Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 315/2022-T
Data da decisão: 2023-07-17  Selo  
Valor do pedido: € 137.592,05
Tema: Imposto do Selo – Cash pooling. Territorialidade do imposto – artigo 4.º do Código do Imposto do Selo. Compatibilidade da isenção contida na alínea h) do n.º 1, e n.º 2, do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo com o Direito da União Europeia.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO

  1. Para efeitos do Código do Imposto do Selo e da Tabela Geral do Imposto do Selo, na redação em vigor em 2020 e 2021, a tributação recai sobre a utilização do crédito e não sobre a celebração do respetivo negócio jurídico de concessão do crédito (Verbas 17.1 e 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo).
  2. A Verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo tributa a utilização de crédito sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou outra, em que o prazo de utilização seja indeterminado ou indeterminável, à taxa de 0,04% sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30.
  3. A sujeição a Imposto de Selo do crédito utilizado encontra-se condicionada pela conexão que a situação apresente com o território português, sendo esta conexão determinada pelo local onde se verifica a utilização do crédito, por força da regra da territorialidade contida no artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo.
  4. Não havendo nada na letra de lei que permita concluir que a sujeição a Imposto do Selo de um crédito se encontra condicionada pelo local onde se verifica a concessão do crédito, a interpretação segundo a qual uma operação de crédito está sujeita a Imposto de Selo se o crédito for concedido em Portugal, ao alargar o âmbito de incidência do Imposto do Selo para além do âmbito de incidência expressa no texto da lei (interpretação extensiva), ofende o princípio da legalidade constitucionalmente consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP (segundo o qual só podem ser cobrados os impostos quando se verificam os pressupostos aos quais a lei condiciona a existência de uma obrigação fiscal), e o princípio da tipicidade dele decorrente (nos termos do qual não haverá imposto a que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal).
  5. A isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo, conjugado com o n.º 2 do mesmo artigo, nos casos em que o devedor do crédito tem sede ou direção efetiva num Estado-Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr. Gonçalo Marquês de Menezes Estanque e Professor Doutor Diogo Feio, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral Tributário no processo em epígrafe, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO

A..., S.A., NIPC..., com sede no ..., ...-... Lisboa (“Requerente”), veio, em 11-05-2022, na sequência do indeferimento expresso da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2021..., apresentada para discussão da legalidade das liquidações de Imposto do Selo efetuadas através das guias n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., de abril a dezembro de 2020, e refletidos nas declarações mensais n.º..., ..., ..., ..., ..., ..., períodos de janeiro a junho de 2021, no montante total de € 137.592,05, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”) com vista à anulação da referida decisão de indeferimento e das referidas liquidações, e consequente restituição do imposto indevidamente pago, no montante total de € 137.592,05, acrescido de juros indemnizatórios.

Subsidiariamente, a Requerente peticiona o reenvio prejudicial dos presentes autos ao Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), ao abrigo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), caso o Tribunal Arbitral entenda subsistirem dúvidas interpretativas sobre a compatibilidade da norma prevista no artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo e o Direito da União Europeia.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 12-05-2022 e notificado à Requerida.

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 19-07-2022.

Por despacho de 27-07-2022, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD determinou a substituição, como árbitro-presidente, da Exma. Conselheira Fernanda Maçãs pela Professora Doutora Rita Correia da Cunha.

A Requerida apresentou Resposta e remeteu cópia do processo administrativo em 29-09-2022, defendendo-se por impugnação e por exceção.

Em 13-10-2022, a Requerente apresentou requerimento de resposta à exceção invocada na Resposta da Requerida.

Por despacho de 14-10-2022, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e notificou as partes para apresentarem alegações finais escritas.

A Requerida apresentou as suas alegações em 19-10-2022, e a Requerente em 27-10-2022.

O Tribunal Arbitral prorrogou o prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, por dois meses, em 16-01-2023, 16-03-2023 e 19-05-2023.

 

  1.  POSIÇÃO DAS PARTES

A Requerente fundamentou o PPA, em síntese, nos seguintes termos:

Da falta de verificação dos pressupostos de incidência territorial de Imposto do Selo

  1. Nas operações de crédito, o facto tributário que predetermina a incidência do Imposto do Selo é a efetiva utilização do crédito por parte do beneficiário, considerado, nos termos do Código do Imposto do Selo, o titular do interesse económico correspondente (cf. artigo 3.º, n.º 3, alínea f), do Código do Imposto do Selo).
  2. Por força do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, a sujeição a imposto do crédito utilizado depende da conexão que a situação apresente com o território português e esta conexão é determinada pelo local onde se verifica a utilização do crédito.
  3. Estando em causa a concessão de crédito no quadro de uma relação de cash pooling, apenas deve ser tributada a utilização de fundos consumada em território nacional, o que não se verifica no caso em apreço.
  4. Com efeito, considerando que a receção e utilização dos fundos ocorreu integralmente fora de Portugal (mais concretamente, em França), forçoso será concluir que não se mostra preenchido um dos requisitos para a sujeição a Imposto do Selo, por falta de conexão com o território nacional.
  5. Justifica-se, por isso, um breve incurso nos pressupostos subjacentes ao reconhecimento do princípio da territorialidade, previsto no artigo 13.º, n.º 1, da LGT, que dispõe o seguinte: “Sem prejuízo de convenções internacionais de que Portugal seja parte e salvo disposição legal em sentido contrário, as normas tributárias aplicam-se aos factos que ocorram no território nacional”.
  6. No âmbito do Imposto do Selo, ao nível das operações financeiras, verifica-se que o legislador não cingiu a construção do respetivo facto tributário à celebração dos contratos em território português; o que inequivocamente releva para a constituição do respetivo facto tributário, em relação às operações financeiras, é a utilização do crédito.
  7. Ora, o que justamente se constata no presente caso é o facto de os créditos que estão na origem das liquidações de Imposto do Selo consideradas pela AT, entre a Requerente e a B..., assim como a respetiva utilização por parte desta última entidade, terem ocorrido integralmente fora do território português.
  8. Face às regras de territorialidade que condicionam a sujeição a Imposto do Selo, é legítimo afirmar que a tributação nesta sede estará sempre dependente do grau de conexão que a situação apresenta com o território português, sendo esta conexão aferida, in casu, em função do local em que se verifica a utilização do crédito.
  9. Os fundos são apenas apropriados e utilizados pela B... fora de Portugal, em França, pelo que o crédito ou mútuo apenas se consumou fora do território nacional, e como tal, fora do âmbito de incidência territorial previsto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo.
  10. Face ao acima exposto, não se verificando na concessão de crédito que ora nos ocupa os pressupostos de incidência de Imposto do Selo por força da aplicação da regra da territorialidade, em virtude da utilização do crédito não ocorrer em território nacional, forçoso será concluir que as operações de concessão de crédito em apreço não estão sujeitas a Imposto do Selo, tudo com as devidas consequências legais.

Da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo

  1. Caso este Douto Tribunal entenda que os empréstimos entre a Requerente e a B... estão abrangidos pela norma de incidência territorial do Imposto do Selo, sempre será de aplicar ao caso sub judice a isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, por integral verificação dos respetivos pressupostos.
  2. Cumpre enunciar, de forma sistemática, os requisitos materiais de que depende a aplicação desta isenção, os quais, conforme veremos, se encontram inequivocamente preenchidos no caso em apreço:

(i) Em primeiro lugar, devemos estar perante empréstimos por prazo não superior a um ano;

(ii) Em segundo lugar, os empréstimos deverão ser concedidos por sociedades no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria (“cash pooling”); e

(iii) Em terceiro lugar, terem sido efetuados em benefício de entidade com a qual a entidade concedente se encontre em relação de domínio ou de grupo.

O artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo e a sua desconformidade com o Direito Europeu

