Sumário:
- A jurisprudência do TJUE e os acórdãos uniformizadores do STA relativos à aplicação do disposto no 43º, nº 2, al. b), do CIRS (integração na matéria coletável de apenas 50% do valor das mais-valia imobiliárias) referem-se a pessoas singulares.
- O decidido por tais acórdãos não é transponível para o caso de sociedades não residentes sem estabelecimento estável, sujeitos passivos de IRC.
- A al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS tem a natureza de desagravamento estrutural, necessário por estarem em causa rendimentos sujeitos, nesse imposto, a englobamento obrigatório e, consequentemente, a taxas progressivas.
- Não existe norma paralela no CIRC, por desnecessária, dado ser diferente a estrutura deste imposto, nomeadamente a existência de taxas progressivas.
- A falta de analogia das situações impede a aplicação da al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS a sujeitos passivos de IRC.
DECISÃO ARBITRAL
A... LIMITED, com sede em ..., Estados Unidos da América, NIPC..., adiante designada por Requerente, veio, nos termos legais, solicitar a constituição de Tribunal Arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – Relatório
A) - O Pedido
A Requerente pede:
a) a anulação da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa que deduziu contra a autoliquidação a seguir identificada;
b) a anulação parcial da autoliquidação de IRC nº n.º ...-... -..., que deu origem ao documento de liquidação ..., relativa ao período de tributação de 2021, considerando ser o montante de imposto indevidamente pago de € 680.252,61;
c) a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
B) O litígio
A Requerente alienou, em 2001, um imóvel sito no nosso país.
Entende que à mais-valia assim obtida é aplicável o disposto no art. 43º, al. d), do CIRS, pelo que considera ter autoliquidado e pago imposto (IRC) em excesso, uma vez que, no apuramento da matéria coletável, considerou como rendimento o valor total da mais-valia obtida.
A Requerida sustenta a legalidade da autoliquidação por entender, nomeadamente, que o disposto no art. 43º do CIRS não é aplicável a pessoas coletivas, pelo que conclui pela improcedência do peticionado.
Adiante se analisarão, no necessário, os argumentos aduzidos por ambas as partes.
C) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado 18-11-2022 e aceite em 21-11-2022.
Os árbitros que constituem este Tribunal foram designados pelo CAAD, aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não foram objeto de impugnação.
O tribunal arbitral ficou constituído em 30-01-2023.
A Requerida apresentou Resposta e juntou o PA.
Por despacho arbitral de 17-03-2023, foi a Requerente convidada a corrigir um lapso material de que enfermava a sua petição, o que fez.
Tendo a Requerente prescindido da audição da testemunha que arrolara, foi decidido dispensar, por falta de objeto, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e prescindir da produção de alegações, nenhuma das partes se tendo oposto a tal despacho.
II - SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades ou de irregularidades.
Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III - PROVA
A) Factos provados
a) A Requerente tem sede nos Estados Unidos da América, sendo-não residente fiscal em Portugal e não tendo estabelecimento estável no nosso país.
b) Em 12-07-2021, a Requerente vendeu um imóvel, sito na freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número ... e inscrito na matriz sob os artigos ... (parte urbana) e ... (parte rústica).
c) Em resultado desta venda, a Requerente apurou, em sede de autoliquidação de IRC, uma mais-valia de € 2.721.010,43.
d) A Requerente submeteu, no dia 19-08-2021, a Declaração Modelo 22 de IRC do período de tributação de 2021, identificada com o n.º ...-...-....
e) Tendo, em tal autoliquidação, considerado a totalidade do valor de tal mais-valia, pelo que apurou imposto no valor de € 680.252,61, cujo pagamento efetuou em 20-08-2021.
f) A Requerente reclamou graciosamente desta autoliquidação, em 22-04-2022, mantendo-se, até à data da apresentação deste pedido de pronúncia arbitral, o silêncio administrativo para além do prazo legal de decisão.
Estes factos estão documentalmente provados, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.
B) Motivação quanto à matéria de facto
No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se, para além da livre apreciação das posições assumidas pelas Partes e no teor dos documentos juntos aos autos pela Requerente e pela Requerida (processo administrativo).
