Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 538/2022-T
Data da decisão: 2023-07-21  IRC  
Valor do pedido: € 4.776.619,70
Tema: IRC. Retenção na fonte - Diretiva Juros e Royalties – Beneficiário Efetivo
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SUMÁRIO:

  1. A aplicação da Diretiva Juros e Royalties, transposta para o ordenamento nacional pelo n.º 12 e seguintes do artigo 14º do CIRC, pressupõe que o destinatário dos juros pagos se possa qualificar como beneficiário efetivo para efeito daquela.
  2. Não logra qualificar-se enquanto tal uma sociedade sedeada num estado-membro que, inserida numa estrutura societária de diversos níveis e sem atividade económica efetiva, se limita a transferir (indiretamente) de forma reiterada o essencial dos rendimentos auferidos - juros - para sociedade localizada em território terceiro, sem qualquer tributação, a coberto do Direito da União Europeia e depois por aplicação de CDT entre esse estado e tal território.
  3. A responsabilidade originária do substituto tributário não colide com os princípios constitucionais e da CEDH, relativos à propriedade privada, certeza e segurança jurídicas.

 

DECISÃO ARBITRAL

I.RELATÓRIO

 

1. No dia 13 de Setembro de 2022, A..., UNIPESSOAL, LDA. (adiante designada por “Requerente”) no relatório de inspeção tributária (RIT) denominada por “A...” , pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., Piso ..., ...-... ... (Requerente), apresentou no CAAD requerimento de constituição de tribunal arbitral e Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”), pretendendo, nos termos do disposto nos artigos 95.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“CIRC”) e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”), a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“CIRC”) n.º 2022..., de 28 de Abril de 2022, referente ao ano de 2017, no montante de € 4.045.807,12 e as duas liquidações de juros compensatórios com os n.ºs 2022 ... e 2022..., no montante de €  287.589,26 e € 443.223,32, respetivamente, perfazendo assim um valor global de EUR 4.776.619,70.

2. Nomeados os árbitros e não tendo o Requerente, nem a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objeção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 21 de Novembro de 2022.

3. Seguindo-se os normais trâmites, em 14 de Janeiro a AT apresentou resposta, juntando o processo administrativo.

4. Face ao entendimento da Requerida quanto à inutilidade da inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente e insistência pela sua inquirição por banda da Requerente, foi em 30.01.2023 proferido despacho arbitral, no qual se admitiu a produção de tal prova.

5. Por despacho arbitral de 20.02.2023 veio a ser designado o dia 10 de Março para efeito da inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente.

6. Uma vez inquiridas as testemunhas apresentadas pela Requerente, vieram Requerente e Requerida a apresentar alegações escritas simultâneas, dentro do prazo determinado na diligência de inquirição, nas quais secundaram as respetivas posições de procedência e improcedência decorrentes do PPA e da Resposta.

7. A Requerente veio, em 19.04.2023, a proceder à junção do comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.

8.Por despacho arbitral de 05.09.2023, veio a ser prorrogado o prazo para a prolação de decisão arbitral, nos termos do n.º 2 do artigo 21º do RJAT.

 

 

 

II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS:

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

2. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

3. Não foram invocadas exceções que pudessem obstar ao conhecimento do mérito.

 

  1. FACTOS PROVADOS:

 

O Tribunal entende que resultaram provados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:

  1. Procedeu a AT a ação de inspeção externa à Requerente, de âmbito parcial, circunscrita ao controlo da retenção na fonte de IRC, incidente sobre os rendimentos de juros relativos ao período de tributação de 2017, ao abrigo da ordem de serviço OI2021... .
  2. No âmbito da referida ação de inspeção, veio a AT, através do respetivo RIT, a concluir pela existência de imposto em falta – retenção na fonte de IRC – no montante de € 4.045.807,12, assente nas seguintes conclusões:

 

  1. Na sequência do RIT, veio a Requerente a ser notificada da subsequente liquidação, com o n.º 2022..., de 28 de Abril de 2022, referente ao ano de 2017, e correspondentes liquidações de juros compensatórios infra identificadas, no montante global de EUR 4.776.619,70: 

 

  1. A Requerente procedeu ao pagamento das liquidações supra melhor identificadas;
  2. A Requerente é uma pessoa coletiva de direito português, com sede em território nacional, a qual tem por atividade principal a avaliação e o desenvolvimento de infraestruturas, serviços, projetos e estudos, designadamente no setor de energias renováveis e prestação de serviços de gestão e outros serviços de natureza contabilística e económica;
  3. A Requerente era, à data dos factos tributários, totalmente detida pela sociedade B... Limited (“B...”), entidade sediada no Reino Unido, através de uma quota única no valor de € 7.850.250,00;
  4. A B... é residente para efeitos fiscais no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (CDT), aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República e ratificada pelo Decreto-Lei Decreto-Lei n.º 48497, publicada em 24.07.1968.
  5. Com a finalidade de a Requerente reunir os fundos necessários à aquisição da sociedade C..., Lda (C...), aquela financiou-se por via de contrato de financiamento – suprimentos – obtido junto da B..., no valor de € 250.000.000,00 – cfr. Anexo IV ao RIT constante do PA;
  6. A Requerente apurou, no âmbito deste contrato de financiamento, datado de 17.11.2015, juros devidos à B..., nos seguintes montantes:

 

  1. Sobre os juros devidos à B..., com data final de 16.05.2017, isto é, de € 9.917.808,22, veio a Requerente a proceder à retenção na fonte sobre os respetivos juros a uma taxa de 10%, em conformidade com a CDT vigente entre ambos os países;
  2. Sobre os juros devidos à B..., com data final de 16.11.2017, no montante de €10.232.543,66, a Requerente não procedeu a qualquer retenção na fonte a título definitivo, ao abrigo da isenção prevista no n.º 12 e seguintes do artigo 14º do CIRC;
  3. A sociedade B... era, à data dos factos com relevo tributário para estes autos, detida na totalidade pela sociedade D... Limited (D...), com sede no Reino Unido;
  4. A referida sociedade D... era detida na totalidade pela sociedade E... Limited (E...), com sede no Reino Unido;
  5. A sociedade E... era detida por duas sociedades com domicílio fiscal em Hong Kong (HK), cada uma com uma participação social de 50%, denominadas F... Limited (F...) e G... Limited (G...);
  6. Por via indireta, as sociedades F... e G... eram detidas pelas sociedades H... Limited (H...), com sede em Hong Kong e a I... (I...), com sede nas Bermudas, respetivamente, sendo estas duas últimas sociedades cotadas na Bolsa de Hong Kong;
  7. Também ao nível de sociedades não domiciliadas na União Europeia que fazem parte da estrutura societária a montante das sociedades sedeadas no Reino Unido já supra identificadas, apurou-se a existência de outras sociedades domiciliadas nas Ilhas Caimão e Ilhas Virgens Britânicas, conforme se colhe do teor de diagrama seguinte:

 

