Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 635/2022-T
Data da decisão: 2023-07-17  Selo  
Valor do pedido: € 184.800,00
Tema: IS – Imposto do Selo – Garantias Bancárias.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

I – Na garantia bancária autónoma institui-se uma relação triangular, em que é possível distinguir uma relação de cobertura, entre o garantido, dador da ordem, e o garante, no âmbito da qual este se compromete, normalmente mediante remuneração, a prestar a garantia; uma relação de atribuição, entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia, que justifica a sua concessão, e, ainda, uma relação de execução, entre o garante e o beneficiário da garantia, que consiste precisamente na prestação da garantia.

II – O contrato de garantia bancária autónoma é um contrato não real, ou seja, para cuja perfeição não é exigida a tradição de uma coisa. Assim, nem se afigura que o contrato de garantia bancária se constitua apenas quando o garante seja chamado a indemnizar o credor do contrato-base. Por um lado, o credor do contrato-base é um terceiro relativamente ao contrato estabelecido entre o garante e o ordenante; por outro, nada justificaria a tributação da garantia bancária em data anterior à da sua constituição, sendo que, no limite, em caso de a garantia bancária não chegar a ser executada, não haver tributação, por não ter sido constituída.

III – O contrato de garantia bancária é um contrato celebrado entre o garante e o devedor/ordenador, a que o credor do contrato-base é estranho. E os contratos acarretam para as partes um feixe de direitos e deveres recíprocos. Assim, o devedor/ordenador, para além da comissão acordada para prestação da garantia, está ainda obrigado a restituir ao garante a quantia pecuniária que este vier a despender com a execução da garantia, sendo normal que, como qualquer credor e, por maioria de razão, dado tratar-se de uma empresa comercial, o banco exija uma garantia do bom cumprimento do contrato por parte do dador da ordem – neste caso a hipoteca.

IV – O disposto no Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, é aplicável a todas as garantias constituídas nos termos da Verba n.º 10 da TGIS, uma vez que, a hipoteca é uma das garantias aí previstas, a título exemplificativo, e o entendimento resultante do Ofício-Circulado é compatível com o disposto na Verba n.º 10 da TGIS, bem com outro tipo de garantias. 

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Maria do Rosário Anjos
Sérgio Santos Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., S.A., com sede na ..., ..., ..., ...-... Porto, com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., doravante designada por “Requerente”, vem requerer a anulação da Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa, que correu sob o nº de processo ...2022..., proferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira e, bem assim, dos atos tributários subjacentes. É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 7 de Dezembro de 2022.

A Requerente não procedeu à nomeação de arbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 25 de Janeiro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 3 de janeiro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 22 de Março de 2023, defendendo-se por exceção e por impugnação.

A Requerente providenciou a sua resposta às exceções no seu Requerimento datado de 6 de fevereiro de 2023. 

Por despacho de 3 de maio de 2023, o TAC ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a matéria de exceção invocada pela Requerida já foi devidamente objeto de contraditório.

Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido de Pronúncia Arbitral, quer na Resposta, o TAC dispensou a produção de alegações escritas tendo o processo prosseguido para a prolação da sentença. 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

III.1    Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

Em 30 de dezembro de 2021, a Requerente celebrou contratos de financiamento com diversas instituições de crédito, no valor total de € 29.360.000,00, os quais, obedecendo a critérios de gestão, visaram dotar a sociedade da liquidez necessária para fazer face às obrigações assumidas e desenvolver a sua atividade, após um período em que, em razão dos constrangimentos provocados pela pandemia de COVID-19, sofreu uma drástica quebra de receitas.

Em 30 de dezembro de 2021, de modo a garantir os referidos financiamentos, a B..., S.A. (“B...”) prestou garantias autónomas, à primeira solicitação, a favor das entidades concedentes dos financiamentos e, de modo a permitir a emissão das referidas as garantias autónomas, a Requerente celebrou com a B... contratos de penhor de quotas, penhor de aplicação financeira e carta de conforto.

Também como contragarantia das garantias bancárias autónomas prestadas pela B..., a Requerente constituiu hipoteca unilateral voluntária sobre imóveis de que é titular.

Na sequência da prestação das referidas contragarantias, foi pela Requerente liquidado Imposto do Selo, ao abrigo do disposto na Verba 10 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo (“TGIS”), no valor total de € 184.800 – liquidação no montante de € 98.400, mediante apresentação de declaração mensal de Imposto do Selo n.º... e autoliquidação de € 86.400 aquando da outorga das escrituras públicas de hipoteca acima referidas, cuja liquidação de Imposto do Selo foi submetida por D..., contribuinte fiscal n.º..., na qualidade de notária, consubstanciada na declaração mensal de Imposto do Selo n.º ... .