C) Factos não provados
Não resulta claro do constante do processo administrativo que a Requerente tenha sido notificada de ofício de 07-01-2023, emitido pela Direção Distrital de Finanças de Faro, no sentido de que no procedimento de Reclamação tenha sido proferido, em 12-12-2022, despacho de arquivamento.
Não existem outros factos não provados relevantes para a decisão da causa.
IV – O Direito
1- O normativo
Está em causa a aplicação das seguintes normas:
- a al.) b) do nº 2 do artº 43º do CIRS, que dispõe que (o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano) apenas é considerado em 50 % do seu valor, nos restantes casos (a exceção consta da alínea a), não sendo aqui aplicável).
- O artigo 56.º do IRC, cujo nº 1 dispõe: os rendimentos não imputáveis a estabelecimento estável situado em território português, obtidos por sociedades e outras
entidades não residentes, são determinados de acordo com as regras estabelecidas para as categorias correspondentes para efeitos de IRS .
2- A jurisprudência
A questão da aplicação do disposto na al.) b) do nº 2 do artº 43º do CIRS a não-residentes (residentes em outros estados-membros ou em países terceiros) que sejam pessoas singulares constitui um ato claro, à luz da jurisprudência do TJUE.
Assim o acórdão do TJUE de 11 de outubro de 2007, Hollmann, C-443/06, e o acórdão do TJUE, de 18 de março de 2021, MK, C-388/19.
Porém, ambos os arestos se referem a mais-valias imobiliárias obtidas em Portugal por não residentes pessoas singulares.
O mesmo acontece relativamente à jurisprudência uniformizadora do STA, nomeadamente os acórdãos proferidos no proc. 075/20, de 09-12-2020 e no proc. 058/20, de 24-02-2021 e nos demais arestos do STA citados pela Requerente, nomeadamente no proc. 064/20, de 09-12-2020.
A pesquisa efetuada da jurisprudência arbitral, necessariamente não exaustiva, não permitiu localizar processos, relativos a situações idênticas, em que os requerentes fossem sociedades ou outras pessoas coletivas não residentes.
O único caso, por nós conhecido, em que tal aconteceu é o que deu origem ao acórdão do TCAN de 23 de junho de 2021, no proc. nº 00258/17 cujo entendimento, no sentido da aplicabilidade da al.) b) do nº 2 do artº 43º do CIRS, não podemos sufragar pois tal decisão limitou-se a transpor acriticamente a jurisprudência do TJUE relativa a pessoas singulares para um caso envolvendo uma pessoa coletiva.
Em conclusão, o tema a decidir é “uma questão em aberto”.
3- O artigo 56.º do IRC
Há que começar pela razão de ser desta norma e, consequentemente, o âmbito da remissão para o CIRS por ela operada.
Como é sabido, relativamente a sociedades residentes (e aos estabelecimentos estáveis de não residentes), o IRC incide sobre o lucro (art. 3º, nº 1, al a), do CIRC).
Sem maiores desenvolvimentos, que entendemos desnecessários, diremos que para a formação do lucro tributável concorrem todo o tipo de variações patrimoniais positivas obtidas pelo sujeito passivo, salvo as excetuadas por lei. Há pois um fenómeno de atração: rendimentos sem intrínseca natureza empresarial – como é o caso das mais-valias - passam a integrar o lucro tributável dada a qualidade empresarial (escopo lucrativo) do titular. E é possível determinar essa totalidade de rendimentos dada a obrigação de existência de contabilidade organizada.
Relativamente às sociedades não residentes sem estabelecimento estável, o CIRC remete para o CIRS pois o legislador terá considerado não se justificar o referido fenómeno de atração, dado o carácter esporádico da obtenção de rendimentos no nosso país, e não existir, à normal disposição da AT, contabilidade que permita identificar todos os rendimentos obtidos e proceder ao cálculo do lucro tributável a partir das regras contabilísticas (princípio da dependência parcial).
A remissão feita pelo art. 56º do CIRC opera, pois, por duas vias:
- só integram a matéria coletável destes sujeitos passivos os rendimentos, obtidos em Portugal, tipificados nas diferentes categorias do IRS, o que é particularmente relevante no caso das mais-valias uma vez que este imposto só considera tributáveis algumas mais-valias (entre as quais as imobiliárias), quando, estando em causa a tributação do lucro, todas as mais-valias concorrem para o cálculo da matéria coletável.
