Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 705/2022-T
Data da decisão: 2023-07-30  IRS  
Valor do pedido: € 20.101,44
Tema: IRS; residente não habitual; inscrição no registo dos contribuintes; art. 16.º, n.ºs 8, 9 e 10 do CIRS.
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SUMÁRIO:

A inscrição como residente não habitual estabelecida no n.º 10 do art. 16.º do CIRS possui natureza declarativa, pelo que não é elemento constitutivo da facti species da tributação segundo o regime dos residentes não habituais nos termos do n.º 9 do art. 16.º do CIRS.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório[1]

 

a) Partes e pedido de pronúncia arbitral

 

1. A..., com domicílio no ...- ...-..., ...–... ..., ..., Setúbal, contribuinte n.º ... (a seguir, o Requerente), apresentou, em 23.11.2022, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral (a seguir abreviadamente PI), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona, a título principal, a anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2022 ..., respeitante ao ano de 2018, e da respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., no valor total de €20.101,44 (vinte mil, cento e um euros e quarenta e quatro cêntimos), com o consequente reembolso do montante pago, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal.

 

b) Constituição do Tribunal Arbitral

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 03.02.2023.

 

4. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.

 

c) Marcha processual

 

5. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente formulou a pretensão de que seja declarada a ilegalidade, com consequente anulação, da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2022 ..., relativa ao ano de 2018, e da respetiva liquidação de Juros Compensatórios n.º 2022 ..., com um valor global a pagar de €20.101,44 (vinte mil, cento e um euros e quarenta e quatro cêntimos), bem como a condenação da Requerida no reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal. 

O Requerente peticionou, também, de modo preliminar, “a suspensão do presente pedido de pronúncia arbitral até que seja proferida uma decisão final sobre o requerimento de inscrição de RNH [residente não habitual] apresentado pelo ora requerente, por constituir causa prejudicial”.

 

6. Como fundamentos da pretensão de anulação dos atos sindicados, o Requerente coligiu, em síntese, os seguintes motivos essenciais:

i) a Lei n.º 20/2012, de 14.05, “passou a estabelecer, no então n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, uma redação substancialmente diferente, e terá deixado cair a obrigação de inscrição enquanto residente não habitual para se adquirir o direito a ser tributado enquanto tal para uma formulação em que o direito a ser tributado enquanto residente não habitual ocorre por força do mero registo enquanto residente fiscal, cumprindo, claro, os requisitos materiais para ser considerado residente não habitual” (art. 30.º da PI);

ii) “com aquela alteração, o direito a ser tributado como RNH deixou de depender “da inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI”, para depender, apenas, de acordo com a lei, da “inscrição como residente em território português”” (art. 31.º da PI);

iii) “verificados os requisitos materiais previstos no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, a atribuição do direito a ser tributado como RNH opera ope legis da inscrição como residente em território português, não dependendo, nos termos da lei, de qualquer ato posterior nem de reconhecimento ou registo pela Administração tributária” (art. 33.º da PI);

iv) “apesar da necessidade de solicitação de inscrição no regime, o benefício em causa consiste num benefício automático, visto que, nos termos da lei, o mesmo não depende já de prévio reconhecimento por parte da Administração tributária” (art. 45.º da PI);

v) “o direito a ser tributado como RNH constitui-se no momento em que, nos termos do n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, o contribuinte interessado reúne ambas as condições materiais nele previstas: (i) registar-se como residente em Portugal e (ii) não ter sido residente em Portugal em nenhum dos cinco anos anteriores” (art. 47.º da PI);

vi) a natureza automática, ope legis, do benefício em causa resulta do disposto no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que determina que o sujeito passivo tem o ónus de solicitar a sua inscrição como RNH, mas não o dever de requerer qualquer reconhecimento desse benefício”, não dependendo, assim, de prévio reconhecimento formal, por parte da Administração tributária, para que tal direito produza efeitos (arts. 48.º e 50.º da PI);

