncias passadas e não a circunstâncias futuras, exigindo-se, portanto, que a instauração do inquérito criminal ocorra em momento anterior ao decurso do prazo a que se refere o n.º 1 do mesmo artigo:

Artigo 45.º - Caducidade do direito à liquidação

(…)

5 - Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.

  1. Nem, em termos lógicos, se compreenderia a possibilidade de alargamento de um prazo inteiramente decorrido em data anterior à da instauração do inquérito criminal, de cuja abertura depende, precisamente, esse alargamento, sem que se estivesse a aplicar retroativamente a lei fiscal, em violação do disposto no art. 103º, 3, da Constituição.
  2. Acompanha-se, neste ponto, o entendimento expresso no Acórdão do STA, de 21/10/2015, Processo n.º 01477/13, em que se decidiu que “A data relevante para os efeitos da aplicação do n.º 5 do art. 45.º da LGT é a da instauração do inquérito criminal e não aquela em que o contribuinte tomou conhecimento dessa instauração.”.
  3. Se, no caso concreto dos autos, o processo de inquérito foi instaurado em 2007, já depois de completado o prazo geral de caducidade do direito à liquidação do imposto referente ao ano de 2002, não pode ser aplicado, àquele ano, o alargamento do prazo de caducidade, nos termos do art. 45º,5 da LGT.
  4. Procede, pelos motivos expostos, a excepção da caducidade da liquidação de IRS quanto ao ano de 2002.

 

B) A CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO RELATIVAMENTE A 2003 E 2004

 

  1. Relativamente às liquidações dos anos de 2003 e de 2004, à data da abertura do processo-crime, em 2007, ainda não tinha decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação de qualquer dos anos referidos, cujo termo final terminaria em 31 de Dezembro de 2007 e em 31 de Dezembro de 2008, respectivamente, não fosse a instauração de inquérito criminal.
  2. Assim sendo, e registando-se uma identidade entre os factos apurados naquele processo de inquérito criminal e os que determinaram a emissão das liquidações impugnadas, importa averiguar do cumprimento de outro dos pressupostos de aplicação aos anos em análise do alargamento do prazo de caducidade, isto é, há que apurar se as liquidações oficiosas foram validamente notificadas, dentro do prazo de um ano após o trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano, conforme consignado no art. 45º, 5 da LGT.
  3. Entendem a doutrina e a jurisprudência que este prazo de um ano contado sobre o arquivamento do inquérito, ou o termo do processo criminal, se destina “a permitir que haja lugar aos procedimentos e diligências legal e tecnicamente indispensáveis à estruturação de uma liquidação válida e sua notificação ao sujeito passivo”, nele se incluindo “o desenvolvimento dos procedimentos técnicos de promoção da liquidação”, sendo considerado “o prazo que o legislador teve como razoável para que a A. Fiscal possa levar a cabo todas as diligências que a estruturação de uma liquidação acarreta[2].
  4. No caso em apreço e de acordo com os documentos juntos ao PA, a sentença condenatória proferida no processo n.º 81/07.6 TELSB foi lida em 15 de Julho de 2021, tendo o cônjuge da Requerente sido condenado pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, após o que a AT, perante os factos apurados no processo-crime, deu cumprimento ao disposto nos arts. 65º, 4 e 66º do CIRS, promovendo as necessárias correcções aos elementos declarados pelos contribuintes para os anos referidos, bem como a notificação destes, por ofício da Direção de Finanças de Lisboa, datado de 27 de Setembro de 2022, para que pudessem exercer o direito de audição antes da emissão das liquidações ora impugnadas. A Requerente e o seu cônjuge exerceram o direito de audição dentro do prazo que lhes foi designado, em 10 de Outubro de 2022. Na sequência do exercício desse direito, foram as liquidações emitidas em 28 de Outubro de 2022, tendo sido notificadas aos sujeitos passivos em 7 de Novembro de 2022.
  5. Desconhece-se a data do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 81/07.6 TELSB, a que nem a Requerente nem a AT fazem alusão, a fim de se aferir da tempestividade das liquidações de IRS dos anos de 2003 e de 2004.
  6. Afigura-se, todavia, irrelevante o conhecimento desse dado, atendendo aos poderes de cognição do tribunal que, nos termos do art. 608º, 2 do CPC, “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”. Ora, a caducidade do direito à liquidação de impostos não é matéria de conhecimento oficioso[3], por se tratar de um vício que “gera mera anulabilidade (…) devendo, antes, ser invocada pelo contribuinte. Entende-se que se trata de uma ilegalidade, idêntica a outras ilegalidades, a necessitar de alegação na petição inicial, sob pena do seu conhecimento ficar precludido.[4].
  7. É certo que, na petição inicial, a Requerente invoca a caducidade das liquidações de IRS dos anos de 2003 e de 2004, mas não com fundamento na sua notificação para além do prazo estabelecido no art. 45º, 5 da LGT, que não integra a causa de pedir do efeito jurídico visado, ou seja, da declaração de ilegalidade e consequente anulação daqueles actos tributários.
  8. Entende este Tribunal não poder conhecer de questão não suscitada pelas Partes, e de que não pode conhecer oficiosamente, pois isso seria causa de nulidade da decisão, nos termos do art. 125º, do CPPT e do art. 615º, 1, d), do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º do RJAT.