- as regras de quantificação aplicáveis (no caso, para o cálculo do valor da mais-valia obtidas) são as previstas no CIRC e não as regras contabilísticas com eventuais ajustes ditados por normas fiscais como sucede relativamente às sociedades residentes e aos estabelecimentos estáveis de sociedades não residentes.
O importante é salientar que as sociedades não residentes sem estabelecimento estável não são (não passam a ser por força do art. 56º do CIRS) sujeitos passivos de IRS, continuam a ser sujeitos passivos de IRC, como expressa o art. 2º, n.1, c) do CIRC. Apenas o âmbito da
incidência real, em sentido amplo (incluindo as normas relativas à quantificação matéria coletável) é determinado por aplicação das regras do CIRS (art. 3º, d) do CIRC).
Se nos é permitido, diremos que a petição inicial da Requerente ilustra este equívoco: não teve rendimentos da categoria G do IRS - como afirma - mas sim rendimentos com a natureza de mais-valias, cuja abrangência pela tributação e quantificação, para efeitos de IRC, se faz por recurso às normas aplicáveis do CIRS.
4- A al. b) do nº 2 do artº 43º do CIRS
Importa agora saber qual a razão pela qual, por regra, as mais-valias imobiliárias apenas são consideradas em 50% para efeitos da sua integração na matéria coletável de IRS.
Está em causa a “resposta” que a lei entendeu dar para minorar os efeitos nefastos que, de outro modo, ocorreriam em resultado de as mais-valias apenas serem tributadas no momento da sua realização, no caso, no momento da alienação de um imóvel. Sendo certo que a obtenção desse rendimento, ainda que apenas de forma latente (o mesmo é dizer, o aumento da capacidade contributiva) acontece ao longo de vários anos, por vezes muitos, durante o tempo que mediou entre a aquisição e a alienação onerosa.
Abstendo-nos, por desnecessário, de explicitar as razões pelas quais o legislador adotou o princípio da realização para definir o momento temporal da tributação, temos que a concentração da tributação num determinado ano (o da alienação onerosa) de um rendimento que foi gerado numa pluralidade de anos, origina dois efeitos perversos :
- Um é o efeito de concentração (brunching effect): num imposto progressivo, a taxa, no ano em que a realização acontece, tende a disparar (a ser anormalmente elevada); ou seja, o sujeito passivo pagará mais imposto que aquele que pagaria se a tributação acontecesse anualmente, à medida que a mais-valia foi gerada.
- Outro é o efeito de imobilização (lock in effect): sabendo que vão ser abrangidos por uma tributação elevada no momento da realização (que o preço obtido, líquido de imposto, resultará gravemente diminuído), os sujeitos passivos tendem a não alienar os bens, mesmo que não lhes sejam úteis, com todo o desperdício que, em termos económicos e sociais, assim se gera.
A “resposta” que o legislador encontrou foi, precisamente, a de determinar que só integrassem a matéria coletável de IRS 50% do saldo das mais e menos valais imobiliárias obtidas em cada ano.
Demos, agora, a palavra a Gustavo Courinha :
Com efeito, esta solução de consideração a 50% de tais valores para efeitos da base tributável foi pensada – e só nessa medida faz que o legislador entendido – para casos de aplicação das taxas progressivas e no pressuposto do englobamento da generalidade dos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo, pois só nesses casos se verifica o risco de as muito elevadas taxas dos escalões superiores de IRS se estenderem às demais categorias de rendimentos. Não havendo, manifestamente, um tal risco no caso dos sujeitos não residentes, não faz sentido a aplicação obrigatória deste regime a tais sujeitos.
Cremos que dificilmente alguém poderá refutar esta argumentação, com a qual nos identificamos totalmente.
Em suma, a al.) b) do nº 2 do artº 43º do CIRS não cabe na remissão operada pelo artº 56º do CIRC, pois não integra as normas de incidência real, em sentido amplo (as regras de determinação, no dizer de tal norma) deste imposto.