  1.  A AT indeferiu a pretensão aduzida pela Requerente com recurso à parte final do disposto no n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, alegando em síntese que “competia à Reclamante provar que a linha de crédito disponibilizada através da conta centralizadora não tem origem em fluxos financeiros exteriores ao Grupo”.
  2. A interpretação propugnada pela AT carece de base legal, por erro manifesto nos pressupostos de direito e violação do princípio da não discriminação prevista no TFUE: a lei nacional concede uma isenção de Imposto do Selo aplicável a empréstimos concedidos por período inferior a um ano entre entidades do mesmo grupo, ao abrigo de contratos de gestão centralizada de tesouraria, nas quais o credor tenha “sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia”, excluindo, contudo, a sua aplicação nos casos em que é o devedor do crédito, e não o credor, a ter sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia.
  3. Por esta via se pode antecipar que a lei nacional, no texto do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, prevê uma solução manifestamente discriminatória, estabelecendo uma limitação adicional às operações financeiras com caráter transfronteiriço, sempre que o crédito é concedido por uma entidade com sede ou direção efetiva em Portugal a uma entidade com sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da UE.
  4. Mais concretamente, quando os empréstimos ocorrem num contexto intragrupo – conforme sucede no presente caso – o tratamento discriminatório que aqui se verifica comporta uma inequívoca violação da liberdade de estabelecimento, expressamente prevista no artigo 49.º do TFUE, na medida em que são oferecidas condições de tratamento diferenciadas, para um mesmo objeto (o crédito concedido), atendendo exclusivamente à localização de uma das partes contratantes.
  5. Para além da patente discriminação pela qual envereda, a solução acolhida pela lei nacional não repousa sobre qualquer tipo de justificação objetiva que se possa deduzir, tanto do TFUE, como da própria jurisprudência do TJUE.
  6. Da letra da lei – e não obstante todos os restantes pressupostos legais se encontrarem verificados – resulta a impossibilidade de a Requerente, na posição de entidade concedente de crédito (credora) – beneficiar da isenção prevista no artigo 7.º, alínea h), do Código do Imposto do Selo, uma vez que tem sede no território nacional e que a devedora do crédito não dispõe de residência em território nacional.
  7. Pelo contrário, caso fosse a B... a entidade credora e a Requerente a entidade devedora (utilizadora dos créditos), desde que verificados os respetivos pressupostos objetivos, a isenção prevista no artigo 7.º, alínea h), do Código do Imposto do Selo já poderia aplicar-se, dado que a exceção consagrada no artigo 7.º, n.º 2, não teria aplicação.
  8. Ora, é nesta dicotomia ou tratamento diferenciado assente na residência do credor que reside a faceta discriminatória da norma prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo.
  9. Qualquer medida incompatível com o Direito Europeu, porque dela resulta uma flagrante e injustificada lesão de uma liberdade fundamental – como inequivocamente se verifica nos factos subjacentes aos presentes autos – deverá ser rejeitada e declarada desconforme àquele primeiro ordenamento jurídico, cujo primado sobre o direito nacional é expressamente reconhecido pela CRP, assim como pela restante normatividade infraconstitucional.
  10. Ora, tal como vem sendo afirmado, o disposto no n.º 2 do artigo 7.º, na medida em que restringe a aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), ambos do Código do Imposto do Selo, às situações em que o credor se encontra sediado em território português, tem um carácter manifestamente discriminatório.
  11. Dali resultando uma frontal restrição à liberdade de estabelecimento, prevista no artigo 49.º do TFUE, uma vez que, em relação ao mesmo financiamento intragrupo, as diferentes entidades do Grupo C... são objeto de um tratamento fiscal distinto, consoante a posição credora ou devedora de cada uma, no caso concreto.
  12. Com enfoque na pessoa do “credor”, a Requerente salienta que o que o artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo verdadeiramente faz é circunscrever (e limitar) a aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), à residência fiscal do credor: (i) Se o credor for entidade não-residente e os devedores entidades residentes, a referida isenção aplica-se; (ii) Se o credor for entidade residente e os devedores entidades não-residentes, a mesma isenção não se aplica.
  13. Tal diferença é suscetível de dissuadir entidades do Grupo a que pertence a Requerente, e que sejam devedoras no contexto da participação num mecanismo de cash pooling, de exercerem a respetiva liberdade de estabelecimento e constitui, pois, um entrave a essa liberdade.
  14. Continuando o que se vinha referindo, o que decorre da jurisprudência do TJUE é justamente que uma discriminação só pode provir da aplicação de regras diferentes a situações semelhantes ou da aplicação da mesma regra a situações diferentes.
  15.  Por conseguinte, uma diferença de tratamento entre duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação na aceção do TFUE, desde que as situações destas categorias de contribuintes sejam comparáveis à luz das normas fiscais em causa, o que manifestamente aqui sucede.
  16. A discriminação encetada pela lei nacional não tem associado qualquer critério de substância ou a salvaguarda, pela via legal, de qualquer interesse particular digno de tutela face ao Direito Comunitário, tais como a salvaguarda da coerência do regime fiscal ou a tutela da respetiva receita fiscal, até porque está em causa um imposto que não conta as realidades análogas em muitos dos restantes Estados-Membros.
  17. Com a solução consagrada no artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo, o legislador nacional consente que seja liquidado Imposto do Selo relativo a créditos cuja beneficiária é uma entidade não-residente pertencente ao mesmo Grupo da Requerente, apenas e só porque esta última se encontra sediada noutro Estado-Membro. Por oposição, caso se encontrasse sediada em território nacional, independentemente da sede do credor, já existiria lugar à aplicação da referida isenção de Imposto do Selo. E assim sucede porque uma entidade devedora residente não suportará Imposto do Selo, ao passo que uma entidade não-residente já suportará o referido imposto, na íntegra.
  18.  Em síntese, a legislação nacional trata de forma diferente as operações de concessão de crédito transfronteiriças e as operações de concessão de crédito internas, discriminando os devedores e responsáveis pelo encargo com o imposto em função do Estado da respetiva sede ou direção efetiva.
  19.  Em função de tudo quanto se referiu, é inequívoco que está em causa uma violação da liberdade de estabelecimento, a qual proíbe que cada Estado-Membro preveja na sua legislação, para as pessoas ou empresas que exercem a liberdade de nele se estabelecerem, condições de exercício das suas atividades diferentes das definidas para os seus próprios nacionais, e é o que efetivamente sucede na medida em que, para poderem beneficiar da isenção de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo, entidades não-residentes que sejam devedoras teriam que passar à condição de residentes.
  20. No caso em apreço, mostrando-se verificados todos os demais requisitos materiais de aplicação da isenção, não poderá a sua aplicação ser afastada por via de uma norma manifestamente ilegal, por contrária ao Direito Europeu.

Da exigência de prova de origem dos fundos

  1. Para a AT, à luz do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, competiria ainda à Requerente provar que os fundos objeto do contrato de cash pooling não foram obtidos com recurso a financiamento junto de instituições de crédito ou sociedades financeiras.
  2.  A Requerente não pode concordar com tal interpretação, a qual não encontra qualquer suporte na letra e espírito da norma: a exigência probatória formulada na parte final do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, apenas se aplicará nos casos em que o credor é uma entidade não residente para efeitos fiscais em Portugal. Ora, no caso em apreço, o credor (i.e., a Requerente) é uma entidade residente em Portugal.
  3. Aqui reside ou se evidencia, de novo, o caráter discriminatório da norma de incidência, porquanto, tratando-se de uma mesma operação realizada entre entidades residentes, a aplicação da isenção bastar-se-ia com o cumprimento dos requisitos previstos na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.
  4. A admitir-se a interpretação da AT, a isenção de Imposto do Selo não seria aplicável no caso em apreço porquanto a entidade credora é residente em Portugal, mas admitindo-se o caráter discriminatório da norma, será de lhe aplicar a exigência probatória prevista na parte final do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, cuja aplicação seria indistinta a qualquer credor, mesmo àqueles que sendo residentes (e o devedor não residente), a norma de incidência exceciona a aplicação da isenção.
  5.  Com efeito, uma interpretação sistemática da alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS e o n.º 2 do mesmo preceito legal, apenas admitirá os seguintes cenários:

✓ Verificados todos os requisitos materiais, sendo devedor e credor residentes em Portugal a isenção de Imposto do Selo aplica-se sem qualquer requisito adicional, não se mostrando aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 7.º;

✓ Mesmo que todos os intervenientes não sejam residentes, contanto que o credor seja residente na EU ou com um país com quem Portugal tenha celebrado um ADT, a isenção será aplicável, contudo, será exigível que o credor faça prova da origem dos fundos e que os mesmos não têm origem em financiamento externo ao Grupo;

✓ Caso o devedor seja não residente, a norma de incidência exclui a possibilidade de aplicação da isenção, não se mostrando aplicável, por redundante, a exigência probatória da parte final do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

  •  O problema é que a solução adotada pelo legislador nacional é discriminatória e contrária ao Direito Comunitário, abrindo a porta à aplicação da isenção, mesmo nos casos em que o credor é residente em Portugal e o devedor residente na EU, como sucede no caso em apreço.
  •  O legislador – ainda que mal, por introduzir normas de caráter discriminatório – excluiu a aplicação da isenção quando o credor é residente, pelo que não pode a AT agora pretender estender o requisito ou exigência probatória a entidades cuja norma de incidência exclui, expressamente, a aplicação do benefício.
  •  Em suma: a isenção só se aplica a residentes; contudo, nos casos em que o credor é residente na EU (e o devedor residente em Portugal), a isenção continuará a aplicar-se, mas sujeita a um requisito probatório adicional, materializado na prova da origem dos fundos e que os mesmos não são externos ao Grupo.
  • Termos em que se conclui pelo manifesto erro nos pressupostos de direito de que padece a decisão incidente sobre a reclamação graciosa que constitui o objeto mediato dos presentes autos, pugnando-se pela plena aplicação da isenção de Imposto do Selo e consequente anulação dos atos tributários ora sindicados, tudo com as demais consequências legais.
  • Ainda que assim não se entenda, o que se admite apenas por mero dever de patrocínio e sem conceder, sempre se diga que inexiste qualquer constrangimento à aplicação da isenção na esfera da Requerente: os montantes canalizados para o cash pooling não têm origem em financiamentos obtidos junto de “instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”, conforme resulta do Relatório e Contas da Requerente do ano de 2020 (pág. 101), no qual é possível confirmar que os únicos financiamentos de que a Requerente dispõe foram obtidos junto do Banco Europeu de Investimento (“BEI”) e em momento anterior à adesão ao mecanismo de cash pooling.
  • O BEI é uma instituição financeira com uma natureza e propósitos muito específicos, cujo objeto consiste no financiamento de projetos que visem a prossecução, em primeira linha, dos objetivos da União Europeia, o que afasta a possibilidade de concessão pelo BEI de um financiamento destinado a cobrir carências de tesouraria ou gerar excedentes integrantes de um mecanismo de cash pooling.
  • Isto mesmo resulta dos documentos 13, 14 e 15 juntos ao PPA, nos termos dos quais a Requerente assumiu o especial compromisso de utilizar o produto dos empréstimos exclusivamente para o financiamento dos projetos visados pelos mesmos.
  •  Mais se acrescente que os contratos de financiamento em causa foram todos celebrados em momento anterior a 16-05-2014, data em que a Requerente iniciou a sua participação no cash pooling, sendo, assim, evidente a inexistência de qualquer ligação entre os fundos rececionados via financiamento do BEI e os excedentes posteriores de tesouraria libertados por via do contrato de gestão de cash pooling.
  • Tendo em conta que, para além dos financiamentos acima enunciados, a Requerente não dispunha (nem dispõe) de qualquer outro financiamento, fica demonstrado que os montantes canalizados para o cash pooling, aqui em causa, não tiveram origem em financiamentos obtidos junto de “instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”, assim se afastando toda e qualquer dúvida que pudesse subsistir quanto ao preenchimento dos pressupostos legalmente exigidos por parte da Requerente para efeitos de beneficio da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.
  • Nestes termos e nos demais de direito, a Requerente requer a anulação dos atos tributários ora sindicados relativos a Imposto do Selo, liquidado por referência às operações de concessão de crédito pela Requerente à B..., no âmbito do contrato de cash pooling, realizadas no período de abril de 2020 a junho de 2021, por integral verificação dos pressupostos da isenção previstos na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, conforme prova documental apresentada com a presente petição, o que motivará ainda a condenação da Requerida na restituição à Requerente da quantia de € 137.592,05, suportada a título de Imposto do Selo, tudo com as devidas consequências legais, mormente o pagamento de juros indemnizatórios.
  • Subsidiariamente, e caso o Tribunal Arbitral entenda subsistirem dúvidas interpretativas sobre a compatibilidade da norma prevista no artigo 7.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo e o TFUE, em particular as liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento nos termos melhor expostos no presente articulado, a Requerente requer, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, o reenvio prejudicial dos presentes autos ao TJUE, tudo com as demais consequências legais.