Posteriormente, por entender acharem-se verificados os pressupostos para as supramencionadas contragarantias beneficiarem da exclusão de tributação estatuída na segunda parte da Verba 10 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo, a Requerente apresentou legítima e oportunamente Reclamação Graciosa contra os atos tributários em crise que reputa de ilegais, peticionando a respetiva anulação.

Através do Ofício n.º ... – DJT/2022, de 11 de julho de 2022, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da referida Reclamação Graciosa, por entender, em suma, que “é por natureza inaplicável à garantia autónoma prestada, a exclusão tributária da Verba 10, parte final da TGIS” e, em consequência, “[a]s operações referentes aos contratos de contragarantias (…) também estão sujeitas a imposto do selo da Verba 10 da TGIS”.

Posteriormente, a Requerente foi notificada, através do Ofício n.º...– DJT/2022, de 7 de setembro de 2022, da decisão (expressa) de indeferimento da referida Reclamação Graciosa, arguindo, de forma resumida, que “as operações referentes aos contratos de contragarantia (hipotecas) da garantia autónoma que visam assegurar o direito de regresso do garante contra o devedor/ordenador (e não assegurar o cumprimento da obrigação assumida pelo garante junto do credor do contrato base), também estão sujeitas a imposto do selo da Verba da TGIS.

Por discordar integralmente do conteúdo da decisão proferida pela Autoridade Tributária e Aduaneira e, bem assim, dos atos tributários subjacentes – que a Requerente considera estarem irremediavelmente feridos de ilegalidade – vem a mesma requerer a anulação da Decisão de Indeferimento da Reclamação Graciosa que correu sob o nº de processo ...2022... .

III.2    Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

POR EXCEÇÃO

Vem a Requerida invocar que o Tribunal deverá reconhecer e dar como provado, no essencial que: “a Requerente não foi o titular do encargo da escritura pública de hipoteca onde foram dados como (contra)garantia os dois prédios da C..., LDA, NIF ...” e que consequentemente, deve o tribunal arbitral dar como demonstrada a exceção de ilegitimidade da Requerente relativamente ao Imposto do Selo liquidado, no montante de € 34.200, aquando da celebração da escritura de hipoteca, na qual a C..., LDA, NIPC ..., deu dois prédios urbanos seus como (contra)garantia das garantias autónomas, à primeira solicitação, emitidas pela B... .

Por conseguinte, estando-se perante o que constitui uma exceção dilatória – que para todos os efeitos legais desde já se invoca –, que determina a absolvição parcial da AT na instância (cf. n.ºs 1, 2 e alínea e) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, ex vi alínea c) do n.º do artigo 29.º do RJAT), pelo que deve, em consequência, o tribunal arbitral abster-se de conhecer o mérito da causa, expurgando do processo os €32.400 referentes ao Imposto do Selo liquidado na escritura de hipoteca outorgada pela C..., LDA.

POR IMPUGNAÇÃO

Não obstante estar-se perante atos de liquidação de IS, a Requerente entende que são devidos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, ou seja, desde a data do pagamento indevido do imposto.

Para tanto invoca que, alegadamente, seguiu o disposto na Ficha de Informação Vinculativa proferida no âmbito do Processo n.º 2016000433 – IVE n.º 10297, em 1 de junho de 2016.

Pese embora a Requerente não evidencie, nem junte prova, de que as liquidações por si efetuadas tiveram por base o entendimento da AT vertido naquela específica informação vinculativa.

Por outro lado, a ficha referida não constitui uma orientação genérica da AT.

Posto isto, o ppa visa a anulação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa que correu termos sob o processo n.º ...2022..., junto da UGC e do serviço de finanças de Porto ..., constituindo o objeto imediato, e, bem assim, a anulação dos atos tributários de Imposto do Selo ocorridos em virtude da outorga de duas escrituras públicas de hipoteca unilateral voluntária, consubstanciados na declaração mensal de Imposto do Selo n.º ... e o ato de autoliquidação de Imposto do Selo decorrente da apresentação da declaração mensal de Imposto do Selo n.º ..., referente a dezembro de 2021, no valor total de € 184.800,00, constituindo os objetos mediatos do ppa.

Em síntese, defende a Requerente que a constituição de contragarantias de garantias autónomas, à primeira solicitação, emitidas no âmbito da celebração de contratos de financiamento, estão excluídas da tributação prevista na verba 10 da TGIS, por serem materialmente acessórias de contratos especialmente tributados em Imposto do Selo.

Neste sentido, a Requerente deduziu reclamação graciosa, tendo sido proferida, em 07-09-2022, decisão final de indeferimento.

Não se conformando com a decisão de indeferimento proferida, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral sub judice assente na seguinte factualidade:

- Em 30 de dezembro de 2021, a Requerente celebrou contratos de financiamento com diversas instituições de crédito, no valor total de € 29.360.000,00, os quais, obedecendo a critérios de gestão, visaram dotar a sociedade da liquidez necessária para fazer face às obrigações assumidas e desenvolver a sua atividade, após um período em que, em razão dos constrangimentos provocados pela pandemia de COVID-19, sofreu uma drástica quebra de receitas;

- Em 30 de dezembro de 2021, de modo a garantir os referidos financiamentos, a B...prestou as garantias autónomas, à primeira solicitação, a favor das entidades concedentes dos financiamentos.

