Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 675/2022-T
Data da decisão: 2023-07-26  IRC  
Valor do pedido: € 106.500,17
Tema: IRC – Da não exclusão da atividade de transformação e comercialização de vinhos comuns e licorosos (produtos agrícolas) do âmbito do RFAI pelas OAR.
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SUMÁRIO:

A atividade de transformação e comercialização de vinhos comuns e licorosos não se encontra excluída do âmbito de aplicação do benefício RFAI pelas “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR).

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr. Augusto Vieira e Dr. Manuel Alberto Soares, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 23-01-2023, acordam no seguinte:

I.  RELATÓRIO

A..., S.A., contribuinte ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... ..., (“Requerente”), veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de autoliquidação de IRC referentes aos exercícios de 2019 e 2020 (com os n.ºs ... e ..., respetivamente), na parte respeitante à não consideração do benefício fiscal previsto no Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”), no valor de € 62.890,30 e € 43.609,87, respetivamente, e do indeferimento tácito da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022..., bem como o reembolso das referias quantias, acrescida de juros indemnizatórios vencidos e vincendos até ao seu pagamento integral.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

A Requerente apresentou o PPA em 2022-11-11.

O pedido de constituição do Tribunal foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 2022-11-14.

Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, foram notificadas, em 2023-01-05, a Requerente e Requerida da decisão do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD relativa à designação dos árbitros, que aceitaram a respetiva nomeação dentro do prazo aplicável.

Em 2023-01-23 foi constituído o Tribunal Arbitral.

No mesmo dia da sua constituição, o Tribunal Arbitral notificou a Requerida para, no prazo de 30 dias: (1) Apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT; (2) Remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo, em cumprimento do disposto no artigo 17.º, n.º 2, do RJAT.

A Requerida apresentou resposta e juntou o processo administrativo em 2023-02-27.

Na sequência da resposta da AT, a Requerente requereu a junção de documentos (cópias de faturas correspondentes às despesas de investimento) em 2023-03-07.

Por Despacho de 2023-03-20, o Tribunal Arbitral (1) convidou as Partes para juntarem aos autos um projeto de pedido de decisão prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), elaborado com base nas “Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais” (2019/C 380/01), porquanto ambas as Partes tinham requerido o reenvio prejudicial nos respetivos articulados iniciais, e (2) notificou a Requerida para se pronunciar sobre o requerimento e documentos apresentados pela Requerente em 07-03-2023.

A Requerente e a Requerida apresentaram requerimentos em 2023-04-21.

Em 2023-05-17, o Tribunal Arbitral comunicou às Partes que não iria proceder ao reenvio judicial:

“(2) Nos artigos 19.º, n.º 3, alínea b), e 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia prevê-se o reenvio prejudicial para o TJUE, que é obrigatório quando uma questão sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União Europeia seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.

(3) Todavia, conforme resulta do Acórdão do TJUE de 06-10-1982, caso Cilfit, processo n.º 283/81, não é necessário proceder a essa consulta quando existe um precedente na jurisprudência europeia, ou quando, não obstante as questões em apreço não serem estritamente idênticas a um precedente na jurisprudência europeia, a correta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de Direito da União Europeia suscitada (doutrina do ato claro).

(4) Acresce que, tal como referido pelo TJUE, “compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça” (Acórdãos de 10-07-2018, processo C-25/17, e de 02-10-2018, processo C-207/16).

(5) Afigura-se a este Tribunal Arbitral que a interpretação das normas de Direito da União Europeia que é necessária para a apreciação da legalidade dos atos tributários objeto do PPA apresentado pela Requerente em 11-11-2022 é clara, não havendo necessidade de efetuar o reenvio prejudicial sugerido pelas Partes.”

No mesmo Despacho Arbitral, o Tribunal dispensou a reunião do artigo 18.º do RJAT e notificou as Partes para apresentarem alegações finais escritas.

A Requerente e a Requerida apresentaram alegações em 2023-06-01.

Em 2023-07-21, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo do artigo 21.º do RJAT com fundamento na necessidade de analisar desenvolvimentos jurídicos recentes, nomeadamente um Acórdão do TJUE.

 

II.  SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 2023-01-23 e é competente, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O PPA apresentado em 2022-11-11 é tempestivo, porquanto apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, contados da presunção de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente em 2022-05-19 (cf. artigo 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT), que se formou em 2022-09-19, por a AT não ter proferido decisão expressa no prazo de quanto meses (cf. artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT).

É admitida a cumulação de pedidos, face ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, sempre que, como é o caso, “a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.

