SUMÁRIO
I – Os atos tributários, carecem de uma fundamentação, ainda que sucinta, que permita aos sujeitos passivos tomarem conhecimento das razões, de facto e de direito, que motivaram a produção desses atos, e que permitam o exercício do seu direito de defesa.
II – A falta de fundamentação de um ato de liquidação de IRS, tem como consequência a anulação desse ato.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro (Presidente), Dr. Jorge Belchior de Campos Laires e Dr. João Marques Pinto (Árbitros-adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 3 de fevereiro de 2023, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., NIF ... e B..., NIF ..., casados entre si, e doravante identificados apenas por “Requerentes”, vieram em 24.11.2022, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante identificado apenas pelas inicias RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral para impugnar o despacho proferido pelo Chefe de Divisão de Direção de Finanças de Lisboa de 17 de outubro de 2022, que se referia à Liquidação Oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), com o n.º 2020 ..., relativo ao exercício de 2019, que fixou um imposto a pagar de € 168.802,93 (cento e sessenta e oito mil oitocentos e dois euros e noventa e três cêntimos), valor este reduzido para € 112.924,10, por via de compensação, com o n.º 2020 ... (cento e doze mil novecentos e vinte e quatro euros e dez cêntimos)
Os Requerentes solicitaram ao Tribunal Arbitral que:
(i) Declare anulável, por falta de fundamentação o ato de Liquidação Oficiosa com o n.º 2020 ... e, em consequência, declare igualmente a anulabilidade de todos os atos posteriormente processados;
(ii) Declare, ao abrigo do artigo 161.º n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), a nulidade do ato de Liquidação Oficiosa indicado no item (i) do parágrafo anterior e, em consequência, declare igualmente a nulidade de todos os atos posteriormente processados;
E, ainda
(iii) Declare a anulabilidade do Despacho proferido em 17 de outubro de 2022 e todo o que for processado posteriormente, com base na violação do dever de fundamentação estabelecido no artigo 152.º do CPA;
(iv) Declare a nulidade do Despacho proferido em 17 de outubro de 2022, uma vez que todo o anteriormente processado se encontra ferido de nulidade;
(v) Declare ilegal, por violação do disposto no artigo 51.º do Código do IRS (CIRS), o Despacho proferido em 17 de outubro de 2022;
(vi) Ordene à Autoridade Tributária (AT) que emita uma nova liquidação que tenha em consideração as despesas e encargos, apresentados neste Requerimento, de acordo com o artigo 51.º do Código do IRS (CIRS);
(vii) Condene a AT a devolver o diferencial de IRS pago a mais pelos Requerentes, acrescido dos correspondentes juros compensatórios e indemnizatórios devidos, e ainda ao pagamento das custas e procuradoria.
Foi ainda requerida a realização de prova testemunhal, tendo os Requerentes, arrolado, inicialmente três testemunhas.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante igualmente identificada apenas por AT ou Requerida).
Afigura-se-nos que decorre com meridiana clareza do pedido de pronúncia arbitral, apesar de não constar expressamente do Pedido, que o Requerente pretende, também, a declaração de ilegalidade e a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa oportuna e previamente apresentada (ato imediato).
Os Requerentes optaram por não designar os Árbitros.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado aos Requerentes e à Requerida em 28 de novembro de 2022.
Em 16 de janeiro de 2023, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 7 do Artigo 11º do RJAT.
Desta forma, em face do disposto no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, tendo decorrido o prazo estabelecido no n.º 11 do mesmo artigo 11.º, sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal Tributário Coletivo ficou constituído em 3 de fevereiro de 2023, tendo, no mesmo dia, sido notificada a AT, nos termos do artigo 17.º do RJAT, para apresentar a sua contestação e juntar o processo administrativo ou ainda, querendo, requerer prova adicional.
