Sumário:
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Prevendo a lei um modo especial de reacção contra as ilegalidades do acto de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. Fundo de Investimento Imobiliário Fechado A..., doravante designado por “Requerente”, com o número de identificação fiscal..., representado pela sua sociedade gestora B... – SOCIEDADE GESTORA DE FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIOS, S.A, doravante designada abreviadamente como sociedade gestora ou B..., com o numero de identificação fiscal..., com sede na ..., n.º..., ..., em Lisboa, apresentou, em 29.07.2022, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou RJAT), em conjugação com o artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).
2. O Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade da formação de indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa dos actos tributários de liquidação do Imposto Municipal sobre os Imóveis - IMI com os n.os 2017..., de 08.03.2018, 2017..., de 12.05.2018, e 2017..., de 23.08.2018, e de AIMI n.os 2018..., de 29.06.2018, e 2018..., de 11.09.2018, e a subsequente anulação parcial dos mesmos, com a restituição do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, a partir de 30.12.2022.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 01.08.2022.
3.1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 19.09.2022 as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 07.10.2022.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
3.5. Por despacho de 17.11.2022 foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT. Por despacho de 02.06.2023 foi prorrogado o prazo de prolação da decisão arbitral por dois meses.
II. Posição das Partes
4. Com o pedido de pronúncia arbitral manifesta o Requerente a sua inconformidade com os actos de liquidação de IMI e de AIMI, bem como com o indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa que apresentou dos mesmos.
4.1. Sustenta, com tal fundamento, em suma, que:
- Constatou que na determinação dos VPTs dos Terrenos para Construção que serviram de base às Liquidações Contestadas, a AT aplicou uma fórmula de cálculo ilegal na qual foram considerados indevidamente os coeficientes multiplicadores do VPT (i.e., os coeficientes de localização e de afectação) e a majoração constante do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI, todos aplicáveis exclusivamente relativamente a prédios edificados e a prédios da espécie outros, estes últimos por remissão legal intra-sistemática.
- Constatou ainda que a fórmula de cálculo do VPT utilizada pela AT não expurgou, como se impunha nos termos legais, a majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI que é, conforme acima se referiu, aplicável exclusivamente aos prédios edificados.
- A fórmula utilizada pela AT e assumida automaticamente pelo sistema electrónico da AT como passo prévio aos procedimentos de avaliação dos referidos terrenos para construção e as liquidações emitidas com base nos VPTs fixados em tais procedimentos de avaliação padecem de diversos erros grosseiros na aplicação do direito, os quais são exclusivamente imputáveis à AT (o que já foi confirmado relativamente aos Terrenos para Construção em análise e ao IMI relativo ao ano de imposto de 2016 e ao AIMI do ano de imposto de 2020 nas decisões arbitrais proferidas nos processos arbitrais 533/2021-T e 539/2021-T, juntos sob a designação de Doc. 6).
- Dos referidos erros resultou que a Requerente pagou um valor de IMI e de AIMI manifestamente superior (aproximadamente 50% superior) àquele que é devido nos termos legais, o que configura igualmente uma situação de injustiça grave ou notória.
- O Requerente pagou:
(i) IMI em excesso por referência ao ano de imposto de 2017 em valor correspondente a € 51.727,39 (ou pelo menos de € 40.514,78 se se considerar apenas o efeito da desconsideração dos coeficientes multiplicadores do VPT - e.g. coeficientes de afectação, de localização e de qualidade e conforto); e,
(ii) AIMI em excesso por referência ao ano de imposto de 2018 em valor correspondente a € 52.382,17 (ou pelo menos de € 41.027,62 se se considerar apenas o efeito da desconsideração dos coeficientes multiplicadores do VPT - e.g. coeficientes de afectação, de localização e de qualidade e conforto).
- Razão pela qual apresentou dois pedidos de revisão oficiosa das Liquidações em crise que, até à presente data, não receberam qualquer resposta da AT.