Não foram invocadas nem identificadas nulidades no processo.

III.  POSIÇÃO DAS PARTES

§1. Argumentos da Requerente

Em 2019 e 2020, no plano europeu, aplicavam-se o Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou “RGIC”), bem como as “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (“OAR”). No plano nacional, aplicavam-se o Código Fiscal do Investimento (“CFI”) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 31 de outubro, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que define os CAE correspondentes a várias atividades (“Portaria CAE”), e a Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulamenta o RFAI e o regime da dedução por lucros retidos e reinvestidos (“Portaria RFAI”).

Para que uma determinada empresa possa beneficiar do RFAI, é necessário que preencha os seguintes requisitos:

a. Disponha de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo sector de atividade (cfr. al. a) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI);

b. O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos (cfr. al. b) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI);

c. Mantenha na empresa e na região os bens objeto do investimento, durante um período mínimo de 3 anos (no caso das micro, pequenas e médias empresas), ou de 5 nos restantes casos (cfr. al. c) do n.º 4 do artigo 22.º e artigo 43.º, ambos do CFI);

d. Não seja devedora ao Estado e à Segurança Social de quaisquer contribuições, impostos ou quotizações, ou, caso seja, tenha o seu pagamento devidamente assegurado (cfr. al. d) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI);

e. Não seja considerada uma “empresa em dificuldades”, nos termos das OAR (2014/C 249/01) (cfr. al. e) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI);

f. Efetue investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento (3 ou 5 anos, consoante os casos) (cfr. al. f) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI);

g. O montante global dos incentivos não poderá exceder o valor que resultar da aplicação dos limites máximos aplicáveis ao investimento com finalidade regional para o período de 2014- 2021, em vigor na região na qual o investimento é efetuado (cfr. artigo 43.º CFI);

h. O sujeito passivo exerça uma atividade nos setores económicos elegíveis (cfr. n.º 2 do artigo 2.º aplicável ex vi n.º 1 do artigo 22.º, ambos do CFI).

In casu, estes requisitos encontram-se verificados:

No que concerne aos requisitos a. e b. é evidente que estes encontram-se verificados in casu, razão pela qual não será necessário tecer qualquer tipo de considerações adicionais.

A respeito do requisito c., que o investimento na construção e edificação da Adega ... está a ser realizada, precisamente, na Quinta ..., no concelho de ..., sendo intenção da Requerente que esta nova adega reforce a sua infraestrutura de vinificação, armazenagem e envelhecimento de vinho a granel, para responder ao elevado crescimento das vendas de vinho, enquanto assegura o incremento das qualidades organoléticas dos vinhos que vinifica.

Daí que seja certo, salvo circunstâncias verdadeiramente excecionais e impossíveis de prever, que o investimento relevante – i.e., a Adega...– permanecerá na titularidade da sociedade e no concelho de ... até ao final do período mínimo exigido por lei. Sempre se diga que, caso não seja, a Requerente estará sujeita à cominação legalmente prevista no artigo 26.º do CFI.

Em relação ao requisito d., este está, in casu, preenchido, uma vez que – como já supra ficou demonstrado – a Requerente não apresenta quaisquer dívidas ao Estado ou à Segurança Social, como prova com os documentos nºs 7 e 8 juntos.

Por referência ao requisito e., as mencionadas OAR estabelecem nas alíneas a) e d) do § 20 que uma empresa é considerada em dificuldades “Se se tratar de uma empresa de responsabilidade limitada, quando mais de metade do seu capital social tiver desaparecido devido a perdas acumuladas. Trata-se do caso em que a dedução das perdas acumuladas das reservas (e todos os outros elementos geralmente considerados como uma parte dos fundos próprios da empresa) conduz a um montante cumulado negativo que excede metade do capital social subscrito”, ou, “Se se tratar de uma empresa que não é uma PME e onde, nos dois últimos anos: i) o rácio dívida contabilística/fundos próprios da empresa foi superior a 7,5, e ii) o rácio de cobertura dos juros da empresa, calculado com base em EBTIDA, foi inferior a 1,0.”.

Ora, a posição financeira da Requerente não se enquadra em nenhuma das circunstâncias acima elencadas, motivo pelo qual também este requisito se encontra preenchido (cfr. documentos n.ºs 5 e 6 juntos).

Quanto ao requisito f., recorde-se, como acima já foi mencionado, que o investimento relevante (i.e., a edificação da Adega ..., cujas aplicações relevantes se inscrevem no n.º 2 do artigo 22.º do CFI) terá, como bem se compreende, uma duração plurianual e é apenas expectável que esteja concluído no ano de 2023.