A AT apresentou a sua resposta em 9 de fevereiro de 2023, pedindo em concreto:
-
A improcedência do pedido de pronuncia arbitral formulado pelos Requerentes, com a correspondente absolvição da Requerida de todos os pedidos apresentados pelos Requerentes;
Também a Requerida solicitou a inquirição de uma testemunha.
Por despacho de 17 de março de 2023, foi decidido fixar, para o dia 13.04.2023, a data da reunião prevista no artigo 18º do RJAT.
No dia 20.03.2023, a AT, enquanto Requerida, juntou aos autos o Processo Administrativo que tinha protestado juntar na contestação que apresentou.
No mesmo dia, o Tribunal proferiu despacho a notificar as Partes para, no prazo de 5 dias, indicarem sobre que factos pretendiam que as testemunhas arroladas prestassem o seu depoimento.
Os Requerentes, por requerimento apresentado em 22.03.3023, e, em resposta a este despacho do Tribunal, vieram indicar os factos sobre os quais as testemunhas por eles apresentadas iriam depôr, solicitando ainda, nesse mesmo requerimento, que se notificasse a AT para indicar qual a morada fiscal da testemunha C..., a fim de que a mesma pudesse ser notificada, pedido este que foi indeferido pelo Tribunal por despacho datado de 23.03.2023, tendo o Tribunal nesse mesmo dia notificado os Requerentes para serem eles a identificar essa testemunha, ou, não sendo tal possível, e querendo, alterassem o seu rol de testemunhas.
Por requerimento apresentado no dia 11.04.2023, a AT veio solicitar a alteração do seu rol de testemunhas, pedido este que veio a ser indeferido pelo Tribunal por ser considerado extemporâneo.
No dia 13.04.2023, os Requerentes solicitaram a substituição da testemunha D... pela testemunha E..., na medida em que o primeiro se teve que ausentar, inesperadamente e por um motivo considerado urgente, para os Açores.
Também no mesmo dia, a Requerida veio informar o Tribunal que a testemunha F... tinha sido erradamente indicada, pelo que a mesma deveria ser substituída pela testemunha G... .
Posteriormente, ainda no mesmo dia, a Requerida veio prescindir da inquirição da testemunha que tinha apresentado.
No dia 13.04.2023 teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido elaborada a respetiva ata que foi assinada pela Árbitro Presidente e pelo Secretário, Senhor Dr. António Fontoura.
No decorrer da reunião foram ouvidas as testemunhas arroladas pelos Requerentes, a Sra. Dona E... e o Sr. H..., tendo ainda sido ouvido, em depoimento de parte, o Sr. A... .
No decorrer desta audiência, as partes foram notificadas para, de modo simultâneo e de forma facultativa, apresentarem, no prazo de 20 dias, as suas alegações.
Foram também as partes notificadas para apresentar os documentos em versão “word”.
Foi ainda decidido que a decisão final seria proferida até ao dia 30 de junho.
Em 04.05.2023, os Requerentes apresentaram as suas alegações.
A Requerida não apresentou alegações.
Por fim, no dia 22.06.2023, as partes foram novamente notificadas para, no prazo de 5 dias, apresentarem as diversas peças processuais, especialmente as alegações, em formato “word”.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria nº 112/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
2. Factos considerados provados
1º - Os Requerentes são pessoas singulares, residentes em Portugal, e, como tal, sujeitos passivos de IRS.
2º - No dia 30.06.2020, os Requerentes entregaram, por via eletrônica, a sua declaração de IRS relativa ao ano de 2019 (Declaração número ...-2019-...-...).
3º - No anexo G dessa declaração, os Requerentes declararam um valor global de aquisição de imóveis de € 1.152.402,24 e um valor de encargos referentes a esses mesmos bens de € 510.174,46.
4º - Em 02.09.2020, os Requerentes foram notificados pela AT de que a declaração inicialmente submetida apresentava divergências, e, em consequência, propondo uma correção dos encargos suportados com os bens imóveis, de € 510.174,46 para € 190.127,11.
