Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 323/2022-T
Data da decisão: 2023-07-24  IVA  
Valor do pedido: € 247.694,74
Tema: Artigo 78º alínea a), n.º 7 do Código do IVA - Regularizações - Créditos incobráveis.
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SUMÁRIO:

 

1.         No âmbito dos processos de execução, o direito à dedução do imposto respeitante a créditos considerados incobráveis nas condições previstas na alínea a) do nº 7 do artigo 78º do no Código do IVA, depende da inscrição no registo RIE, conforme estabelece actualmente o artigo 717.º do Código de Processo Civil.

2.         A falta de registo no RIE não preclude o direito à regularização do imposto, desde que se mostrem preenchidos os requisitos materiais da incobrabilidade definitiva, mas a questão da sua verificação não pode ser apreciada se a fundamentação dos actos de liquidação se fundar exclusivamente na inexistência de inscrição no Registo Informático de Execuções.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Prof. Doutor Victor Calvete (Árbitro-presidente), Dra. Adelaide Moura e Dra. Maria da Graça Martins (Árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 21-07-2022, acordam no seguinte:

           

            I. RELATÓRIO

 

1.         A..., S.A., titular do Número único de Matrícula na Conservatória do Registo Predial e de Identificação de Pessoa Coletiva ..., com sede na ..., n.º ..., ..., no ..., ...-... LISBOA (doravante designada como “REQUERENTE”), notificada dos actos tributários consubstanciados nos actos de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) relativos ao período de tributação de 2018 e nos actos tributários abaixo melhor identificados, nos termos das quais se apurou imposto a pagar no valor de EUR 217.583,59 acrescido dos respetivos juros compensatórios, num total global de € 247.694,74 vem, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 2º, da alínea a) do nº 3 do artigo 5º e do nº 2 do artigo 10º, todos do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro, bem como dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 março, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação  dos acima mencionados actos de liquidação de IVA , a saber:

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA de janeiro de 2018, no valor de EUR 39.284,70; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 5.846,42 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento              n.º 1);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA de fevereiro de 2018, no  valor de EUR 30.957,66; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 4.445,51, e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no valor de EUR 4.479,54 (que aqui se juntam conjuntamente como Documento n.º 2);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA de março de 2018, no valor de EUR 23.392,43, demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 3.330,05 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento          n.º 3);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA de maio de 2018, no valor de EUR 27.436,13; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 3.722,29 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento  n.º 4);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA de junho de 2018, no valor de EUR 28.352,16; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 3.750,25 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento     n.º 5);

 

• Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA de julho de 2018, no valor de EUR 21.014,54; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 2.708,28 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento n.º 6);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA do mês de agosto de 2018, no valor de EUR 16.708,60; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 2.098,41 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento n.º 7);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA do mês de novembro de  2018, no valor de EUR 2.324,15; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 268,45 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento n.º 8);

 

•   Demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa ao IVA do mês de dezembro de 2018, no valor de EUR 28.826,18; demonstração de acerto de contas n.º 2021..., relativa aos juros correspondentes, no valor de EUR 3.228,53 e respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA n.º 2021..., no mesmo valor (que aqui se juntam conjuntamente como Documento n.º 9).

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

 

2. O pedido de constituição do Tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18.05.2022.           

 

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 02.o6.2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal arbitral colectivo foi constituído em 26.07.2022.

 

6. A AT apresentou a sua resposta a 30.09.2022.

7. Considerando

- que na sua Resposta invoca dados constantes de "certidões juntas pela Requerente, como docs. N.º 11 a 344" que não juntou aos autos e que, portanto, não podem ser comprovados;

- que o Processo Administrativo junto pela AT se limita ao Relatório de Inspecção Tributária (sem, sequer, o CD que, segundo a imagem nele constante, é suposto conter os seus Anexos mas que, pelo que se pode depreender do elenco de tais anexos, não necessariamente essas certidões);

- que a AT está vinculada, pelo disposto no n.º 2 do artigo 17.º do RJAT, invocado no Despacho de 1 de Agosto, a juntar cópia integral do Processo Administrativo "dentro do prazo de apresentação da resposta"; e

- que nos termos do n.º 2 do artigo 19.º do RJAT, "o Tribunal arbitral pode permitir a prática de acto omitido",

o Tribunal fixou um prazo de 10 dias para que tais elementos fossem entregues no CAAD, sob pena de não poderem ser considerados.