- Na mesma data, e de modo a permitir a emissão das referidas garantias autónomas, a Requerente celebrou com a B... contratos de penhor de quotas, penhor de aplicação financeira e carta de conforto.

- Também nesse mesmo dia, 30 de dezembro de 2021, como contragarantia das garantias autónomas prestadas pela B..., foram celebradas duas escrituras públicas de hipoteca voluntária, no Cartório Notarial de D... .

- Da análise da escritura resulta, entre o mais, que:

i. A firma C..., Lda, NIPC..., é dona e legítima possuidora dos seguintes imóveis:

- Prédio urbano ...– UF de ..., ... e ..., com um VPT de € 2.058.125,40, a que atribuem um valor de € 5.385.576,57;

- Prédio Urbano ... - UF de ..., ... e ..., com um VPT de € 5.511,76, a que atribuem um valor de € 14.423,43;

ii. Que a D..., Lda, constituiu, unilateralmente, a favor da B... hipoteca voluntária sobre os imóveis identificados para garantia do pagamento pontual das responsabilidades assumidas pela Requerente, emergentes: da emissão da garantia autónoma, à primeira solicitação, prestada na presente data, pela B... a favor do (…).

iii. Foi liquidado imposto do selo: 32.400 € - verba 10.3 TGIS, conforme menção aposta na escritura pública.

- Os restantes imóveis hipotecados constam de outra escritura pública realizada nesse mesmo dia, 30 de dezembro de 2021, pela mesma notária, cuja legítima possuidora é a Requerente, que os hipotecou, voluntariamente, a favor da B... para garantia do pagamento pontual das responsabilidades por si assumidas, emergentes: da emissão da garantia autónoma, à primeira solicitação, prestada na presente data, pela B... a favor do (…). Neste ato, foi liquidado Imposto do Selo: 54.000 € - verba 10.3 TGIS, conforme menção aposta na escritura pública.

- Pela prestação das referidas contragarantias – penhor de quotas e de aplicação financeira, carta de conforto e hipotecas, foi liquidado Imposto do Selo, ao abrigo do disposto na Verba 10 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo (“TGIS”), no valor total de € 184.800,00.

- O montante de € 98.400, referente ao Imposto do Selo devido pelos penhores e carta de conforto, foi entregue nos cofres do Estado através da Declaração Mensal de Imposto do Selo n.º ..., submetida, em 2022-01-11, por E..., NIF ..., na qualidade de sujeito passivo, tendo como titular do encargo a Requerente.

- O montante de € 86.400, referente ao Imposto do Selo devido pela constituição das hipotecas foi entregue nos cofres do Estado através da Declaração Mensal de Imposto do Selo n.º..., submetida, em 2022-01-20, pela notária D..., NIF..., na qualidade de sujeito passivo, tendo como titulares do encargo, respetivamente, a C..., Lda, NIF..., pelo valor que lhe foi liquidado pela realização da sua escritura de hipoteca: € 32.400; e a Requerente, pelo valor correspondente à sua escritura de hipoteca: € 54.000.

- Por entender que se encontram verificados os pressupostos para as supramencionadas contragarantias beneficiarem da exclusão de tributação estatuída na segunda parte da Verba 10 da TGIS, a Requerente apresentou a reclamação graciosa contra os atos tributários em crise que reputa de ilegais, peticionando a respetiva anulação, conforme acima referido, para que se remete.

- Inconformada com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, apresentou o ppa sub judice.

Por fim, refira-se que, contrariamente ao pugnado pela Requerente, não está em causa nos autos matéria exclusivamente de direito.

Isto porque, mormente para efeito de defesa por exceção, importa aferir da legitimidade da Requerente no presente processo, e, nessa medida, atender à sua posição na relação jurídica tributária subjacente às liquidações contestadas (objeto mediato do pedido) e determinar se é possível enquadrá-la no lado passivo desta relação.

Importa por isso relevar e dar como provado que a Requerente não foi o titular do encargo da escritura pública de hipoteca onde foram dados como (contra)garantia os dois prédios da C..., Lda, NIF... .

Esta situação é confirmada pela informação constante na Declaração Mensal de Imposto do Selo n.º..., submetida, em 2022-01-20, pela notária que presidiu à escritura, na qual fica claro que o titular do encargo foi a C..., Lda, NIF..., e não a Requerente.

Por outro lado, importa ainda, para a decisão da causa, dar como provado que as garantias autónomas emitidas pela B... (e que as contragarantias constituídas visam garantir), em sítio algum foram objeto de tributação em sede de Imposto do Selo.