5º - Em resultado desta notificação, em 22.09.2020, os Requerentes submeteram uma nova declaração de IRS (Declaração número ...-2019-... -...), na qual, porém, relativamente ao anexo G, e por lapso, nada foi alterado.
6º - A entrega desta declaração de substituição implicou a conclusão imediata do primeiro processo de divergências e despoletou um novo processo da mesma natureza e para verificação dos mesmos elementos.
7º - Neste novo procedimento resultou que o valor de despesas e encargos aceites pela AT foi reduzido de € 190.127,11 para € 162.528,87, tendo os Requerentes sido notificados desta decisão em 02.11.2020.
8º - Em conformidade com esta decisão, a AT emitiu uma liquidação oficiosa de IRS (com o n.º 2020...) com o valor de imposto de € 168.802,93, o qual, tendo em atenção a compensação a efetuar, apurou um montante final a pagar de € 112.924,10.
9º - Em 19.03.2021, os Requerentes efetuaram o pagamento do valor de imposto constante desta liquidação, acrescido de juros moratórios e custas, por ter sido paga já no âmbito do processo de execução fiscal instaurado pela AT.
10º - Em 25 de março de 2021, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa da liquidação de IRS.
11º - Por despacho datado de 17 de outubro de 2022, os serviços da Requerida responderam a esta reclamação graciosa, indeferindo o pedido dos Requerentes e mantendo a decisão de apenas aceitar despesas e encargos no valor de € 162.528,87.
12º - Não concordando com esta decisão, os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral, solicitando a anulação da liquidação oficiosa de IRS identificada no ponto 8.º supra.
3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelos Requerentes não contestadas pela parte contrária, no PA, no depoimento de parte e na prova testemunhal.
4. Matéria de Direito
4.1. Síntese das posições das Partes
4.1.1. Dos fundamentos suscitados pelos Requerentes
1º - Os Requerentes impugnaram, em primeira linha, a liquidação de IRS em crise, por terem considerado uma total e completa ausência de fundamentação do ato de liquidação oficiosa de IRS, em particular a não fundamentação da não aceitação de uma parte significativa das despesas e encargos apresentados.
Isto, apesar de todos os esforços desenvolvidos para se apurarem essas razões, inclusive promovendo uma reunião presencial com a AT.
Este comportamento da AT não permitiu aos Requerentes (tal como não teria permitido a qualquer outro destinatário médio em idêntica posição), tomarem as medidas necessárias para prestarem os devidos esclarecimentos à AT e, para além disso, se fosse esse o caso, corrigirem os erros que pudessem existir.
Entendem os Requerentes que, com este comportamento omissivo e inexplicável da AT, foram violados os artigos 151.º, 152.º e 153.º do Código de Processo Administrativo (CPA), que impõem, neste caso, à AT, o dever de fundamentar os atos tributários, de forma a permitir aos sujeitos passivos exercerem, de uma forma eficiente e eficaz, os seus direitos de defesa e a possibilidade de contestar as decisões da AT.
Neste sentido, os Requerentes entendem que deve ser anulado o ato de liquidação oficiosa, bem como todos os atos processados posteriormente.
2º - Entenderam também os Requerentes que o ato de liquidação oficiosa está ferido do vicio de nulidade, uma vez que viola a previsão do artigo 161.º n.º 2 alínea c) do CPA, por se traduzir num ato verdadeiramente ininteligível, na medida em que não permite apreender quais as despesas que foram aceites e as que, ao contrário, não foram, não tornando possível ainda determinar a redução do valor de despesas aceites de € 190.127,11 para € 161.582,87.
O ato está ainda ferido de nulidade, por, consideram os Requerentes, a AT ter desconsiderado a declaração de substituição por eles entregue, contrariando, dessa forma, a citada alínea c) do n.º 2 do artigo 162.º do CPA.