Na linha do entendimento acolhido pela própria AT no Pedido de Informação Vinculativa 20123, proferido no processo n.º 2021 000873, de 2 de junho de 2021: “importa referir que, na alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI, o legislador nacional não estabeleceu um período de tempo para que sejam criados os postos de trabalho associados aos investimentos realizados no âmbito do RFAI.”.

Relativamente ao requisito g., o valor do crédito do RFAI que se pretende ver reconhecido para os períodos de tributação de 2019 e 2020 – recorde-se, no valor de € 62.890,30 e € 43.609,87, respetivamente – está, precisamente, dentro do limite máximo de 25% aplicável ao RFAI concedido aos investimentos localizados na Região Norte (onde o concelho de ... se encontra localizado) – cfr. Anexos I e II do Decreto- lei n.º 46/89, de 15 de fevereiro – uma vez que o valor das aplicações relevantes é de € 251.561,19, em 2019, e € 174.439,47 em 2020.

Por último, quanto ao requisito h., a concreta questão que se coloca é a de saber, então, se a atividade económica da Requerente estará incluída no âmbito de aplicação do RFAI.

A documentação apresentada pela Requerente nestes autos permite demonstrar que foi efetuado um investimento em aplicações relevantes no valor de € 251.561,19 em 2019, e € 174.439,47 em 2020, assim como a sua contabilização, a sua finalidade específica e a sua relação com o investimento inicial referente à atividade de produção de vinhos comuns e licorosos. Acresce que o auxílio financeiro concedido à Requerente no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 (PDR2020) do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) não está relacionado com o projeto da Quinta ..., tal como resulta da informação acessível à AT através do acesso ao “Portal Mais Transparência” (Beneficiário Portugal 2020 (transparencia.gov.pt). Estes são os únicos factos controvertidos neste processo.

Quanto à questão de direito controvertida (se a atividade da Requerente é elegível para efeitos do RFAI), cumpre notar que o n.º 1 do artigo 22.º do CFI estabelece que o âmbito de aplicação do RFAI é delimitado tendo em conta as “actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”.

Do § 10 das OAR e da respetiva nota de rodapé 11 resulta que tanto a atividade económica da agricultura, como as atividades de produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que dão origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE, não estão per se excluídas das OAR. Pelo contrário, tais atividades continuam a estar abrangidas pelas OAR, sem prejuízo de, em determinados aspetos, estarem sujeitas a regulação mais detalhada por outro instrumento, as OAR no setor agrícola (Orientações relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 - Comunicação da Comissão Europeia 2014/C 204/01), nomeadamente por se tratar de um setor que carece de um nível de proteção e de incentivos mais relevante.

Sucede que, ao contrário do aventado pela AT, uma análise atenta destas OAR no setor agrícola permite concluir, com meridiana clareza, que a transformação e a comercialização de produtos agrícolas se encontram efetivamente sujeita às OAR, ainda que o resultado dessa transformação continue a redundar num produto agrícola. Tal como se depreende do Capítulo 2 (“Âmbito de aplicação e definições”), mais concretamente do ponto (33), das OAR no setor agrícola, excluem-se do âmbito da regulamentação deste normativo os auxílios de Estado à transformação e à comercialização de produtos agrícolas, sendo essa regulação diretamente assegurada pelas OAR:

“(33) Em virtude das especificidades do sector, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020(27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”.

Conclui-se, assim, que as OAR não se aplicam aos auxílios à produção de produtos agrícolas primários, devido às especificidades do setor, mas aplicam-se à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas OAR no setor agrícola.

Acresce que, na secção 1.1.1.4, ponto 168 das OAR no setor agrícola, é determinado que:

“Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado (53);

(b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c) As condições estabelecidas na presente secção”.

É de concluir, portanto, que as atividades transformadoras de produtos agrícolas prosseguidas pela Requerente são diretamente reguladas pelas OAR.

Relativamente ao RGIC, interessa atentar ao ponto 11 do respetivo preâmbulo, no qual se pode ler:

“O presente regulamento deve aplicar-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que se encontrem reunidas determinadas condições. Para efeitos do presente regulamento, nem as actividades de preparação dos produtos para a primeira venda efectuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores, nem qualquer actividade que prepare um produto para uma primeira venda devem ser consideradas actividades de transformação ou de comercialização”.

Na alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC (âmbito de aplicação do regulamento) pode ler-se:

“O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios: (…)

c) Auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”.