 

A Requerida defendeu-se por impugnação, em síntese, nos seguintes termos:

Por exceção:

Da questão referente à alegada falta de verificação dos pressupostos de incidência territorial do Imposto do Selo - Incompetência do Tribunal Arbitral por impossibilidade de impugnação contenciosa direta dos atos de autoliquidação quanto a esta questão

  1. Quanto à questão da alegada falta de verificação dos pressupostos de incidência territorial de Imposto do Selo importa, a título preliminar, referir que a mesma não foi invocada previamente em sede graciosa.
  2. O artigo 131.º, n.º 3, do CPPT dispõe que “Quando estiver exclusivamente em causa matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, não há lugar à reclamação necessária prevista no n.º 1”.
  3. Ora, desde logo o primeiro dos pressupostos - a autoliquidação ter sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária – não se encontra preenchido, pois compulsados os correspondentes artigos do pedido de pronúncia arbitral, salvo lapso nosso, nenhuma orientação genérica emitida pela AT é invocada.
  4. Deste modo, atenta a falta de preenchimento de um dos pressupostos cumulativos, não pode aproveitar-se do disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CPPT, porquanto quanto a estes encargos, com o fundamento agora apresentado no PPA, não foi previamente apresentado reclamação graciosa ou revisão oficiosa das autoliquidações aqui em causa.
  5. Consequentemente, o conhecimento direto da legalidade de tais questões pelo presente Tribunal mostra-se-lhe vedado face ao disposto no artigo 2.º do RJAT e do artigo 2.º, da citada Portaria n.º 112-A/2011, isto é, a possibilidade de apreciar tais atos de autoliquidação com esta nova questão, sem que tenha existido prévio “(...) recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (...)”.
  6. Pelo que este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub judice no que à questão aqui em causa respeita, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, o que consubstancia uma exceção dilatória a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição da Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Por impugnação:

Da incidência territorial

  1. Estabelece-se no n.º 1 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, sob a epígrafe “territorialidade”, que “sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o Imposto do Selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional”.
  2. Da factualidade acima descrita resulta que os empréstimos em causa foram concedidos em Portugal apesar do destinatário dos mesmos ter residência fora deste território, pelo que competia à Requerente, enquanto entidade concedente do crédito e sujeito passivo do imposto, liquidar, cobrar e entregar nos cofres do Estado o imposto repercutido à B..., conforme decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º, da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º, da alínea g) do artigo 5.º, do n.º 1 do artigo 9.º, do n.º 1 do artigo 22.º, do n.º 1 do artigo 23.º, dos artigos 41.º e 43.º, e do n.º 1 do artigo 44.º, todos do Código do Imposto do Selo.
  3. Da conjugação das regras de incidência objetiva, previstas na verba 17.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, e as previstas no artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, em especial do seu n.º 1, ou até da alínea b) do seu n.º 2, não se retira que o legislador tenha alguma vez desejado que o crédito concedido por uma entidade com residência em território nacional a favor de uma entidade não residente constituísse uma operação financeira não sujeita a Imposto do Selo pelo simples facto de esta última ter o seu domicílio fiscal no estrangeiro.
  4. O entendimento da Requerente conduz à distinção, para efeitos de sujeição, dos fluxos financeiros (concessão/utilização de crédito) realizados exclusivamente entre entidades com sede ou direção efetiva em território nacional, e dos fluxos financeiros entre estas e entidades com sede ou direção efetiva no estrangeiro, com a consequente discriminação fiscal de umas em favor de outras, ofendendo o princípio da igualdade de tratamento, da capacidade contributiva e, provocando, por essa via, uma distorção da concorrência, desconsiderando o princípio da neutralidade fiscal.
  5. Impõe-se concluir que a pretensão da Requerente – isto é, de que não há sujeição a Imposto do Selo quando a sociedade devedora do crédito concedido em Portugal está sedeada em França e esses mesmos créditos são (alegadamente) utilizados fora de território nacional – não pode proceder.
  6. Acresce que a Requerente não faz prova que o crédito obtido pela B... é, efetivamente, e em todas as situações, utilizado fora de Portugal.
  7.  À luz da jurisprudência portuguesa não pode senão entender-se que, embora para efeitos do Código do Imposto do Selo, o titular do interesse económico, sobre quem recai o encargo do Imposto do Selo, seja o utilizador do crédito, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do Imposto do Selo, o facto tributário é a concessão de crédito, o que decorre do próprio texto daquela alínea ao referir que se considera titular do interesse económico “na concessão do crédito, o utilizador do crédito”, e não “na utilização do crédito, o utilizador do crédito”, como seria adequado se o facto tributário fosse a utilização.
  8. No mesmo sentido de o facto tributário ser a concessão do crédito aponta a globalidade do regime legal, ao considerar sujeito passivo quem concede o crédito, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo, incumbindo-o da liquidação do Imposto do Selo devido por operações de crédito (nos termos do n.º 1 do artigo 23.º do mesmo Código) e impondo-lhe a obrigação de efetuar o seu pagamento (cf. artigo 41.º do Código do Imposto do Selo).
  9. Pelo que, atento todo o exposto, a conexão relevante para aferir a incidência territorial do Imposto do Selo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, é o local da concessão do crédito, independentemente da residência do seu utilizador.

Da alegada violação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo

  1. O benefício da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo depende cumulativamente do preenchimento dos seguintes pressupostos materiais:
  1. Do prazo da operação financeira; isto é, o prazo dos empréstimos não deve ser superior a um ano;
  2. Da existência de um contrato de gestão centralizada de tesouraria que regule o seu modo e condições de funcionamento; isto é, os empréstimos deverão ser concedidos por sociedades no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria (“cash pooling”);
  3. Da relação societária existente entre as sociedades participantes no contrato de gestão centralizada de tesouraria; isto é, os empréstimos terem sido efetuados em benefício de entidade com a qual a entidade concedente se encontre em relação de domínio ou de grupo;
  4. Da verificação das limitações impostas pelos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.
  1. Sem prejuízo de se poder considerar que na presente situação possa estar demonstrada a existência do contrato de gestão centralizada de tesouraria [o «“Centralised Cash Management Agreement” (Contrato de Gestão Centralizada de Tesouraria)»], a relação de domínio ou de grupo, tal já não sucede quanto ao prazo da operação financeira, que não foi demonstrado pela Requerente.
  2. Nos termos do artigo 74.º do CPPT, é à Requerente que cabe provar inequivocamente os factos por si alegados, não havendo factos provados meramente por não terem sido impugnados.
  3. Do artigo 14.º, n.º 2, da LGT resulta que o ónus da prova dos pressupostos dos benefícios fiscais recai sobre os contribuintes e concretiza-se através da revelação desses pressupostos ou autorização para eles serem revelados à Administração Tributária.
  4. No caso em apreço, é exigida prova de que os capitais sejam emprestados em prazo não superior a 1 ano.
  5. Contudo, constata-se desde logo que o contrato foi celebrado por tempo indeterminado – cf. cláusula 6.1 do «“Centralised Cash Management Agreement” (Contrato de Gestão Centralizada de Tesouraria)», o que, por si só, constitui forte indício de que os empréstimos tendencialmente perdurarão por mais de um ano.
  6. A isto acresce que, da análise dos extratos contabilísticos com os movimentos consolidados das contas #25310000 e #25320000, não é possível extrair qualquer conclusão clara quanto ao prazo de permanência dos valores que integram o saldo inicial das contas nem dos valores entrados/saídos durante cada ano naquele período.
  7.  Não basta à Requerente afirmar que os empréstimos concedidos foram reembolsados em prazo inferior a um ano – incumbe-lhe, nos termos das regras do ónus da prova, demostrar inequivocamente a existência dos pressupostos que alega como fundamento do seu direito à isenção de Imposto do Selo.
  8. Com efeito, não resulta da prova junta nos autos, de uma forma inequivocamente clara, que o crédito foi concedido por um período inferior a um ano, pressuposto cuja falta se torna determinante para interpretação e aplicação da norma de isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, fazendo-a soçobrar.
  9. Uma vez que os pressupostos da isenção são cumulativos, porquanto assim foram configurados pelo legislador, conclui-se desde logo pela inaplicabilidade da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo às operações que derivam do «“Centralised Cash Management Agreement” (Contrato de Gestão Centralizada de Tesouraria)».

Do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo e da sua alegada desconformidade com o Direito Europeu