- Por não se conformar com o indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa por si formulados e, por conseguinte, com a legalidade dos actos de liquidação de IMI e de AIMI que lhe estão subjacentes, vem suscitar a apreciação da legalidade daquela decisão de indeferimento, tacitamente presumida, e dos próprios actos de liquidação, requerendo a respectiva anulação e a correspondente restituição do imposto indevidamente pago.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta, por impugnação, nos seguintes termos:
- A Autoridade Tributária acolheu o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido de que, na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do CIMI e não outra, não sendo considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afectação, de qualidade e conforto;
- Donde, verifica-se ausência de litígio quanto à forma de cálculo aplicável para determinar o VPT dos terrenos para construção.
- Acresce que não assiste qualquer razão ao Requerente porquanto:
A. Não está legalmente prevista a dedução de pedido de revisão oficiosa dos actos de avaliação do valor patrimonial tributário, pelo que a pretensão do Requerente carece de fundamento legal;
B. O acto que fixou o VPT em vigor no período de tributação dos presentes autos está consolidado na ordem jurídica, tendo a força de caso julgado;
C. Eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT são insusceptíveis de ser impugnados no acto de liquidação que seja praticado com base no mesmo, pelo que o acto de liquidação não enferma de qualquer ilegalidade.
D. E, mesmo que assim não se entendesse, o que por hipótese se admite, o pedido de revisão oficiosa sempre seria intempestivo face aos prazos previstos no art. 78.º, n.º 4, da LGT;
E. Sendo que, a final, sempre se concluiria no sentido de já ter decorrido o prazo de 5 anos em que seria possível a anulação do acto.
- Pelo que se devem manter as liquidações de IMI e de AIMI aqui em causa, bem como indeferimento tácito dos pedidos de revisão oficiosa.
6. Requerente e Requerida apresentaram alegações reiterando o constante dos seus anteriores articulados.
III. Saneamento
7.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
7.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
7.3. O processo não enferma de nulidades.
7.4. É admissível a cumulação de pedidos, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do RJAT.
IV. Matéria de Facto e de Direito
8. Matéria de Facto
8.1. Importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.os 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito. Nesse enquadramento, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
8.1.1. Factos provados
a) Em 31.12.2017 e 01.01.2018, o Requerente era proprietário dos terrenos para construção inscritos na matriz predial urbana da União de Freguesias do ..., ... e ..., concelho do Seixal, distrito de Setúbal sob os artigos matriciais U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-...e U-... (em diante abreviadamente designados de “Terrenos para Construção”) – cf. cadernetas prediais juntas com o pedido arbitral, sob a designação de Doc. 2.
b) O Requerente foi notificado das liquidações de IMI n.os 2017..., 2017 ... e 2017..., relativas ao ano de imposto de 2017, no valor agregado de € 102.728,62 – cf. cópias das liquidações e respectivos comprovativos de pagamento, juntos com o pedido arbitral sob a designação de Doc. 3.
c) O Requerente foi, igualmente, notificado das liquidações de AIMI n.os 2018 ... de 29.06.2018 e 2018 ... de 11.09.2018, por referência ao ano de imposto de 2018, no valor agregado de € 103.279,68 – cf. cópias das liquidações e dos comprovativos de pagamento, juntos com o pedido arbitral sob a designação de Doc. 4.
d) O Requerente procedeu ao pagamento integral das liquidações supra identificadas (cf. os acima referidos Docs. 3 e 4).
e) O Requerente apresentou, em 30.12.2022, dois pedidos de revisão oficiosa de tais actos tributários.
f) Na data de apresentação do PPA (29.07.2022), o Requerente não tinha ainda sido notificado de qualquer decisão nos aludidos procedimentos de revisão oficiosa.
8.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
8.3. Fundamentação da matéria de facto
A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida.
9. Matéria de Direito
9.1. A questão essencial a apreciar no presente pedido arbitral consiste em saber, por um lado, se na avaliação do valor patrimonial dos terrenos para construção se deviam ter em consideração, ou não, os coeficientes de majoração previstos no artigo 39.º do CIMI e, por outro lado, se os eventuais erros naquela determinação podem ser impugnados nos actos de liquidação de IMI e de AIMI que nelas assentam.