7. Nessa sequência, a Requerida apresentou um requerimento solicitando um prazo não inferior a 15 dias para juntar os anexos do RIT, com os seguintes fundamentos:

1. As "certidões juntas pela Requerente, como docs. N.º 11 a 344", estão juntas aos autos, constando da plataforma do CAAD, em entrada datada de 18/05/2022, com o título “Requerimento da Requerente – docs 9 a 348”.

2. Relativamente aos anexos do RIT, efectivamente os mesmos não foram enviados ao ora signatário pelos serviços competentes, tendo a título de PA sido apenas enviado o já junto aos autos.

3. Esses anexos, mal venham a ser disponibilizados ao presente signatário, serão juntos aos autos, sucede porém que tal remessa poderá demorar um pouco mais do que o normal, porquanto, esses anexos constam de ficheiros guardados em suporte físico (cd), que têm de DIREÇÃO DE SERVIÇOS DE CONSULTADORIA JURÍDICA E CONTENCIOSO 2 / 2 ser enviados por correio interno (entre serviços) e, apenas após a recepção do correio na DSCJC, pode o presente signatário (que se encontra em tele-trabalho), deslocar-se à DSCJ, para recolher os ficheiros e, fazê-los chegar à plataforma do CAAD.

4. Requer, a V.as Ex.as que, atento o supra exposto, fixem um prazo não inferior a 15 dias para juntar os anexos do RIT.(…)”

 

8. Por Despacho de 08.11.20222, o Tribunal designou o dia 17.11.2022 para a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT na qual seria inquirida a testemunha indicada pela Requerente.

           

 Depois de marcada a inquirição da testemunha indicada pela Requerente no PPA, veio esta, por requerimento, fazer notar que no dia 2 de Junho 2022 pedira o aditamento de outras duas ao abrigo do disposto no artigo 598.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

- Não obstante o CPPT não prever o arrolamento de testemunhas subsequente à apresentação da petição inicial, o facto de tal ter acontecido antes da constituição do Tribunal (que só veio a ocorrer no dia 26 desse mês de Junho) e o interesse que tais depoimentos podem ter para apurar os factos levam o Tribunal, ao abrigo do princípio da livre condução do processo (artigo 19.º do RJAT), a alargar a inquirição a essas outras testemunhas.

 

9. A 23.11.2022, a Requerente requer novo adiamento da inquirição das testemunhas por estarem em causa impedimentos inadiáveis por partes de ambas as testemunhas para comparecerem na diligência agendada.

 

10. A 14.12.2022, o Tribunal reagenda a inquirição para o dia 10.01.2023, às 10:30, nos termos inicialmente previstos e, tendo essa data ficado supervenientemente indisponível, é fixada nova data para a realização da diligência, nos mesmos termos, para o dia subsequente (11 de Janeiro) às 14:30.

 

11. Face à impossibilidade de comparência das testemunhas arroladas, a Requerente prescindiu em definitivo das testemunhas.

 

Tendo a Requerente manifestado a intenção de apresentar alegações escritas, o Tribunal fixou um prazo de 15 dias para alegações simultâneas.

 

II. SANEAMENTO

 

 

12. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, ambos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Não foram alegadas pelas partes, nem existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.

 

III. DO MÉRITO

 

III. 1. MATÉRIA DE FACTO

 

III. 1.1. Factos provados

 

13. Atentos os documentos juntos pelos Requerentes e os documentos constantes do processo administrativo, para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

 

a.  A Requerente é uma sociedade com sede e direção efectiva em território português, que tem como actividade principal o estabelecimento, gestão e exploração de infraestruturas, prestação de serviços de comunicações eletrónicas e exercício da actividade de televisão, bem como de qualquer actividade complementar ou acessória;

 

b.  Em sede de IVA, a Requerente encontra-se enquadrada no regime normal mensal, em conformidade com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA;

 

c.  No âmbito da sua actividade de prestação de exploração do serviço de telecomunicações complementares móvel terrestre, a Requerente emite mensalmente centenas de milhares de facturas, liquidando e entregando ao Estado o IVA, nos termos legalmente previstos;

 

d.  A Requerente deparou-se com um nível considerável de incumprimento, existindo inúmeras facturas emitidas que nunca chegam a ser liquidadas pelos seus clientes, o que resulta numa quantidade avultada de créditos em mora ou incobráveis;

 

e.  Uma parte desses créditos foram objeto de processo de execução em que a Requerente não recebeu qualquer quantia em dívida, por não terem sido encontrados bens penhoráveis e/ou por decorrerem de facturas emitidas a pessoas coletivas que se encontravam, ou que entretanto foram, dissolvidas.