  1. A proibição do artigo 49.º do TFEU não é absoluta, pois logo de seguida o legislador vem admitir que “As disposições do presente capítulo não são aplicáveis às atividades que, num estado-membro, estejam ligadas, mesmo ocasionalmente, ao exercício da autoridade pública” (cf. n.º 1 do artigo 50.º do TFUE), e que “as disposições do presente capítulo e as medidas tomadas em sua execução não prejudicam a aplicabilidade das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, que prevejam um regime especial para os estrangeiros e sejam justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública” (cf. n.º 1 do artigo 51.º do TFUE).
  2. Daqui decorre que não se pode considerar que tenha havido qualquer constrangimento fiscal, ou qualquer outro, à liberdade de estabelecimento da B... em território nacional, concretizada com a aquisição da Requerente, na medida em que esta detém a concessão de serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil, um serviço manifestamente de ordem pública, segurança pública e saúde pública, dotado nos termos da lei de poderes e prerrogativas de autoridade, conforme estabelece o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 404/98, de 18 de dezembro.
  3. Por conseguinte, inexiste qualquer desconformidade do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, quando afasta do beneficio da isenção os empréstimos concedidos pela Requerente, sedeada em Portugal, em favor da B..., sedeada em França, com a liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.º do TFUE, porquanto, face à atividade de ordem pública exercida pela Requerente em consequência da concessão de serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil que detém, ela não só não é proibida como é expressamente admitida pelo n.º 1 do artigo 50.º do Tratado.
  4. Acresce que, como já referido, o Código do Imposto do Selo não discrimina para efeitos de tributação entre entidades residentes e entidades não residentes que realizem operações financeiras que preencham o campo de incidência do Imposto do Selo: no que respeita ao modo de determinação da matéria coletável e taxa aplicável às operações financeiras, o Código do Imposto do Selo equipara-as, não estabelecendo qualquer diferença de tratamento entre elas, garantindo as mesmas condições fiscais entre fluxos financeiros realizados entre entidades residentes, entre entidades não residentes e residentes e entre estas e entidades não residentes, como sucede no presente caso.
  5. Já no que respeita à alegada ofensa ao princípio da liberdade de circulação de capitais, importa remeter e dar aqui por reproduzida a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 279/2020-T, de 03-11-2020.
  6. A invocada diferença de tratamento no acesso à isenção, estabelecida do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, que atinge a beneficiária francesa do crédito concedido pela Requerente, não constitui uma restrição nem uma discriminação no acesso à isenção, porquanto a limitação estabelecida n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo só se aplica ao Imposto do Selo incidente sobre empréstimos realizados entre sociedades.
  7. Logo, estando restringida a tributação a fluxos financeiros realizados entre sociedades, o Imposto do Selo suportado sobre os mesmos é normalmente dedutível pelas empresas que o suportaram. Significa isto que uma liquidação de Imposto do Selo efetuada sobre um crédito concedido, como o do caso sub judice, pode ser neutralizada pela devedora/mutuária ao abrigo de uma norma equivalente à do n.º 1 do artigo 23.º do nosso Código do IRC.
  8.  Só se estaria perante uma situação suscetível de constituir uma violação da livre circulação de capitais se o Imposto do Selo devido em Portugal pela obtenção do crédito não pudesse ser neutralizado pela B..., entidade gestora/mutuária, ao abrigo das leis francesas.
  9.  E, no caso concreto, impendia sobre a Requerente, de acordo com as já referidas regras do ónus da prova previsto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, demonstrar que o Imposto do Selo repercutido à B... pela utilização de crédito concedido em Portugal, não era dedutível ao abrigo das leis fiscais francesas, nomeadamente as que regulam o imposto sobre as sociedades equivalente ao nosso IRC.
  10. Por outras palavras, entende-se que, para que se possa concluir no sentido da existência de uma eventual restrição à livre circulação de capitais e do carácter potencialmente discriminatório do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, que sujeita a tributação as transferências financeiras realizadas entre sociedades residentes e não residentes, afastando estas últimas da isenção, teria de ficar demonstrado que o Imposto do Selo suportado em Portugal pelas operações de financiamento em causa, tributadas ao abrigo da verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, originou uma tributação cuja dedução ao lucro tributável é impossível de concretizar pelas sociedades não residentes beneficiárias dos empréstimos concedidos por sociedades residentes.
  11. Em face disto, e atenta a falta de prova acima referida, considera-se que o n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, ao impor uma limitação ao benefício da isenção prevista nas alínea h) do n.º 1 do mesmo preceito legal para sociedades não residentes, não constitui uma restrição da liberdade de circulação de capitais e uma discriminação arbitrária entre residentes e não residentes, porquanto tratando-se de uma isenção exclusivamente aplicada a empresas os gastos e os custos suportados a título de Imposto do Selo devido pela concessão de crédito podem, em condições normais e análogas ao nosso IRC, ser dedutíveis pela B... ao imposto sobre as sociedades vigente na França.

Da exigência de prova de origem dos fundos

  1.  Quanto à exigência de prova da origem dos fundos nos contratos de gestão centralizada de tesouraria, referida no n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, este requisito adicional não é exigível no caso concerto, uma vez que o que aqui se analisa são os empréstimos feitos pela Requerente em favor da B...; isto é, os fluxos ascendentes que, como anteriormente vimos, estão sujeitos a Imposto do Selo.

Dos juros indemnizatórios

  • Na eventualidade do presente pedido de pronúncia vir a proceder, apenas poderão ser devidos juros indemnizatórios nos termos e nas condições previstas na alínea c) ou d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT.

 

A Requerente apresentou requerimento de resposta à exceção invocada na Resposta da Requerida (i.e., a incompetência do Tribunal Arbitral):

  1. Constitui jurisprudência pacifica que a causa de pedir da impugnação judicial/arbitral não está limitada aos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do ato tributário.
  2. A necessidade de apresentação de reclamação graciosa prévia em situações de autoliquidação prende-se apenas com o facto de estarmos perante atos sobre os quais a AT nunca se pronunciou, já que os mesmos são efetuados diretamente pelo contribuinte.
  3. Perante a inexistência de prévia atuação administrativa, é exigida antes da impugnação uma pronúncia da AT visando, aliás, mitigar os riscos de litigância judicial desnecessária.
  4. Equivale isto a dizer que o facto de o contribuinte não atacar todos os vícios de ilegalidade do ato de liquidação em sede de reclamação graciosa – mesmo em situações em que esta seja necessária – não preclude a possibilidade de os vir posteriormente a invocar em sede de impugnação (judicial ou arbitral), sob pena de violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.

 

Nas alegações finais escritas, a Requerente acrescentou o seguinte:

  1. Os fundos são apenas apropriados e utilizados pela B... fora de Portugal, em França, pelo que o crédito ou mútuo apenas se consumou fora do território nacional, e como tal, fora do âmbito de incidência territorial previsto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo.
  2. Mais, não há sujeição a Imposto do Selo, nos termos do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, quando o facto tributário ocorre fora do território português e o beneficiário não é residente pois, se interpretássemos que, nas situações em que o beneficiário é não residente, o facto tributário deixa de ser a utilização de crédito para passar a ser a concessão de crédito, tal interpretação normativa padeceria de discriminação e restrição à livre circulação de capitais, proibida pelo Direito Comunitário (cf. artigo 63.º TFUE e ao artigo 40.° do Acordo EEE), aplicável não só em relação a outros Estados-Membros (o que se verifica no nosso caso uma vez que a I... é residente na Bélgica), mas também em relação a países terceiros.
  3. Relativamente ao requisito de que a concessão de empréstimos não seja realizado por prazo não superior a um ano (que a Requerida sustenta na sua Resposta que a Requerente não logrou demonstrar), é possível verificar o cumprimento deste requisito a partir da análise dos extratos bancários mensais agregados de todas as contas bancárias que centralizam o cash pooling, bem como da própria contabilidade da Requerente, sendo matéria não contestada pela AT na decisão que incidiu sobre a reclamação graciosa que constitui o objeto mediato dos presentes autos.
  4. A tabela infra demonstra que todos os empréstimos concedidos foram reembolsados em período inferior/até ao máximo de dois meses, o que permite afirmar que todos os empréstimos concedidos têm antiguidade inferior a um ano:

 

  1. Da letra da lei – e não obstante todos os restantes pressupostos legais se encontrarem verificados – resulta a impossibilidade de a Requerente, na posição de entidade concedente de crédito (credora), beneficiar da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo, uma vez que tem sede no território nacional e a devedora não dispõe de residência em território nacional. Pelo contrário, caso fosse a B... a entidade credora e a Requerente a entidade devedora (utilizadora dos créditos), desde que verificados os respetivos pressupostos objetivos, a isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo já poderia aplicar-se, dado que a exceção consagrada no artigo 7.º, n.º 2, não teria aplicação.
  2. Ora, é nesta dicotomia ou tratamento diferenciado assente na residência do credor que reside a faceta discriminatória da norma prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo (se o credor for entidade não-residente e os devedores entidades residentes, a referida isenção aplica-se; se o credor for entidade residente e os devedores entidades não-residentes, a mesma isenção não se aplica), e uma frontal restrição à liberdade de estabelecimento, prevista no artigo 49.º do TFUE, uma vez que, em relação ao mesmo financiamento intragrupo, as diferentes entidades do Grupo C... são objeto de um tratamento fiscal distinto, consoante a posição credora ou devedora de cada uma, no caso concreto.
  3. Não se invoque contra o acima exposto e contra a aplicação do artigo 49.º do TJUE, o disposto no artigo 50.º do mesmo diploma, pois ao contrário do afirmado pela Requerida, é evidente que a Requerente não exerce qualquer “autoridade pública”.
  4. Sobre este tema já sustentou o TJUE, no Acórdão proferido no processo n.º 53/08, de 24-05-2011, que:

“a derrogação prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE se deve restringir apenas às actividades que, consideradas em si mesmas, apresentem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública (acórdão, já referido, Reyners, n.° 45; acórdão de 13 de Julho de 1993, Thijssen, C-42/92, Colect., p. I-4047, n.° 8; e acórdãos, já referidos, Comissão/Espanha, n.° 35, Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, n.° 46, Comissão/Alemanha, n.° 38, e Comissão/Portugal, n.° 36).

85  A este respeito, o Tribunal de Justiça teve ocasião de considerar que estão excluídas da derrogação prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE certas actividades que são auxiliares ou preparatórias relativamente ao exercício da autoridade pública (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.° 22; Comissão/Espanha, n.° 38; Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, n.° 47; Comissão/Alemanha, n.° 38; e Comissão/Portugal, n.° 36), ou certas actividades cujo exercício, embora comporte contactos, ainda que regulares e orgânicos, com autoridades administrativas ou judiciárias, ou uma contribuição, mesmo que obrigatória, para o seu funcionamento, deixe intactos os poderes de apreciação e de decisão das referidas autoridades (v., neste sentido, acórdão Reyners, já referido, n.os 51 e 53), ou ainda certas actividades que não comportam o exercício de poderes decisórios (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.os 21 e 22; de 29 de Novembro de 2007, Comissão/Áustria, n.os 36 e 42; Comissão/Alemanha, n.os 38 e 44; e Comissão/Portugal, n.os 36 e 41), de poderes para impor obrigações (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Comissão/Espanha, já referido, n.° 37) ou de poderes de coerção (v., neste sentido, acórdão de 30 de Setembro de 2003, Anker e o., C-47/02, Colect., p. I-10447, n.° 61, e acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 44).”

  1. Têm vindo os tribunais arbitrais a concluir que a recusa em aplicar a isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo, conjugado com o n.º 2 do mesmo artigo, nos casos em que o devedor tem sede ou direção efetiva num Estado-Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE e constitucionalmente proibida, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.