  1. As sociedades B..., D... e E... não tinham escritórios próprios, utilizando instalações cedidas pela sociedade J... Limited (J...), através de contrato de prestação de serviços celebrado para o efeito;
  2. A J... é detida, indiretamente, pelas sociedades com atividade em HONG KONG, I... e H..., pertencentes ao grupo empresarial da Requerente;
  3. As sociedades B..., D... e E...  não dispõem de recursos humanos diretamente contratados, para além dos diretores nomeados;
  4. A direção de cada uma das três referidas sociedades B..., D... e E... era maioritariamente composta por diretores radicados fora do Reino Unido; 
  5. As sociedades B..., D... e E..., na falta de funcionários próprios, subcontratavam a execução de tudo o quanto fosse atinente ao cumprimento de obrigações legais, tarefas administrativas e cumprimento de obrigações financeiro-contabilísticas;
  6. As testemunhas K... e L..., eram à data da respetiva nomeação enquanto diretores das sociedades B..., D... e E..., quadros superiores da J..., funções estas que mantiveram junto desta, não tendo ficado alocados em exclusividade a tais funções de direção nas três versadas sociedades.
  7. O conselho de diretores das três sociedades vindas de identificar reuniam nas instalações da J... cerca de duas a três vezes por ano;
  8. A criação das sociedades B..., D... e E... teve por finalidade a de titular diversos investimentos a realizar na Europa pelo grupo de empresas que as detêm;
  9. As sociedades B..., D... e E... não detinham qualquer outra participação social em diferente investimento para além da detenção, indireta, da C... e do respetivo negócio de parques eólicos detido por esta;
  10.  O grupo societário em que estas sociedades se inserem analisaram diversos investimentos, cuja identificação se desconhece, os quais nunca vieram a concretizar-se, à exceção da referida C... .
  11. Ao nível financeiro, a E... detinha capitais próprios de € 78.500.000,00 e capitais alheios, no montante de € 250.000.000,00, valores estes realizados em partes iguais pelas sócias G... e F...;
  12. A sociedade D..., detida na totalidade pela E..., foi dotada de capitais próprios de € 328.500.000,00, correspondendo € 1,00 a capital social e o remanescente do valor a um denominado share premium;
  13. Por sua vez, a sociedade B..., detida na íntegra pela D..., foi dotada de capitais próprios de € 328.500.000,00, correspondendo € 1,00 a capital social e o remanescente do valor a um denominado share premium, rubrica esta que foi reduzida para € 299.414.999 durante o período de tributação de 2016;
  14. Em termos do fluxo financeiro ascendente, no período temporal a que se reportam os factos objeto de inspeção, o qual se refere ao cumprimento das obrigações contratualizadas, apurou-se que a Requerente remunera a B... relativamente aos suprimentos de € 250.000.000,00 efetuados por esta àquela através de juros, à taxa de 8% ao ano;
  15. Por sua vez, a B... pagou dividendos à D... por via da distribuição de dividendos e esta última procedeu à remuneração da E... igualmente por via da distribuição de dividendos;
  16. No que respeita às sócias de Hong Kong, da sociedade E..., as mesmas eram remuneradas via distribuição de dividendos e igualmente por via do pagamento de juros sobre o financiamento de € 250.000.000,00 efetuado pelas sócias de Hong Kong, em partes iguais;
  17.  A atividade substantiva da B... passou pela participação social detida na Requerente e no financiamento de € 250.000.000,00 concedido, do qual auferiu anualmente juros de 8% ao ano;
  18.  A D..., enquanto sócia única da E..., teve por atividade a gestão e detenção da participação social nesta e da qual recebeu dividendos, os quais, no essencial do seu quantitativo, canalizou para a E..., à exceção do valor de € 12.000,00, relativamente aos períodos de 2016 e 2017;
  19. A atividade da E... consubstanciou-se na gestão e titularidade da participação social na D..., da qual aquela recebeu dividendos e no financiamento obtido a partir das duas sócias com atividade em Hong Kong, no valor de € 125.000.000,00 por cada sócia, às quais pagou juro à taxa anual de 8% relativamente a esses mesmos financiamentos;
  20. No âmbito do RIT, apurou-se, ao nível dos financiamentos, respetivos juros e dividendos, a seguinte factualidade:

 

 

 

 

  1. Ao nível da tributação das sociedades sedeadas no Reino Unido já supra identificadas, foi apurado no âmbito do RIT, a seguinte factualidade:

 

 

  1. O cumprimento pela E... quanto ao pagamento de juros referentes aos financiamentos obtidos junto das sócias desta com base em Hong Kong –G... e F...– dependia em exclusivo da capacidade da C... gerar rendimentos quantitativamente adequados ao pagamento de tais ágios;
  2. Em 2016 a C... não gerou rendimentos suficientes ao pagamento dos juros contratualizados, tendo paralelamente a B... procedido à redução do share premium em 29.085.000,00.
  3. Sem a redução do share premium no montante supra identificado, a B... não teria disponibilidades financeiras para pagar dividendos à D..., no montante de € 28.050.000,00

 

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

O juiz (ou, in casu, o árbitro) não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT).

 

Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.

 

No caso, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica dos documentos apresentados pelas partes, e que não foram impugnados, na cópia do processo administrativo, apresentado pela AT e bem assim na prova testemunhal produzida.

 

Quanto a esta última, as testemunhas – quadros superiores da sociedade J... Limited e igualmente diretores do grupo de sociedades a que pertencia a Requerente – permitiram dilucidar, com credibilidade, diversos aspetos relativos ao funcionamento e gestão das sociedades E..., D... e B... e a relação destas com os sócios destas.  

 

Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, o que prevê o artigo 110.º do CPPT, a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Por último importa realçar que o posicionamento da Requerente e Requerida quanto aos factos não se apresenta como divergente ou controvertida, antes extraindo cada uma das partes em causa conclusões opostas quanto à interpretação e aplicação do Direito relativamente aos factos com relevo tributário nestes autos.

 

  1. Factos não provados:

Não se provou, ao contrário do invocado pela Requerente no Pedido de Pronúncia Arbitral, que “Os juros pagos pela Requerente à B...  foram sujeitos a tributação no Reino Unido na esfera desta sociedade”, até porque ela própria reconheceu, na mesma ocasião que “os juros pagos pela Requerente a 16 de Novembro de 2017 seriam isentos de tributação ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, da Directiva Juros e Royalties, e 14.º, n.º 12, do CIRC, ainda que a sociedade então detentora do capital social da Requerente e beneficiária efectiva de tais rendimentos – a B...– não tivesse como accionista outra sociedade residente no Reino Unido, mas sim uma sociedade residente em Hong Kong.

 

Igualmente não resultou provado qual ou quais as sociedades que se constituíam como beneficiárias efetivas das importâncias pagas a título de juros pela Requerente à B... .

 

  1.  Matéria de direito

 

  1.  Posição da Requerente

Em síntese, é a seguinte:

A Requerente alega, em linha com o pedido de anulação da liquidação de retenção na fonte (IRC) supra melhor identificada e que constitui o objeto imediato destes autos arbitrais, dever ser  a sociedade  B... qualificada como beneficiário efetivo dos juros pagos pela Requerente àquela, uma vez a cadeia de participações a montante da Requerente não ter como objetivo principal ou como um dos objetivos principais beneficiar da redução da taxa de retenção na fonte, nos termos dos artigos 1.º, n.os 1, 4 e 13, alínea b), da Diretiva Juros e Royalties, e 14.º, n.os 12, 13, alínea d), e 15, alínea a), do CIRC, e nessa medida serem isentos de retenção na fonte.

 

Caso assim não se entenda, pede a Requerente a anulação parcial da liquidação, sustentada na aplicabilidade do benefício de redução de taxa de retenção na fonte prevista no artigo 11.º, n.os 1 e 2, da Convenção sobre a Dupla Tributação vigente entre Portugal e o Reino Unido.

 

Na hipótese de não ser atendida a supra versada causa de pedir, entende ainda assim deverem ser parcialmente anulados os atos tributários de liquidação com base na aplicabilidade ao caso em análise do disposto dos n.º 1 e 2 do artigo 11º da CDT entre Portugal e Hong Kong.

 

Invoca igualmente a Requerente que as normas constantes dos artigos 94º, n.º 6 do CIRC, 103º, n.º 1 do CIRS, 28º da LGT, 11º, n.os 1 e 2 da CDT Portugal - Reino Unido, artigo 14º, n.º 13, al. d) e 15, al. a) do CIRC, quando interpretadas como gerando junto de terceiros a obrigação fiscal em face da reconfiguração jurídico-fiscal operada por tais normativos com finalidade anti-abuso são materialmente inconstitucionais por violação dos princípios da certeza e da segurança jurídica, da proporcionalidade e bem assim do direito à propriedade privada, garantida pelo artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Direitos do Homem.

 

Em razão da peticionada anulação total ou parcial vinda de supra expor, requer igualmente a Requerente o pagamento de juros indemnizatórios a esta, por existência de erro dos serviços (AT) na emissão das liquidações objeto  dos  presentes autos e condenar assim a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

 

Peticiona ainda a Requerente que seja determinada a nulidade consequente da liquidação de juros compensatórios impugnada ou, subsidiariamente,  determinar a respectiva  anulação  por  falta  de preenchimento  dos  respetivos pressupostos  legais  previstos  no artigo 35.º da LGT.

  1.  Posição da Requerida

Em síntese, é a seguinte:

Os contornos das operações, as especificidades e as circunstâncias que levaram à correção fiscal em apreço, centram-se na constatação, por parte dos SIT, de que a entidade a quem a Requerente pagou os rendimentos em causa – a B..., detentora da totalidade do seu capital social – a título de remuneração de suprimentos, não reunia os pressupostos para ser considerada o beneficiário efetivo desses rendimentos e, como tal, concluiu que não estão preenchidos os requisitos para a aplicação da Diretiva sobre Juros e Royalties e consequentemente a isenção de IRC prescrita no n.º 12 do art.º 14.º do CIRC.

 

Decorre do teor do  RIT a explicitação para a não reunião de tais requisitos, por um lado, a estrutura de financiamento transfronteiriço utilizada, onde se encontram incorporadas sociedades meras intermediárias, de passagem de fundos, sem justificação económica concreta e visível, como é o caso das sociedades sediadas no Reino Unido (estrutura composta por 3 sociedades uma das quais a B...) e, bem assim, os contratos celebrados, os fluxos financeiros estabelecidos, a retenção na fonte efetuada pela Requerente e a apreciação dos factos que chegaram ao seu conhecimento à luz do normativo legal aplicável à tributação dos juros obtidos em Portugal por entidades não residentes em território nacional.