3º - Finalmente, o terceiro argumento deduzido pelos Requerentes no seu pedido foi a não admissibilidade da totalidade das despesas e encargos - basicamente constituídas por despesas de remodelação, despesas com projetos de arquitetura e despesa com indemnização a um inquilino - que incluíram na sua declaração de IRS, o que contraria, de forma inequívoca, o âmbito de aplicação do artigo 51.º do Código do IRS, sendo que, da desconsideração de grande parte destas despesas, resulta o apuramento de uma mais-valia muito superior àquela que foi registada no património dos Requerentes.
Ao não considerar estes encargos efetivamente suportados pelos Requerentes, a AT está, com isso, a violar o princípio da capacidade tributária e da tributação pelo rendimento real e efetivo.
Concluem, assim, os Requerentes que, existindo um nexo de causalidade entre as despesas documentadas e apresentadas e a mais-valia realizada com a alienação, ao valor de aquisição do imóvel devem acrescer essas mesmas despesas, o que a liquidação oficiosa emitida pela AT “não logrou cumprir” (redação dada no requerimento).
4.2. Síntese da posição da AT
1º - Na Resposta, a Requerida remete para a fundamentação constante do Processo Administrativo que juntou aos autos, não deixando, porém, de salientar o seguinte:
A documentação apresentada inicialmente pelos Requerentes não foi considerada prova bastante, e os Requerentes no âmbito do exercício do seu direito de audição prévia não juntaram documentação complementar que sustentasse a sua posição.
2º - Tendo em consideração o pedido formulado pelos Requerentes, é lícito concluir que os Requerentes entenderam a liquidação oficiosa efetuada pelos Serviços da AT.
3º - Tendo igualmente em consideração o articulado pelas partes e a prova documental produzida, considera a AT que houve uma indevida aplicação do previsto no artigo 51.º n.º 1 a) do CIRS.
4º - Ou seja, no entendimento da Requerida, não foi feita prova cabal e efetiva dos custos das obras de beneficiação/reabilitação realizadas no imóvel alienado, não tendo, dessa forma, os Requerentes cumprido com o ónus da prova que sobre eles recai (cfr. artigo 74.º n.º 1 da LGT)
5º - Não devendo, pois, haver lugar à anulação da liquidação em crise, não assiste aos Requerentes, qualquer direito a juros indemnizatórios.
4.2.Análise das questões suscitadas
As questões a decidir nos presentes autos são de facto e direito, sendo, no entendimento do Tribunal, a questão inicial sobre a qual se deverá pronunciar, a seguinte:
4.2.1. Da alegada falta de fundamentação dos atos de liquidação em crise:
De entre os diversos argumentos invocados pelos Requerentes, considera o Tribunal que deve apreciar, primeiramente, e até pela relevância que lhe foi dada pelos próprios Requerentes, a alegação feita de total falta de fundamentação do ato de liquidação e da impossibilidade e dificuldade daí resultante para o exercício do direito de audição prévia e, inclusive, de fundamentar a reclamação graciosa e, mesmo, o pedido apresentado perante este Tribunal.
No seu pedido de pronúncia arbitral, invocam os Requerentes que os fundamentos de facto e de direito referentes à liquidação objeto da presente impugnação, nunca foram dados a conhecer, anteriormente à produção do ato de liquidação, pelo credor tributário, sendo que apenas tomaram conhecimento desses fundamentos na resposta dada à referida reclamação graciosa e, mesmo aqui, de forma muito limitada, incompleta e insuficiente.
Como é sabido, o ordenamento jurídico português impõe, em diversas sedes e em normas distintas, a obrigatoriedade de que os atos produzidos pela Administração Pública sejam objeto de uma adequada fundamentação, que permita aos seus destinatários tomarem conhecimento das razões que levaram à sua produção.
Assim, a este propósito o artigo 268.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), veio estabelecer o seguinte (sublinhado nosso):
“3. Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.”