 

A Requerida reiterou a sua posição vertida na Resposta.

 

  1.   SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.

O PPA apresentado em 11-05-2022 é tempestivo, porquanto foi apresentado no prazo de 90 dias referido no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar da data da notificação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.

O processo não enferma de nulidades. A Requerida, na sua Resposta, suscitou uma exceção a qual será decidida infra por este Tribunal Arbitral.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima de direito português criada pelo Decreto-Lei n.º 404/98, de 18 de dezembro, que aprovou a cisão da Empresa Pública D..., E.P., tendo-lhe sido atribuída a concessão de serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil (cf. artigo 12.º do mencionado Decreto-Lei).
  2. Em 16-05-2014, a Requerente assinou com a E..., SGPS, S.A. (“E...”) um contrato de gestão centralizada de tesouraria denominado “Centralised Cash Management Agreement” (Contrato de Gestão Centralizada de Tesouraria), em cujos termos formalizou a sua adesão ao mecanismo de cash pooling utilizado pelas entidades do Grupo C..., que tinha como “Master Account Holder” a F..., S.A., residente na Bélgica (cf. cópia do contrato de cash pooling junto ao PPA como documento n.º 2).
  3. Em 08-07-2014, a E... foi objeto de dissolução e liquidação, da qual resultou a partilha do respetivo património (no qual se inclui a participação detida no capital da Requerente) para a I..., S.A. (“I...”), residente na Bélgica (cf. referido no 12.º do PPA e 6.º da Resposta da AT).
  4. A partir de 09-07-2014, a I... passou a ser a entidade centralizadora dos excedentes de tesouraria do Grupo (incluindo a Requerente), através de uma conta sediada no Banco G..., na Bélgica (cf. referido no 13.º do PPA e 7.º da Resposta da AT).
  5. Em 30-11-2018, a I... fundiu-se por incorporação na B..., S.A., (“B...”), entidade residente em França, a qual assumiu todos os direitos e obrigações da anterior (cf. projeto de fusão transfronteiriça e notificação de fusão transfronteiriça, realizada ao abrigo do artigo 13.º da Diretiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada, junto ao PPA como documento n.º 3).
  6. Em resultado da descrita operação de fusão, a B... assumiu a detenção direta de 100% do capital social da Requerente (€ 200.000.000,00) e a posição contratual da I... no acordo de cash pooling, o qual se manteve permanentemente em vigor entre as várias entidades do Grupo, e passou a ser a entidade centralizadora do Grupo (cf. referido no 15.º do PPA e 9.º da Resposta da AT, e resulta do certificado emitido pelo G..., que confirma a detenção de 40.000.000 ações, correspondentes à totalidade do capital social da Requerente, por parte da B..., junto ao PPA como documento n.º 1).
  7. Por referência às operações de concessão de crédito no âmbito do acordo de cash pooling em causa, realizadas no período compreendido entre abril de 2020 e junho de 2021, a Requerente apurou e liquidou Imposto do Selo no montante total de € 137.592,05 (cf. documentos 4, 5, 6 e 7 juntos ao PPA).
  8. Por entender que o Imposto do Selo liquidado sobre estas operações de concessão de crédito se mostra ilegalmente devido, por estarem verificados os pressupostos de isenção previstos na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, a Requerente apresentou uma reclamação graciosa em 14-10-2021, que correu termos sob o n.º ...2021... (cf. cópia da reclamação graciosa junta ao PPA como documento n.º 8).
  9. Por Ofício de 10-12-2021, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento da referida reclamação graciosa, assente nos seguintes fundamentos:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(cf. documento n.º 9 junto ao PPA).

  1. A Requerente exerceu o direito de audição prévia e remeteu à AT os seguintes documentos:

 

(cf. documento n.º 10 junto ao PPA).

  1. Em 10-02-2022, a Requerente foi notificada do Ofício de 04-02-2022, mediante o qual a AT indeferiu a reclamação graciosa em apreço, com os fundamentos contidos no projeto de indeferimento, aos quais foram aditadas as seguintes considerações:

 

 

 

(cf. documento n.º 10 junto ao PPA).

  •  O Requerente apresentou o PPA que deu origem ao presente processo arbitral em 11-05-2022.

 

 

§2. Factos não provados

Não se consideram por não provados quaisquer factos relevantes para a apreciação do mérito da causa.

 

§3. Fundamentação da matéria de facto

            Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

            Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, relativamente à prova produzida, o princípio da livre apreciação. 

Os factos elencados supra foram dados como provados e não provados com base nas posições assumidas pelas partes e nos documentos juntos aos autos.

O artigo 74.º, n.º 1, da LGT estabelece que “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. No específico caso dos benefícios fiscais, o artigo 14.º, n.º 2, da LGT estabelece que “os titulares de benefícios fiscais de qualquer natureza são sempre obrigados a revelar ou a autorizar a revelação à administração tributária dos pressupostos da sua concessão, ou a cumprir outras obrigações previstas na lei ou no instrumento de reconhecimento do benefício, nomeadamente as relativas aos impostos sobre o rendimento, a despesa ou o património, ou às normas do sistema de segurança social, sob pena de os referidos benefícios ficarem sem efeito”. Desta norma infere-se que o ónus da prova dos pressupostos dos benefícios fiscais recai sobre os respetivos beneficiários e concretiza-se através da revelação desses pressupostos ou autorização para eles serem revelados à Administração Tributária. Na falta de cumprimento desse ónus, os benefícios fiscais ficam sem efeito, como estatui a parte final daquele n.º 2 do artigo 14.º.

Contudo, tal como referido infra, não é exigível à Requerente que prove o prazo das operações de concessão de crédito em causa, ou que os fundos objeto do contrato de cash pooling não foram obtidos com recurso a financiamento junto de instituições de crédito ou sociedades financeiras, para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Questões a decidir

            O PPA foi deduzido na sequência do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações de Imposto do Selo (Verba 17.1.4 da TGIS - operações financeiras) constantes das guias n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., referentes aos períodos de abril a dezembro de 2020, e refletidas nas declarações mensais n.º ..., ..., ..., ..., ..., ..., respeitantes aos períodos de janeiro a junho de 2021, no montante total de € 137.592,05, e cujos termos correram sob o n.º de procedimento ...2021... .

            Importa começar por apreciar a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral (por impossibilidade de impugnação contenciosa direta dos atos de autoliquidação) invocada pela Requerida, por a Requerente ter invocado no PPA um argumento que não havia invocado em sede de reclamação graciosa.

            A este propósito interessa sublinhar que a causa de pedir do PPA (enquanto alternativa à impugnação judicial) não está limitada aos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do ato tributário, tal como resulta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-06-2015, em cujo sumário se pode ler:

“Na impugnação judicial subsequente a decisão da AT que recaia sobre reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa do acto tributário, podem, e devem, os órgãos jurisdicionais conhecer de todas as ilegalidades de substância que afectem o acto tributário em crise, quer essas ilegalidades tenham ou não sido suscitadas na fase graciosa do litígio, impondo-se-lhes um dever acrescido quando se tratem de questões de conhecimento oficioso.”

Neste mesmo sentido também se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul em 27-04-2017, no recurso n.º 08958/15 (deduzido contra a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 657/2014-T), no qual se colocou precisamente a questão ora suscitada pela AT, i.e., a questão de saber se, em caso de reclamação graciosa necessária, apenas os vícios imputados pelo contribuinte na reclamação poderão ser fundamentos de impugnação contenciosa. Neste Acórdão pode ler-se o seguinte:

“Na economia da decisão arbitral considerou-se que, estando em causa autoliquidação de IVA 2009 e 2010, sujeita ao esgotamento prévio dos meios graciosos, não pode em sede de impugnação arbitral, a impugnante invocar novos vícios que anteriormente, em sede de reclamação graciosa, não tenha invocado. Mais se refere que não cabe, nesta sede, aplicar o disposto no artigo 131.º/3, do CPPT, o qual respeita a uma situação de impugnação contenciosa directa da autoliquidação, diversa da que foi considerada na decisão em exame. Esta última considerou que os vícios imputados pela impugnante ao acto tributário, em sede de reclamação graciosa, não coincidem com os vícios alegados na petição inicial de pronúncia arbitral, o que viola o pressuposto da arbitrabilidade tributária dos litígios fiscais, previsto no preceito do artigo 2.º, alínea a), da Portaria de vinculação à arbitragem da DGCI e da DGAIEC. Mais se refere que a invocação do disposto no preceito do artigo 131.º/3, do CPPT, colide com o regime do preceito do artigo 2.º, alínea a), da Portaria de vinculação, citado, que estabelece a necessidade da invocação prévia em sede administrativa dos vícios que constituem a causa de pedir do pedido de pronúncia arbitral, afastando a possibilidade de dedução directa, junto do tribunal arbitral, do pedido de anulação do acto tributário. (…)

A questão que se suscita consiste em saber se a cláusula compromissória em apreço estabelece a necessidade da invocação prévia em sede administrativa dos vícios que constituem a causa de pedir do pedido de pronúncia arbitral, assumindo a sua não invocação em sede administrativa o efeito preclusivo da competência do tribunal arbitral para dirimir o litígio em presença, como se decidiu na decisão impugnada. Do regime dos poderes de cognição do órgão competente para decidir a reclamação (artigo 192.º/2, do CPA) ou o recurso hierárquico (artigo 197.º/3 e 4, do CPA), resulta que o mesmo tem competência para anular, revogar ou substituir o acto impugnado, o que se coaduna com o princípio do inquisitório a que estão sujeitos tais procedimentos. Ao invés do que sucede com o processo arbitral (artigo 40.º/1/b), do CPC, ex vi artigo 29.º/1/e), do RJAT), os procedimentos administrativos de segundo grau não se mostram sujeitos à regra do patrocínio judiciário obrigatório, pelo que a dedução de impugnação administrativa com efeito preclusivo quanto aos fundamentos pode redundar numa compressão ilegal das garantias contenciosas do contribuinte que não é licenciado em direito nem tem de ser. (…) As impugnações administrativas constituem formas de tutela do contribuinte perante o Fisco, de forma que a instauração do seu procedimento reabre a apreciação da situação subjacente ao acto tributário, o qual não se consolida até ao trânsito em julgado da decisão judicial incidente sobre a sua impugnação. De onde resulta que associar o efeito preclusivo da competência do tribunal arbitral à não invocação na sede administrativa de certo vício fundamento do pedido de pronúncia arbitral colide com o regime das impugnações administrativas como garantias dos contribuintes no quadro do direito à tutela jurisdicional efetiva (artigo 268.º, n.º 4, da CRP; artigo 20.º da CRP e artigo 6.º da CEDH). A restrição do universo de elementos constitutivos da causa de pedir arbitral em função da discussão efectuada em sede procedimental constitui uma restrição desproporcionada da tutela judicial efectiva, na medida em que a garantia do cumprimento da legalidade fiscal assegurada pelos procedimentos administrativos de revisão do acto tributário não pode operar como um impedimento de tal revisão em sede contenciosa, seja a mesma garantida através de um tribunal do Estado, seja a mesma garantida através de um tribunal arbitral. De outro modo, é a tutela judicial efectiva assegurada através do tribunal da causa que sairia defraudada.”