vii) “Sendo o direito a ser tributado como RNH atribuído ope legis — verificados os requisitos materiais do regime e a inscrição do sujeito passivo como residente em território português (cfr. n.º 8 e n.º 9 do artigo 16.º do Código do IRS) —, a solicitação da inscrição dessa qualidade em cadastro mais não consiste que um dever acessório do contribuinte, o qual deverá por este ser cumprido de forma a possibilitar ab initio um correto processamento do IRS aplicável” (art. 68.º da PI);

viii)  “Havendo sujeitos passivos residentes que são RNH e outros que não o são, é obviamente importantíssimo que aqueles que o sejam tenham essa qualidade registada em cadastro, de forma que, aquando do processamento das respetivas declarações de rendimentos, o sistema informático da Administração tributária possa assumir, sem erros, aquele benefício e proceder à emissão de uma correta liquidação do imposto devido”, para o que “torna-se necessário que a inscrição do RNH em cadastro ocorra antes do prazo para apresentação da declaração Modelo 3 de IRS, ou seja, antes de 1 de Abril do ano seguinte àquele a que respeitam os rendimentos obtidos pelo sujeito passivo — cfr. n.º 1 do artigo 57.º e artigo 60.º do Código do IRS —, ergo, até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que o RNH se torne residente em território português, de forma a permitir que a declaração Modelo 3 referente ao ano de inscrição enquanto residente possa ser liquidada na qualidade de residente não habitual” (arts. 71.º e 72.º da PI);

ix) sendo “só esta a razão de ser do prazo estipulado para o cumprimento do dever em causa (31 de Março do ano seguinte), consagrado no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS”, conclui-se que “a inscrição em cadastro corresponde a um mero dever acessório e de natureza instrumental, donde resulta que a ausência daquela inscrição não pode determinar o afastamento do direito de vir a ser tributado, nem de ser reconhecido, como tal, nomeadamente promovendo-se a inerente atualização do cadastro fiscal para a consideração como residentes não habituais” (arts. 73.º e 75.º da PI);

x) O Requerente preenche desde 2018 os requisitos materiais necessários à sua tributação em Portugal na qualidade de RNH, tal como estes resultam do n.º 8 e n.º 12 do artigo 16.º do Código do IRS, não obstante não ter realizado o procedimento de inscrição nessa qualidade, até ao dia 31 de Março, em conformidade com o disposto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS, pois o pedido de inscrição em cadastro “não constitui um requisito (constitutivo) necessário à tributação do sujeito passivo como residente não habitual, nem prejudica o reconhecimento desse direito pela própria lei, nem a inscrição do mesmo em cadastro” (arts. 83.º, 84.º, 85.º e 90.º da PI);

xi) a liquidação de IRS contestada enferma de erro sobre os pressupostos de direito, pela não aplicação das regras de tributação na qualidade de residente não habitual do Requerente (art. 97.º da PI).

 

7. A AT, ao abrigo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, juntou o procedimento administrativo (a seguir PA) e apresentou resposta (a seguir abreviadamente R.), na qual se defendeu por exceção e por impugnação, nos termos seguintes:

i) não obstante a Requerente “solicitar a anulação da liquidação em crise, referente ao ano de 2018, a causa de pedir nos presentes autos arbitrais centra-se na condição de residente não habitual do mesmo”; ora, “a impugnação do ato de reconhecimento da condição de residente não habitual não encontra sustentação jurisdicional na discussão da legalidade da liquidação”, pelo que “o erro na forma de processo, assim como o caso decidido/ inimpugnabilidade do ato com fundamento no suposto estatuto de RNH, são manifestos”, concluindo-se que “ocorre as exceções dilatórias da incompetência material do Tribunal Arbitral, assim como do caso decidido/inimpugnabilidade do ato com fundamento no suposto estatuto de RNH de que se arroga para conhecer o pedido arbitral apresentado” - arts. 5.º a 28.º da R.;