 

Deste modo, considerando-se que se está na presença de rendimentos considerados obtidos em território nacional, nos termos do parágrafo 3), al. c) do n.º 3 do art.º 4.º do CIRC, por uma entidade não residente, sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa de 25%, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 94.º do Código do IRC articulado com a al. b) do n.º 3 do mesmo artigo, concluiu-se que a obrigação de retenção e entrega do imposto recai sobre a entidade residente em território nacional – a Requerente – conforme dispõe a al. c) do n.º 1, n.º 2 e al. b) do n.º 3 do artigo 94.º CIRC.

 

 

 

 

  1. Delimitação do objeto do processo e questões a decidir:

 

A Requerente, na sequência da notificação da liquidação de IRC – Ret. Fonte – de 2017 e de Juros Compensatórios questiona a legalidade destes atos de liquidação e em consequência, peticiona a anulação das mesmas e a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios e à restituição do valor de impostos e juros compensatórios indevidamente pagos.

 

Assim, os presentes autos têm por objeto a aferição da legalidade das liquidações supra melhor identificadas.

 

Aferição de legalidade essa, que se consubstanciará na dilucidação das seguintes questões, atento o princípio do pedido, vide n.º 1 do art.º 609º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT:

  1. Legalidade das liquidações arbitralmente impugnadas na medida em que não consideraram a B..., nem qualquer outra das sociedades sedeadas do Reino Unido supra identificadas nos factos provados, como “Beneficiária Efetiva” para efeitos da aplicação do disposto nos n.os 1 e 4 do artigo 1º da Diretiva 2003/49/CE, de 3 de junho de 2002 (Diretiva Juros e Royalties) e bem assim do artigo 14º, n.º 12, 13, alínea d) e 15, al. a) do CIRC;
  2.  Legalidade das liquidações arbitralmente impugnadas ao não terem atendido às regras decorrentes do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 11º da CDT celebrada entre Portugal e Reino Unido;
  3. Legalidade das liquidações arbitralmente impugnadas ao não terem atendido às regras decorrentes do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 11º da CDT celebrada entre Portugal e Hong Kong;
  4. Aferição da constitucionalidade, por violação dos princípios da certeza e da segurança jurídica, da proporcionalidade e do direito à propriedade privada, garantida pelo artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Direitos do Homem (CEDH),  as normas constantes dos artigos 94º, n.º 6 do CIRC, 103º, n.º 1 do CIRS, 28º da LGT, 11º, n.os 1 e 2 da CDT Portugal - Reino Unido, artigo 14º, n.º 13, al. d) e 15, al. a) do CIRC, quando interpretados no sentido de ser oponível ao substituto tributário a desconsideração dos efeitos decorrentes da aplicação de normas anti abuso em matéria de beneficiário efetivo;
  5. Legalidade da liquidação de juros compensatórios;
  6. Pagamento de juros indemnizatórios à Requerente e estorno dos valores indevidamente pagos à Requerida;

 

Uma vez delimitado o objeto destes autos e identificadas as questões a dirimir, importa ter presente que foi igualmente objeto de decisão arbitral – processo n.º 776/2022-T – cuja cópia foi junta a estes autos, a qual se encontra já igualmente publicada, entre os mesmos intervenientes processuais (Requerente Requerida), processo esse no qual estava em discussão similar matéria referente à não retenção na fonte sobre o pagamento de juros efetuados pela Requerente à B..., embora referente a um diferente período de tributação.

 

Nos autos vindos de identificar, veio a ser negado provimento aos pedidos formulados, conforme fundamentação que, adiante-se já, no essencial, este tribunal arbitral secunda.

 

  1. Do Beneficiário Efetivo:

 

No que concerne a este vício concretamente apontado pela Requerente ao ato tributário arbitralmente impugnado, divergem Requerente e Requerida sobre se se deve ou não qualificar a B... (ou D... ou E...) como beneficiária efetiva do pagamento dos juros efetuados pela Requerente, à luz da Diretiva Juros e Royalties, transposta para o ordenamento português, no que ao caso releva, através do artigo 14º, n.os 12, 13, al. d), e 15, al a), do CIRC, 

 

Isto é, se incorreu a liquidação ora sub judicio em erro na interpretação e aplicação do disposto no artigo 14º, n.os 12, 13, al. d), e 15, al. a), do Código do IRC.

 

A este respeito, importa pois ter presente o teor dos normativos coligidos pela Requerente em ordem a sustentar a tese da ilegalidade da liquidação face ao teor de tal preceito legal.

 

Assim e tendo em conta que não está em causa a incorreta fidedignidade da transposição efetuada pelo legislador português relativamente ao teor da diretiva que lhe está na base, importa atentar na redação dos n.os 12, 13, al. d), e 15, al. a), do artigo 14º do CIRC:

Artigo 14.º

Outras isenções

12 - Estão isentos de IRC os juros e royalties, cujo beneficiário efetivo seja uma sociedade de outro Estado membro da União Europeia ou um estabelecimento estável situado noutro Estado membro de uma sociedade de um Estado membro, devidos ou pagos por sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, cooperativas e empresas públicas residentes em território português ou por um estabelecimento estável aí situado de uma sociedade de outro Estado membro, desde que verificados os termos, requisitos e condições estabelecidos na Diretiva n.º 2003/49/CE, do Conselho, de 3 de junho de 2003.

 

13 - A isenção prevista no número anterior depende da verificação dos requisitos e condições seguintes:

(…)

d) A sociedade a quem são efetuados os pagamentos dos juros ou royalties seja o beneficiário efetivo desses rendimentos, considerando-se verificado esse requisito quando aufira os rendimentos por conta própria e não na qualidade de intermediária, seja como representante, gestor fiduciário ou signatário autorizado de terceiros e no caso de um estabelecimento estável ser considerado o beneficiário efetivo, o crédito, o direito ou a utilização de informações de que resultam os rendimentos estejam efetivamente relacionados com a atividade desenvolvida por seu intermédio e constituam rendimento tributável para efeitos da determinação do lucro que lhe for imputável no Estado membro em que esteja situado.

(…)

15 - A isenção prevista no n.º 12 não é aplicável:

a) Aos juros e royalties obtidos em território português por uma sociedade de outro Estado membro ou por um estabelecimento estável situado noutro Estado membro de uma sociedade de um Estado membro, quando a maioria do capital ou a maioria dos direitos de voto dessa sociedade são detidos, direta ou indiretamente, por um ou vários residentes de países terceiros, exceto quando seja feita prova de que a cadeia de participações não tem como objetivo principal ou como um dos objetivos principais beneficiar da redução da taxa de retenção na fonte;”

 

Em face do teor do preceito em causa, designadamente da al. d) do n.º 13 do artigo 14º do CIRC, impõe-se aferir se a B... se deve qualificar como tendo auferido os rendimentos – juros – por conta própria e não como intermediária, representante, gestora fiduciária ou signatária autorizada por terceiros.

 

Para tal desiderato, importa densificar aquele que é o conceito, ao nível do Direito da União Europeia (por ser essa a base e origem dos n.os 12 e 13 do artigo 14º do CIIRC), de beneficiário efetivo.

 

Assim e para o efeito, inexorável se torna convocar as decisões que sobre esta temática vêm sendo produzidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

 

Em termos sintéticos e sumários, é possível concluir que o TJUE tem vindo ao longo do tempo, fruto do natural incremento de decisões que vem tomando sobre esta matéria, a densificar ou concretizar mais os critérios ou indícios através dos quais o julgador interno deve aferir este mesmo conceito de beneficiário efetivo.

 

E tal densificação pelo TJUE torna-se evidente após a prolação das decisões dos denominados “casos dinamarqueses”, através dos processos C-115/16, C-116/16, C-119/16 e C-299/16, de fevereiro de 2019, no âmbito dos quais e com especial interesse para os presentes autos, releva, de entre o mais, o seguinte:

127    Um grupo de sociedades que não seja constituído por razões que reflitam a realidade económica, que tenha uma estrutura puramente formal e que tenha como principal objetivo ou como um dos seus principais objetivos a obtenção de uma vantagem fiscal que contrarie o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável pode ser considerado uma montagem artificial. É esse o caso, nomeadamente, quando, através de uma entidade interposta inserida na estrutura do grupo entre a sociedade que paga os juros e a entidade que é a beneficiária efetiva destes, é evitado o pagamento do imposto sobre os juros.