De facto, da análise dos diversos “Contratos de Prestação de Garantia Autónoma”, cuja estrutura é idêntica, pode ler-se no final da parte “IV – INFORMAÇÕES ADICIONAIS (IA)”, o seguinte: “Imposto do Selo – não sujeito, nos termos do artigo 10º da Tabela Geral do Imposto de Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, por ser a presente garantia materialmente acessória de contrato especialmente taxado”.

Ou seja, do acervo documental junto aos autos resulta, com total clareza, que as garantias autónomas, à primeira solicitação, emitidas pela B..., em nome e a pedido da Requerente, a favor dos respetivos bancos, não pagaram qualquer Imposto do Selo; isto porque a B..., sujeito passivo do imposto, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do CIS, considerou que as mesmas eram materialmente acessórias de um contrato especialmente tributado pela TGIS, o que, sendo discutível, não obsta a que a tributação não tenha ocorrido.

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. Em 30 de dezembro de 2021, a Requerente celebrou contratos de financiamento com diversas instituições de crédito, no valor total de € 29.360.000,00, os quais, obedecendo a critérios de gestão, visaram dotar a sociedade da liquidez necessária para fazer face às obrigações assumidas e desenvolver a sua atividade, após um período em que, em razão dos constrangimentos provocados pela pandemia de COVID-19, sofreu uma drástica quebra de receitas.
  2. Em 30 de dezembro de 2021, de modo a garantir os referidos financiamentos, a B..., S.A. (“B...”) prestou garantias autónomas, à primeira solicitação, a favor das entidades concedentes dos financiamentos e, de modo a permitir a emissão das referidas as garantias autónomas, a Requerente celebrou com a B... contratos de penhor de quotas, penhor de aplicação financeira e carta de conforto.
  3. Também como contragarantia das garantias bancárias autónomas prestadas pela B..., a Requerente constituiu hipoteca unilateral voluntária sobre imóveis de que é titular.
  4. Na sequência da prestação das referidas contragarantias, foi pela Requerente liquidado Imposto do Selo, ao abrigo do disposto na Verba 10 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo (“TGIS”), no valor total de € 184.800 – liquidação no montante de €98.400, mediante apresentação de declaração mensal de Imposto do Selo n.º ... e autoliquidação de € 86.400 aquando da outorga das escrituras públicas de hipoteca acima referidas, cuja liquidação de Imposto do Selo foi submetida por D..., contribuinte fiscal n.º ..., na qualidade de notária, consubstanciada na declaração mensal de Imposto do Selo n.º ... .

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

IV.2.A. Quanto às exceções

 

Vem a Requerida invocar que o Tribunal deverá reconhecer e dar como provado, no essencial que: “a Requerente não foi o titular do encargo da escritura pública de hipoteca onde foram dados como (contra)garantia os dois prédios da C..., LDA, NIF...” e que consequentemente, deve o tribunal arbitral dar como demonstrada a exceção de ilegitimidade da Requerente relativamente ao Imposto do Selo liquidado, no montante de € 34.200, aquando da celebração da escritura de hipoteca, na qual a C..., LDA, NIPC ..., deu dois prédios urbanos seus como (contra)garantia das garantias autónomas, à primeira solicitação, emitidas pela B... .

Por conseguinte, estando-se perante o que constitui uma exceção dilatória – que para todos os efeitos legais desde já se invoca –, que determina a absolvição parcial da AT na instância (cf. n.os 1, 2 e alínea e) do n.o 4 do artigo 89.o do CPTA, ex vi alínea c) do n.o do artigo 29.o do RJAT), pelo que deve, em consequência, o tribunal arbitral abster-se de conhecer o mérito da causa, expurgando do processo os €32.400 referentes ao Imposto do Selo liquidado na escritura de hipoteca outorgada pela C..., LDA.

Não podemos concordar de todo com esta posição.

Na verdade, quanto à exceção invocada pela Fazenda Pública, o Requerente reconhece que não figura como titular do encargo de imposto, como, de resto, resulta da informação constante da Declaração Mensal de Imposto do Selo n.º..., mas defende que não deixa, por isso, de se configurar como titular do interesse económico, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea e) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do Imposto do Selo.

Na verdade, estamos perante aquilo que se chama de uma substituição fiscal imprópria, em que o titular do interesse económico ainda integra a relação jurídica tributária, uma vez que o legislador visa constituir sobre ele (sobre a sua situação económica) o encargo do imposto, ainda que impropriamente, ou seja, por via da interposição do sujeito passivo. Assim, nestes casos de substituição fiscal imprópria, nada impede que, quando o sujeito passivo não cumpra os seus deveres legais de liquidação do imposto, a Administração Tributária possa exigir, diretamente, ao titular do interesse económico, o imposto em falta.

Improcede pois a exceção dilatória invocada.