ii) a inscrição como residente não habitual tem de ser solicitada por via eletrónica, posteriormente à inscrição como residente fiscal ou, em momento ulterior, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte aquele em que se tornou residente em Portugal (n.º 10 do art. 16.º do CIRS), sendo que obtido este estatuto, o sujeito passivo adquire o direito a ser tributado em IRS como residente não habitual, pelo período de 10 anos consecutivo a partir do ano, inclusive, em que se tornou residente fiscal em Portugal (n.º 9 do art.º 16.º)  - arts. 39.º e 40.º da R.;

iii) “a condição de residente não habitual, em face do sobredito disposto no artigo 16.º, n.º 10, do CIRS, versa sobre um benefício fiscal, dependente de reconhecimento por parte da administração fiscal, por iniciativa do contribuinte” - art. 48.º da R.;

iv) “Não é objetado que o reconhecimento da RNH reporta os respetivos efeitos à ocasião em que o respetivo beneficiário reúne os pressupostos exigidos para a conferência dessa condição”; mas esses efeitos assentam “na circunstância do reconhecimento aferido pela administração fiscal, a pedido do contribuinte”, ou seja, “a natureza declarativa aponta aos efeitos do ato de reconhecimento da residência não habitual”, mas “não é confundível com a exigência do reconhecimento da condição de RNH” imposta pelo n.º 10 do artigo 16.º do CIRS - arts. 54.º a 58.º da R.;

v) “não restam dúvidas de que, para a concessão do estatuto de RNH, devem os contribuintes solicitar a sua inscrição no prazo legal, o que não ocorreu no caso sub judice, sendo que “o ato de inscrição do Requerente como residente não habitual tem natureza prejudicial, de modo a beneficiar do correspondente regime” - arts. 62.º e 64.º da R.

 

8. Em face da defesa por exceção apresentada pela AT, o Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo e na determinação das regras a observar consagrado no art. 16.º, al. c) do RJAT e em ordem ao cumprimento do disposto nas als. a) e b) do mesmo art. 16.º, por despacho de 16.03.2023, determinou a notificação do Requerente para, querendo, se pronunciar por escrito, o que foi concretizado pelo requerimento apresentado em 21.03.2023, em que se rejeitou a verificação das exceções deduzidas, com base nos seguintes argumentos:

i) é peticionado nos autos a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2022 ... e a respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ..., o que constitui matéria expressamente compreendida nas competências dos tribunais tributários, nos termos do art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT;

ii) a pendência de discussão sobre a inscrição do contribuinte como residente não habitual, independentemente da fase em que se encontre, permite a impugnação direta do ato de liquidação de IRS com fundamento na não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais, inexistindo, ao contrário do que defende a Requerida, qualquer incompatibilidade com o Acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional;

iii) na medida em que se encontra pendente a decisão final sobre o requerimento de inscrição de RNH, o primeiro, e único, ato lesivo do direito deste em lhe ver aplicado tal estatuto fiscal externalizou-se na liquidação ora colocada em crise, não sendo aplicável o art. 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) ao caso do Requerente.

 

9. Por despacho intercalar de 17.04.2023, o Tribunal Arbitral indeferiu o pedido deduzido pelo Requerente na PI de suspensão, por causa prejudicial, da presente instância arbitral, com fundamento na inexistência do pressuposto básico previsto no n.º 1 do art. 272.º do Código de Processo Civil (CPC) da relação de prejudicialidade de causas (que implica que na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental).

 Em consequência, foi determinado, no mesmo despacho, nos termos dos arts. 16.º, al. c) e 18.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do RJAT, quanto à tramitação processual, ser desnecessária, dado que não foram requeridas diligências de prova e que foi exercido pelo Requerente o contraditório relativamente às exceções invocadas pela Requerida, a realização da reunião prevista no n.º 1 do art. 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações.

Nos termos do n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, foi indicada como data para a prolação da decisão final o termo do prazo previsto no n.º 1 do art. 21.º, do mesmo RJAT.

 

II. Thema decidendum

 

10. Tendo presente que cumpre ao julgador resolver todas as questões concretas que compõe o quadro do litígio em função do pedido, da causa de pedir e das exceções invocadas, o thema decidendum respeita à legalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2022..., relativa ao ano de 2018, e da respetiva liquidação de Juros Compensatórios n.º 2022..., constituindo o problema central a decidir, para além dos requisitos materiais da condição de residente não habitual, a necessidade, enquanto pressuposto específico da aplicabilidade do regime legal correspondente, da inscrição dessa qualidade de residente não habitual no registo dos contribuintes.