 

128    Assim, constitui um indício da existência de uma montagem destinada a beneficiar indevidamente da isenção prevista no artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2003/49, o facto de os referidos juros serem transferidos, na totalidade ou quase na totalidade e num prazo muito curto após serrem recebidos, pela sociedade que os recebeu para entidades que não preenchem os requisitos de aplicação da Diretiva 2003/49, seja porque essas entidades não estão estabelecidas em nenhum Estado‑Membro(…)

 

129    Ora, não preenchem os requisitos de aplicação da Diretiva 2003/49 as entidades que têm residência fiscal fora da União, como as sociedades em causa nos processos C‑119/16 e C‑299/16 ou os fundos de investimento em causa nos processos C‑115/16 e C‑299/16. Nesses processos, se os juros tivessem sido pagos diretamente pela empresa dinamarquesa devedora às entidades beneficiárias que, segundo o Ministério das Finanças, eram os beneficiários efetivos desses juros, o Reino da Dinamarca poderia ter cobrado o imposto retido na fonte.

 

130    Do mesmo modo, o caráter artificial de uma montagem é suscetível de ser corroborado pela circunstância de o grupo de sociedades em causa estar estruturado de tal forma que a própria sociedade que recebe os juros pagos pela sociedade devedora deve transferir esses juros para uma terceira sociedade que não preenche os requisitos de aplicação da Diretiva 2003/49, o que tem como consequência que a sociedade que transfere apenas realiza um lucro tributável insignificante quando atua na qualidade de sociedade interposta para permitir o fluxo financeiro da sociedade devedora para a entidade que é o beneficiário efetivo dos montantes pagos.

 

131    A circunstância de uma sociedade agir como sociedade interposta pode ser demonstrada quanto tiver como única atividade a cobrança dos juros e a sua transmissão ao beneficiário efetivo ou a outras sociedades interpostas. A este respeito, a inexistência de atividade económica efetiva deve, à luz das especificidades que caracterizam a atividade económica em questão, ser deduzida de uma análise do conjunto dos elementos pertinentes relativos, nomeadamente, à gestão da sociedade, ao seu balanço contabilístico, à estrutura dos seus custos e às despesas realmente efetuadas, ao pessoal que emprega, bem como às instalações e ao equipamento de que dispõe.

 

Dos trechos supra vindos de citar é possível concluir que o TJUE, para efeitos de aferição sobre a existência de uma eventual montagem que permita indevidamente beneficiar da isenção de juros, tal como prevista no n.º 1 do artigo 1º da Diretiva Juros e Royalties, convoca como indício relevante para essa mesma aferição, desde logo, a circunstância de os juros em causa serem transferidos na sua totalidade ou quase e num muito curto espaço de tempo para entidades que não preenchem os requisitos da versada Diretiva, isto é (de entre outras hipóteses) pela circunstância de não estarem estabelecidas no domínio da União Europeia.

 

Retira-se igualmente do aresto parcialmente acima alinhado, a conclusão segundo a qual deverá ser considerada como mera sociedade interposta (conduit company) quando a sociedade em causa tiver como única atividade a cobrança de juros e a sua transmissão ao beneficiário efetivo ou a outras sociedades interpostas.

 

Precisando o TJUE a este respeito que, a inexistência de uma atividade económica efetiva deve ser avaliada no seu conjunto, nomeadamente atendendo à gestão da sociedade, aos seus balanço contabilístico, estrutura de custos e despesas incorridas, recursos humanos que emprega e demais meios materiais de que possa dispor.

 

Ora, revertendo para o caso que nos atém e para a indagação sobre se a B... pode ser considerada beneficiária efetiva dos juros recebidos, em face daqueles que são os indícios que constituem a melhor interpretação da Diretiva Juros e Royalties, tal qual dimanam do TJUE nos casos dinamarqueses

 

Assim, importa perscrutar os diversos indícios ou critérios pelos quais se deve nortear e orientar a resposta a esta questão.

 

Em matéria de equipamento e estrutura imobiliária e bem assim no que aos recursos humanos ao serviço da B... diz respeito, resulta dos factos provados ter esta utilizado estrutura de bens e recursos humanos pertencentes a sociedade do mesmo grupo empresarial com origem em Hong Kong, o que se materializou pela subcontratação das tarefas de índole administrativa, financeira e contabilística, numa lógica de serviços partilhados.

 

A este propósito, realça-se que a inexistência de recursos humanos (excluindo deste grupo, os membros de órgãos estatutários, como são os membros do conselho de direção) quer de instalações próprias, assume uma relevância reduzida, porquanto se afigura como natural e sobretudo económico-financeiramente lógico e racional o aproveitamento pela B... (e das demais D... e E...) das sinergias intragrupo (leia-se, in casu, com a J...) em ordem a permitir tirar partido das estruturas já existentes e implementadas por sociedade pertencente a um mesmo grupo empresarial, com reflexos potenciais em matéria de redução de custos associados a uma estrutura quer material, quer de recursos humanos direta e exclusivamente à disposição desta.

 

Não se afigura que a realidade dada por provada nestes autos quanto à ausência de uma estrutura de recursos humanos e materiais exclusiva e diretamente ao seu encargo possa assumir efetiva relevância de monta para o efeito de eventual prática abusiva quanto à aplicação Diretiva Juros e Royalties, em matéria de beneficiário efetivo.

 

Cumpre desde já clarificar que a posição deste Tribunal Arbitral vai no sentido de que a escolha do Reino Unido enquanto jurisdição de detenção da participação da Requerente não levanta de per se dúvidas quanto às razões extrafiscais que possam estar na origem de tal opção de estruturação empresarial.

 

Para tal entendimento não é alheio o  já supra alinhado, isto é, a preexistência de sociedades pertencentes a um mesmo grupo empresarial com origem em Hong Kong com operação naquele (então) Estado-Membro da UE, fazendo sentido que novos investimentos na Europa pudessem ser estruturados através do Reino Unido, país no qual o grupo já tinha presença operacional de relevo, através, de entre outras sociedades, como era o caso da J... e bem assim até dadas as razões históricas de forte ligação entre ambas as jurisdições, uma vez Hong Kong ter estado sob administração britânica até 30 de Junho de 1997.

 

Por outro lado, conforme resulta da factualidade dada por provada e do que que resulta já supra alinhado é possível concluir que as sociedades E..., D... e B... não apresentaram uma atividade económica efetiva, porquanto limitada a um concordante repasse financeiro, embora com nuances quanto à natureza das verbas transferidas entre a base do grupo no Reino Unido – B... - e as sócias de Hong Kong – G... e F... (detentoras da E...) dos rendimentos libertados pela Requerente, com origem na C... .

 

Acresce relevar que do ponto vista tributário todas estas operações ocorridas entre a Requerente e a sua cadeia ascendente britânica – até E... – seja assumindo a forma de juros pagos, seja assumindo a forma de distribuição de dividendos, não foram efetivamente sujeitas a tributação, o que sucedeu por força quer da aplicação das regras dimanadas da Diretiva Juros e Royalties, quer da Diretiva 2011/96/UE do Conselho de 30 de Novembro de 2011 (Diretiva Mães-Filhas), respetivamente.

 

Destarte, quanto ao indício relativo à atividade efetivamente prosseguida pela B..., decorre da prova efetuada nestes autos resumir-se esta ao recebimento de juros junto da Requerente em cumprimento do financiamento contratualizado e disponibilizado a esta.

 

Juros esses que a B... se limitou, em termos substantivos, no essencial do seu quantum, a repassar, como atrás referido, para a D..., embora desta feita já sob a forma de dividendos, sendo que esta, por sua vez, acabou por transferir a quase totalidade desse valor, igualmente em dividendos, para a E... .

 

E... esta que, por seu turno, além da detenção da participação da sua homónima 2, se limitou a receber dividendos da sua participada, o que lhe permitia o pagamento dos encargos financeiros com os dois financiamentos obtidos junto das duas sociedades de Hong Kong que a detinham –G... e F... .

 

Cumprindo relevar, como se aponta no RIT, a objetiva correspondência de valores existente ao nível dos juros pagos, quer pela Requerente à B..., quer pela  E...às sócias de Hong Kong, sem prejuízo de, como já se referiu, de permeio no fluxo ascendente entre estas duas sociedades similares valores transitarem sob diferente roupagem: distribuição de dividendos – mas sempre com uma matriz comum: similitude de fluxos financeiros e ausência de tributação.

 

Idêntica correspondência se verificando ao nível da distribuição de dividendos entre B... a favor da D... e desta para E... .