 

 

IV.2.B. Quanto ao Mérito da causa

 

  1. Enquadramento geral

 

Em face do pedido de pronúncia arbitral, a questão de direito que importa decidir é a de determinar se a liquidação de imposto do selo respeitantes:

  • às garantias autónomas celebradas pela B..., S.A. (“B...”), à primeira solicitação, a favor das entidades concedentes dos financiamentos;
  • penhor de quotas, penhor de aplicação financeira e carta de conforto, de modo a permitir a emissão das referidas as garantias autónomas, celebradas entre Requerente com a B...;
  • garantias bancárias autónomas prestadas pela B..., a Requerente constituiu hipoteca unilateral voluntária sobre imóveis de que é titular.

enfermam do vício de ilegalidade, tal como vem arguido pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral ou se, pelo contrário, tal com defende a Requerida, o ato de liquidação de imposto do selo em causa não padece de qualquer invalidade.

Importa, portanto, em termos de incidência objetiva e subjetiva em sede de imposto do selo, cuidar do enquadramento normativo aplicável e, outrossim, avaliar a expressão jurídica atribuível aos títulos em causa.

A norma do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS) estabelece que “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”. E, por sua vez, as normas da verba 10 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), no tocante à determinação da taxa aplicável às garantias em função do seu prazo de validade, prescrevem que as “(…) Garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, designadamente o aval, a caução, a garantia bancária autónoma, a fiança, a hipoteca, o penhor e o seguro-caução, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente - sobre o respetivo valor, em função do prazo, considerando-se sempre como nova operação a prorrogação do prazo do contrato:

“10.1 Garantias de prazo inferior a um ano - por cada mês ou fração 0,04%           

10.2 Garantias de prazo igual ou superior a um ano 0,5%

10.3 Garantias sem prazo ou de prazo igual ou superior a cinco anos 0,6%.”.

Em 30 de dezembro de 2021, de modo a garantir os referidos financiamentos, a B...–..., S.A. (“B...”) prestou garantias autónomas, à primeira solicitação, a favor das entidades concedentes dos financiamentos e, de modo a permitir a emissão das referidas as garantias autónomas, a Requerente celebrou com a B... contratos de penhor de quotas, penhor de aplicação financeira e carta de conforto.

Também como contragarantia das garantias bancárias autónomas prestadas pela B..., a Requerente constituiu hipoteca unilateral voluntária sobre imóveis de que é titular.

Na sequência da prestação das referidas contragarantias, foi pela Requerente liquidado Imposto do Selo, ao abrigo do disposto na Verba 10 da Tabela Geral do Código do Imposto do Selo (“TGIS”), no valor total de € 184.800 – liquidação no montante de €98.400, mediante apresentação de declaração mensal de Imposto do Selo n.º ... e autoliquidação de € 86.400 aquando da outorga das escrituras públicas de hipoteca acima referidas, cuja liquidação de Imposto do Selo foi submetida por D..., contribuinte fiscal n.º ..., na qualidade de notária, consubstanciada na declaração mensal de Imposto do Selo n.º... .

  1. Da garantia autónoma

 

Importa, assim, tendo por base o ordenamento jurídico vigente proceder à caracterização jurídica do contrato de garantia bancária autónoma. Na verdade, as garantias bancárias autónomas são garantias pessoais prestadas por bancos. No âmbito dos negócios e comércio jurídico este tipo de garantia pessoal tem vindo a assumir especial desenvolvimento. Esta garantia ocorre quando determinada instituição bancária ou financeira aceita garantir pessoalmente a satisfação de uma obrigação assumida por terceiro, independentemente da validade ou eficácia desta obrigação e dos meios de defesa que a ela possam ser opostos, assegurando, assim, que o credor obterá sempre o resultado do recebimento da prestação de que é titular.

A garantia autónoma é, no essencial, um contrato celebrado com o interessado – o mandante – e o garante, a favor de um terceiro – o beneficiário. A garantia autónoma é configurada como um contrato celebrado entre o garante e o beneficiário, porém, é do mandante que o garante recebe a comissão. Na garantia o garante obriga-se a pagar ao beneficiário uma determinada importância, isto é, o garante pagará ao beneficiário determinada importância, assim que este lha peça. As partes podem, porém, acordar se a garantia é automática, isto é, verdadeiramente a mera solicitação ou automática ou se, pelo contrário, o garante deve fazer verificação e qual a sua extensão (não automática). Na garantia à primeira solicitação, as partes estipulam ainda que o garante não oporá qualquer exceção às exigências da garantia, mas antes a satisfará imediatamente sem discussão logo que tal seja solicitado pelo credor, desde que naturalmente estejam a ser respeitados os termos estipulados para a exigência da garantia.