 

f.  Nos casos de facturas emitidas a sociedades dissolvidas, verificou-se uma das seguintes situações:

•      a sociedade (cliente da Requerente) encontrava-se já dissolvida ou em dissolução aquando da emissão da factura pela Requerente e nunca procedeu ao respectivo pagamento; ou

•      a sociedade (cliente da Requerente) entrou em dissolução ou dissolveu-se em momento posterior à emissão da factura pela Requerente, mas nunca procedeu ao respectivo pagamento.

 

g.  O Agente de Execução notificou a Requerente da extinção dos processos executivos em questão, mediante a emissão certidões datadas de 2017 e 2018 (Documentos 11 a 344 do PPA):

 

-   Das 334 certidões que a Requerente juntou, 17 dizem respeito a processos de execução interpostos após a dissolução das empresas;

 

-   O registo informático a que o n.º 2 do art.º 806.º do anterior CPC começou a aludir em 2010, não foi efectuado.

h.    A Requerente declarou no campo 40 das declarações periódicas de IVA, regularizações a seu favor no valor de EUR 6.071.854,09, as quais foram efectuadas nos termos do artigo 78.º e seguintes do Código do IVA e no âmbito das quais estavam incluídas regularizações, no valor de EUR 659.370,33, de créditos considerados incobráveis relativos aos processos de execução aqui visados.

 

i.   A Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção de âmbito geral, com incidência temporal no período de tributação de 2018 e com o objectivo de verificar o cumprimento das obrigações tributárias relativas ao aludido exercício.

 

j.   Na sequência do referido procedimento de inspecção, a Requerente foi notificada do Projecto de RIT emitido pela AT, no âmbito do qual foi proposta uma correcção em sede de IVA  no valor de EUR 217.583,59, relativa ao IVA de créditos anteriores a 2013 que foi deduzido nos termos da alínea a) do n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA;

 

k.  Na sequência da acção de inspecção, a Requerida elaborou o Relatório de Inspecção, junto aos autos como documento 347 no PPA, em que refere o seguinte:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

l.          Todas as regularizações respeitam a créditos vencidos em anos anteriores a 2013 e foram solicitadas ao abrigo do regime do artigo 78.º do Código do IVA (que, nos termos do artigo 198.º da Lei n.º 66-B/2012-31/12, se aplica “apenas aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013”).

 

III.1.2. Factos não provados

Não ficaram por provar outros factos de que dependesse a decisão da causa.

 

III.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Porque não houve recurso a outros meios de prova, a fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelo Requerente e nos que constam do processo administrativo.

 

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

III.2.1. Delimitação do objecto do processo 

 

A questão de mérito que cumpre solucionar é a de saber se, como sustenta a Requerente, o incumprimento do requisito previsto no no n.º 2 do artigo 806.º do anterior (equivalente ao do n.º 2 do art.º 717.º do actual CPC), isto é, a falta de registo dos processos de execução no RIE (Registo Informático da Execução) preclude o direito de proceder às regularizações do IVA liquidado e entregue relativamente a facturas não pagas pelos seus Clientes, ou se pelo contrário, como defende a Requerida, para os créditos incobráveis anteriores a 1 de Janeiro de 2013 (uma vez que para os subsequentes a tal data rege o artigo 78.º-A do mesmo diploma), apenas nas situações tipificadas no  n.º 7 do artigo 78.º do Código do IVA é aceite a dedução do IVA.