 

Sendo certo que, no caso dos fluxos financeiros entre a B... e a D... não havia obrigação legal ou contratual conhecida que forçasse a que estas sociedades operassem a distribuição de dividendos, mas ainda assim, sempre o fizeram, inclusivamente em período fiscal – 2016 – em que não tendo a C... gerado disponibilidades financeiras suficientes para pagar os juros devidos à B..., não deixou de levar a que esta tivesse reduzido o share premium e assim libertar o montante que permitisse à cadeia ascendente cumprir com as obrigações das holdings de base de Hong Kong –G... e F...– o que deixa bem patenteada a falta de efetivo poder destas sociedades britânicas para disporem dos seus ativos.

 

Ou seja, flui do observado que, efetivamente, no caso da estrutura societária britânica, a mesma só poderia cumprir com as obrigações a que contratualmente estava vinculada se a Requerente tivesse a capacidade para gerar e libertar rendimentos na cadeia ascendente que permitissem a esta pagar à B... .

 

Isto porque, a E... só poderia cumprir o seu compromisso contratual de pagamento dos juros junto das sócias de Hong Kong que a financiaram se tal libertação a jusante se verificasse, sendo que, para o efeito, teria a B... e a D... de distribuir dividendos que acomodassem os necessários fluxos financeiros em ordem a permitir esse mesmo pagamento dos juros às sociedades de Hong Kong.

 

Ora, perante este conspecto factual quanto à atividade material das sociedades britânicas e o modus operandi ao nível dos fluxos financeiros desde a Requerente até às sócias da E..., não pode deixar de se observar e concluir pela existência de uma estruturação materialmente consumada enquanto subsumível à realidade formal denominada por “back to back”.

 

Isto é, não obstante inexistir uma efetiva replicação de uma operação com idêntica natureza (p.ex.: financiamento) nos seus exatos termos, certo é que um modelo do tipo A-B-B-A, em que A representa juros pagos e B distribuição de dividendos, o efeito de um esvaziamento não só financeiro, como também ao nível de tributação das três sociedades sedeadas no Reino Unido e das respetivas sócias diretamente detentoras da E..., agregado de operações essas que foram sendo sistemicamente e em sucessivos períodos fiscais levadas à execução, as quais como supra se referiu, lograram atingir um resultado tributário de total evitação fiscal.

 

Ou seja, a realidade apurada no RIT quanto aos fluxos financeiros, quer descendentes quer ascendentes, a essencial equivalência quantitativa dos valores transferidos (independentemente da distinta natureza que vão assumindo ao longo da cadeia), a identidade espaço temporal em que os fluxos ocorrem e são contabilizados desde a Requerente até à sua saída para a F... e G... e o objetivo resultado fiscal que provocam em matéria de total evitação tributária (leia-se, não retenção na fonte)  que logram obter (por via das diretivas Juros e Royalties, Mães-Filhas e CDT entre Reino Unido e Hong Kong) constituem factos que quando agregados à falta de uma atividade económica efetiva (para  além da detenção da C... e do pagamento de juros ou distribuição de dividendos a montante) concorrem para um acervo probatório relevante em ordem à aferição sobre se a B... preenche ou não os requisitos para que deva ser considerada “beneficiária efetiva” à luz da Diretiva Juros e Royalties e por essa via, para efeitos da aplicação da isenção de retenção na fonte prevista no artigo 14º, n.os, 12, 13, al. d), e 15, al. a), do Código do IRC.

 

Por outro lado, afigura-se relevante para a aferição vinda de referir, ainda atentar na organização das sociedades britânicas ao nível decisório (à míngua de recursos humanos a ela direta e exclusivamente afetos), que o mesmo é dizer, aos membros da direção das referidas sociedades, onde se incluirá também para este efeito a Requerente.

 

Do cotejo dos factos inspetivamente apurados e não probatoriamente refutados pela Requerente sobreleva o facto de os Directors domiciliados no Reino Unido se encontrarem em minoria quando quantificado o universo de Directors apontados pelas respetivas sócias em cada uma das sociedades.

 

A este respeito, as testemunhas inquiridas – à data dos factos então Directors da B... –  não obstante terem referido a existência de autonomia decisória da B... relativamente ao destino a conferir aos lucros obtidos com o pagamento de juros pela Requerente, não deixaram de enfatizar o argumento formal subsumível à personalidade jurídica que, evidentemente, cada uma das sociedades britânicas (e a Requerente) não podem deixar de ter, sejam elas qualificáveis como meras sociedades interpostas ou não.

 

Ora, perante um quadro de Directors essencialmente radicado em jurisdição onde o grupo empresarial tem a sua base – Hong Kong – e igualmente em diferentes jurisdições que não o Reino Unido e em que as próprias testemunhas são também elas Directors de outras sociedades do mesmo grupo empresarial, designadamente da J..., não será difícil concluir que a autonomia decisória quanto a matérias como a destinação dos lucros obtidos pela B... não poderia deixar de estar absolutamente condicionada pelos interesses das sociedades de Hong Kong que, direta ou indiretamente, dominavam as sociedades britânicas e consequentemente, a Requerente e nessa medida, o centro de decisão não poderia deixar de refletir os interesses daquelas sociedades localizadas fora do perímetro da União Europeia.

 

Mas mais do que um exercício de senso comum, valem a este respeito os factos; e os factos são claros, durante o período inspetivamente analisado, na cadeia organizacional desde a Requerente à sociedade britânica de “topo” – a E... – as decisões que foram sendo tomadas foram todas, congruente e reiteradamente, no sentido de permitirem um célere e imediato repasse dos rendimentos por parte de cada uma dessas sociedades sedeadas na UE para empresas domiciliadas ou estabelecidas fora do perímetro da União Europeia, in casu, para a F... e G..., sem que se tenha detetado por força dos instrumentos jurídico-tributários já supra identificados (diretivas e CDT’s) que tais fluxos financeiros tenham sido objeto de qualquer tributação ao longo das diversas etapas percorridas pelos fluxos financeiros (juros, dividendos, dividendos e juros) ora em causa.

 

Igualmente, a questão erigida quanto à intenção do grupo empresarial em causa proceder a mais investimentos, que não apenas o realizado relativo à aquisição pela Requerente da C..., embora dado por provado que tal intenção pudesse existir (ante o teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas), certo é que nenhuma logrou proceder a uma concretização sobre sequer um desses potenciais investimentos, o que dada a dimensão financeira relevante do grupo empresarial em causa, tendo desde logo presente o exemplo do investimento efetuado para a tomada de posição na C..., não pode deixar esta omissão de merecer reservas quanto à existência, à época, de efetivos dossiers para potencial investimento pelo grupo, independentemente da existência de intenções mais ou menos etéreas.

 

Sendo que, mais do que meras intenções não densificadas, importa sopesar a realidade factual tal qual ela se apresentava ao tempo dos factos em análise e que, em concreto, se consubstanciava numa cadeia de três sociedades que foram implementadas no Reino Unido, as quais pelo seu quantitativo e ante a descrita falta de atividade económica efetivamente exercida, apenas ancorando um único projeto, não logra a Requerente demonstrar razões económicas válidas para tal estruturação, independentemente da racionalidade económica, de estabilidade legislativa, financeiro-bancária e até da proximidade  histórica que possam estar na base da escolha do grupo empresarial de Hong Kong pelo Reino Unido.

 

Sobrelevam sim, essencialmente, evidências quanto à existência de razões fiscais para que a estruturação empresarial no Reino Unido tivesse sido efetuada nos moldes melhor vindos de supra alinhar, estruturação essa que logrou atingir uma vantagem tributária abusiva e ilegítima, traduzida numa total evitação fiscal, desiderato esse que a Diretiva Juros e Royalties não consente, porquanto o resultado assim obtido se encontra ancorado numa rede sociedades – B..., D... e E... – que não poderão deixar de se considerar como interpostas ou meras conduit companies, isto é, sem qualquer autonomia decisória ou poderes para economicamente dispor dos juros ou lucros recebidos, destituídas de uma atividade económica efetiva que não seja o sucessivo repasse imediato, reiterado e sistemático do essencial dos rendimentos por estas auferidos.

 

Por último, relativamente à subentendível invocação segundo a qual o grupo empresarial em que se insere a Requerente não necessitar de uma estrutura societária de três níveis no Reino Unido para obter um nível de (não) tributação similar a uma estrutura com menos níveis e por isso apenas razões extra fiscais justificariam a opção a final perfilhada, não pode deixar de salientar que o cerne da questão ora em apreciação se consubstancia em saber se se considera ou não efetuada a demonstração sobre se a apontada beneficiária efetiva, a sociedade B..., se qualifica enquanto tal para efeitos da aplicação da Diretiva Juros e Royalties, demonstração probatória essa que, no caso, a Requerente não logrou efetuar.