Preliminarmente, cabe apreciar as exceções suscitadas pela Requerida da incompetência material do Tribunal Arbitral e do caso decidido/inimpugnabilidade do ato (vd. supra n.º 7).

Para dilucidação das questões assim em julgamento, importa firmar a factualidade relevante.

 

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

 

11. Examinadas as alegações formuladas nas peças processuais das partes e a prova documental produzida, quer a que foi apresentada com a PI, quer a que resulta do procedimento administrativo junto aos autos, o Tribunal julga provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:

 

I) O Requerente é um cidadão francês que, no ano de 2018, mudou a sua residência para Portugal, aqui recebendo rendimentos provenientes da sua pensão de reforma (alegação objeto dos arts. 5.º e 92.º da PI não contraditada pela Requerida).

II) Nos cinco anos anteriores ao ano da sua chegada a Portugal, o Requerente não residiu em território português, mas sim em França, de onde é natural (alegação objeto dos arts. 7.º e 82.º da PI não contraditada pela Requerida).

III) O Requerente não solicitou, até 31.03.2019, a sua inscrição como residente não habitual no registo dos contribuintes (facto reconhecido no art. 16.º da PI; cfr. ainda art. 58.º da R.).

IV) O Requerente não apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativamente ao ano de 2018 dentro do prazo legal para o efeito (cfr. doc. n.º 2 à PI).

V) O Requerente foi objeto da notificação da AT com data de emissão de 04.07.2022, respeitante à “Falta de entrega da declaração de IRS, Modelo 3, de 2018”, nos termos da qual: “Foi detetado que não entregou a declaração de rendimentos de IRS, Modelo 3, para o ano acima indicado, prevista no artigo 57.º do Código do IRS” e para entregar a declaração em falta, no site do Portal das Finanças (cfr. doc. n.º 2 à PI e documento sobre gestão de divergências a fls. 1 e 2 do PA).

VI) O Requerente procedeu à entrega da declaração Modelo 3 de IRS para o ano de 2018, por via eletrónica, em 12.08.2022, que originou a declaração de IRS com a identificação n.º ... - 2018 - ... – ..., da qual resultou, após a respetiva validação, a liquidação impugnada (cfr. documento e declaração Modelo 3 a fls. 3 e seguintes do PA).

VII) Na referida declaração de rendimentos, que não compreendeu o Anexo L (residente não habitual), foi declarado, no Anexo J, como rendimento de pensões (categoria H), com fonte em França, o montante bruto de €58.725,00, que foi sujeito a tributação de acordo com as taxas gerais e progressivas, aplicáveis aos residentes fiscais em Portugal, sem consideração do regime dos residentes não habituais (cfr. a declaração Modelo 3 a fls. 4 a 11 do PA).

VIII) O Requerente foi objeto da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2022 ..., datada de 12.08.2022, respeitante ao ano de 2018, com o valor de imposto apurado de €17.870,78, e da respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ..., no montante de €2.230,66, no valor total a pagar de €20.101,44, com data-limite para pagamento voluntário até ao dia 26.09.2022, conforme doc. n.º 1 à PI.

IX)  O Requerente apresentou em 23.09.2023, junto da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes (“DSRC”), requerimento pedindo a sua inscrição no cadastro fiscal na qualidade de residente não habitual para o período entre 2018-2027, e com efeitos retroativos a 2018, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 31.º da LGT e do art. 24.º do Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28.01 ou, subsidiariamente, o reconhecimento ao Requerente, para os efeitos do art. 65.º do CPPT, da qualidade de residente não habitual para o período entre 2018-2027, com o direito a ser tributado nessa qualidade para o período em causa, com reencaminhamento do requerimento para o órgão competente (cfr. o requerimento junto como doc. n.º 3 que se dá por reproduzido), o qual não obteve resposta até à data da apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral em 23.11.2022 (cfr. a alegação objeto do art. 17.º da PI não contraditada pela Requerida, nada constando também do PA).