Resulta claro que o RFAI não preenche nenhuma destas condições. Depreende-se desta limitação dos auxílios excluídos do âmbito de aplicação do RGIC que este diploma é aplicável aos auxílios concedidos no setor de transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os outros casos cuja exclusão não esteja prevista. Na verdade, o RGIC não exclui as atividades de agricultura nem de transformação e comercialização de produtos agrícolas na aplicação de auxílios com finalidade regional, pelo que não poderá este instrumento ser mobilizado para legitimar – indevidamente – a exclusão da atividade económica prosseguida pela Requerente do âmbito de aplicação do RFAI.

Resulta inequivocamente demonstrada a inserção da atividade de produção de vinhos comuns e licorosos desenvolvida pela Requerente nos setores especificamente previstos para efeitos do RFAI, dado que a mesma se enquadra no n.º 2 do artigo 2.º do CFI, e não está excluída do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC.

 

§2. Argumentos da Requerida

O montante respeitante ao RFAI que a Requerente pretende deduzir à coleta de IRC só é elegível fiscalmente desde que se verifique o cumprimento dos pressupostos legais definidos no respetivo regime legal, constante dos artigos 22.º a 26.º do CFI. Pressupostos legais estes que cumpria à Requerente provar, nos termos do artigo 74.º, n.ºs 1 e 2, da LGT. In casu, a Requerente não logrou fazer esta prova visto que não juntou aos autos os documentos de suporte do alegado investimento realizado em 2019 e 2020, nem foi junta documentação que comprove a alegada finalidade específica do investimento, nem a prova do seu registo contabilístico (balanços, balancetes, extratos de conta, ficheiros SAF-T da faturação e da contabilidade). O que basta para concluir pela necessária improcedência da pretensão formulada pela Requerente.

Relativamente às faturas juntas aos autos no decorrer do processo arbitral, as mesmas não permitem conhecer o respetivo tratamento contabilístico e fiscal, essencial para aferir do cumprimento de todos os requisitos de elegibilidade do benefício fiscal RFAI.

A atividade de produção de vinhos comuns e licorosos desenvolvida pela Requerente, enquanto atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, não é elegível para efeitos do benefício fiscal RFAI, visto que as OAR não se aplicam a esta atividade (as OAR apenas se aplicam aos auxílios estatais à atividade de transformação de produtos agrícolas em produtos não agrícolas). E basta a exclusão do âmbito de aplicação de um dos normativos comunitários (RGIC ou OAR) para que a atividade económica não seja elegível para feitos deste benefício fiscal. Este entendimento foi validado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no recente Acórdão de 15 de dezembro de 2022, no âmbito do processo C-23/22. Daqui se conclui que pela necessária improcedência da pretensão formulada pela Requerente.

Por último, cabe referir os limites máximos aplicáveis aos auxílios estatais com finalidade regional em vigor na região na qual o investimento é efetuado, nos termos do n.º 5 do artigo 43.º do CFI, ou seja, 25% no caso em apreço. Nos termos do n.º 6 da mesma norma, caso os investimentos beneficiem de outros auxílios de Estado, o cálculo dos limites referidos no número anterior deve ter em consideração o montante total dos auxílios de Estado com finalidade regional concedidos ao investimento em questão, proveniente de todas as fontes. In casu, pela consulta ao site http://www.pdr-2020.pt/site/Projetos-PDR2020, podemos confirmar a existência de uma candidatura aprovada em 2018-12-10, em nome da Requerente, referente à concessão de auxílios financeiros correspondentes a 30% do investimento ilegível, no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 (doravante PDR2020) do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), exatamente na rúbrica “transformação e comercialização de produtos agrícola”. A Requerente não apresentou prova cabal que possibilite a confirmação da alegação de que, atendendo aos auxílios financeiros no âmbito do PDR2020, não foi ultrapassado o limite máximo aplicável aos auxílios estatais com finalidade regional previstos no artigo 43.º do CFI (25%, no caso dos investimentos localizados na região Norte), como lhe competia à luz do artigo 74.º da LGT.