9.2. Comecemos por esta última questão, uma vez que, a proceder a tese da Requerida, ficará prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo Requerente.
9.3. A Requerida sustenta que o Requerente pretende a anulação dos actos impugnados com fundamento em vícios, não dos actos de liquidação, mas sim dos actos que fixaram o Valor Patrimonial Tributário (VPT) – os quais considera destacáveis e eles próprios autonomamente atacáveis, não tendo sido imputados aos actos de liquidação aqui impugnados quaisquer vícios específicos da operação de liquidação ou do seu procedimento. Segundo a Requerida, os vícios dos actos que definiram o VPT não são susceptíveis de ser impugnados no acto de liquidação que seja praticado com base no mesmo – o que determina, em última instância, a incompetência do Tribunal para apreciar a legalidade dos actos que procedem à fixação do referido VPT.
9.4. O Requerente, por sua vez, não coloca em causa a natureza de acto destacável que é atribuída aos actos de avaliação de valores patrimoniais, defendendo, todavia, a possibilidade do Requerente sindicar os actos de liquidação de IMI e de AIMI, na sequência de indeferimento tácito da reclamação graciosa.
9.5. Na linha do que defende o Requerente, já foi sustentado, em decisões arbitrais anteriores (vd., por exemplo: Decisão Arbitral de 24.10.2022, no proc. n.º 666/2021-T; Decisão Arbitral de 09.08.2022, no proc. n.º 11/2022-T; Decisão Arbitral de 30.06.2021, no proc. n.º 792/2020-T), que, pese embora se esteja perante um acto destacável, para o qual está prevista a sua impugnação judicial autónoma, nada obstaria a que tal acto pudesse – quando surja como instrumental relativamente a um acto de liquidação – ser também objecto de apreciação em processo dirigido à impugnação da mesma.
9.6. Essa foi, igualmente, a orientação preconizada pelo Acórdão do STA de 29.03.2017 (Proc. 0312/15), ao dizer:
“O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a esclarecer que a susceptibilidade de impugnação autónoma decorre da lesividade do acto e que caso o contribuinte não tenha contra ele reagido no momento em que ele surgiu e se tornou lesivo pode ainda vir a atacar esse mesmo acto quando ele se insira num procedimento de liquidação e venha a determinar um acto posterior de liquidação. Ou seja, quando se faz, como neste caso, uma inscrição oficiosa na matriz de um bem que o contribuinte entende que não é um prédio e não pode, por isso ser inscrito, como tal na matriz, pode imediatamente impugnar essa inscrição por ela ser, em si mesma, susceptível de vir a determinar a liquidação de um ou vários tributos. Mas, seguidamente, se o bem foi avaliado e lhe foi atribuído um valor, pode impugnar esse acto de avaliação e impugnar o tributo que venha a ser liquidado com base nessa avaliação. Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Novembro de 2013, proferido no rec. n.º 1725/13 – «o acto de inscrição oficiosa na matriz de uma determinada realidade física como prédio reconduz-se a acto imediatamente lesivo dado que provoca uma alteração significativa na esfera jurídica da recorrente, daí a admissibilidade de ser formulado pedido de suspensão da sua eficácia (…), o facto de a imediata lesividade de tal acto permitir, querendo, a sua impugnação autónoma, não obsta a que, não o tendo sido, possa ainda ser sindicado em sede de impugnação da liquidação do tributo». Não há, contrariamente ao indicado na sentença recorrida, qualquer obstáculo processual que impeça que na impugnação do acto de liquidação de IMI se questione a questão prévia relativa à qualificação jurídica do facto tributário dado que a errónea qualificação do facto tributário constitui uma ilegalidade expressamente tipificada na lei - cfr. a alínea a) do artigo 99.º do Código de Processo e Procedimento Tributário»”.