 X) O Requerente procedeu ao pagamento, no dia 29.08.2022, da quantia de €20.101,44 relativa à indicada liquidação de IRS n.º 2022..., conforme doc. n.º 4 junto à PI.

 

12. Não se descortinam factos alegados relativamente aos quais assuma relevância para a resolução da causa a sua individualização como não provados.

Explicite-se, em particular, que, segundo as várias soluções plausíveis da questão de Direito, não possuem pertinência para a decisão do pleito os factos articulados na PI (arts. 9.º, 10.º e 12.º) atinentes a alegadas representações mentais do Requerente de que, à data da sua alteração de residência para Portugal e respetivo registo junto da AT, acreditou que estava inscrito como residente não habitual, que agiu e atuou, na aplicação do método da isenção sobre os rendimentos de pensões de fonte estrangeira, na base dessa convicção e que entendia que a aplicação do regime especial era de natureza automática e que não era necessária a entrega de declaração Modelo 3 por aqueles rendimentos estarem isentos de tributação, porquanto tais vetores subjetivos não determinam ou moldam a matéria de Direito suscetível de aplicação no presente processo arbitral (cfr. art. 16.º, n.ºs 8, 9, 10 e 11 do Código do IRS).

Tais alegações não foram, aliás, acompanhadas da produção de qualquer meio probatório.

 

13. Conforme indicado em cada um dos pontos numerados do probatório, a decisão quanto à matéria de facto dada como provada resultou da apreciação crítica do teor dos documentos juntos aos autos pelo Requerente e dos constantes do procedimento administrativo, conjugados com as alegações apresentadas pelo Requerente e pela AT nos respetivos articulados, as quais foram especificamente consideradas quando consubstanciam confissão (art. 46.º do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT), como sucede com o facto constante do n.º III, ou quando reportadas a factos pertinentes para a decisão que não se mostraram controvertidos, como sucede com os factos consignados nos n.ºs I e II.

Assim, dado que, quanto aos factos consignados nos n.ºs I e II, a Requerida não tomou, especificadamente, posição quanto às correspondentes alegações articuladas na PI, o Tribunal, mediante a sua conjugação com os elementos constantes do PA, que sustentam ou não excluem tais alegações, considerou esses factos como assentes, nos termos do n.º 7 do art. 110.º do CPPT.

De resto, verifica-se, em face do exposto nos articulados, que a matéria de facto relevante não é controvertida, centrando-se o dissídio, no essencial, na natureza e relevância da omitida inscrição como residente não habitual para efeitos da aplicação do correspondente regime (vd. supra n.º 10).

 

IV. Da matéria de exceção

 

14. Fixados os factos relevantes, cabe, em primeiro lugar, apreciar as questões de natureza excetiva suscitadas pela Requerida (vd. supra n.ºs 7 e 10).

 

a) a exceção de incompetência material

 

15. Foi invocada pela Requerida, conforme acima descrito no n.º 7, al. i), a incompetência em razão da matéria deste Tribunal, o que constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso (cfr. art. 16.º, n.º 1 e n.º 2 do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e c) do RJAT) e prioritário (cfr. arts. 13.º e 89.º, n.º 4, al. a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT).

Consabidamente, a competência material do tribunal, como pressuposto processual, é aferida pela forma como o demandante conforma o pedido e a respetiva causa de pedir, determinando-se, pois, pelos termos em que a ação é configurada pelo autor e em que são expostos a pretensão deduzida em juízo e os factos com relevância jurídica (vd. os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 28.11.2019, proc. n.º 44/19.9BCLSB e de 7.4.2022, proc. n.º 56/21.2BCLSB).

Em consequência, para determinação da competência material do Tribunal, cabe atender à articulação da causa de pedir e da pretensão jurídica formulada pelo demandante na sua petição inicial.