 

C) A INOPONIBILIDADE DOS PRAZOS À REQUERENTE

 

  1. Resta, portanto, proceder à análise da caducidade do direito à liquidação do IRS dos anos de 2003 e de 2004, com o fundamento aduzido pela Requerente, de não ter sido instaurado contra ela qualquer inquérito criminal, não lhe sendo por isso oponível o alargamento de prazo previsto no art. 45º, 5 da LGT.
  2. Nesta sua argumentação parte a Requerente de dois pressupostos:
    1. por um lado, a necessidade de identidade subjectiva entre o sujeito passivo e o arguido no processo criminal em que foram apurados os factos tributários;
    2. por outro lado, a inexistência de um agregado familiar constituído pela Requerente e seu cônjuge nos anos a que respeita o imposto.
  3. O primeiro pressuposto não se verifica: tem a jurisprudência uniformemente entendido que não é necessária tal identidade, bastando que se registe uma identidade objectiva entre os factos apurados no processo criminal e os factos tributários sobre que recaiu a liquidação impugnada[5].
  4. O segundo pressuposto não foi provado, além de ser em larga medida irrelevante face ao quadro legal aplicável.
  5. Cumpre trazer à colação as pertinentes normas do CIRS, designadamente os seus arts. 13º, 1, 2 e 3, e 59º, na redacção à data dos factos:

Artigo 13.º - Sujeito passivo

1 - Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.

2 - Existindo agregado familiar, o imposto é devido pelo conjunto dos rendimentos das pessoas que o constituem, considerando-se como sujeitos passivos aquelas a quem incumbe a sua direcção.

3 - O agregado familiar é constituído por:

  1. Os cônjuges não separados judicialmente de pessoas e bens e os seus dependentes;
  2. Cada um dos cônjuges ou ex-cônjuges, respetivamente, nos casos de separação judicial de pessoas e bens ou de declaração de nulidade, anulação ou dissolução do casamento, e os dependentes a seu cargo;
  3. O pai ou a mãe solteiros e os dependentes a seu cargo;
  4. O adotante solteiro e os dependentes a seu cargo.

(…)”

Artigo 59.º - Contribuintes casados

1 - No caso do n.º 2 do artigo 13.º deve ser apresentada uma única declaração pelos dois cônjuges ou por um deles, se o outro for incapaz ou ausente.

2 - Havendo separação de facto, cada um dos cônjuges pode apresentar uma única declaração dos seus próprios rendimentos e dos rendimentos dos dependentes a seu cargo, mas, neste caso, observa-se o seguinte:

  1. Sem prejuízo do disposto na alínea c), as deduções à coleta previstas neste Código não podem exceder o menor dos limites fixados em função da situação pessoal dos sujeitos passivos ou 50% dos restantes limites quantitativos, sendo esta regra aplicável, com as devidas adaptações, aos abatimentos e às deduções por benefícios fiscais;
  2. Não é aplicável o disposto no artigo 69.º;
  3. Cada um dos cônjuges terá direito à dedução a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 79.º.”.
  1. Como decorre das normas transcritas, sendo a Requerente, e o cônjuge, casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, à data dos factos tributários, tendo assim formalmente permanecido até 2009, estavam sujeitos à tributação conjunta dos seus rendimentos, excepto se se encontrassem em situação de separação de facto – uma circunstância que este tribunal considerou, pelas razões já aduzidas, como não-provada.
  2. Além disso, tendo optado por apresentar declarações de rendimentos conjuntas, a Requerente não pode deixar de ser considerada sujeito passivo do imposto, à luz do art. 13º, 2 e 3, do CIRS, na redacção anterior à reforma introduzida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro.
  3. Termos em que, sendo a Requerente casada e não separada judicialmente de pessoas e bens, não se encontrando, também, separada de facto, nos anos a que respeitam os factos tributários, deve ser considerada sujeito passivo do imposto oficiosamente liquidado pela AT referente aos rendimentos conjuntos do agregado familiar.
  4. Pelo que improcede a impugnação por caducidade do direito à liquidação de IRS, no que respeita aos anos de 2003 e de 2004.
  5. Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

IV. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita à Liquidação n.º 2022..., respeitante ao ano de 2002, anulando-a;
  2. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita às liquidações n.º 2022 ..., respeitante ao ano de 2003, e n.º 2022..., respeitante ao ano de 2004, mantendo-as na ordem jurídica e absolvendo do pedido formulado, nessa parte, a Autoridade Tributária e Aduaneira;
  3. Condenar a Requerente e a Requerida no pagamento das custas do processo, na proporção do respectivo decaimento.

 

V. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €450.972,93 (quatrocentos e cinquenta mil, novecentos e setenta e dois euros e noventa e três cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

 

Custas no montante de € 7.344,00 (sete mil trezentos e quarenta e quatro euros), € 4.886,00 a cargo da Requerente, € 2.458,00 a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 13 de Julho de 2023

 

 

Os Árbitros

 

 

Fernando Araújo

 

 

Mariana Vargas

 

 

Armando Oliveira

 



[1] Neste sentido, cfr. o Acórdão do STA, de 23/06/2021, Proc. n.º 01866/05.3BEPRT 01448/13.

[2] Cfr. José Maria Fernandes Pires e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, 2015, Almedina, pág. 412, citada, entre outros, pelo Acórdão do TCAS, de 31.10.2019, Proc. n.º 241/12.8BEBJA.

[3] Cfr. o Acórdão do STA de 23-06-2021, Processo n.º 01866/05.3BEPRT 01448/13, já citado.

[4] Cfr. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª Edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 498 e jurisprudência aí citada.

[5] Cfr. os Acórdãos do STA, de 06.12.2017, processo n.º 073/16 e de 12/01/2022, processo n.º 02154/16.5BEPRT nos quais se decidiu que ““Não resulta, nem da letra, nem da teleologia da norma, que, para efeitos do alargamento do prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no n.º 5 do artigo 45.º da LGT, seja exigível, a par de uma “identidade objetiva”, entre facto tributário e facto objeto de inquérito criminal, uma identidade subjetiva, entre o arguido ou agente e o sujeito passivo de imposto.”.