É a partir do texto da garantia que se pode apreender a sua finalidade e alcance. Todavia, toda a garantia autónoma comporta alguns traços essenciais que surgem, de modo pacífico, na doutrina e na jurisprudência. Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as exceções literais que constem do próprio texto da garantia. Nunca as derivadas da relação principal, cabendo ao beneficiário demonstrar que a garantia invocada se reporta a determinada obrigação ou dívida.

Basicamente, a função da garantia autónoma não é assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da garantia, uma determinada quantia em dinheiro. Perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá vir esgrimir com argumentos retirados do contrato principal, porquanto, a garantia tem fins próprios, autossuficientes, servindo como um simples sucedâneo de um depósito em dinheiro. A garantia autónoma tem ainda outras finalidades, na medida em que dá credibilidade ao mandante e estabelece segurança entre as partes nos negócios ou relações jurídicas. No comércio jurídico, muitas vezes, as partes não se conhecem e a circunstância de surgir uma instituição bancária reconhecida que se responsabiliza pelo cumprimento da obrigação introduz tranquilidade e confiança e sossega mutuamente as partes. Um segundo aspeto, acessório, mas importante, tem a ver com o papel financeiro das garantias, uma vez que, por via da garantia, o garante concede fundos ao mandante, entregando-os diretamente ao beneficiário.

A garantia autónoma é um negócio jurídico que requer uma série de cuidados por parte dos intervenientes. O mandante vê-lhe escapar o controlo do pagamento, ele pode ter de assistir, impotente, ao pagamento, pelo garante, de uma quantia que ele poderia reter e que, depois, terá de reembolsar, com juros e comissões, ao próprio garante. Por seu turno, o garante assume uma responsabilidade que terá de honrar, mesmo quando descubra que o mandante não oferece a necessária confiança. Daí que, em regra, a garantia autónoma é prestada mediante contragarantias idóneas ou através de esquemas que tornem comportável o risco que representa.

Por sua vez, o beneficiário da garantia, isto é, o credor da obrigação, também tem uma intervenção ativa na definição da garantia, porquanto, pode fazer depender a sua receção da circunstância da garantia observar as condições legais prescritas, em ordem a que os termos da garantia possam dar cobertura aos fins a que propõe.

O contrato de garantia não está tipificado na lei, antes resulta do princípio da autonomia privada (art.º 405.º do Código Civil). No comércio jurídico tornou-se frequente a prestação de uma garantia que em vez de ser acessória, fosse autónoma, ou seja, que não tivesse a sua prestação dependente da obrigação principal.

A garantia autónoma tem natureza contratual, sendo um negócio causal na medida em que comporta em si mesma uma função económico-social própria, traduzida na função de garantia. O garante não promete o resultado da prestação a título principal, mas sim um resultado indireto, no caso de não se verificar o cumprimento por parte do devedor principal. Na garantia autónoma a obrigação do garante não se molda sobre a obrigação principal, quer quanto ao seu objeto, quer quanto aos pressupostos da sua exigibilidade, ela represente uma obrigação própria e autónoma em tudo distinta da obrigação do devedor.

Configurando um negócio atípico, o contrato de garantia autónoma não tem exigências de forma legalmente estabelecidas. Todavia, atento o risco que a garantia autónoma envolve parece não ser admissível a mera aplicação da regra da liberdade de forma prevista no artigo 219.º do Código Civil, sendo essencial a elaboração de um documento escrito para assegurar a ponderação da decisão vinculada do garante aos termos da garantia autónoma. Outrossim, constitui elemento do contrato de garantia a sua aceitação por parte do beneficiário, podendo esta ser meramente tácita (cfr. art.ºs 217.º e 234.º do Código Civil).

Nas palavras de Luís Menezes Leitão , na garantia autónoma institui-se uma relação triangular, em que é possível distinguir uma relação de cobertura, entre o garantido, dador da ordem, e o garante, no âmbito da qual este se compromete, normalmente mediante remuneração, a prestar a garantia; uma relação de atribuição, entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia, que justifica a sua concessão, e, ainda, uma relação de execução, entre o garante e o beneficiário da garantia, que consiste precisamente na prestação da garantia.

No âmbito da relação de cobertura, há um compromisso entre o garante e o garantido pelo qual aquele se compromete a emitir uma garantia a favor da pessoa que venha a ser designada por este, exigindo como contrapartida o pagamento de uma comissão, ao mesmo tempo que o garantido se compromete, além de pagar essa comissão, a reembolsar imediatamente o garante, caso este venha a ter que efetivamente que efetuar ao beneficiário da garantia a prestação a que se comprometeu.

No âmbito da relação de atribuição, existe um negócio específico entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia, que justifica que a garantia venha a ser prestada.

E, por fim, na relação de execução, o garante vincula-se a prestar ao beneficiário a garantia nos termos exatos em que se obrigou perante o dador da ordem. Estamos aqui perante um verdadeiro contrato, uma vez que se exige a aceitação do beneficiário, ainda que esta possa ser tácita nos termos previstos no artigo 217.º do Código Civil. Todavia, o contrato é de cariz unilateral ou não sinalagmático por criar apenas obrigações para o garante.