Na esteira deste preceito constitucional, o legislador do CPA, mais concretamente na redação dada ao seu artigo 153.º (já acima referido), sob o título “Requisitos da Fundamentação”, veio consagrar que (sublinhado nosso):
“1 - A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respectivo ato.
2 - Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato.”
Por seu lado, e em linha com as disposições anteriormente citadas e transcritas, a própria LGT, veio impor este princípio, no seu artigo 77.º, com o título “Fundamentação e Eficácia” onde estabeleceu que (sublinhado nosso):
“1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
2 - A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”
Destas disposições resulta claro que os atos administrativos e, em concreto, os atos tributários, carecem de uma fundamentação, ainda que sucinta, que permita aos sujeitos passivos (quando se trata de atos de natureza tributária), conhecerem as razões, de facto e de direito, que motivaram a produção desses atos, de forma a permitirem o exercício do seu direito de defesa de uma forma efetiva e, acima de tudo, eficiente.
Também a Jurisprudência tem considerado o dever de fundamentação dos atos tributários, uma obrigação indispensável e inultrapassável da entidade responsável pela sua produção e emissão, ou seja, na presente situação, da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Atente-se, a este propósito, ao entendimento vertido no Acórdão do STA, proferido no Proc. 0246/09, em 06.17.2009 (sublinhado nosso):
“I - A dignidade constitucional do direito à fundamentação (artigo 268.º n.º 3 da Constituição da República) vale de igual modo para os actos tributários e procura acautelar quer a racionalidade da decisão tributária, quer as condições materiais para o adequado exercício dos direitos de defesa por parte dos contribuintes;
II - Nos casos em que a lei não imponha especiais requisitos de fundamentação, o cumprimento do dever de fundamentar por parte da Administração tributária afere-se em face do disposto nos números 1 e 2 do artigo 77.º da LGT e atendendo aos fins visados pelo dever de fundamentação;
III - Nos actos de liquidação de IRS, atenta sua natureza de “processo de massa”, o dever de fundamentação é cumprido pela Administração fiscal de forma “padronizada” e “informatizada”, mas sem que possa deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT ou de pôr em causa as finalidades do direito à fundamentação;”
No mesmo sentido, o STA, na decisão proferida a 03.12.2014, no Proc. 1674/13, considerou que a Administração Tributária “tem o dever de fundamentar os actos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77º da LGT”(...) e o acto só estará “suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta ultima circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.” (sublinhado nosso).
Da legislação acima indicada, bem como da jurisprudência acima reproduzida, resulta que a Administração Tributária tem a obrigação de fundamentar os seus atos, nomeadamente, os atos de liquidação, de uma forma clara e percetível - mesmo que sinteticamente ou por remissão - e de molde que o sujeito passivo, colocado na posição de um destinatário normal, possa tomar conhecimento das razões de facto e de direito que estão na génese do caminho prosseguido pela Administração.
Para além disso, esse dever de fundamentação deve anteceder, ser anterior, ser prévio, ao ato de liquidação do imposto, não sendo, por isso, de admitir qualquer tipo de fundamentação que venha a ser feita após (“a posteriori”) essa liquidação.
Ora, no caso em apreço, podemos verificar, especialmente da análise efetuada ao Processo Administrativo e da documentação junta aos autos pelos Requerentes, que o ato de liquidação em crise não foi antecedido de qualquer ato prévio de fundamentação, por muito reduzida ou diminuta que essa fundamentação pudesse ter sido, mas que, ainda assim, permitisse aos Requerentes aperceberem-se por que razão não foram aceites, como custos e encargos fiscalmente dedutíveis, as despesas por eles incluídas na sua declaração de IRS.
Na realidade, estamos perante um caso evidente, não de fundamentação insuficiente ou pouco clara, mas sim, de uma verdadeira falta de fundamentação.
Efetivamente, entre o ato de entrega da declaração Modelo 3 do IRS e a emissão do ato de liquidação e respetiva notificação aos Requerentes, a AT não produziu, nas respostas e notificações enviadas, qualquer informação/comunicação que possibilitasse aos Requerentes determinar o fundamento ou fundamentos da liquidação em crise.