9.7. Sucede, contudo, que, muito recentemente, foi proferido, sobre esta matéria, pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, em 23.02.2023, no Proc. 0102/22.2BALSB, Acórdão uniformizador de jurisprudência que decidiu nos seguintes termos:
«[...] a decisão arbitral recorrida, como aliás menciona, seguiu aquela que tem vindo a ser a posição deste Tribunal sobre a matéria, no sentido de não ser possível invocar na impugnação judicial deduzida contra o ato de liquidação, vícios inerentes ao ato de fixação do valor patrimonial do imóvel que lhe serviu de base tributável (cf. entre outros, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13/07/2016, proferido no processo 0173/16, consultável em www.dgsi.pt).
Tese que será por nós também sufragada. Vejamos porquê.
Vigora no contencioso tributário o princípio da impugnação unitária segundo o qual só há lugar a impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que tem assento legal nos artigos 66.º da LGT e 54.º do CPPT. O primeiro dispositivo legal estabelece que os contribuintes e demais interessados podem, no decurso do procedimento, reclamar de quaisquer atos ou omissões da administração tributária (n.º 1), mas a reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 2). O segundo, com a epígrafe “impugnação unitária”, estabelece que “Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
O princípio da impugnação unitária tem, assim, duas exceções, admitindo a lei adjetiva tributária a impugnação imediata dos atos interlocutórios (i) “quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte”, e (ii) quando “exista disposição expressa em sentido diferente”, ou seja, quando exista lei que admita expressamente a impugnação imediata do ato interlocutório.
Ora, a avaliação direta é um dos casos em que o legislador afastou o princípio da impugnação unitária e admitiu a impugnação imediata do ato de avaliação. Estabelece o artigo 86.º, n.º 1 da LGT que a avaliação direta é suscetível nos termos da lei de impugnação contenciosa direta. O que significa que se essa avaliação se inserir num procedimento de liquidação, o ato de avaliação é diretamente impugnável. A impugnabilidade fica, no entanto, dependente do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão (n.º 2 do artigo 86.º da LGT).
No que respeita em particular aos atos de fixação de valores patrimoniais rege o artigo 134.º do CPPT, em consonância com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 86.º da LGT, que admite a sua impugnação com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1), não tendo a impugnação efeito suspensivo, e só podendo ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação (n.º 7).
Particularizando ainda mais, e centrando-nos no caso sub judice, o procedimento de determinação do valor patrimonial tributário (ato de fixação de valores patrimoniais – artigo 37.º a 46.º, e 71.º a 77.º, do Código do IMI) é uma espécie de procedimento de avaliação direta, prevendo o Código do IMI um expediente especial de reação contra as ilegalidades da avaliação.
Assim, quando o sujeito passivo não concorda com o resultado da avaliação (primeira avaliação) pode requerer uma segunda avaliação, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI. E do resultado desta segunda avaliação cabe impugnação judicial, tal como o prevê o artigo 77.º do mesmo Código.
O disposto nestes dois artigos 76.º e 77.º do Código do IMI devem ser interpretados em conjugação com o disposto no referido artigo 134.º do CPPT, que prevê, como atrás referimos, a impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais, e no seu n.º 7 condiciona a impugnabilidade ao esgotamento dos meios graciosos (“7 - A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”), que por sua vez está em consonância com o artigo 86.º, n.º 2, da LGT, que determina, como também já se referiu, que os atos de avaliação direta só são contenciosamente impugnáveis quando estiverem esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão. Esta necessidade de esgotamento dos meios graciosos como condição de impugnação do valor fixado através de avaliação direta, reiterada nas diferentes disposições legais, evidencia que a segunda avaliação não é, para efeitos de impugnação, uma mera faculdade.
Tendo em conta o que fica dito duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável – admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio.
E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.
Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt).
Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial.
De qualquer forma, quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada.
O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10).