Crê-se, no entanto, que a função da garantia bancária autónoma é precisamente a de garantia de uma obrigação que pode ser eventual: o garante não presta garantia ao beneficiário e se for chamado a satisfazer o crédito deste sobre o devedor/ordenante, fica extinta a obrigação garantida assim como a própria garantia, por falta de objeto, restando apenas o direito de regresso do garante contra o ordenante.

Permitimo-nos citar as palavras de Jorge Duarte Pinheiro a tal propósito:

“O contrato- promessa é o contrato pelo qual uma ou ambas as partes se obrigam a celebrar novo contrato.

Através do contrato banco-devedor principal, uma das partes (o banco) assume perante a outra (o dador da ordem) a obrigação de efetuar uma prestação a favor de terceiro (o beneficiário), estranho ao contrato. Uma vez que a prestação que o banco se obriga a efetuar perante o devedor principal é a celebração de um contrato de garantia autónoma com o beneficiário, o contrato banco-devedor aparenta ser (pacta de contrahendo cum tertio).

Aparenta. Não é. O pactum de contrahendo cum tertio é o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar com terceiro, por sua conta, um negócio jurídico. O banco obriga-se a celebrar o contrato de garantia por conta do dador da ordem. Ou seja, na intenção de transferir para o dador os encargos da sua intervenção. À partida o dador da ordem obriga-se a reembolsar o banco do pagamento que este venha a efetuar a solicitação do beneficiário da garantia autónoma.”

Esclarece ainda o mesmo Autor que o contrato de garantia bancária autónoma é um contrato não real, ou seja, para cuja perfeição não é exigida a tradição de uma coisa. Assim, nem se afigura que o contrato de garantia bancária se constitua apenas no momento em que o garante seja chamado a indemnizar o credor do contrato-base. Por um lado, o credor do contrato-base é um terceiro relativamente ao contrato estabelecido entre o garante e o ordenante; por outro, nada justificaria a tributação da garantia bancária em data anterior à da sua constituição, sendo que, no limite, em caso de a garantia bancária não chegar a ser executada, não haver tributação, por não ter sido constituída.

  1. A hipoteca como garantia especial das obrigações. Acessoriedade relativamente ao contrato de garantia bancária autónoma

 

Nos termos do artigo 686.º, do Código Civil, a hipoteca é uma das garantias especiais das obrigações, que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros e, embora seja “um direito acessório, que só existe em função da obrigação cujo cumprimento assegura[5], ainda que a obrigação garantida possa ser futura ou condicional.

Sendo uma garantia das obrigações, a hipoteca é especialmente tributada em sede de Imposto do Selo (verba 10, da TGIS) e, enquanto direito real de garantia, é um direito acessório da obrigação garantida. 

É que o contrato de garantia bancária, nunca é demais frisá-lo, é um contrato celebrado entre o garante e o devedor/ordenador, a que o credor do contrato-base é estranho. E os contratos acarretam para as partes um feixe de direitos e deveres recíprocos. Assim, o devedor/ordenador, para além da comissão acordada para prestação da garantia, está ainda obrigado a restituir ao garante a quantia pecuniária que este vier a despender com a execução da garantia, sendo normal que, como qualquer credor e, por maioria de razão, dado tratar-se de uma empresa comercial, o banco exija uma garantia do bom cumprimento do contrato por parte do dador da ordem – neste caso a hipoteca.

Conclui-se, pois, que existe uma verdadeira acessoriedade material entre as hipotecas constituídas pela Requerente e as obrigações que visaram garantir, decorrentes do contrato de garantia bancária.

 

  1. Análise da segunda parte da verba 10 da TGIS

 

Posto estas considerações, está em causa nos presentes autos a segunda parte da citada Verba n.º 10 da TGIS estabelece uma importante exceção ao estabelecer que todas as garantias de obrigações, “qualquer que seja a sua natureza ou forma,” não são tributadas em sede de imposto do selo caso se verifique que: 

- são “materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela; e 

- sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente”

Esta segunda parte da Verba n.º 10 da TGIS estabelece, assim, três requisitos cumulativos, para que as garantias não sejam tributadas em sede de imposto do selo. São eles: 

- a existência de acessoriedade material entre a garantia e a obrigação; 

- a obrigação garantida seja especialmente tributada pela TGIS; e 

- simultaneidade entre o nascimento da obrigação garantida e a constituição da respectiva garantia;

O requisito da simultaneidade não nos levanta problemas em alcançar o seu sentido, uma vez que é pacificamente entendido que ele se verifica quando a garantia e a obrigação garantida nascem no mesmo dia, ainda que sejam constituídas ou formalizadas em documentos distintos. (1 Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, da Direcção de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, dos Impostos Rodoviários e das Contribuições, que refere no seu ponto 4 “A constituição simultânea opera quando forem comuns as datas do contrato principal e do contrato de prestação de garantia.”) 