Ou, por outras palavras, a AT não deu a conhecer, antes da produção do ato de liquidação, os motivos que determinaram este seu procedimento e as razões em que fundou a sua atuação, não podendo colher o argumento de que essas razões foram informadas aos Requerentes numa fase posterior do processo, permitindo-lhes contestá-las no pedido formulado perante este Tribunal.
A este propósito, pela sua clareza, atente-se ao Acórdão proferido pelo CAAD no âmbito do Proc. 587/2021-T:
“Por outro lado, o direito à fundamentação dos actos administrativos e tributários reclama que o particular apenas tenha de defender-se dos pressupostos inicialmente enunciados, e dos quais se extraíram os efeitos lesivos, não sendo de admitir qualquer fundamentação a posteriori, nem o aproveitamento do acto quando isso implique a valoração de razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.”
Assim decidiu o Supremo Tribunal Administrativo em Acórdãos proferidos em 19.04.2005 no Proc. 01306, em 11.12.2019 no Proc. 0859/04.2 BEPRT e em 17.02.2021 no Proc. 02111/14.6 BEPRT, entre muitos outros.”
Em face de todo o exposto, não pode o Tribunal deixar de concluir pela procedência da causa de pedir da falta de fundamentação do ato de liquidação em crise e, consequentemente, pela ilegalidade e anulabilidade da liquidação
Em face deste entendimento e desta convicção, entende ainda o Tribunal que fica prejudicado o conhecimento das restantes causas de pedir.
5. Juros indemnizatórios
De acordo com o artigo 43.º da LGT “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento de divida tributária em montante superior ao legalmente devido e que se considera também haver erros imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”
A questão da interpretação da expressão “erro” usada nesta disposição legal, abrange qualquer erro nos pressupostos de facto ou de direito, incluindo a omissão de fundamentação, que tenha levado à liquidação e pagamento de imposto superior ao legalmente devido.
Neste sentido, atente-se à decisão proferida pelo STA no âmbito do Proc. 0537/14, em 11.03.2015
“I - O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação “houve erro imputável aos serviços”, entendido este como o “erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal”.
II - A anulação de um acto de liquidação com o fundamento de que a AT não demonstrou a verificação dos pressupostos para o recurso à tributação por métodos indirectos de que se socorreu (vício de violação de lei por erro nos pressupostos) é de considerar como erro imputável aos serviços, erro que, porque levou a uma ilegal definição da relação jurídica tributária do contribuinte e da qual terá resultado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido à luz das normas fiscais substantivas, justifica a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.”
Assim sendo, é de concluir pela procedência do pedido de juros indemnizatórios apresentado pelos Requerentes, que são devidos à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto oficiosamente liquidado (19.03.2021), até ao integral reembolso.
6. Decisão
Nestes termos e em face da fundamentação acima exposta, decide-se:
a) - Anular o despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa objeto deste PPA;
b) - Julgar totalmente procedente o pedido dos Requerentes e anular, por ilegal, a liquidação em crise;
c) - Condenar a Requerida a reembolsar o IRS pago no dia 19.03.2021, e os correspondentes juros indemnizatórios, vencidos desde a referida data do pagamento do IRS liquidado, até ao efetivo e integral reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos previstos na legislação aplicável;
d) - Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais
7. Valor da causa
Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 113.410,79 (cento e treze mil quatrocentos e dez euros e setenta e nove cêntimos), que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
8. Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), sendo decidido que ficará a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, 4.º n.º 4 do RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 30 de junho de 2023
Os Árbitros
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(Prof. Doutora Regina de Almeida Monteiro - Árbitro Presidente)
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(Dr. Jorge Belchior de Campos Laires - Árbitro Adjunto)
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(Dr. João Marques Pinto - Árbitro Adjunto relator)