Relativamente aos juros indemnizatórios, estando em causa a correção de erro na autoliquidação do contribuinte, que promove a sua revisão por via de reclamação graciosa, não é aplicável o disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, mas sim na norma especial vertida na alínea c) do n.º 3 do referido artigo 43.º.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente exerce a atividade principal de produção de vinhos comuns e licorosos, à qual corresponde o CAE 11021, dedicando-se, até 31-12-2020, a título secundário, a diversas outras atividades com os seguintes CAE secundários: 11011 – “Fabricação de aguardentes preparadas”; 01210 – “Viticultura”; e 82922 – “Outras atividades de embalagem”, entre outros (cf. referido no artigo 15.º do PPA e artigo 4.º da Resposta da AT).
  2. Durante os anos de 2019 e 2020, a Requerente realizou um investimento com vista à construção e edificação de um empreendimento industrial com adega destinada a reforçar as suas instalações de vinificação e armazenamento de produtos vínicos (incluindo edifícios de apoio, arruamentos e áreas de logradouros necessárias), na Quinta ..., concelho de ..., doravante designado por “Adega ...” (cf. lista onde estão elencadas e enumeradas as despesas relevantes, assim como a sua contabilização - ativos fixos tangíveis, investimentos em curso #4532 - e o seu propósito, junta ao PPA como documento n.º 4; cópias das declarações Informação Empresarial Simplificada (IES) de 2019 e 2020, juntas ao PPA como documentos n.ºs 5 e 6; cópias das faturas e documento de suporte em formato Excel juntos aos autos via requerimento).
  3. Os custos correspondentes à execução deste projeto foram de € 223.386,16 em 2019, e € 160.045,97 em 2020 (cf. cópias das faturas juntas aos autos via requerimento).
  4. O prazo expectável para o término da obra e entrada em funcionamento da Adega ... é o ano de 2023 (cf. referido no artigo 25.º do PPA – facto não contraditado).
  5. O investimento realizado pela Requerente na Adega ... enquadra-se no escopo da sua atividade económica principal de produção de vinhos comuns e licorosos (cf. referido no artigo 27.º do PPA – facto não contraditado).
  6. A Requerente não é uma empresa em dificuldades, possuindo uma posição financeira robusta (cf. cópias das declarações IES de 2019 e 2020, juntas ao PPA como documentos n.ºs 5 e 6).
  7. A Requerente não é devedora do Estado ou da Segurança Social (cf. cópia das declarações comprovativas da inexistência de dívidas à AT e à Segurança Social, juntas ao PPA como documentos n.ºs 7 e 8).
  8. A Requerente não obteve qualquer auxílio financeiro com referência ao investimento no projeto da Quinta ..., nomeadamente, no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 (PDR 2020) do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) (cf. informação in “Portal Mais Transparência”: Beneficiário Portugal 2020 (transparencia.gov.pt).
  9. Nas Declarações de Rendimentos Modelo 22 dos anos de 2019 e 2020, a Requerente não considerou o benefício fiscal RFAI correspondente ao investimento na “Adega...”, pelo que foram emitidas as notas de reembolso de IRC n.ºs 2022... e 2021... sem a consideração do RFAI, das quais resultou um montante a reembolsar de € 324.323,45 e € 759.464,58, respetivamente (cf. documentos n.ºs 2, 3, 9 e 10 juntos ao PPA).
  10. A Requerente apresentou uma reclamação graciosa no dia 2022-05-19 (autuada com o n.º ...2022...) tendo em vista obter o reconhecimento do benefício fiscal RFAI referente ao custo da execução do projeto da “Adega...”, alegando que este custo correspondeu a € 251.561,19 em 2019, e a € 174.439,47 em 2020 (cf. documento 1 junto ao PPA).
  11. Até 2022-09-19, a Requerente não foi notificada de qualquer pronúncia por parte da AT relativamente à reclamação graciosa autuada com n.º ...2022... .
  12. Em 2022-11-11, a Requerente apresentou no CAAD o PPA que deu origem ao presente processo.

 

§2. Factos não provados

Com relevância para a causa foi considerado como não provado o seguinte facto:

Os custos correspondentes à execução da “Adega...” foram de € 251.561,19 em 2019, e de € 174.439,47 em 2020.

 

§3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, relativamente à prova produzida, o princípio da livre apreciação.

As partes contendem sobre se se verificaram os pressupostos legais para a Requerente usufruir do benefício fiscal RFAI relativamente ao investimento efetuado na “Adega...” em 2019 e 2020, mais especificamente:

  1. Se a Requerente efetuou aplicações relevantes no valor que alega (€ 251.561,19 em 2019, e de € 174.439,47 em 2020)?
  2. Atendendo aos auxílios financeiros que a Requerente recebeu no âmbito do PDR2020, se não foi ultrapassado o limite máximo aplicável aos auxílios estatais com finalidade regional previstos no artigo 43.º do CFI (25%, no caso dos investimentos localizados na região Norte)?