 

16. O pedido de pronúncia arbitral, como resulta do petitório final, e acima se descreveu nos n.ºs 5 e 6, visa a declaração de ilegalidade e a decorrente anulação, com as consequências legais, da liquidação de IRS n.º 2022 ... e da liquidação de Juros Compensatórios n.º 2022..., invocando o Requerente, como fundamento da pretensão deduzida, que “a liquidação de IRS ora contestada enferma de erro sobre os pressupostos de direito, pela não aplicação das regras de tributação na qualidade de residente não habitual do REQUERENTE”.

Ora, a competência dos tribunais arbitrais, de acordo com o disposto no art. 2.º, n.º 1 do RJAT, compreende a apreciação das seguintes pretensões (com as delimitações decorrentes dos arts. 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03):

a) a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

Assim, como o Requerente deduz pretensão, fundada em erro sobre os pressupostos, atinente à apreciação da (i)legalidade dos indicados atos de liquidação de IRS e juros compensatórios, é manifesto que o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar as liquidações impugnadas nos autos, atento o dispositivo do art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT.

 

17. Contra esta conclusão, não procede a argumentação da Requerida (vd. acima n.º 7, i)) de que, apesar de solicitar a anulação da liquidação de IRS em crise, a causa de pedir centra-se na condição de residente não habitual, pelo que estaria em causa o pedido de reconhecimento dessa condição, que é suscetível, em termos contenciosos, perante o seu indeferimento, designadamente tácito, de reação mediante ação administrativa (art. 97.º, n.º 2 do CPPT), matérias e meio processuais que são alheios à competência dos tribunais arbitrais.

Sucede que, se é certo que o Requerente questiona na sua PI a natureza da inscrição no registo dos contribuintes da condição de residente não habitual para efeitos da aplicação do competente regime, os termos da configuração do pedido de pronúncia arbitral, pelos quais se afere a competência, não correspondem ao que assim indica a Requerida, sendo claro que se impugna a liquidação de IRS em crise, à qual se imputa o vício de erro sobre os pressupostos por não aplicação das regras de tributação dos residentes não habituais que corresponderia à situação tributária do Requerente. Por outras palavras, o objeto do presente processo não é inscrição autónoma e específica no registo da condição de residente não habitual do Requerente (a que se dirige o requerimento administrativo aludido no facto provado n.º IX), mas a legalidade da liquidação de IRS em atenção à regulação jurídica aplicável.

Por outro lado, não há que confundir a competência para a declaração de ilegalidade de ato de liquidação de imposto com a inviabilidade de isso se fazer com base em fundamentos que respeitem a atos destacáveis autonomamente impugnáveis, que envolvem a consequência, na falta da sua impugnação tempestiva, de se consolidarem como caso resolvido. O sujeito passivo pode impugnar uma liquidação de imposto perante Tribunal arbitral, o qual é competente para a sua apreciação (art. 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT); questão distinta é verificar se, no exercício dessa competência, o Tribunal arbitral está vinculado a não acolher, como fundamentos de anulação, vícios imputados em relação a antecedentes atos que, por não terem sido objeto oportunamente dos competentes meios de reação autónoma, se consolidaram em definitivo na ordem jurídica – trata-se, neste último caso, de questão que concerne à inimpugnabilidade da liquidação em atenção à verificação de caso decidido ou caso resolvido, não à competência do Tribunal.

Improcede, em consequência, a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral suscitada pela Requerida.

 

b) a exceção de inimpugnabilidade por caso resolvido

 

18. A Requerida invoca ainda a ocorrência de “caso decidido/inimpugnabilidade do ato com fundamento no suposto estatuto de RNH de que se arroga”, o que constitui igualmente matéria de exceção dilatória, como resulta do art. 89.º, n.º 4, alínea i), do CPTA, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, alegando, se bem se perceciona, a necessidade de impugnação autónoma e imediata de eventual indeferimento de pedido de reconhecimento da condição de residente não habitual sob pena de formação de caso decidido, nos termos e para os efeitos das exceções ao princípio da impugnação unitária previstas na primeira parte do art. 54.º do CPPT.