 

Sendo que a não demonstração dessa mesma qualificação não radica apenas do número de níveis societários constituídos no Reino Unido, mas antes e essencialmente da análise global à estrutura existente e seu respetivo modus operandi e interação a montante e a jusante dessa mesma estrutura localizada no Reino Unido, da qual resultam como verificados sustentados elementos subsumíveis aos indícios considerados pelo TJUE como relevantes para que se considere que, quer a B..., quer as D... e E..., não se possa qualificar qualquer uma destas sociedades como beneficiária efetiva para efeitos da aplicação da Diretiva Juros e Royalties e assim das já identificadas normas do CIRC que a transpuseram para o ordenamento interno; conclusão esta que, em tese e em abstrato, poderia igualmente suceder com um diferente número de níveis societários, assim se mantivessem presentes os indícios orientadores jurisprudenciais constatados nos autos em apreço.

 

Em face da incapacidade da Requerente em probatoriamente demonstrar que a B... (e bem assim a D... e E...) se possa qualificar como beneficiária efetiva, não pode esta causa de pedir deixar de improceder, nos termos e com a fundamentação que se deixa supra relevada.

 

  1. Aplicabilidade da CDT entre Portugal e Reino Unido:

 

Pugna igualmente a Requerente, a título subsidiário face à questão que supra se deixa dirimida, pela aplicação do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 11º da CDT vigente entre Portugal e o Reino Unido, nos termos do qual a Requerente, enquanto substituta tributária, apenas teria de efetuar retenção na fonte sobre os juros pagos a B... à taxa de 10% e não aos 25% decorrentes da liquidação de IRC ora arbitralmente impugnada.

 

Sustenta para o efeito, a circunstância de a CDT entre Portugal e Reino Unido, no seu artigo 11º não fazer depender para a aplicabilidade da redução da taxa sobre a retenção na fonte referida na norma convencional, de o destinatário dos juros pagos ser qualificado como “beneficiário efetivo” desses mesmos rendimentos.

 

No tocante a esta linha de entendimento sustentada pela Requerente, importa, antes de mais, considerar o teor do normativo em causa, designadamente os seus n.º 1 e 2 da CDT em causa:    “

  1. Os juros provenientes de um Estado Contratante e pagos a um residente de outro Estado Contratante podem ser tributados nesse outro Estado.
  2. No entanto, esses juros podem ser tributados no Estado Contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado; mas, quando o residente do outro Estado Contratante está nele sujeito a imposto por esses juros, o imposto assim estabelecido no Estado primeiramente mencionado não excederá 10 por cento do montante dos juros.  

 

Ora, resulta assim da leitura do n.º 1 do preceito convencional em análise a atribuição de competência ao Reino Unido para proceder à tributação sobre os juros pagos por um residente em Portugal a um residente no Reino Unido.

 

No entanto, nos termos do n.º 2 da citada norma confere competência a Portugal para tributar esses mesmos juros pagos a residente no Reino Unido.

 

Competência essa de tributação de Portugal sobre os juros que, em caso de sujeição a tributação no Reino Unido está limitada à aplicação de uma taxa de retenção na fonte de 10%.

 

Lido o teor do vocábulo, quer na sua versão Portuguesa (sujeito), quer na sua versão inglesa (subject), não podemos deixar de concluir que constitui pressuposto convencional para a redução da taxa a cobrar por Portugal, prevista na segunda parte do n.º 2 do artigo 11º da CDT, que os juros em causa sejam efetivamente tributados no Reino Unido.

 

Ora, no caso dos autos não se provou que sobre o pagamento de tais juros pela Requerente à B... tenha recaído tributação no Reino Unido e tal prova afigura-se como imprescindível para que a pretensão da Requerente pudesse lograr provimento. 

 

Conforme se colhe da prova produzida, a Requerente não logrou demonstrar o pagamento de qualquer imposto incidente sobre os juros sobre os quais pretende a aplicação da taxa reduzida ao abrigo da CDT entre Portugal e Reino Unido, pelo que não pode deixar de improceder a pretendida redução em análise.

 

  1. Aplicabilidade da CDT entre Portugal e Hong Kong:

 

Invoca igualmente a Requerente, em defesa da tese da ilegalidade da liquidação adicional de IRC objeto destes autos, a violação por este ato tributário do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 11º da CDT entre Portugal e Hong Kong, porquanto não se entendendo poder ser a B..., nem qualquer outra das sociedades do grupo sedeadas no Reino Unido, considerada como beneficiária efetiva dos juros pagos pela Requerente, devem assim ser qualificadas as sociedades a montante destas, sedeadas em Hong Kong.

 

Esta questão, porém, já não tem a ver com os atos de liquidação praticados pela AT, mas sim com uma sua hipotética reconfiguração e foi suscitada pela primeira vez junto deste Tribunal Arbitral (recorde-se que a Requerente optou por não exercer o seu direito de audição prévia quando lhe foi notificado o Projeto de Relatório de Inspeção). Quer isso dizer que a AT – que, segundo o entendimento do TJUE nos processos dos denominados casos dinamarqueses, não estava “obrigada a identificar a entidade ou as entidades que considera serem os beneficiários efetivos desses juros.” – não tinha de se questionar qual ou quais seria(m) a(s) beneficiária(s) efetiva(s), desde logo atendendo à multiplicidade de sociedades a montante das sedeadas no Reino Unido e ainda ao facto de a Requerente vir defendendo desde a fase inspetiva tese contrária à agora subsidiariamente propugnada.

 

Acrescente-se, como obiter dictum, que – como reconheceu a Requerente perante este Tribunal –, as próprias sociedades mutuantes de Hong Kong “foram especificamente constituídas com vista à concretização do investimento em referência”, foram “constituídas com poucos dias de diferença por cada um dos seus accionistas”, tinham “sede no mesmo local dos respectivos accionistas” e “o mesmo administrador”, além de padecerem de insuficiência de capitais, tudo a indiciar que a determinação do beneficiário efetivo se poderia prolongar indefinidamente.

 

Como quer que seja, e como se escreveu na já citada decisão proferida no processo n.º 776/2022-T,

sendo este um processo de impugnação de um concreto ato tributário, os poderes de cognição do tribunal estão limitados à apreciação da sua legalidade, a ser feita (apenas) à luz da fundamentação, factual e de direito, de tal ato. Ora, a fundamentação invocada pela AT, no RIT, para proceder à liquidação adicional consistiu no negar da aplicabilidade das normas do CIRC que transpõem o constante da Diretiva Juros e Royalties, as mesmas normas invocadas pela Requerente para não proceder a retenção na fonte. E, como já concluído, tal fundamentação – e a consequente liquidação adicional – não padece de ilegalidade.

 

Noutras palavras: a AT não tinha de apurar algo de positivo, bastando fundamentar algo negativo, como fez. E só sobre isso se pode pronunciar este Tribunal. 

 

 

  1. Violação de Princípios Constitucionais e da CEDH

 

Sustenta igualmente a Requerente no sentido de as normas constantes dos artigos 94º, n.º 6 do CIRC, 103º, n.º 1 do CIRS, 28º da LGT, 11º, n.ºs 1 e 2 da CDT Portugal - Reino Unido, artigo 14º, n.º 13, al. d) e 15, al. a) do CIRC, quando interpretadas como gerando junto de terceiros a obrigação fiscal em face da reconfiguração jurídico-fiscal operada por tais normas com finalidade anti abuso serem materialmente inconstitucionais por violação dos princípios da certeza e da segurança jurídica, da proporcionalidade e bem assim do direito à propriedade privada, garantida pelo artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Direitos do Homem.

 

Em suma, entende a Requerente que, atentos os princípios vindos de enunciar, não poderia a ora Requerente ficar fiscalmente onerada pelo facto de o sujeito ativo da relação jurídico-tributário ter entendido como não verificados todos os requisitos necessários para que os juros pagos à B... não tivessem sido sujeitos a retenção na fonte por aquela.

 

Sobre esta temática da pretensa violação de princípios constitucionais em situações de substituição tributária em que está em causa a aplicação da cláusula geral anti abuso (CGAA) – artigo 38º da LGT – se tem pronunciado a jurisprudência dos tribunais superiores, designadamente o Supremo Tribunal Administrativo (STA).

 

Com especial relevo para o caso ora em apreço, porquanto e tal como sucede com o aresto proferido pelo STA, também aí estava em causa a aplicação de norma (CGAA) que não previa expressamente, tal como sucede ainda com a norma anti abuso referente ao beneficiário efetivo, o condicionalismo em ordem à aplicação das regras de responsabilização em matéria de substituição tributária.

 

Ora, em tal aresto, processo n.º 0299/13.2BEPNF 0460/17, de 16.02.2022, o STA deixou sumariado o seguinte entendimento, o qual parcialmente ora se cita:

“I - A interpretação jurídica que, à luz dos princípios da praticabilidade e da razoabilidade, assegura a efectividade do disposto no nº 2 do artigo 38º da LGT, na sua redacção prévia à alteração legislativa introduzida pela Lei nº 32/2019, é a que sustenta que quando a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção e na sua substituição por uma operação cuja regulação legal imporia a prática de um acto de retenção na fonte a título definitivo (e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário), é aquele que se vem a qualificar como substituto (à luz da aplicação da CGAA) quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele e seja possível concluir, no âmbito do procedimento do artigo 63º do CPPT, que ele tinha a obrigação legal de conhecer a operação jurídica alternativa que se vem a qualificar como legalmente devida por efeito da desconsideração da operação realizada (da construção adoptada).

(…)

IV - A AT, ao corrigir os efeitos fiscais do negócio declarado pela Recorrente e ao conformar o negócio declarado, com a realidade material e jurídica subjacente, fazendo-o coincidir com o negócio corrigido que respeita a realidade material e económica subjacente ao negócio declarado não coloca em crise o princípio constitucional da liberdade económica, pois limita-se a definir o alcance efectivo da realidade substantiva, material e económica subjacente ao negócio, situação que também não belisca o princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de protecção da confiança e, ao contrário do que defende a Recorrente, dá plena expressão ao princípio da capacidade contributiva (e da tributação da empresa de acordo com o rendimento real enquanto manifestação desse princípio - art. 104º nº 2 da C.R.P.) e salvaguarda o princípio da igualdade, impondo-se ainda referir, quanto ao primeiro elemento descrito, se é verdade que a CGAA visa neutralizar financeiramente uma vantagem tributária indevida, e, por isso, o seu destinatário é quem dela beneficia (sendo, nestes casos, esses beneficiários os sócios), tal não significa que, o princípio da praticabilidade associado aos princípios da igualdade tributária e da racionalidade não imponham que nestes casos em que está subjacente à aplicação da CGAA uma relação jurídica de substituição fiscal total, com retenção na fonte a título definitivo, não devam também aplicar-se as regras da substituição tributária em geral e, de acordo com estas regras, aquele que esteja legalmente obrigado à liquidação em substituição e não o faça, se tiver conhecimento (ou devesse ter) da construção que se substituiu a esta obrigação de retenção na fonte a título definitivo, será o responsável originário pelas quantias que devia ter retido e não reteve, o que significa que, neste ponto, não pode conceder-se abrigo ao exposto quanto à violação dos princípios da proporcionalidade e do direito à propriedade.”

 

Ante este reiterado entendimento do STA quanto à conformidade constitucional da oponibilidade perante o substituto tributário relativamente à retenção por este omitida, em razão da aplicação da cláusula geral anti abuso e revertendo para a factualidade em que se centra a liquidação ora aqui arbitralmente impugnada, e não se discorrendo razões para dele divergir, não se poderá deixar de considerar que a responsabilidade da Requerente pelo pagamento do valor da retenção na fonte omitida aquando do pagamento de juros à B... decorre da obrigação legal daquela em munir-se dos elementos demonstrativos pertinentes em ordem a respaldar uma decisão como aquela que levou a efeito.

 

Ou seja, in casu, à Requerente cabia o ónus legal de se munir dos elementos por ela entendidos por suficientes para aferir se a B... poderia ou não qualificar-se como beneficiária efetiva, à luz dos respetivos normativos jurídicos em que assenta tal qualificação.

 

E, e em resultado dessa aferição, decidir, no prazo a que alude a al. a) do n.º 2 do artigo 98º do CIRC, sobre proceder ou não a retenção na fonte sobe os juros pagos e em caso afirmativo, a que quantum percentual, na exata medida em que considerasse ou não verificada tal qualificação enquanto beneficiária efetiva.

 

Assim, ao preterir a retenção do imposto sobre os juros disponibilizados à B..., a Requerente assumiu que a mutuante revestia a qualidade de beneficiária efetiva para efeitos da aplicação da Diretiva Juros e Royalties e bem assim das normas internas que a transpuseram.

 

Não se vislumbrando como possa ocorrer ofensa a qualquer um dos princípios constitucionais invocados e bem assim o direito à propriedade privada.

 

Desde logo e quanto a este último, não se afigura como um direito insuscetível de eventualmente ser restringido em alguma da sua extensão quando confrontado com outros direitos com similar proteção e consagração constitucional, desde que tal não coloque em risco aquele que é o cerne do direito com proteção constitucional a restringir, como possa ser, por exemplo, o relativo à propriedade privada.

 

Devendo em qualquer caso, as eventuais restrições a este(s) “…limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”, tal como decorre do n.º 2 do artigo 18ºe da Constituição da República Portuguesa.

 

Desde já se tomando posição que não se vislumbra como a interpretação colocada em crise pela Requerente possa ofender os princípios constitucionais por esta convocados e muito menos e aqui em particular o direito à propriedade privada.

 

Importa ter presente que o mecanismo de substituição tributária não impõe ao substituto que por mero entendimento do substituído, aquele fique vinculado a agir em conformidade com a perspetiva desse substituído tributário quanto ao procedimento a adotar em matéria de retenção na fonte sobre um rendimento de que este último é direto destinatário.

 

Ou seja, se o substituto tributário entende não se encontrar munido dos elementos que entenda por suficientes em ordem à ablação ou à diminuição da taxa de retenção na fonte geral aplicável, in casu de 25%, nos termos do n.º 4 do artigo 87º do CIRC, poderá (e deverá) agir nessa conformidade e proceder de acordo com os respetivos comandos que entenda por aplicáveis, procedendo à retenção na fonte nessa exata conformidade.

 

De resto, a circunstância de o substituto tributário proceder a retenção na fonte a uma taxa que porventura o substituído considere como legalmente inaplicável ao caso concreto dos rendimentos postos à disposição deste, não obstante a natureza de retenção na fonte assumir (como assume in casu) natureza liberatória, não tolhe ou limita o direito do substituído a lançar mão das garantias tributárias, quer de índole graciosa e bem assim contenciosas, legalmente consagradas para reparação de eventual desconformidade jurídico-tributária que possa resultar de uma retenção, por exemplo, superior àquela que o substituto tributário considerou como aplicável.

 

Que o mesmo vale por afirmar que a responsabilização adveniente do comportamento do substituto tributário advém de uma decisão que lhe é própria e que não lhe pode ser, por determinação legal ou outra, imposta por terceiros e nessa medida será sempre e em abstrato, uma decisão que nos termos do ordenamento tributário apenas ao substituto tributário compete tomar.

 

Não podendo, evidentemente, o substituto tributário desconhecer que tal decisão pode, em caso de desconformidade com o legalmente estabelecido em matéria tributária, levar à responsabilização deste por eventual omissão de entrega nos cofres do Estado de determinado imposto tido por devido.  

 

Resulta do exposto que compete sempre ao substituto tributária em primeira e única instância a decisão sobre como proceder sempre que colocado perante a eventualidade de ter ou não de proceder a retenção na fonte sobe determinado rendimento, sendo que não pode deixar de  decidir e proceder consciente da sua responsabilidade perante eventual indevida omissão de entrega de imposto ao sujeito ativo da relação jurídico-tributária.

 

Podendo assim concluir-se que a suposta ofensa ao direito à propriedade do substituto constitucionalmente intolerada teria de ter na base um comportamento do “ofendido” à margem dos comandos legais aplicáveis, comportamento esse, ele próprio suscetível de colocar em crise a essência de outros direitos com similar proteção e consagração constitucional como seja o da igualdade em matéria de tributação, não se vislumbrando como possa numa situação de substituição tributária considerar-se ofendida a essência de um direito com proteção constitucional quando tal suposta ofensa resulta ela própria de um ato volitivo, desconforme à lei tributária e cujas consequências quanto à responsabilidade tributária advenientes para a esfera da sua propriedade, o cumulativamente autor e supostamente ofendido, não pode, de antemão, desconhecer e nessa medida ponderar o comportamento tributário a adotar.

 

Assim, sufragar que um comportamento que coloca em causa valores constitucionais como o da igualdade tributária, em contexto internacional, com repercussão ao nível da evitação tributária que comportamentos desconformes à lei tributária são suscetíveis de infligir e, nessa medida,  colocar em causa a arrecadação da necessária receita em ordem à satisfação das necessidades da comunidade, não poderia deixar de ser lido como o premiar de um comportamento desconforme à lei, leitura essa que este tribunal arbitral não pode deixar de rejeitar. 

 

Descendo de novo ao caso vertente, tal significa que a Requerente não estava legalmente vinculada a agir em conformidade com aquele que possa ter sido o entendimento que a B... possa ter manifestado junto da Requerente quanto ao facto de se considerar ou não como beneficiária efetiva para efeitos da aplicação da Diretiva Juros e Royalties, antes cabendo apenas à Requerente a decisão de, em face da lei, tomar o comportamento que lhe se afigurasse como mais conforme aos comandos tributários aplicáveis, não podendo igualmente desconhecer que de uma decisão desconforme a esses mesmos comandos normativos seria geradora de responsabilização pela omissão de entrega do imposto devido.

 

Por outro lado, dada a realidade factual da Requerente, isto é, o facto de ser totalmente detida pela B... (substituída tributária), não se antevê como não pudesse a Requerente aceder aos elementos que entendesse por pertinentes a fim de poder, no prazo legal de que dispunha, decidir sobre a postura a adotar em matéria de retenção na fonte sobre tais juros, pelo que também nesta perspetiva, não se alcança qualquer dificuldade de monta em a Requerente poder aceder à informação que tivesse por relevante para efeitos de decisão em matéria de retenção ou não na fonte sobre os juros pagos à B... .

 

Por último, atento o já supra alinhado, igualmente não se alcança como possa a interpretação em causa ofender os princípios da certeza e segurança jurídicas, porquanto perante a clareza do quadro legislativo em matéria de responsabilização no âmbito da substituição tributária  e a total autonomia e capacidade de exercício do substituto tributário para decidir o procedimento a adotar em matéria de retenção na fonte, segurança e certeza jurídicas são seguramente princípios que aqui não se podem mostrar violados, ante a clareza do quadro legal em que o regime da substituição tributária  e o respetivo feixe de direitos e obrigações que para substituto e substituído tributários dele decorrem.   

 

Em razão de tudo o quanto se deixa exposto, não podem as invocadas violações constitucionais deixar de improceder.

 

  1. Juros Compensatórios:

 

A Requerente sustenta, que a liquidação de juros compensatórios é ilegal porquanto esta agiu sem culpa – negligência ou dolo – antes baseada numa interpretação do Direito, de forma plausível, legítima e de boa-fé.

 

Em matéria de culpa, convém notar que a fundamentação e consequente imputação se consideram satisfeitas se, como sucede in casu, for estabelecida a relação entre a situação fáctica violadora da lei que justifica a liquidação dos juros ou os factos que levaram a AT a concluir que o atraso na liquidação se deveu a atuação culposa do contribuinte, conforme refere o Acórdão do STA (Pleno), de 22.01.2014,  proferido no processo n.º 1490/13 e, bem assim, o Acórdão do TCA Sul, de 19.09.2017, no processo n.º 7964/14.

 

Entende o STA, no aresto citado, que a existência de culpa é de aferir em abstrato e que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, sufragam a tese segundo a qual quando uma determinada conduta constitui um facto qualificado por lei como ilícito se deve fazer decorrer dessa conduta – por ilação lógica – a existência de culpa (não porque a culpa se presuma, mas por ser algo que, em regra, se liga ao carácter ilícito-típico do facto praticado) e que, por essa via, se deve partir do pressuposto de que existe culpa sempre que a atuação do contribuinte integra a hipótese de qualquer infração tributária, sem prejuízo de este juízo de censura poder ser afastado quando ocorram circunstâncias que o justifiquem.

 

A culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência, aptidão e conhecimento de um bonus pater familiae.

A culpa exprime um juízo de responsabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo.

 

Assim, face ao preceituado nos art.ºs. 35.° da LGT e 102.º do CIRC, constituem requisitos essenciais para a liquidação de juros compensatórios a existência de imposto devido, o retardamento da liquidação desse mesmo imposto e a imputabilidade do atraso à atuação culposa do contribuinte.

 

Ora, no caso que ora nos atém, a Requerente não logrou demonstrar os factos necessários que permitissem dar como preenchido o requisito segundo o qual a sociedade B... se podia qualificar como beneficiária efetiva para efeitos do artigo 14º, n.º 13, al. d), e 15, al. a), do CIRC e nessa medida, legitimar o seu comportamento declarativo em sede de retenção na fonte relativamente ao pagamento de juros à sua sócia. 

 

Por outro lado, constata-se que, embora de forma sucinta como é permitido pelo artigo 77.º, n.º 2 da LGT, o RIT refere de forma expressa que serão liquidados os juros compensatórios devidos, nos termos do disposto no artigo 35.º da Lei Geral Tributária e do artigo 102.º do Código do IRC (vide capítulo VIII do RIT), sendo que do versado documento sobressai, igualmente de forma sucinta, que as situações descritas configuram a existência de liquidação inferior à devida, o que constitui infração prevista e punida pelo artigo 114º do RGIT.

 

Devendo, em consequência, por subsunção ao caso em apreciação e por se secundar o entendimento do STA, vertido no processo n.º  0306/12.6BELLE, de 21.11.2019, segundo o qual:

“Integrando-se os juros compensatórios na própria dívida do imposto, alguns dos seus fundamentos podem sobrepor-se aos fundamentos da liquidação do imposto. O que sucederá, em regra, quando estejam em causa atos ou omissões de que derive o atraso na liquidação do imposto devido ou de parte dele, em que o comportamento ilícito e culposo do contribuinte se encontra descrito no próprio relatório de inspeção tributária.

(…)

Ora, o relatório de inspeção tributária contém, mesmo na parte não anulada, a descrição dos factos imputados ao sujeito passivo e que suportaram as correções e que conduziram ao retardamento da liquidação, bem como a sua qualificação como um comportamento ilícito, não faltando sequer a referência ao seu enquadramento legal como um ilícito contraordenacional. Pelo que não se consegue acompanhar a sentença recorrida quando conclui que os factos que fundamentam a atuação culposa do contribuinte não se retiram do relatório de inspeção.” (sublinhados nossos)

 

Em face do vindo de supra alinhar e atento o teor do RIT resulta medianamente apreensível a verificação destes três requisitos legitimadores dos juros compensatórios pela Requerida liquidados e aqui também colocados, autonomamente, em crise.

 

Nesta medida, têm-se por verificados todos os pressupostos legais para o direito ao apuro de juros compensatórios, pelo que as respetivas liquidações impugnadas não enfermam de qualquer ilegalidade, devendo, nesta conformidade, manter-se no ordenamento jurídico-tributário.

 

Nestes termos, conclui-se que as liquidações de juros compensatórios não enfermam de vício legal por falta de verificação dos pressupostos para a sua emissão, no caso, por via da invocada omissão de imputação em matéria de culpa da Requerente quanto aos factos descritos no RIT.

 

 

  1. Juros indemnizatórios e restituição do quantum tributário indevidamente pago:

 

A Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente e respetivos juros compensatórios pagos, no montante de € 4.776.619,70, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43º e 100º, ambos da LGT.

Face à falta de provimento do pedido de declaração de ilegalidade (atentas as causas de pedir formuladas) em que se funda o PPA apresentado pela Requerente, não podem deixar de se manter na ordem jurídico-tributário o objeto imediato destes autos – liquidação de IRC - Retenção na Fonte – e de juros compensatórios supra melhor identificadas.

 

Razão pela qual fica, nos termos dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, prejudicado o conhecimento sobre as demais questões e pedidos formulados, os quais pressupunham decisão de procedência e consequente anulação (pelo menos parcial) do ato tributário, a saber: condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios e restituição por esta do valor pago referente ao ato tributário de liquidação objeto da presente impugnação arbitral.

 

 

  1.  Decisão:

Termos em que se decide:

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado relativamente à pretendida anulação, por ilegalidade, ato de liquidação de IRC-Ret. Fonte do ano de 2017, com o n.º 2022 ... e bem assim das liquidações de Juros compensatórios, com os n.ºs 2022 ... e 2022 ..., por não verificação de qualquer dos vícios que lhe vinham apontados pela Requerente e nessa sequência,
  2. Julgar prejudicado o conhecimento sobre as questões relativas ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente e restituição a estes dos montantes suportados com o pagamento do ato tributário de liquidação objeto destes autos.
  3. Condenar a Requerente ao pagamento das custas nos termos da Tabela I do RCPTA, calculadas em função do valor da causa - arts. 4º, n.º 1, do RCPTA e 6º, n.º 2, al. a) e 22º, n.º4, do RJAT

 

Valor do processo:

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.776.619,70, atribuído pela Requerente, sem contestação pela Autoridade Tributária e Aduaneira, quantitativo esse que reflete, com exatidão, o valor do imposto e juros compensatórios objeto destes autos.

 

Custas:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 60.282,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, totalmente a cargo da Requerente.

 

Lisboa, 21 de Julho de 2023

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(Prof. Doutor Victor Calvete)

 

A Árbitro Adjunta

 

 

(Dr.ª Alexandra Mesquita)

 

O Árbitro Relator

 

 

(Dr.º Luís Sequeira)