O artigo 74.º, n.º 1, da LGT estabelece que “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. No específico caso dos benefícios fiscais, o artigo 14.º, n.º 2, da LGT estabelece que “os titulares de benefícios fiscais de qualquer natureza são sempre obrigados a revelar ou a autorizar a revelação à administração tributária dos pressupostos da sua concessão, ou a cumprir outras obrigações previstas na lei ou no instrumento de reconhecimento do benefício, nomeadamente as relativas aos impostos sobre o rendimento, a despesa ou o património, ou às normas do sistema de segurança social, sob pena de os referidos benefícios ficarem sem efeito”.

Destas normas infere-se que o ónus da prova dos pressupostos dos benefícios fiscais recai sobre o sujeito passivo (Requerente). Na falta de cumprimento desse ónus, os benefícios fiscais ficam sem efeito, como estatui a parte final daquele n.º 2 do artigo 14.º.

Quanto à questão de saber se a Requerente logrou provar que efetuou aplicações relevantes para efeitos do RFAI em 2019 e em 2020, e com base nos documentos juntos aos autos, o Tribunal Arbitral considerou o seguinte:

  1. Relativamente ao investimento relevante para efeitos do RFAI realizado em 2019, não será de considerar o Documento n.º 11, por não terem sito juntas as respetivas faturas, sendo o investimento comprovado por faturas no montante de € 223.386,16 (a que corresponde um benefício fiscal de 25% desse investimento, ou seja, de € 55.846,55), ao invés do montante pretendido pela Requerente (€ 251.561,19);
  2. Relativamente ao investimento relevante para efeitos do RFAI realizado em 2020, não será de considerar o Documento n.º 32, igualmente por não terem sido juntas as respetivas faturas, sendo o investimento comprovado por faturas no montante de € 160.045,97 (a que corresponde um benefício fiscal de 25% desse investimento, ou seja, de € 40.011,49), ao invés do montante pretendido pela Requerente (€ 174.439,47).

Como prova da realização dos referidos investimentos, relevou para o Tribunal Arbitral (i) a lista de aplicações relevantes, onde estão elencadas e enumeradas as despesas relativas ao projeto de construção da “Adega...”, assim como a sua contabilização (ativos fixos tangíveis – investimentos em curso #4532), o seu propósito e a sua conexão com a atividade exercida; (ii) cópias das declarações IES de 2019 e 2020; (iii) cópias das faturas correspondentes às despesas de investimento; e (iv) o documento de suporte em formato Excel relativo às cópias de cada uma das faturas correspondentes às despesas de investimento. Na convicção do Tribunal, estes documentos constituem prova idónea, credível e suficiente de que a Requerente efetuou investimentos relevantes para efeitos do RFAI (ainda que de montante inferior ao pretendido pela Requerente).

Quanto à questão de saber se foi ultrapassado o limite máximo aplicável aos auxílios estatais com finalidade regional previsto no artigo 43.º do CFI, e com base na informação disponível no “Portal Mais Transparência”: Beneficiário Portugal 2020 (transparencia.gov.pt), o Tribunal considerou que a Requerente não obteve qualquer auxílio financeiro com referência ao investimento no projeto da Quinta ... .

Em suma: considerando a posição das partes e a prova referida, o Tribunal Arbitral deu como provados os pressupostos legais do benefício fiscal RFAI relativamente ao investimento efetuado na “Adega...”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

V.  MATÉRIA DE DIREITO

§1. Questão decidenda

O objeto do PPA é o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente em 2022-05-19 contra as autoliquidações de IRC dos períodos de tributação de 2019 e 2020, na parte respeitante à não consideração do benefício fiscal previsto no RFAI. A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade e anulação dos referidos atos de autoliquidação e do referido ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa, bem como o reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Note-se que o Tribunal Arbitral deu como provada a verificação dos pressupostos legais do benefício fiscal RFAI relativamente ao investimento efetuado na “Adega ...”. Cumpre também referir que, por Despacho Arbitral de 2023-05-17, o Tribunal Arbitral comunicou às Partes que não iria proceder ao reenvio judicial para o TJUE por entender que o mesmo é desnecessário à boa decisão da causa. Temos não haver utilidade em revisitar estas questões.

Considerando a posição das partes e a factualidade assente, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar se a atividade de produção de vinhos comuns e licorosos da Requerente, enquanto atividade de transformação de produtos agrícolas, se inclui no âmbito do RFAI (como sustenta a Requerente), ou se tal atividade se encontra excluída do âmbito do RFAI pela aplicação das OAR (como sustenta a Requerida).