Sucede que não se observa na situação dos autos qualquer indeferimento (expresso ou presumido) de pedido de inscrição do Requerente como residente não habitual em Portugal, o qual, pura e simplesmente, não foi formulado anteriormente à liquidação impugnada, não existindo, no caso, nenhum ato administrativo-tributário de não reconhecimento (expresso, tácito ou presuntivo) dessa condição. Como consta dos factos provados, a liquidação de IRS impugnada (cfr. facto provado n.º VIII)) não foi precedida de qualquer pedido de inscrição cadastral como residente não habitual (cfr. facto provado n.º III)), tendo sido unicamente na sequência da liquidação de IRS que o Requerente apresentou na DSRC requerimento pedindo a sua inscrição no cadastro fiscal na qualidade de residente não habitual para o período entre 2018-2027 (cfr. facto provado n.º IX)).

Resulta daqui que não existe no caso qualquer ato de não inscrição cadastral ou de não reconhecimento como residente não habitual para efeitos fiscais que possa operar como ato pressuposto autónomo, prévio e destacável relativamente ao ato de liquidação de imposto ora sindicado, que é, assim, o único ato tributário com que o Requerente foi confrontado (cfr. os factos provados n.ºs V), VI) e VIII)) e contra o qual foi possível, com oportunidade, suscitar, como ato lesivo, a sua impugnação nos termos do art. 54.º do CPPT.

Note-se que, como não consta da factualidade assente qualquer ato administrativo-tributário da AT de negação da condição de residente não habitual, designadamente qualquer indeferimento de pedido de inscrição como residente não habitual, a situação dos autos não possui comparação com o caso que esteve na base do processo arbitral n.º 514/2015-T, do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017 e do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 014/19.7BALSB (o qual, diga-se, não se pronunciou sobre a substância do tema, já que, por estar em causa decisão arbitral que não conheceu do mérito, não admitiu o recurso para uniformização de jurisprudência), espécies jurisprudenciais que são invocadas pela AT na sua resposta em apoio da alegação em apreço (vd. arts. 5.º e seguintes da R.).

Por outro lado, deve-se ainda assinalar que esta jurisprudência respeitou a liquidação relativa ao ano de 2010, cujo cenário normativo não coincide com o aqui em consideração, por se reportar à regulação originariamente introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23.09 (anterior, pois, às alterações ocorridas com a Lei n.º 20/2012, de 14.05, e com o Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01.08), em que o n.º 7 do art. 16.º do Código do IRS (CIRS) dispunha: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos” (cfr. o atualmente disposto no n.º 9 do art. 16.º do CIRS).

No mais, antecipando o que a seguir se expõe em sede de apreciação do mérito, entende-se que o n.º 10 do art. 16.º do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01.08 (: “O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território”), ao impor a solicitação, por via eletrónica, da inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual, não consagra, para além da imposição de um dever acessório (art. 31.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária - LGT), um procedimento autónomo ou um momento procedimental interlocutório dirigido a um ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, prévio e prejudicial, sem o qual estaria inviabilizada a aplicação em cada ano dos benefícios fiscais a isso associados. Trata-se, aliás, de entendimento que está em consonância com a orientação estabelecida na Circular n.º 4/2019 da Diretora-Geral da AT (n.º 1) segundo a qual as medidas resultantes do regime dos residentes não habituais “consubstanciam medidas excecionais de desagravamento da tributação de caráter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT, conforme determina o artigo 5.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF)”.

Assim, face à regulação legal aplicável, abaixo melhor examinada, julga-se que a inscrição cadastral como residente não habitual do sujeito passivo de imposto não constitui ato autónomo ou destacável em relação ao procedimento de liquidação do imposto para efeitos de impugnação contenciosa, que obrigue, em derrogação do princípio da impugnação unitária (art. 54.º do CPPT), à impugnação direta e autónoma, no prazo e pelo meio legalmente previsto, de uma eventual decisão de indeferimento, sob pena de estabilização da situação mediante caso decidido ou caso resolvido e de decorrente preclusão da impugnação da liquidação de imposto nessa base.