Aliás, como refere Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 472) “Neste caso da avaliação directa da matéria tributável, resulta claramente do n.º 4 do art.º 86.º da LGT, embora a contrario, que a invocação das ilegalidades de actos de avaliação direta só pode sem efetuada em impugnação autónoma. Na verdade, tratando este art. 86.º da LGT da impugnação de actos de avaliação directa e de avaliação indirecta da matéria tributável, o facto de se prever no seu n.º 4, apenas para os atos de avaliação indirecta, a possibilidade de invocação das respectivas ilegalidades na impugnação do acto de liquidação, revela com clareza uma intenção legislativa de que só nesses casos de avaliação indireta tal é possível, pois, se assim não fosse, decerto se faria referência cumulativa à generalidade de actos de avaliação da matéria tributável.
Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior.
Em face do que fica dito é de concluir que deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.»
9.8. Decorre do acima exposto que a este Tribunal, acatando o decidido no aludido Acórdão uniformizador de jurisprudência, não resta outra alternativa que não seja a de, decidindo em conformidade com o mesmo, declarar o presente pedido de pronúncia arbitral como meio impróprio para arguir a ilegalidade do VPT dos imóveis a que respeitam as liquidações aqui impugnadas de IMI e AIMI.
9.9. Fica, assim, pelas razões supra mencionadas, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
V. DECISÃO
Em face do acima exposto, acordam os árbitros neste Tribunal Arbitral em:
- Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido.
- Condenar o Requerente nas custas do processo.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 104.109,56 (cento e quatro mil cento e nove euros e cinquenta e seis cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), a pagar pelo Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 26 de Junho de 2023.
Os Árbitros
(Fernando Araújo) (vencido conforme declaração anexa)
(Cristina Aragão Seia)
(Miguel Patrício)
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não obstante a posição que assumi em decisões arbitrais anteriores, tenho de reconhecer e acatar o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo STA no processo n.º 0102/22.2BALSB, também por força do princípio geral contido no art. 8º, 3 do Código Civil.
Dito isto, entendo que a preclusão consagrada no referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência constitui um injustificado enfraquecimento das possibilidades de tutela jurisdicional efectiva face a um erro subsistente, indiscutível, patente e já assumido pela própria AT – e nessa medida pode entender-se que desafia princípios constitucionalmente estabelecidos.
Além disso, a solução a que se chegou no referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência não pode afrontar a lei, nem pode ser lida, sob pena de violação do princípio constitucional da separação de poderes, como acarretando a revogação implícita de uma faculdade legalmente consagrada, que é a da revisão, a título excepcional, de erros dos quais resulte, e subsista, injustiça grave (resultante em tributação manifestamente exagerada e desproporcionada) ou notória (injustiça ostensiva e inequívoca) – faculdade consagrada no art. 78º, 4 e 5 da LGT, pacificamente interpretada, há muito, como podendo também ser exercida por iniciativa do próprio sujeito passivo.
Não tendo essa norma sido revogada, ela aplica-se para lá da preclusão consagrada no referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência – o que é manifesto:
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porque vigora para situações excepcionais,
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porque depende de uma autorização do dirigente máximo do serviço, e, portanto, não reclama qualquer verificação prévia da prática de actos interlocutórios, e
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porque o Acórdão, congruentemente, não versa essa matéria, nem incidentalmente, e não a atinge, directa ou obliquamente – dado que a preclusão veda o recurso à via normal de revisão, estabelecida no nº 1 do art. 78º da LGT, não se estendendo à via excepcional, que tem requisitos próprios.
Insiste-se: o referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência não podia, nem pode, inutilizar o mecanismo consagrado no art. 78º, 4 e 5, mecanismo que não está condicionado pela verificação de qualquer acto interlocutório, até por não depender exclusivamente da iniciativa do sujeito passivo.
Tendo a Requerente, no pedido de revisão oficiosa e no presente processo (arts. 123º segs. do PPA), formulado, a título subsidiário, um pedido de revisão dos actos tributários por situação de injustiça grave ou notória, entendo que essa faculdade subsiste na lei e não está precludida enquanto, nos prazos estabelecidos pelo próprio art. 78º, 4 e 5 da LGT, se verificar factualmente – como considero que se verifica no caso presente – essa injustiça grave e notória.
Assim sendo, estando preenchidos todos os requisitos legais, esse pedido subsidiário devia ter sido considerado procedente.
Fernando Araújo