 

            Em concreto, o Tribunal é chamado a pronunciar-se sobre o pedido de declaração de ilegalidade dos actos tributários consubstanciados nos actos de liquidação de IVA e juros relativos ao período de 2018 no montante total de € 247.694,74 e nos actos tributários que lhes estão subjacentes por padecerem de :

 

(i) vício de violação da lei nos termos do artigo 163º do Código  do Procedimento Administrativo, o que invoca nos termos da alínea a) do artigo 99º do CPPT;

(ii) erro nos pressupostos de facto e de direito sobre os quais assentam;

 (iii) ilegalidade por violação do disposto nos artigos 73.º e 90.º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (“Diretiva IVA”),

(iv) ilegalidade por violação dos princípios comunitários da equivalência, da efectividade e da proporcionalidade, e

(v) ilegalidade por enriquecimento sem causa do Estado e violação do princípio da neutralidade, aplicável em sede de IVA.

 

Vejamos, antes de mais, o enquadramento jurídico-tributário aplicável aos créditos visados nos autos.

 

III.2.2. Regime aplicável aos créditos vencidos até 31 de dezembro de 2012: o artigo 78.º do Código do IVA

 

16. Conforme dispõe a norma do artigo 198.º, n.º 6, da Lei do Orçamento do Estado OE2013 “o disposto nos n.ºs 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se apenas aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013”.

 

- No caso vertente, conforme resulta dos documentos juntos aos autos (Cf. Docs. 11 a 347 do PPA), os créditos venceram-se antes de 1 de Janeiro de 2013, pelo que para o exercício do direito à dedução por incobrabilidade lhes é aplicável o regime transitório previsto no artigo 78.º do Código do IVA (e não o, alternativo, regime do artigo 78.º-A do mesmo diploma).

 

- No que aqui interessa, o artigo 78º do Código do IVA estabelece o seguinte:

 

“(…) 7 - Os sujeitos passivos podem deduzir ainda o imposto respeitante a créditos considerados incobráveis:

a) Em processo de execução, após o registo a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 806.º do Código do Processo Civil[1];

b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código[2]

c)  Em processo especial de revitalização, após homologação do plano de recuperação pelo juiz, previsto no artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[3]

d) Nos termos previstos no Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), após celebração do acordo previsto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto[4]

8. Os sujeitos passivos podem igualmente deduzir o imposto respeitante a outros créditos desde que se verifique qualquer das seguintes condições:

a) O valor do crédito não seja superior a (euro) 750, IVA incluído, a mora do pagamento se prolongue para além de seis meses e o devedor seja particular ou sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não confiram direito a dedução;

b) Os créditos sejam superiores a (euro) 750 e inferiores a (euro) 8000, IVA incluído, quando o devedor, sendo um particular ou um sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não conferem o direito à dedução, conste no registo informático de execuções como executado contra quem foi movido processo de execução anterior entretanto suspenso ou extinto por não terem sido encontrados bens penhoráveis[5]

c) Os créditos sejam superiores a (euro) 750 e inferiores a (euro) 8000, IVA incluído, tenha havido aposição de fórmula executória em processo de injunção ou reconhecimento em acção de condenação e o devedor seja particular ou sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não confiram direito a dedução;

d) Os créditos sejam inferiores a (euro) 6000, IVA incluído, deles sendo devedor sujeito passivo com direito à dedução e tenham sido reconhecidos em acção de condenação ou reclamados em processo de execução e o devedor tenha sido citado editalmente.

e) Os créditos sejam superiores a (euro) 750 e inferiores a (euro) 8000, IVA incluído, quando o devedor, sendo um particular ou um sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não conferem direito a dedução, conste da lista de acesso público de execuções extintas com pagamento parcial ou por não terem sido encontrados bens penhoráveis no momento da dedução[6].  

 (…)”

            Resulta, portanto, da leitura dos ns. 7 e 8 do dito normativo que os sujeitos passivos têm diversas possibilidades de deduzir o IVA de créditos não recebidos, não tendo de esperar pelo momento da comprovação da incobrabilidade do crédito em processo de execução, de insolvência, de revitalização ou outro. Essa disciplina, no seu conjunto, não torna difícil a dedução de IVA não cobrado, nem fixa para tal condições particularmente difíceis de cumprir.

 

- A alínea c) do n. º 2 do artigo 806.º do anterior Código do Processo Civil, epigrafado “Registo informático de execuções” (materialmente correspondente à alínea b) do mesmo número do artigo 717º do actual) determinava que o registo informático de execuções devia mencionar, "A extinção da execução por não terem sido encontrados bens penhoráveis, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 832.º e no n.º 6 do artigo 833.º-B.”. 