Com este fundamento, que acompanhamos, improcede a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral.

            Ainda como questão preliminar há que apreciar a admissibilidade dos argumentos novos apresentados pela Requerida na Resposta, que não constam como fundamento do indeferimento da reclamação graciosa relativa aos atos em apreciação. In casu, consiste um argumento novo a alegação de que a Requerente não fez prova do prazo da operação financeira (i.e., de que os empréstimos não foram superiores a um ano).

Constitui jurisprudência reiterada do Douto Supremo Tribunal Administrativo que, no contencioso de mera legalidade (como é o caso do processo arbitral), “o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-10-2020, processo n.º 02887/13.8BEPRT).

O mesmo princípio havia já sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Administrativo anteriormente:

“A fundamentação dos actos administrativos e tributários a posteriori não é legalmente consentida (...), sendo a validade do acto terá necessariamente que ser apreciada em função dos fundamentos de facto e de direito que presidiram à sua prática, irrelevando os que posteriormente lhe possam ser “aditados”” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22-03-2018, processo n.º 0208/17).

“A decisão em matéria de procedimento tributário, além de dever respeitar os princípios da suficiência, da clareza e da congruência, deve, por outro lado, ser contextual ou contemporânea do acto, não relevando a fundamentação feita a posteriori” (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-07-2016, processo n.º 01436/15).

O mesmo entendimento encontra-se refletido na jurisprudência arbitral, conforme resulta das Decisões Arbitrais de 02-02-2015, processo n.º 628/2014-T; de 08-02-2019, processo n.º 452/2018-T; de 11-01-2021, processo n.º 411/2020-T; de 21-01-2021, processo n.º 865/2019-T; de 25-01-2021, processo n.º 851/2019-T; de 07-09-2021, processo n.º 646/2020-T; de 06-10-2021, processo n.º 57/2021-T; de 21-02-2022, processo n.º 440/2021-T; de 18-05-2022, processo n.º 818/2021-T; de 30-10-2022, processo n.º 59/2022-T; de 07-03-2023, processo n.º 308/2022-T.

            Estando o Tribunal Arbitral adstrito a apreciar a legalidade dos atos tributários contestados tal como foram praticados, e não sendo relevantes os fundamentos legais suscitados pela Requerida a posteriori, o argumento da Requerida segundo o qual a Requerente não fez prova do prazo das operações financeiras em análise não será considerado por este Tribunal porquanto não consta da fundamentação contemporânea dos atos impugnados.

Na verdade, à luz da referida jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e jurisprudência arbitral, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar a legalidade dos atos tributários contestados no presente processo à luz do contexto e conteúdo da decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2021... . Da leitura desta decisão resulta que a reclamação graciosa apresentada pela Requerente foi indeferida com o fundamento de que a Requerente não provou que a linha de crédito que disponibilizou à B... não tinha origem em fluxos financeiros exteriores ao grupo, para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

            Considerando o fundamento da decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa e a posição da Requerente no PPA, cumpre ao Tribunal decidir as seguintes questões:

  1. Se a utilização de crédito, no âmbito de um contrato de centralização de tesouraria (contrato de “cash pooling”), concedido pela Requerente (residente em Portugal) à B... (residente em França) se encontra sujeito a Imposto do Selo em Portugal, nos termos da Verba 17.1.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo e do artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo?
  2. Se, em caso de aplicação do Imposto de Selo à supra referida utilização de crédito, o empréstimo concedido pela Requerente (residente em Portugal) à B... (residente em França) beneficia da isenção consignada na alínea h) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, em consonância com o Direito da União Europeia?
  3. Se a Requerente tinha o ónus de provar que a linha de crédito que disponibilizou à B... não tinha origem em fluxos financeiros exteriores ao grupo, para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo?
  4. Do envio prejudicial.
  5. Dos juros indemnizatórios.

 

§2. Do direito aplicável (redação relevante à data dos factos)

            O artigo 1.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo (“Incidência objetiva”) dispõe que “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.”

            De acordo com as Verbas 17.1 e 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o imposto incide sobre a utilização do crédito, incluindo as operações de tesouraria que envolvam qualquer tipo de financiamento, sendo aplicável a taxa de 0,04% ao “Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30”.

            No n.º 1 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo (“Territorialidade”) pode ler-se que: “Sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional.” A alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo dispõe que são ainda sujeitas a imposto as “operações de crédito realizadas (...) por quaisquer (...) entidades, independentemente da sua natureza, sediadas no estrangeiro, ou quaisquer (...) entidades, sediadas em território nacional, a quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, domiciliadas neste território, considerando-se domicílio a sede, filial, sucursal ou estabelecimento estável”.

            Nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, na redação dada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março (em vigor desde 01-04-2020), estão isentos de imposto do selo: “Os empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”.

            Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece uma restrição a esta isenção:

“O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direcção efectiva no território nacional, com excepção das situações em que o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional.”

Adicionalmente, determina o n.º 3 do mesmo normativo que “O disposto nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 não se aplica quando qualquer das sociedades intervenientes ou o sócio, respetivamente, seja entidade domiciliada em território sujeito a regime fiscal privilegiado, a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças”.

No âmbito do mesmo quadro legal, acrescenta ainda o n.º 8 o seguinte: “(…) para efeitos do disposto na alínea h) do n.º 1, existe relação de domínio ou grupo, quando uma sociedade, dita dominante, detém, há mais de um ano, direta ou indiretamente, pelo menos, 75 % do capital de outra ou outras sociedades ditas dominadas, desde que tal participação lhe confira mais de 50 % dos direitos de voto”.

 

§3. Da incidência territorial do Imposto do Selo

As operações financeiras concretizadas entre a Requerente (com residência em Portugal), na posição de concedente do crédito, e a B... (com residência em França), na posição de devedora, consubstancia um contrato de gestão centralizada de tesouraria que os grupos de empresas vêm praticando sob diversas modalidades, internacionalmente designados por contrato de cash pooling.

Não havendo dúvida de que se realizaram várias operações de transferência de saldos da conta da Requerente (com residência em Portugal) para a conta da B... (com residência em França), de que esta sociedade utilizou o crédito concedido por aquela, e de que ambas se encontram numa relação de domínio ou de grupo, interessa determinar se estas transações se encontram sujeitas a Imposto do Selo em Portugal ao abrigo do disposto no artigo 4.º do Código do Imposto do Selo.

A Requerente defende que o facto tributário que predetermina a incidência do Imposto do Selo, mais precisamente da Verba 17.1.4. da Tabela Geral do Imposto do Selo (a efetiva utilização do crédito), só ocorre em território português se a utilização do crédito ocorrer em território português. Este é o entendimento preconizado no Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, de 25-03-2021, proferido no processo n.º 675/03.9BTLRS:

“(...) a sujeição a imposto de selo do crédito utilizado, no atual CIS, encontra-se condicionada pela conexão que a situação apresente com o território português, sendo esta conexão determinada pelo local onde se verifica a utilização do crédito, por força da regra da territorialidade.

Nos termos do artigo 1.º do CIS, para determinar a relevância da tributação, em sede de imposto de selo, em sede das operações financeiras é relevante a “utilização de crédito”, ou seja, o momento em que se utilizam os fundos colocados à disposição de acordo com o contratado, o qual ocorre no local onde o seu utilizador recebe o capital.

(...)

No caso em análise, as utilizadoras dos créditos (sociedades brasileiras) são residentes fora do território de Portugal, pelo que, entendemos que nas operações em apreço, em que a utilização do crédito foi efectuada fora do território nacional, por entidades não residentes, não é devido imposto de selo, ao abrigo da regra da territorialidade.”

Esta interpretação do artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo relativamente a operações de concessão de crédito foi também adotada pelo Tribunal Arbitral no processo n.º 530/2020-T, no âmbito do qual foi proferida Decisão em 17-01-2022, na qual se pode ler:

“(...) atentas as regras de territorialidade previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Código do Imposto, será tributada a utilização de crédito de empresa portuguesa proveniente de cedente/entidade não residente, por aplicação da verba 17.1.4 da TGIS. Esta verba tem por finalidade tributar operações de financiamento, cujo crédito será utilizado sob a forma de conta corrente.

(...)

48. In casu, a entidade financiadora (mutuante) é a Requerente e a entidade financiada é uma entidade com sede em França e utilizadora dos excedentes de tesouraria disponibilizados pela Requerente, que, sendo estrangeira, não está obrigada a imposto do selo à luz do direito português. Nesta medida, não se verificam os pressupostos de incidência subjetiva e geográfica do imposto do selo, em ordem a justificar a manutenção na ordem jurídica dos atos de autoliquidação impugnados.

49. Deste modo, ainda que a tributação em sede de imposto do selo se faça em função do contrato de concessão do crédito, o facto tributário não se formará se não se verificar a efetiva utilização do crédito e atenta a regra da territorialidade prevista no artigo 4.º do CIS, a utilização do crédito ter-se-á que verificar em território nacional, independentemente da entidade cedente do crédito (credora) ser residente ou não residente em território nacional. Ora, in casu, a entidade utilizadora do crédito (devedora) não é residente em território nacional, pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos da incidência do imposto do selo (…)”.