 

 

§2. Do direito aplicável

O RFAI foi criado em 2009 através da Lei n.º 10/2009, de 10 de março, com o intuito de abarcar um conjunto de medidas de incentivos fiscais que visavam promover o investimento produtivo, o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do nosso país e para o desenvolvimento das regiões mais desfavorecidas. Mais tarde, o RFAI foi reformulado em 2014, com a entrada em vigor do CFI aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 31 de outubro, mas manteve o mesmo propósito: aumentar o apoio ao investimento num contexto fiscal mais favorável, criar emprego e reforçar os capitais próprios das empresas que acedem a esses auxílios.

Em 2019-2020 (período relevante), o benefício fiscal RFAI consubstanciava-se numa dedução à coleta de IRC, e até à concorrência de 50% da mesma, das seguintes importâncias (i) 25% do investimento relevante, até ao montante € 15.000.000,00; e (ii) 10% do investimento relevante, relativamente ao investimento de valor superior a € 15.000.000,00.

Estabelece o n.º 1 do artigo 22.º do CFI: “O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do art.º 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.” O artigo 2.º do CFI elenca as atividades que podem usufruir de benefícios fiscais, entre as quais se inclui a “indústria transformadora” (alínea a) do n.º 2), mas reafirmando o respeito do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

Para efeitos do Direito da União Europeia, o RFAI constitui um regime de auxílio com finalidade regional aprovado nos termos do RGIC. Sendo que, para além do RGIC, devem também ser observadas as OAR, uma vez que podem trazer restrições a estes auxílios. Estes instrumentos disciplinam a concessão dos auxílios, impondo limitações aos Estados-Membros.

O artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC consigna o seguinte:

“O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios: (...)

 c) Auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas nos seguintes casos:

(i) sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa;

(ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.”

Relativamente às OAR, assume particular relevância para o caso concreto o ponto 10:

“10. A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica, com exceção da pesca e da aquicultura, da agricultura e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações”.

Pode ler-se ainda na nota de rodapé 11 respeitante ao acima mencionado ponto 10 das OAR, que:

“(11) Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.

No ponto (33) das OAR do setor agrícola, pode ler-se:

“Em virtude das especificidades do sector, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020(27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”.

Na secção 1.1.1.4., ponto (168), das OAR do setor agrícola estabelece-se que:

“Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a)  Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o do Tratado;

(b)  Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c)  As condições estabelecidas na presente secção.”

 

§3. Da inclusão / exclusão da atividade de produção de vinhos comuns e licorosos da Requerente, enquanto atividade de transformação de produtos agrícolas, do âmbito do RFAI pela aplicação das OAR

A Requerida defende que o investimento realizado pela Requerente, que tem por objeto uma atividade económica enquadrada no setor da transformação de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE, encontra-se expressamente excluído do âmbito de aplicação da OAR, não sendo elegível para efeitos de RFAI.

Cumpre notar, em primeiro lugar, que a jurisprudência arbitral relativamente a esta questão é unânime em sentido contrário ao sustentado pela Requerida, ou seja, no sentido de que as OAR não excluem a atividade de transformação de produtos agrícolas do âmbito do RFAI. Da leitura conjugada dos pontos (33) e (168) das OAR do setor agrícola supra citados, com o ponto 10 das OAR, e respetivo rodapé 11, o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 220/2020-T (Decisão de 2020-10-12) concluiu que “a actividade de transformação e comercialização de vinhos comuns e licorosos não se encontra excluída do âmbito de aplicação sectorial das OAR 2014-2020, sendo, pelo contrário, abrangida por este instrumento” e, consequentemente, que a mesma atividade não é excluída do benefício RFAI pelas OAR. A mesma interpretação foi sustentada nos processos n.ºs 98/2021-T (Decisão de 2022-02-15), 164/2022-T (Decisão de 2022-10-06); 642/2022-T (Decisão de 2023-03-26); 773/2022-T (Decisão de 2023-05-26).

À luz desta jurisprudência, que acompanhamos, assiste razão à Requerente. O Acórdão do TJUE que a Requerida invocou nas suas alegações (C-23/22, Caxamar, 2022-12-15) não altera a conclusão aqui chegada quanto à questão decidenda. Isto porque neste Acórdão do Douto TJUE está em causa uma atividade de transformação de produtos de pesca e aquicultura, que o próprio TJUE considerou como distinta da atividade de transformação de produtos agrícolas para efeitos do RGIC e das OAR (parágrafos 32-33). Relativamente aos produtos agrícolas, o TJUE notou que “em conformidade com o seu artigo 1. °, n.º 3, alínea c), o Regulamento n.º 651/2014 não é aplicável aos «auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas» nos casos especificados por esta disposição. Esta exclusão é retomada no ponto 10 das Orientações 2014‑2020 e, em particular, na nota de rodapé 11, para a qual este ponto remete” (parágrafo 29).

Ora, a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas não é excluída do benefício fiscal RFAI pelo artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, na medida em que o montante do benefício fiscal RFAI não é fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa, e que o benefício fiscal RFAI não é subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários. Acresce que, tal como referido supra, da leitura conjugada dos pontos (33) e (168) das OAR do setor agrícola, com o ponto 10 das OAR e respetiva nota de rodapé 11, resulta que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas não é excluída do benefício fiscal RFAI pelas OAR.

Conclui o Tribunal Arbitral pela inserção da atividade de produção vinícola desenvolvida pela Requerente nos sectores especificamente previstos para efeitos do RFAI, não estando a mesma excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC, e enquadrando-se a mesma no artigo 2.º, n.º 2, do CFI.

Nestes termos, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula parcialmente (1) as autoliquidações de IRC com os n.ºs ... e ..., referentes aos exercícios de 2019 e 2020, respetivamente, na parte respeitante à não consideração do benefício fiscal RFAI, no valor de € 55.846,55 e € 40.011,40, respetivamente, e (2) o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022..., de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

§4. Juros indemnizatórios e restituição do imposto

A Requerente vem no PPA requerer que lhe sejam reembolsadas as quantidades indevidamente pagas, acrescidas dos juros indemnizatórios vencidos e vincendos até ao pagamento integral dos referidos montantes, nos termos do artigo 43.º da LGT.

Decorre do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT que a AT tem o dever de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado. Na sequência da anulação das autoliquidações de IRC contestadas, a Requerente tem direito a ser reembolsada do valor de € 95.858,04 (correspondente à soma de € 55.846,55 e € 40.011,40).

No que respeita ao direito a juros indemnizatórios, o respetivo regime substantivo vem regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

No caso sub judice assiste razão à Requerida quando defende que os erros que afetam as autoliquidações de IRC contestadas não lhe são imputáveis, visto que não foram por ela emitidas. No entanto, o mesmo não sucede com o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente. Na verdade, e pelos motivos explicitados supra, a AT deveria ter deferido a pretensão da Requerente em sede de reclamação graciosa. Não o tendo feito, a AT manteve uma situação de ilegalidade, sendo-lhe assim imputável erro de direito e de facto enquadrável no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Neste sentido, pode ler-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 2017-01-18, bem como a Decisão Arbitral de 2019-05-14, processo n.º 637/2018-T; Decisão Arbitral de 2019-05-27, processo n.º 678/2018-T; Decisão Arbitral de 2022-07-13, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 2022-07-28, processo n.º 816/2021-T.  

Relativamente ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no processo n.º 0360/11.8BELRS, de 2021-04-07:

“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.

Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.

(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”.

O mesmo entendimento foi acolhido na Decisão Arbitral de 2022-02-01, processo n.º 345/2020-T; Decisão Arbitral de 2022-05-23, processo n.º 558/2020-T; Decisão Arbitral de 2022-07-13, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 2022-07-28, processo n.º 816/2021-T.

No caso em apreço, a Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade das autoliquidações de IRC contestadas em 2022-05-19. A AT deveria ter-se pronunciado sobre a mesma no prazo de quatro meses (cf. artigo 57.º, n.º 1, da LGT), ou seja, até 2022-09-19. Assim sendo, o Tribunal determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 95.858,04 contam desde o dia 2022-09-20 até ao integral reembolso do referido montante à Requerente (nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

VI.  DECISÃO

De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  1. Declarar ilegais e anular parcialmente as autoliquidações de IRC com os n.ºs ... e ... (referentes aos exercícios de 2019 e 2020, respetivamente), na parte respeitante à não consideração do benefício fiscal RFAI, no valor de € 55.846,55 e € 40.011,40, respetivamente, bem como o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022...;
  2. Julgar procedente o pedido de reembolso do montante de € 95.858,04 (correspondente à soma de € 55.846,55 e € 40.011,40), e condenar a AT a pagar este montante à Requerente;
  3. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios sobre o montante de € 95.858,04, contados desde o dia 2022-09-20 até ao integral reembolso do referido montante à Requerente (nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

 

 

 

VII.  VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 106.500,17.

 

VIII.  CUSTAS ARBITRAIS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando € 2.754,00 a cargo da Requerida (90%) e € 306,00 a cargo da Requerente (10%), em razão do decaimento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de julho de 2023

 

Os árbitros,

 

 

 

Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente)

 

 

 

 

Dr. Augusto Vieira

 

 

 

Dr. Manuel Alberto Soares