 

- Assim, de acordo com a norma transitória do artigo 78º, n.º 7, alínea a) do Código do IVA, a dedução do imposto respeitante a créditos anteriores a 2013 considerados incobráveis em processos de execução é aceite “após o registo a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 806.º do Código do Processo Civil” (ou, o que é substancialmente o mesmo no CPC que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2013, “após o registo a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 717.º do Código do Processo Civil”) desde que tenha havido prova do preenchimento do requisito formal.

           

            - Como se viu, a exigência de registo no RIE não foi cumprida, sendo essa a única fundamentação dos actos tributários em apreciação.

           

            Sucede que esta questão já foi anteriormente apreciada em tribunais arbitrais (vg Decisões proferidas nos processos ns. 78/2021-T, 4/2018-T e 317/2016-T, e sempre decidida no sentido de que a exigência de levar a registo a extinção das respectivas execuções é meramente ad probationem. Na decisão mencionada em último lugar escreveu-se, designadamente, o seguinte:

            “Antes de prosseguir, refira-se que se subscreve o entendimento plasmado no RIT

(…), e não contrariado subsequentemente pela Requerida, segundo o qual o requisito material pressuposto pela al. a) do n.º 7 do artigo 78.º referido, é o de que o processo de execução seja extinto por falta de bens penhoráveis, correspondendo a referência ao “registo a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 806.º do Código do Processo Civil”, a uma forma de comprovação da extinção do processo de execução, porventura tida pelo legislador como a mais simples de obter e confirmar, mas sem prejuízo de outras forma de o demonstrar, sendo que, consabidamente, os registos são essencialmente formas de publicitação de factos e actos jurídicos.”

           

            - Refere ainda a Requerente que “não foi possível ao Agente de Execução promover a inscrição no Registo Informático de Execuções (“RIE”) quanto aos casos das sociedades executadas que se encontravam dissolvidas à data da extinção dos respetivos processos executivos e juntos como Documentos n.º 11 a 344(5) .

            Essa mesma impossibilidade técnica foi referida nas decisões arbitrais anteriormente referidas.

           

- Afirma a Requerente:

- que se encontra “documentalmente comprovado através das certidões emitidas pelos Agentes de Execução, que os créditos em causa foram reclamados em sede executiva”;

- “que a Requerente não recebeu qualquer importância para pagamento total ou parcial da quantia em dívida por não terem sido encontrados bens penhoráveis e/ou por decorrerem de facturas emitidas a pessoas coletivas que se encontravam dissolvidas;”,

- que se  “mostra comprovada a extinção das sociedades executadas, por força da dissolução e encerramento da liquidação e cancelamento da matrícula em procedimento administrativo de dissolução” e que “é de presumir a inexistência de bens susceptíveis de penhora pertencentes à executada;”;

- que “uma vez que se mostrou inútil a prossecução da execução, face à inexistência de bens e à dissolução da sociedade executada, os processos executivos se extinguiram por inutilidade superveniente da lide.”.

Salvo melhor entendimento, a averiguação da realidade desses factos, que se pode afigurar plausível atentas as certidões juntas aos autos, configuraria fundamentação a posteriori: a razão de ser – o único fundamento – das liquidações efectuadas no RIT não foi qualquer dúvida que a AT tivesse em relação à veracidade do certificado pelo agente de execução; foi apenas a de que faltava um requisito formal. Uma vez que essa não é razão suficiente para fundamentar tais liquidações, tem de se considerar que estas não podem subsistir. Como se escreveu na decisão do proc. 4/2018-T:

“está-se perante um requisito formal, que é a efectivação do registo da extinção por inexistência de bens penhoráveis, cuja satisfação nem sequer está na disponibilidade do sujeito passivo, pois o registo tem de ser efectuado pelo agente de execução e depende da operacionalidade de um sistema informático que, pelo que se vê, nos autos, nem sempre está assegurada. Como bem defende a Requerente, à face daquela jurisprudência do TJUE, não se pode aceitar que «o contribuinte possa ser prejudicado pelo facto do agente de execução não dar cumprimento às obrigações legais, e, mais gritante ainda, em determinados casos, ainda que o agente de execução o pretenda fazer, o sistema informático não o permite concretizar por problemas técnicos».