            À luz desta jurisprudência, que acompanhamos, temos que assiste razão à Requerente. É que, no âmbito da redação do Código do Imposto do Selo em vigor em 2020 e 2021, o imposto incidia sobre as utilizações efetivas de crédito, e não sobre a celebração dos contratos que lhes deram origem.

De facto, se é verdade que a concessão de crédito está sujeita a Imposto do Selo, qualquer que seja a natureza e forma, também é verdade que o que releva, para efeitos do Código do Imposto do Selo, é a efetiva utilização do crédito concedido, e não o contrato que lhe é subjacente. Teremos, assim, que concluir que a mera celebração do contrato de concessão de crédito nem sempre gera facto tributário do imposto.

Em suma: à luz do texto das Verbas 17.1 e 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o que releva para efeitos de tributação em Imposto do Selo, é a utilização efetiva de crédito, e não a celebração do contrato que lhe deu origem. Não havendo nada na letra de lei que permita concluir que a sujeição a Imposto de Selo de um crédito se encontra condicionada pelo local onde se verifica a concessão do crédito, a  interpretação segundo a qual uma operação de crédito está sujeita a Imposto de Selo se o credito for concedido em Portugal, ao alargar o âmbito de incidência do Imposto do Selo para além do âmbito de incidência expressa no texto da lei (interpretação extensiva), ofende o princípio da legalidade constitucionalmente consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP (segundo o qual só podem ser cobrados os impostos quando se verificam os pressupostos aos quais a lei condiciona a existência de uma obrigação fiscal), e o princípio da tipicidade dele decorrente (nos termos do qual não haverá imposto a que não corresponda a uma definição legal, a um tipo legal).

Acresce que, em caso de dúvida relativamente ao âmbito de incidência do Imposto do Selo, o interprete deverá conceber o âmbito de incidência de um imposto em termos estritos, e aceder à aplicação do mesmo apenas nos casos inequivocamente previstos na lei. Tal como referido no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29-01-2020:

“I - Em concordância com o princípio da legalidade dos impostos, estes só podem ser cobrados quando se verificam os pressupostos aos quais a lei condiciona a existência de uma obrigação fiscal devendo o intérprete cuidar de a conceber em termos restritos, aplicável, consequentemente, apenas aos casos e situações inequivocamente naquela previstos.

II - A tributação só pode resultar da verificação concreta de todos os pressupostos tributários, como tais previstos e descritos, abstractamente, na lei de imposto. Se não se verificar um dos pressupostos, já não é possível a tributação, por obediência ao princípio da tipicidade do imposto.”

Pelas razões expostas supra, conclui o presente Tribunal Arbitral o seguinte:

  • A sujeição a Imposto de Selo do crédito utilizado encontra-se condicionada pela conexão que a situação apresente com o território português, sendo esta conexão determinada pelo local onde se verifica a utilização do crédito, por força da regra da territorialidade contida no artigo 4.º do Código do Imposto do Selo.
  • Relativamente à concessão de crédito no quadro de uma relação de cash pooling, não será tributada em sede de Imposto do Selo a utilização de fundos consumada fora de território português.

Nestes termos, e com os fundamentos expostos supra, o Tribunal Arbitral julga ilegais e anula os atos de autoliquidação de Imposto do Selo efetuados através das guias n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., de abril a dezembro de 2020, e refletidos nas declarações mensais n.º ..., ..., ..., ..., ..., ..., períodos de janeiro a junho de 2021, no montante total de € 137.592,05, por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito.

Na justa medida em que manteve na ordem jurídica estes atos de autoliquidação, a decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2021... padece de igual vício invalidante, o que importa a respetiva anulação (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).

Como se demonstrará em seguida, mesmo que se entendesse que a conexão relevante para aferir a incidência territorial do Imposto do Selo é o local da concessão do crédito, e que a Requerente atuou bem ao proceder às autoliquidações de Imposto do Selo identificadas supra, sempre as mesmas seriam ilegais.

Senão vejamos.

 

§4. Da isenção da alínea h) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo

As normas internas relativas ao Imposto do Selo podem constituir uma ingerência na liberdade e circulação capitais na medida em que dissuadam os residentes de celebrar contratos de mútuo com pessoas estabelecidas noutros Estados-Membros.

Da aplicação textual da alínea h) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo ao caso sub judice, apenas os empréstimos concedidos, no âmbito de um contrato de gestão centralizada, pela B... (com residência em França) à Requerente (com residência em Portugal) estariam isentos de Imposto do Selo. Considera a Requerente que, ao excluírem desta isenção os empréstimos concedidos pela Requerente (com residência em Portugal) à B... (com residência em França), os preceitos referidos estão em desconformidade com o princípio da liberdade de estabelecimento consagrado no TFUE.

Têm vindo os tribunais arbitrais a concluir que a recusa em aplicar a isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo, conjugado com o n.º 2 do mesmo artigo, nos casos em que o devedor tem sede ou direção efetiva num Estado-Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE (e.g., Decisões Arbitrais de 30-10-2022, processo n.º 59/2022-T; e de 07-03-2023, processo n.º 308/2022-T).

Na Decisão Arbitral de 06-10-2021, processo n.º 57/2021-T, referente à isenção contida na alínea g) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, mas aplicável mutatis mutantis à isenção contida na alínea h) do mesmo número, pode ler-se:

“(...) conforme expressamente definido pela Diretiva 88/361/CEE, do Conselho, de 24 de Junho de 1988 para execução do artigo 67º do Tratado, os empréstimos, designadamente os de curto prazo, são considerados movimentos de capitais. Aquela alínea g) do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 7º do CIS consubstanciam uma restrição à livre circulação de capitais que não pode ser justificada à face do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), designadamente os seus artigos 63º e 65º.

São comparáveis as situações de residentes e não residentes quanto a um imposto de obrigação única cobrado sobre o valor de um acto.

Perante uma vantagem fiscal cujo benefício seja recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação, na acepção do Tratado, quando não exista qualquer diferença objectiva de situação susceptível de justificar diferenças de tratamento, quanto a este aspecto, entre as duas categorias de contribuintes.

Não se encontrando qualquer razão de interesse público que possa justificar tal tratamento discriminatório, ter-se-á de concluir que a exclusão de aplicação da isenção a entidades devedoras residentes na União Europeia constitui uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais e um tratamento discriminatório dos não residentes, devendo por isso tal norma ser considerada ilegal por incompatível com o artigo 63º do TFUE.”

No sentido da aplicação desta análise quanto à isenção contida na alínea h) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, ver: Decisão Arbitral de 30-10-2022, processo n.º 59/2022-T.

Face ao exposto e acompanhando a jurisprudência arbitral dominante, há que concluir que a restrição do âmbito de aplicação da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, que se previa no n.º 2 do mesmo artigo na redação vigente nos anos de 2020 e 2021, nas situações em que o devedor do crédito é residente em França e o credor é residente em Portugal, constitui uma restrição injustificada à livre de circulação de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE, pelo que tal restrição não pode ser aplicada no ordenamento tributário nacional.

O Tribunal rejeita o argumento da Requerida de que, para que se possa concluir no sentido da existência de uma eventual restrição à livre circulação de capitais e do carácter potencialmente discriminatório do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, que sujeita a tributação as transferências financeiras realizadas entre sociedades residentes e não residentes, afastando estas últimas da isenção, teria de ficar demonstrado que o Imposto do Selo suportado em Portugal pelas operações de financiamento em causa originou uma tributação cuja dedução ao lucro tributável seria impossível de concretizar pelas sociedades não residentes beneficiárias dos empréstimos concedidos por sociedades residentes. Isto porque o valor de uma isenção fiscal não é necessariamente equivalente ao valor de uma dedução ao lucro tributável, sendo aquela tendencialmente mais benéfica do que esta.

Conclui-se, assim, que também com este fundamento não podem os atos de autoliquidação de Imposto do Selo efetuados através das guias n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., de abril a dezembro de 2020, e refletidos nas declarações mensais n.º ..., ..., ..., ..., ..., ..., períodos de janeiro a junho de 2021, no montante total de € 137.592,05, nem a decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2021..., persistir na ordem jurídica, porquanto se basearam numa norma incompatível com o Direito da União Europeia, justificando-se assim a sua anulação.

 

§5. Da exigência da prova da origem dos fundos ao abrigo do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo

A AT fundamentou o indeferimento da reclamação graciosa no facto de a Requerente não ter provado a que a linha de crédito que disponibilizou à B... não tinha origem em fluxos financeiros exteriores ao grupo (i.e., que os fundos objeto do contrato de cash pooling não foram obtidos com recurso a financiamento junto de instituições de crédito ou sociedades financeiras), para efeitos do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo. Mais alegou que, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, competia à Requerente esta prova.

Por sua vez, a Requerente alega no PPA que a prova exigida pela AT relativamente à origem dos fundos apenas se aplica quando o credor do empréstimo é residente na União Europeia e o devedor do crédito é residente em Portugal. Ora, no caso dos autos, a Requerente (credor do empréstimo) é residente em Portugal pelo que nunca teria o ónus de provar que os fundos objeto do contrato de cash pooling não foram obtidos com recurso a financiamento junto de instituições de crédito ou sociedades financeiras. Na Resposta ao PPA, a Requerida parece aceder ao argumento da Requerente de que a prova em apreço não é exigível à Requerente, porquanto nos autos então em causa empréstimos feitos pela Requerente (residente em Portugal) a favor da B... (residente em França).

Não havendo desacordo entre as Partes quanto a esta questão, e resultando a resposta à mesma do texto da lei, que não deixa margem para dúvidas, torna-se desnecessário conhecer e apreciar a compatibilidade da interpretação do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo sustentada pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa (entretanto abandonada no PPA) com o Direito da União Europeia.

Por este motivo, e com os fundamentos supra expostos, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula os atos tributários objeto do presente processo arbitral também com este fundamento.

 

§6. Do reenvio prejudicial

Nos artigos 19.º, n.º 3, alínea b), e 267.º do TFUE prevê-se o reenvio prejudicial para o TJUE, que é obrigatório quando uma questão sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União Europeia seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.

Todavia, conforme resulta do Acórdão do TJUE de 06-10-1982, caso Cilfit, processo n.º 283/81, não é necessário proceder a essa consulta quando existe um precedente na jurisprudência europeia, ou quando, não obstante as questões em apreço não serem estritamente idênticas a um precedente na jurisprudência europeia, a correta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de Direito da União Europeia suscitada (doutrina do ato claro).

Acresce que, tal como referido pelo TJUE, “compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça” (Acórdãos de 10-07-2018, processo C-25/17, e de 02-10-2018, processo C-207/16).

Afigura-se a este Tribunal Arbitral que a interpretação das normas de Direito da União Europeia que é necessária para a apreciação da legalidade dos atos tributários objeto do PPA apresentado pela Requerente é clara em função da jurisprudência do TJUE e dos Tribunais Arbitrais referida supra, não havendo necessidade de efetuar o reenvio prejudicial para o TJUE.

 

 

§7. Dos juros indemnizatórios

 

Conjuntamente com a anulação dos atos de autoliquidação de Imposto do Selo contestados, e da decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente com referência aos mesmos atos de autoliquidação, a Requerente requer que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da LGT.

Nos termos da norma do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, serão devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Há que referir que, em face da norma do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral, pelo que, assim, importa conhecer do pedido da Requerente, sendo que o direito a juros indemnizatórios pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal pagamento indevido derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

Cabe ainda referir que, de harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT), o qual estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

In casu, os atos de autoliquidação do Imposto do Selo foram da iniciativa do sujeito passivo, a ora Requerente, pelo que, neste caso, não é possível imputar qualquer tipo de erro aos serviços da AT na efetivação dos atos de autoliquidação do Imposto do Selo alvo do presente pedido arbitral. Porém, na sequência da dedução da reclamação graciosa contra os atos de autoliquidação de Imposto do Selo em apreço, em face das alegações produzidas pela Requerente no procedimento de reclamação graciosa, a AT teve a oportunidade de proceder à análise e avaliação da matéria controvertida e podia ter efetuado o correto enquadramento jurídico-tributário dos factos e, consequentemente, ter efetuado a plena reconstituição da legalidade dos atos ou da situação objeto do litígio. Não o tendo feito, os serviços da AT cometeram um erro que lhes é imputável, do qual resultou a manutenção de um imposto por montante superior ao devido (€ 137.592,05), havendo consequentemente direito a juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

Quanto à data a partir dos quais os juros indemnizatórios devem ser contados, interessa sublinhar que, tendo a AT indeferido a reclamação graciosa no prazo de 4 meses previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT (que começou a contar em 14-10-2021 e terminou em 14-02-2022), e tendo a Requerente sido notificada deste indeferimento em 10-02-2022, os juros sobre o montante de € 137.592,05 começam a contar do dia 11-02-2022 até à data do processamento do reembolso (nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

  1. DECISÃO

Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegais e anular os atos de autoliquidação de Imposto do Selo efetuados através das guias n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., de abril a dezembro de 2020, e refletidos nas declarações mensais n.º..., ..., ..., ..., ..., ..., períodos de janeiro a junho de 2021, no montante total de € 137.592,05;
  2. Declarar ilegal e anular a decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2021...;
  3. Condenar a AT a reembolsar à Requerente o montante de € 137.592,05 e ao pagamento de juros indemnizatórios sobre este valor, contados desde o dia 11-02-2022 até à data do processamento do reembolso (nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

  1. VALOR DA CAUSA

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 137.592,05, correspondente ao valor contestado pelo Requerente (conforme indicado no PPA e não contestado pela Requerida).

 

  1.   CUSTAS

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT, 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em € 3.060,00, ficando as mesmas a cargo da Requerida em razão do decaimento.

Notifique-se.

Lisboa, 17 de julho de 2023

 

A Presidente do Tribunal Arbitral,

 

 

Rita Correia da Cunha

 

O Árbitro Adjunto,

 

 Gonçalo Estanque

(com declaração de voto que se anexa)

 

O Árbitro Adjunto,

 

 

Diogo Feio

 

 

 

Declaração de Voto

Concordo com a decisão, i.e. procedência do pedido com a consequente anulação dos atos tributários em crise (com o reembolso à Requerente do montante de €137.592,05, acrescido de juros indemnizatórios) e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

Mas não acompanho integralmente a fundamentação.

 

            Entendo que, o legislador não foi propriamente feliz na redação das normas do Código do Imposto de Selo em crise (artigos 4.º, n.os 1 e 2 - em particular a alínea b) - 7.º, n.os 1, alínea h) e 2, bem como as Verbas 17.1 da Tabela Geral de Imposto do Selo). Não obstante, cabe a este Tribunal Arbitral encontrar uma forma coerente de conjugar as referidas normas.

Na minha opinião, a solução mais coerente é aquela é que é apresentada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no Proc. n.º 0800/17 (datado de 14-03-2018):

“Quando a utilização do crédito não for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que não coincide com a data de celebração do contrato de concessão de crédito. O facto tributário eleito para tributação é, sempre, a concessão de crédito em que uma parte se obriga a realizar uma prestação de valores monetários a outra que por sua vez se obriga a restituir aquele montante (em singelo ou acrescido de valor convencionado), no futuro.

A utilização de crédito com base em negócio jurídico de concessão de crédito é que torna aparente o contrato de concessão de crédito que o legislador quer tributar. Até que essa utilização se verifique, não há lugar a tributação e esta, quanto à sua taxa, depende muito do valor e periodicidade da utilização”.

 

Razão pela qual, na minha opinião, o Tribunal deveria ter concluído, isso sim, pela sujeição das presentes operações a Imposto do Selo. Assim sendo, o próximo passo seria determinar se se aplicaria a isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h) e n.os 2 e 3 do Código do Imposto do Selo.

 

Na minha opinião, encontram-se preenchidos os requisitos para a aplicação de tal isenção. Senão vejamos:

A alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS (com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março) isenta de imposto do selo, “Os empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”.

Ora, por um lado, não é controvertida a questão da relação de domínio ou de grupo ou da existência de um contrato de gestão centralizada de tesouraria e, por outro lado, entendo que os elementos carreados aos autos (e.g. extratos contabilísticos, extratos bancários, etc.) demonstram que estamos perante empréstimos concedidos por prazo não superior a um ano. Ademais, a Requerida não coloca fundadamente em causa tal requisito (não é plausível que o facto do contrato subjacente ao cash pooling ter sido celebrado por tempo indeterminado seja um forte indício de que os empréstimos perdurarão por mais de um ano, conforme defende a AT).

Assim, importaria, pois, determinar se o requisito constante do n.º 2 do artigo 7.º do Código de Imposto do Selo se encontra preenchido. Estabelece a referida norma que “o disposto nas alíneas g) e h) do n.o 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direcção efectiva no território nacional, com excepção das situações em que o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.o 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”.

É certo que no presente processo é o devedor (B..., com sede em França), e não o credor (a ora Requerente), que tem a sua sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia. Porém, na minha opinião, tal não impossibilita a aplicação da supra referida isenção.

Apesar de entender que a incompatibilidade com o Direito da União Europeia não se encontra isenta de dúvidas, atendendo à natureza do Imposto do Selo e do respectivo sujeito passivo do Imposto, a verdade é que é o próprio legislador que confessa a existência de uma “incompatibilidade” com o Direito da União Europeia. De facto, a Lei do Orçamento de Estado para 2022 introduziu a possibilidade de um “devedor” com sede noutro Estado-Membro da União Europeia (conforme sucede no caso sub judice) também beneficiar desta isenção. Esta alteração, conforme se refere na nota justificativa da proposta de lei[1], visou “(...) compatibilizar [o n.º 2] com o Direito Europeu, em linha com a jurisprudência produzida nesta matéria”.

Ou seja, admitindo o próprio legislador que o regime vigente antes da alteração constante da Lei do Orçamento de Estado para 2022 era incompatível como o “Direito Europeu”, então, ter-se-á de interpretar o n.º 2 do artigo 7.º do Código de Imposto do Selo (na sua redação vigente antes da Lei do Orçamento de Estado para 2022) em conformidade com o Direito da União Europeia, i.e. uma interpretação que permita também a um devedor residente noutro Estado-Membro aceder àquela isenção desde que cumpridos os demais requisitos.

 

Os demais requisitos são aqueles que constam dos n.os 2 (in fine) e 3, ambos, do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo. As referidas normas referem que:

  1. “(...) subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional” (artigo 7.º, n.º 2, in fine)
  2. O n.º 3 da referida norma refere que “O disposto nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 não se aplica quando qualquer das sociedades intervenientes ou o sócio, respetivamente, seja entidade domiciliada em território sujeito a regime fiscal privilegiado, a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças”.

Ora, não me parece que o primeiro requisito acima referido seja exigido numa situação em que o credor é residente em Portugal. No entanto, a verdade é que tal requisito é, in casu, irrelevante porquanto ficou provado que os únicos empréstimos obtidos pela Requerente foram aqueles concedidos pelo BEI - Banco Europeu de Investimento (vide Relatórios de Contas para 2020 e 2021 da Requerente), os quais foram celebrados em 2001, 2002 e 2009 (cfr. Docs. 13, 14 e 15 juntos com o PPA). A verdade é que é simplesmente impossível estabelecer qualquer conexão entre os fundos provenientes dos referidos empréstimos. Por um lado, a Requerente apenas integrou o cash pooling do grupo em 2014, ou seja vários anos após a celebração dos referidos contratos de financiamento com o BEI e, por outro lado, aquando da celebração dos contratos de financiamento com o BEI o processo de privatização da Requerente não tinha sequer sido aprovado (o mesmo foi aprovado apenas em 29 de Outubro de 2012 pelo Decreto-Lei n.º 232/2012).

É, pois, evidente e não contestado que nenhum dos intervenientes é residente fiscal num regime de tributação privilegiada claramente mais favorável.

Teriam, pois, sido estes os fundamentos por mim utilizados para fundamentar a presente decisão arbitral. Ademais, entendo que, as restantes questões invocadas pela Requerente não deveriam ter sido conhecidas por este Tribunal Arbitral, dado que concluiu-se que sobre as operações em crise não incide Imposto do Selo (por falta de “conexão territorial”). Assim, a apreciação das restantes questões, na minha opinião, deveria, pois, ter-se por prejudicada (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

 Gonçalo Estanque