Por sua vez, o requisito da obrigação garantida estar especialmente tributado pela TGIS também não nos levanta problemas quanto ao seu sentido, pois dele resulta que só são relevantes as garantias de obrigações emergentes de um ato especialmente tributado pela TGIS[2].

Resta-nos, então, aferir qual o significado do requisito da “acessoriedade material” e se o mesmo também se verifica, ou não, no caso das garantias autónomas. É que não basta estarem verificados os requisitos da simultaneidade e da obrigação garantida estar especialmente prevista pela TGIS, para que possamos concluir pela não tributação das garantias em causa. 

Ora, acerca do sentido do requisito da “acessoriedade material”, entendem ANTÓNIO CAMPOS LAIRES e JORGE BELCHIOR LAIRES, que “(…) como se retira da expressão «materialmente acessórias», constitui um requisito essencial para o funcionamento desta exclusão tributaria a verificação de uma acessoriedade em sentido material, ou seja, a existência de uma efectiva ligação entre obrigação garantida e garantia prestada, quer exista quer não uma acessoriedade em sentido formal, entendendo-se esta como a inserção daqueles actos no mesmo instrumento ou título. Assim, segundo pensamos, não deverão beneficiar desta exclusão as garantias que, ainda que constituídas no mesmo documento ou título de um contrato especialmente tributado pela Tabela, garantam as obrigações decorrentes de um outro contrato celebrado pelas partes intervenientes.” 2 (In “Código do Imposto de selo Anotado e Comentado”, Alda Editores, 2000, p. 131). 

Também acerca do conceito de “acessoriedade material” já se pronunciou a Direcção de Serviços do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, do Imposto do Selo, dos Impostos Rodoviários e das Contribuições, no seu Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, no qual veio dizer: “A hipoteca tem natureza acessória quando existe um direito de crédito associado à sua sorte: a noção de acessoriedade exprime então a conexão temporal entre a garantia e o crédito garantido. Assim, quando exista acessoriedade e caso o crédito se extinga ou reduza, a garantia termina ou diminui. Não existe acessoriedade quando a hipoteca vise garantir não só as responsabilidades emergentes de um contrato de empréstimo, mas também as responsabilidades assumidas ou que venham a ser assumidas pelo mutuado [mutuário] junto da instituição de crédito e emergentes de quaisquer outras operações bancárias.” 

Parece-nos que o que é dito neste Ofício-Circulado n.º 40091, de 17 de Setembro de 2007, é aplicável a todas as garantias constituídas nos termos da Verba n.º 10 da TGIS, uma vez que, como vimos, a hipoteca é uma das garantias aí previstas, a título exemplificativo, e o entendimento resultante do Ofício-Circulado é compatível com o disposto na Verba n.º 10 da TGIS, bem com outro tipo de garantias. 

Veja-se mesmo que é demonstração da própria acessoriedade aquilo que a Requerida reconhece na contestação quando diz até que ─ “as garantias autónomas emitidas pela B... (e que as contragarantias constituídas visam garantir), em sítio algum foram objeto de tributação em sede de Imposto do Selo” (cf. Artigo 16.o da Contestação). Ora, se não tiveram lugar é porque são acessórias.

Adicionalmente, não podemos esquecer que o requisito da acessoriedade material foi introduzido, pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, na actual redacção da Verba n.º 10 da TGIS..

Dir-se-á em conclusões, pelos motivos expostos, que não poderão as liquidações impugnadas manter-se na ordem jurídica, por erro nos pressupostos de direito em que assentaram – por não respeitarem o conceito de acessoriedade material constante da segunda parte da verba 10 da TGIS.

 

IV.2.C. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributaria no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributaria, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há́ assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributaria e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

Há́ assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular liquidação no montante de € 98.400, mediante apresentação de declaração mensal de Imposto do Selo n.º ... e autoliquidação de € 86.400 aquando da outorga das escrituras públicas de hipoteca acima referidas, cuja liquidação de Imposto do Selo foi submetida e consubstanciada na declaração mensal de Imposto do Selo n.º...;

b) Condenar a Autoridade Tributaria no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, até à data do seu integral reembolso.

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 184.800,00, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.672,00, a pagar pela Requerida, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 17 de Julho de 2023.

 

Os Árbitros,

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)

 


(Sérgio Santos Pereira)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] A título de exemplo, veja-se o caso de uma garantia – seja ela qual for – que seja prestada para assegurar o bom cumprimento das obrigações emergentes de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel. Uma tal garantia, mesmo que cumpra os requisitos da acessoriedade e da simultaneidade, não poderá gozar de exclusão de tributação, dado que o contrato garantido (o contrato-promessa) não está especialmente tributado na TGIS.