Não está, também, em causa um benefício fiscal, pois a redução da tributação das mais-valias obtidas por pessoas singulares não surge ditada por quaisquer motivações extra-fiscais (que dificilmente se justificariam, atenta a natureza deste tipo de rendimento).
A al.) b) do nº 2 do artº 43º do CIRS tem a natureza de desagravamento estrutural, é uma medida normativa que estabelece uma limitação negativa da incidência normal (vd. art. 4º, nº 2, do EBF), visando eliminar “perversões” (no caso, situações de sobre tributação ofensivas
do princípio da capacidade contributiva) que, de outro modo ocorreriam no imposto em que se insere.
Em resumo, por ser uma medida que integra a estrutura do IRS, aí necessária por estar causa um tipo de rendimento – mais-valia imobiliária- obrigatoriamente sujeito a englobamento e, consequentemente, à aplicação de taxas progressivas, a mesma não pode ser estendida ao IRC, o qual não a prevê dado que a sua diferente estrutura (maxime, inexistência de taxas progressivas) o torna desnecessário.
5- Ausência de discriminação
O acórdão Holmann, seminal da jurisprudência do TJUE invocada pela Requerente, é claro quanto à sua razão de decidir: o facto de se prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56.º CE [atual artigo 63.º TFUE] [não existindo] objectivamente nenhuma diferença de situação que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias entre as duas categorias de sujeitos passivos.
O decidido pelo TJUE assenta – como seria de esperar – numa comparação entre a situação das pessoas singulares residentes e não residentes relativamente a tributação do tipo de rendimento em causa, mais-valias imobiliárias.
Ora, fazer equivaler a situação fiscal das pessoas singulares e a das pessoas coletivas – como pretende a Requerente – seria falacioso, pela simples razão que estão em causa impostos diferentes, assentes em princípios diferentes e, consequentemente, com normas diferentes.
A Requerente é uma sociedade não residente (por tal razão preenche a incidência pessoal do IRC) pela que a sua situação tem que ser comparada com a das sociedades residentes (também sujeitas a IRC).
Fazendo tal comparação, temos:
- as sociedades residentes são tributadas pela totalidade do saldo líquido das mais valias (imobiliárias e mobiliárias) obtidas em cada exercício, por consideração dos valores assim obtidos como rendimento, havendo, também, lugar à dedução dos gastos por tal implicados.
Ou seja, as sociedades residentes não integram no seu rendimento tributável apenas 50% do valor dos rendimentos qualificáveis como mais-valias imobiliárias, mas sim a totalidade.
O mesmo é concluir que as sociedades não residentes ficariam colocadas numa (inaceitável) situação de discriminação favorável, relativamente às sociedades residentes, se lhes fosse permitido incluir na sua matéria coletável 50%do valor deste tipo de rendimento.
- em ambos os casos, a tributação é feita por aplicação de taxas proporcionais – art. 87º CIRC.
Em resumo: a discriminação negativa que acontecia relativamente às pessoas singulares, sujeitos passivos de IRS, que deu causa ao acórdão Hollmann e aos que se lhe seguiram, não existe relativamente à obtenção de mais-valias por sociedades residentes e sociedades não residentes, pelo que o argumentário em que se fundam tais acórdãos (relativos à situação das pessoas singulares – repete-se) não pode ser transposto para o caso das sociedades, sujeitos passivos de IRC, por manifesta falta de analogia estre as duas situações tributárias.
Há, pois, que concluir pela legalidade da autoliquidação posta em crise neste processo e, consequentemente, pela total improcedência do pedido.
Improcedendo o pedido principal, improcedem os demais pedidos formulados pela Requerente porque daquele dependentes.
V - Decisão
Pelo exposto, conclui-se pela total improcedência dos pedidos formulados pela Requerente.
Valor do processo: Tendo em consideração o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC, artigo 97º-A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 680.252,61.
Custas: Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas do Processo Arbitral em de € 10.098,00, a cargo da Requerente, de acordo com o artigo 22º, nº 4 do RJAT.
Notifique-se.
27 de junho de 2023
Os Árbitros,
Rui Duarte Morais
(Presidente e Relator)
Sílvia Oliveira
(Árbitro Adjunto)
António Pragal Colaço
(Árbitro Adjunto)