E, sendo incompatível com o direito da União Europeia, aquela exigência formal terá de deixar de ser aplicada, por força do n.º 4 do artigo 8.º da CRP, que estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Assim, não constitui fundamento suficiente para concluir pela ilegalidade das regularizações a constatação referida pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Relatório da Inspecção Tributária de que «em nenhum dos processos analisados constava, prova do registo da extinção da execução por não terem sido encontrados bens penhoráveis (al. b) do n.º 2 do artigo 717.º do Código do Processo Civil), requisito necessário para a sua aceitabilidade», pois, à face daquela jurisprudência do TJUE baseada no princípio da neutralidade do IVA, este requisito formal não pode ser considerado necessário para a aceitabilidade das regularizações, só sendo necessária a verificação dos requisitos materiais, designadamente a prova da incobrabilidade dos créditos, que não foi apreciada pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Relatório da Inspecção Tributária.

Tem, assim, de concluir-se que a posição adoptada pela Autoridade Tributária no Relatório da Inspecção Tributária, que está subjacente às liquidações impugnadas, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, ao entender que era requisito necessário das regularizações o registo da extinção das execuções.”

           

            Concluindo-se desta forma, é dispensável a apreciação dos vários argumentos jurídicos mobilizados pela Requerente.

 

IV.   PEDIDO DE REENVIO PREJUDICIAL

 

No seu pedido inicial, a Requerente sugeriu a possibilidade de reenvio prejudicial, sugestão essa que foi corroborada pela Requerida, na sua Resposta. No entanto, tem-se por clara a leitura das normas de direito comunitário aplicáveis ao caso, não se justificando qualquer reenvio. Acresce que, conforme o Tribunal de Justiça tem afirmado claramente, é aos tribunais nacionais que incumbe verificar se a legislação nacional abrange todas as situações em que, de acordo com o n.° 1 do artigo 90.º da Directiva, o sujeito passivo não receba, depois de efectuada uma transacção, uma parte ou a totalidade da contrapartida (processo C 337/13), bem como se as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitam às que permitem justificar que, depois de efectuada a transacção, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação (processo C 146/19). Assim, e face ao exposto, não se procede ao reenvio prejudicial.

 

 

V.  JUROS INDEMNIZATÓRIOS           

 

 O direito a juros indemnizatórios deriva do pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido por erro imputável aos serviços, de acordo com o disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, e depende, naturalmente, não apenas do ganho de causa pela Requerente mas também da existência de um “erro imputável aos serviços”. Ora, na medida em que, embora mal à face de todo o Direito aplicável, o RIT se baseou na aplicação estrita da lei, como estava obrigado, o erro é antes do legislador, (valendo para esses casos o disposto na alínea d) do n.º 3 desse artigo, aditado pela Lei n.º 9/2019, de 1/2: “Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”).

 

Nestes termos, improcede o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, por falta de preenchimento do pressuposto contido no artigo 43.º, n.º 1, da LGT  em relação ao erro imputável aos serviços.

 

 

            VI.  DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular as liquidações elencadas no ponto 1 do Relatório;

b) Não proceder ao reenvio prejudicial;

c) Condenar a Requerida nas custas, nos termos infra.

 

 

VII.  VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 247.694,74, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VIII. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €  4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa a 24 de Julho de 2023

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com versos em branco. A redacção do presente acórdão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

 

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(Victor Calvete)

 

 

A Árbitro Adjunta

 

 

(Adelaide Moura)

 

 

A Árbitro Adjunta

 

(Maria da Graça Martins)



[1] Redacção da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril. A anterior vinha do Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20 de junho:

a) Em processo de  execução após o  registo da suspensão de instância, a que se refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 806.º do Código do Processo Civil;

A redacção dada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro – que é utilizada no PPA por ser materialmente equivalente (face à substituição do Código de Processo Civil, por efeito da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) – é a seguinte:

“a) Em processo de execução, após o registo a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 717.º do Código do Processo Civil”.

 

[2]  Redação dada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro.

 

[3] Redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

 

 

[4] Aditada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.

 

[5] Redação da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.

[6] Aditada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro.