SUMÁRIO:
O artigo 6º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que por mera interpretação declarativa se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção.
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DECISÃO ARBITRAL
Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 03-02-2023, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.
1. RELATÓRIO
A..., contribuinte fiscal número ..., residente no ..., ..., em Arcos de Valdevez (doravante, abreviadamente designado de “Requerente), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo (“IS”) n.º ..., correspondente ao documento de cobrança n.º 2022..., no valor de € 316,68.
A Requerente peticiona a anulação do referido ato de liquidação de IS, peticionando também a restituição do montante pago, acrescido de juros legais.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 28-11-2022 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 30-11-2022.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral, com árbitro singular, a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.
Em 16-01-2023 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 03-02-2023.
A Requerida, através de despacho arbitral proferido em 06-02-2023, foi notificada para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
Em 02-03-2023, a Requerida, apresentou a sua Resposta, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição do pedido.
Por despacho de 07-03-2023, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas, tendo também sido determinada a notificação da Requerente para exercer, querendo, o contraditório quanto à Resposta apresentada pela AT.
Em 24-03-2023, o Requerente apresentou alegações escritas, nas quais reiterou a posição anteriormente assumida na petição inicial, e exerceu o seu direito ao contraditório relativamente à Resposta apresentada pela AT.
Em 11-04-2023, a AT apresentou alegações escritas, nas quais reiterou também a posição anteriormente assumida na sua Resposta.
2. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou suscitadas questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. MATÉRIA DE FACTO
3. 1.1. Factos provados
Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
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Em 04.04.2022, no Cartório Notarial de ..., a Requerente, à data casada com B..., NIF..., sob o regime de comunhão geral de bens, celebrou escritura de Justificação Notarial de usucapião e Compra e Venda, na qual, conjuntamente com o seu marido, declarou [cf. documento n.º 1 junto à P.I.[1]]:
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Que são os donos e legítimos possuidores do prédio urbano, não descrito na Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na matriz predial da freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, sob o artigo ...;
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Que o prédio em questão está inscrito na matriz em nome do justificante, marido, B...
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Que desconhecem qualquer anterior proveniência matricial do prédio, para além da indicada.
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Que o prédio veio à posse de ambos, já na constância do seu casamento, cerca do ano de mil novecentos e oitenta, por entrega material em cumprimento de contrato verbal de doação, em que foram doadores os pais da Requerente, C... e mulher, D..., casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes que foram no lugar de ..., ..., atualmente já falecidos, não lhes sendo, por isso, possível a exibição de título formal que legitime o seu direito.
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Que, não obstante a falta de título, sempre o têm possuído, desde essa data, exercendo todos os direitos correspondentes ao direito de propriedade, usufruindo do imóvel, gozando de todas as utilidades por ele proporcionadas, participando nas suas vantagens e encargos, praticando todos os atos materiais de uso e aproveitamento, nomeadamente habitando-o, procedendo a pinturas e reparações sempre que necessário, com ânimo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé, por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, contínua, porque nunca interrompida, e pública, porque à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém e tudo isto por um lapso de tempo superior a VINTE ANOS.
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Que, dadas as enunciadas características de tal posse, adquiriram o dito prédio por USUCAPIÃO, título esse que, por sua natureza não é suscetível de ser comprovado pelos meios normais.
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Em 23.05.2022, a Requerente fez a participação da escritura de justificação junto da AT, através da apresentação da participação de transmissões gratuitas de Imposto do Selo (Modelo 1), com o n.º de entrada 2022... e n.º atribuído ... [cf. documento n.º 2 junto à P.I.].
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Em 24.05.2022, a AT emitiu a nota de liquidação n.º..., documento cobrança n.º 2022..., referente à liquidação do Imposto do Selo n.º..., no montante de € 316,68, com termo da data de pagamento voluntário em 31.08.2022, objeto de pronúncia arbitral [cf. documento n.º 3 junto à P.I.].
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Consta da referida liquidação que esta teve por base o facto “Aquisição por usucapião” [cf. documento n.º 3 junto à P.I.].
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Em 01.08.2022, a Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de IS, aqui impugnada, melhor identificada em C) [cf. documento n.º 4 junto à P.I.].
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Em 28-11-2022, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
3.1.2. Factos considerados não provados
Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
3.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente os documentos juntos pelo Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.
Finalmente, importa sublinhar que a questão essencial a decidir é de direito e assenta na prova documental junta aos autos pelo Requerente, não contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.2. MATÉRIA DE DIREITO
3.2.1 Objeto do litígio
A questão que constitui o thema decidendum é a de saber se, no caso concreto, a aquisição por usucapião do imóvel identificado em c) dos factos assentes, beneficia da isenção prevista na norma da alínea e) do art. 6º do Código do Imposto do Selo (“CIS”), como defende a Requerente ou se, como defende a AT, cabe à Requerente fazer prova (e não o fez) de que preenche os requisitos daquele preceito legal, e não tendo cumprido com esse ónus probatório, não pode beneficiar daquela isenção.
3.2.2 - Posição das partes
A Requerente para fundamentar a sua posição e o pedido que deduz, defende em síntese, que, à luz e nos termos da escritura de justificação que celebrou, preenche todos os requisitos para beneficiar da isenção do imposto de selo prevista na alínea e) do art. 6º do CIS.
Sustenta a Requerente que, ao contrário do que alega a AT, não lhe cabe qualquer ónus de produção de prova adicional de que o imóvel em causa tenha sido propriedade ou tenha estado na posse dos seus pais, sendo que os factos que fundamentam a aplicação da isenção prevista na norma da alínea e) do art. 6º do CIS, constam expressos na escritura de justificação notarial, e é apenas este ónus que lhe cabe, i.e. apresentação da mencionada escritura que serve de base à liquidação do imposto.
Sustenta ainda a Requerente que:
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A aquisição em causa, é fundamentada no instituto da usucapião e que serviu a mencionada escritura para adquirir título aquisitivo válido para proceder ao registo de propriedade, sendo que o imóvel lhe foi doado, a si e ao seu falecido marido, por doação verbal feita pelos seus pais.
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O requisito para a aplicação da isenção do imposto de selo em questão, encontra-se preenchido, uma vez que a aquisição derivou de uma doação verbal feita pelos seus pais.
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O facto de o prédio nunca ter estado inscrito na matriz em nome dos seus pais, não invalida qualquer invocação de propriedade ou posse, atendendo a que a matriz cadastral tem única e exclusivamente por objetivo regular as responsabilidades fiscais sobre determinado prédio, ainda que, esse responsável não seja proprietário ou possuidor.
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Não lhe é exigido que apresente quaisquer elementos instrutórios adicionais aquando da liquidação do Imposto de Selo sobre as transmissões gratuitas, sendo-lhe única e exclusivamente exigível a apresentação do título que serve de base à referida liquidação, isto é, a mencionada escritura de justificação notarial.
A Requerente para sustentar a sua posição invoca ainda o acórdão uniformizador de jurisprudência, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 02.05.2012, no processo n.º 0746/11.
A AT, por seu turno, para sustentar a sua posição, defende em síntese, que:
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Conhece, e inclusivamente acolheu a interpretação jurídica constante do acórdão uniformizador de jurisprudência, proferido pelo STA em 2/05/2012, tendo nessa sequência emitido a Instrução de Serviço nº ..., Série I, de 22/12/2017, da DSIMT.
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Não rejeita a subsunção de uma aquisição de imóvel por usucapião (por ato notarial de justificação) na alínea e) do art. 6º do CIS, mas desde que o sujeito passivo faça prova de que preenche os pressupostos da mencionada norma, o que não sucedeu no caso em apreço.
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No caso concreto, a Requerente com a participação de transmissões gratuitas de Imposto do Selo (Modelo 1) que apresentou, apenas juntou cópia da escritura de justificação, não tendo feito prova de que o imóvel em causa fosse propriedade, ou tenha estado na posse dos seus pais, que lho doaram por contrato verbal, sendo certo que esse ónus probatório recai sobre a R.
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De acordo com a informação cadastral relativa ao prédio, este nunca esteve inscrito na matriz em nome dos pais da Requerente.
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Face ao défice instrutório da Modelo 1 apresentada pela Requente, no sentido de corroborar e demonstrar as declarações por si prestadas na escritura de justificação, e face aos elementos cadastrais na posse da AT que demonstram que o prédio nunca esteve na posse, nem foi propriedade dos seus pais, a AT não aplicou à dita transmissão a isenção subjetiva prevista na norma da alínea e) do art. 6º do CIS.
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Conforme consta da doutrina administrativa ínsita na Instrução de Serviço nº 40054, Série I, de 22/12/2017, da DSIMT, a escritura pública de justificação notarial é insuficiente para demonstrar a verificação dos pressupostos da isenção prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS, cuja aplicabilidade está dependente da demonstração casuística e concreta da verificação dos pressupostos contidos nessa norma.
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Dos elementos na posse da AT não resulta qualquer evidência de que os pressupostos para a invocação da usucapião se encontravam reunidos nas figuras dos anteriores titulares da posse, ou seja, nos pais da Requerente que, segundo consta da escritura de justificação, na posse do imóvel, terão doado verbalmente à Requerente e ao seu marido, por volta do ano de 1980, o imóvel em causa, nem a Requerente trouxe aos autos qualquer elemento probatório que demonstre esta factualidade.
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Como é jurisprudência pacífica, o valor probatório da escritura de justificação, se limita a atestar que as declarações do justificante e demais declarantes foram as que constatam do título notarial, sem terem a virtualidade de provar que os factos contidos nessas declarações são verdadeiros ou efetivamente ocorreram.
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Perante o défice instrutório da Modelo 1 apresentada pela Requente, no sentido de corroborar e demonstrar as declarações prestadas na escritura de justificação, e face aos elementos na posse da AT que não permitem extrair a necessária verificação dos pressupostos para a aplicação da isenção prevista na alínea e) do art. 6º do CIS, a liquidação impugnada não reflete essa mesma isenção, não merecendo, portanto, qualquer censura.
3.2.3. Apreciação da questão
Atenta a matéria de facto que resultou provada, a única questão de direito que importa decidir é a de determinar se a isenção subjetiva ínsita na norma da alínea e) do artigo 6.º do Código do Imposto do Selo - e de que beneficiam o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes - é aplicável à aquisição de imóvel por usucapião, uma vez que, para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o legislador, na norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 2.º do CIS, estabeleceu que são transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objeto o direito de propriedade ou figuras parcelares deste direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião.
A questão controvertida no presente processo arbitral, foi já exaustivamente analisada e decidida pelos Tribunais Tributários Superiores, sendo atualmente unânime o entendimento que o STA tem sobre esta temática, evidenciado no acórdão uniformizador de jurisprudência proferido pelo STA em 2-05-2012, no âmbito do proc. 0746/11, e mais recentemente, no Acórdão de 20-05-2020, proferido no âmbito do processo nº 0121/16.8BEMDL.
A sólida e convincente fundamentação do acórdão uniformizador de jurisprudência proferido pelo STA em 2-05-2012, cuja atualidade se mantém, justifica a adesão integral à solução da questão nele expressa, cujo teor, pela sua relevância a seguir se transcreve, quase na íntegra:
“A questão que se discute nos autos é a de saber se está sujeita a imposto de selo a aquisição de imóvel por usucapião, titulada por escritura notarial na qual foi invocada a posse derivada de anterior doação verbal ou de partilha de bens pertencentes aos progenitores dos impugnantes, isto tendo em conta a isenção constante do artº 6º, alínea e), do Código do imposto do Selo. (…)
Antes de entramos na análise da questão que vem posta impõe-se conhecer de perto as normas pertinentes.
A partir da revogação Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (a partir de 1/1/2004 por força dos arts. 31º e 32º do DL nº 287/2003, de 12/11), as transmissões gratuitas de imóveis passaram a ser reguladas pelo Código do Imposto de Selo (CIS), cujo artº. 1º dispõe, no que aqui interessa, o seguinte:
1 - O imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.
2 – (…)
3 - Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objecto:
a) Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião; (Redacção introduzida pela Lei nº 39-A/2005, de 29/7).
(…)
Por sua vez, o artigo 2º (incidência subjectiva) dispõe:
1 – (…)
2 - Nas transmissões gratuitas, são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens, sem prejuízo das seguintes regras:
a) Nas sucessões por morte, o imposto é devido pela herança, representada pelo cabeça de casal, e pelos legatários;
b) Nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respectivos beneficiários. (Redacção introduzida pelo DL nº 287/2003, de 12/11).
E o artigo 3º (Encargo do imposto) dispõe:
1 - O imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico nas situações referidas no artigo 1º. (Redacção introduzida pelo DL nº 287/2003, de 12/11).
2 - (…)
3 - Para efeitos do nº 1, considera-se titular do interesse económico:
a) Nas transmissões por morte, a herança e os legatários e, nas restantes transmissões gratuitas, bem como no caso de aquisições onerosas, os adquirentes dos bens;
Já a al. r) do artº. 5º (Nascimento da obrigação tributária) dispõe (redacção da Lei nº 60-A/2005, de 30/12) que a obrigação tributária se considera constituída, nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a acção de justificação judicial ou for celebrada a escritura de justificação notarial ou no momento em que se tornar definitiva a decisão proferida em processo de justificação nos termos do Código do Registo Predial.
Por sua vez, o artigo 6º - Isenções subjectivas – dispõe:
«São isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo:
(…)
e) O cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários.»
E de acordo com a verba 1.2. da Tabela Geral o imposto do selo recai em 10% sobre o valor dos respectivos contratos de «aquisição gratuita de bens, incluindo por usucapião (…)».
Ora, é, precisamente, com base nesta al. e) do art. 6º do CIS que a recorrente sustenta estar isenta do pagamento de imposto de selo aqui em causa, alegando que nas transmissões gratuitas (ficcionadas ou não), e ao invés das aquisições originárias, existe sempre uma relação bilateral, ou seja, um sujeito passivo e um sujeito activo e que o Acórdão recorrido interpreta erradamente aquele normativo, ao entender que nas aquisições por usucapião - qualificadas como transmissões gratuitas para efeitos do CIS - o cônjuge, descendentes e ascendentes, que forem beneficiários, não estão isentos de imposto, sendo que dessa interpretação/aplicação, resultaria inútil (como aliás resultou) a consagração e qualificação, pelo legislador do CIS, de que as aquisições por usucapião constituem transmissões gratuitas, porquanto sempre estariam sujeitas ao pagamento de imposto de selo.
Ora, quando o legislador veio, no art. 1º, nº 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a “aquisição por usucapião”, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza. O objectivo do legislador, visando alargar a base de incidência objectiva do imposto, foi o de equiparar, para efeitos de imposto de selo, a usucapião às transmissões gratuitas. Trata-se, por conseguinte, de uma ficção legal para efeitos fiscais.
Ficção que é repetida nas normas seguintes, quando o legislador, no art. 2º do CIS, ao regular a incidência subjectiva do imposto, volta a dizer que “Nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários” (alínea b) do mesmo preceito).
Finalmente, no art. 6º do CIS repete então o legislador que, no que concerne às isenções subjectivas, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2. da tabela geral de que são beneficiários, são isentos de imposto do selo, quando este constitua seu encargo, o “cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes”.
Ora, fica-se sem se perceber por que é que não há dúvidas quanto ao facto de nos preceitos anteriores (arts. 1º e 2º do CIS) a usucapião considerar-se equiparada ou ficcionada a uma transmissão gratuita, mas já não ser assim quando se chega ao preceito relativo às isenções. É verdade que o legislador nos preceitos anteriores referiu-se sempre à usucapião e no art. 6º do CIS não o faz. Mas o problema que se pode colocar-se, quando muito, é o de saber se era necessário fazê-lo.
Com efeito, repare-se que o legislador no art. 2º do CIS já regula a incidência subjectiva do imposto de selo, referindo expressamente que “nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos beneficiários.” O que significa que quando se chega ao art. 6º já não há necessidade de voltar a repetir-se a expressão. Primeiro porque o objectivo do preceito está centrado na enumeração das pessoas que estão isentas de imposto e não nas operações, o que foi tratado anteriormente. Em segundo lugar, realce-se que o preceito diz expressamente que são isentos “o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, nas transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários”. Isto é, o preceito ao remeter expressamente para as “transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral” dispensa a necessidade de repetir a expressão usucapião porque o nº 3 do art. 2º do CIS, para onde a alínea e) do art. 6º do CIS remete, já contém, precisamente, a noção de “transmissões gratuitas” para efeitos daquela tabela onde se inclui a usucapião. O que significa que, por mera interpretação declarativa, se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da isenção da alínea e) do art. 6º do CIS.
Finalmente, a prevalecer a tese do Acórdão fundamento, ficaria também por responder qual a razão de ser de dar tratamento diferente discriminando a usucapião das demais aquisições gratuitas, quando o objectivo da isenção prevista na alínea e) do art. 6º do CIS é o de favorecer precisamente o cônjuge ou equiparado e os descendentes e ascendentes. Não vemos razão para adoptar nesta sede uma noção restrita de “transmissão gratuita”, distinta do sentido amplo adoptado nos demais preceitos. Se o objectivo da lei é proteger as pessoas indicadas na alínea e) do art. 6º do CIS, então o mais natural é que valha a aqui a noção ampla de “transmissão gratuita” adoptado pelo legislador nos demais preceitos.
Acresce ainda que deve considerar-se contrário ao princípio da confiança e da certeza e segurança jurídica, enquanto sub-princípios do princípio do Estado de Direito, que o legislador possa utilizar, sobretudo ao nível de normas de isenção fiscal e no âmbito do mesmo imposto, os mesmos conceitos com significados opostos, para daí extrair encargos económicos sobre os contribuintes de forma pouco clara e transparente.
Em face do exposto, não podemos deixar de concluir no sentido do consignado no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13/10/2010, proc nº 0431/2010, que, “por um lado, a alínea a) do nº 3 do artigo 1º do Código do Imposto de Selo, considera, desde sempre, transmissões gratuitas os casos de aquisição por usucapião de imóveis (….)”. E, por outro lado, o teor da alínea e) do artigo 6º do Código do Imposto de Selo é muito claro e de sentido unívoco: o cônjuge está isento do imposto de selo, quando o imposto constitua encargo seu – como teria de acontecer no caso, se não houvesse isenção legal a favor do cônjuge. E, assim, poderemos, a propósito, formular o seguinte silogismo: se o cônjuge está isento de imposto de selo nas transmissões gratuitas; e, para efeitos fiscais, a aquisição por usucapião é uma transmissão gratuita; a aquisição por usucapião pelo cônjuge está isenta de imposto de selo.”
Importa, ainda, fazer referência ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 1119/15.9 BELSB, de 07.06.2018, que sumaria jurisprudência uniforme no sentido de que:
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A equiparação da aquisição por usucapião a uma transmissão gratuita, consagrada no artigo 1.º, n.º 3, do Código de Imposto de Selo (CIS), constitui uma ficção que o legislador fiscal estabeleceu exclusivamente para efeitos fiscais.
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A isenção estabelecida no artigo 6.º alínea e) do CIS de pagamento de imposto do selo por parte cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes e a remessa aí realizada para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da Tabela Geral de que são beneficiários, implica que se deva julgar como incluído no âmbito de aplicação da referida norma de isenção a usucapião.
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Considerando que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não é de acolher um sentido interpretativo de uma norma que implique o reconhecimento de que o legislador utilizou (pretendeu utilizar) um mesmo conceito com significados opostos na regulamentação de um mesmo imposto, especialmente no estabelecimento dos pressupostos de isenção do seu pagamento.
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Tal reconhecimento, para além de contrariar as regras interpretativas, teria sempre que ter-se como contrário aos princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídicas e da transparência, enquanto subprincípios do princípio do Estado de Direito.
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Tendo o Supremo Tribunal Administrativo proferido acórdão uniformizador de jurisprudência e mantendo-se pacifico desde então o entendimento jurídico que aí perfilhou, não existem razões – na presença de uma situação de facto idêntica à considerada no referido aresto e na ausência de novos argumentos jurídicos a ponderar – para que sejam postos em causa os objetivos, princípios e valores que estão na base da existência da própria previsão legal de acórdãos com aquela natureza, a saber: a pacificação/uniformização da jurisprudência dos sentidos de decisão dos Tribunais Centrais e dos Tribunais de 1.ª instância; a pacificação das atuações e decisões administrativas e uma maior segurança e certeza jurídica na interpretação e aplicação da lei, especialmente quando a Administração Tributária já conformou a sua própria atuação ao julgamento realizado pelo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no referido acórdão uniformizador”
Há ainda que referir que a Requerente, recorreu à justificação extrajudicial, através de escritura notarial, com vista a obter título formal pleno e idóneo, no sentido de reatar o trato sucessivo em sede de registo predial, tendo para o efeito intervindo na escritura diversos outorgantes que declararam todo o historial sobre a posse do bem imóvel em causa, cujo probatório está devidamente demonstrado nos documentos anexos ao pedido de pronúncia arbitral. A escritura pública de justificação da usucapião é o ato final de um procedimento especificamente regulado por lei, designadamente nos artigos 89.º a 101.º do Código do Notariado, que inclui diversas cautelas e verificações destinadas a assegurar um elevado grau de fidedignidade de que depende a legalidade dos atos de justificação. A escritura pública de justificação da usucapião constitui prova plena das declarações produzidas pelos outorgantes e pelas testemunhas, tendo estas afirmado que “confirmam inteiramente as declarações ora feitas pelas primeira e segunda outorgantes”, sendo que, ainda que uma determinada prova, por alguma circunstância, não possa fazer prova plena, tal não implica que a mesma deva ser pura e simplesmente inutilizada ou liminarmente desconsiderada.
A verdade, é que o processo notarial está cuidadosamente previsto na lei, tendo, inclusive uma função social, pelo que o depoimento que é recolhido por notário em ato público, se não for suficiente para justificar e estabilizar na ordem jurídica o depoimento prestado por terceiros idóneos, e objeto de subsequente publicação obrigatória, não pode tal depoimento ser colocado em causa por argumentos estritamente formais.
Pois, tentando ir ao encontro da doutrina administrativa ínsita na Instrução de Serviço n.º 40054, Série I, de 22.12.2017, da DSIMT, in casu, o Tribunal não vislumbra que provas poderiam ser carreadas para os autos, a não ser aquelas que o histórico cadastral da vida fiscal da Requerente e demais outorgantes possa proporcionar, todavia, há que considerar que estes elementos probatórios serão do conhecimento da Requerida.
Em face de todo o exposto, e por adesão à jurisprudência uniforme dos Tribunais Tributários Superiores antes mencionada, considera-se que o normativo da alínea e) do artigo 6.º do CIS abrange as transmissões gratuitas, incluindo a aquisição por usucapião, e sendo a Requerente, filha de C... e D..., fica claro que adquiriu a posse sobre o imóvel em causa por transmissão de ascendentes para descendente, por via de doação, o que justifica a aquisição do referido bem imóvel por via da usucapião.
Nestes termos, e atento os fundamentos enunciados, há que concluir pela ilegalidade da liquidação impugnada, pelo que se julga procedente o pedido de anulação do ato tributário sub judice de liquidação do Imposto do Selo n.º ..., correspondente ao documento de cobrança n.º 2022..., no valor de € 316,68, formulado pela Requerente.
3.2.4. Do reembolso do imposto pago e do pagamento de juros indemnizatórios
Quanto ao pedido de reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
No caso em apreço, o erro que afeta as liquidações anuladas é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que o praticou sem o necessário suporte factual e legal.
Assiste assim, direito à Requerente a ser reembolsada da quantia de € 316,68, que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 5, do RJAT) por força do ato anulado e ainda a ser indemnizado do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
4. DECISÃO
Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
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Julgar integralmente procedente o pedido formulado pela Requerente, e em consequência:
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Anular o ato tributário de liquidação do Imposto do Selo n.º..., correspondente ao documento de cobrança n.º 2022..., no valor de € 316,68.
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Condenar a Requerida no reembolso à Requerente do imposto pago por esta, no montante de € 316,68.
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Condenar a Requerida no pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de € 316,68 que esta pagou.
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Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
5. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 316,68 (trezentos e dezasseis euros e sessenta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
6. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de julho de 2023
O Árbitro
(Carla Almeida Cruz)
[1] Petição inicial do Requerente.