Improcede, pois, a exceção invocada de “caso decidido/inimpugnabilidade do ato”, sendo suscetível de apreciação nos presentes autos a liquidação de IRS sindicada em atenção ao não enquadramento do Requerente no regime de residente não habitual.

 

V. Da ilegalidade da liquidação de IRS impugnada

 

19. Centrando agora a apreciação na matéria de fundo da alegada ilegalidade da liquidação de IRS em causa, o ponto fáctico-jurídico estruturante da pretensão deduzida nos autos prende-se com a aplicação ao Requerente no ano de 2018 do regime dos residentes não habituais.

Surge, então, aqui, como questão a resolver (vd. a descrição das posições das partes acima nos n.ºs 6 e 7) saber se a inscrição no registo da condição de residente não habitual possui, não uma natureza meramente declarativa, mas eficácia constitutiva, no sentido de que se trata nessa inscrição cadastral de pressuposto específico sem o qual não é possível beneficiar das reduções ou isenções fiscais que são conferidas ao contribuinte em razão dessa condição de residente não habitual.

Dado que não ocorre em relação ao Requerente essa particular inscrição no cadastro dos contribuintes como residente não habitual (cfr. os factos provados n.ºs III) e IX)), o juízo sobre o seu carácter constitutivo, independentemente das condições materiais legalmente relevantes na sua base, determinaria, só por si, a improcedência da pretensão de anulação da liquidação de IRS sindicada e da consequente liquidação de juros compensatórios. 

Vejamos, pois, esta questão.

 

20. O quadro jurídico aplicável ratione temporis, dado o ano (2018) a que respeita a liquidação de IRS impugnada, é constituído, no que imediatamente releva para a questão indicada, pelo disposto nos n.ºs 8 a 11 do art. 16.º do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01.08, segundo os quais:

8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano”.

 

21. Pois bem, em face do assim disposto, julga-se que não é possível reputar a inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual como requisito necessário e constitutivo do direito à aplicação do regime respetivo e dos benefícios fiscais dele emergentes.

Como já foi observado, por exemplo, no processo n.º 777/2020-T e acolhido no processo n.º 550/2022-T, a redação aplicável dos n.ºs 8 e 9 do art. 16.º do CIRS depõe claramente no sentido de que se trata, nessa inscrição no cadastro dos contribuintes, de um registo declarativo, cuja não realização não obvia à aplicação, verificados os pressupostos materiais exigidos, dos benefícios fiscais em causa.

É que, se o n.º 9 do art. 16.º do CIRS estabelece que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”, com o que faz depender a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual de o sujeito passivo ser considerado residente não habitual, o n.º 8 do mesmo artigo é expresso e taxativo em declarar que: “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores”. Assim, para que o sujeito passivo seja “considerado residente não habitual” e adquira o direito a ser tributado como tal, a lei não inclui a inscrição no registo como residente não habitual, que surge no n.º 10 do mesmo artigo apenas como um dever do sujeito passivo (“deve solicitar a inscrição”), não como um requisito constitutivo dessa condição e do direito à correspondente situação tributária vantajosa.

Esta interpretação mostra-se corroborada pelo confronto com a anterior regulação do regime dos residentes não habituais. Recorde-se que, na versão do Decreto-Lei n.º 249/2009, o art. 23.º, n.º 2 do Código Fiscal do Investimento dispunha que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI” e o então n.º 7 do art. 16.º do CIRS afirmava, do mesmo modo, que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos”. Como se observa, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo dos contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 16.º do CIRS e não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.

A facti species constitutiva da situação tributária de residente não habitual e dos correspondentes benefícios fiscais em sede de IRS é, portanto, a verificação dos dois pressupostos materiais atinentes à residência fiscal em certo ano em território português e à não residência fiscal pretérita nos cinco anos anteriores nesse território.

O pedido de inscrição como residente não habitual imposto pelo n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se um dever acessório do contribuinte (art. 31.º, n.º 2 da LGT) que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do beneficio fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos, sendo, porém, da verificação destes requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como residente não habitual.

Assim, como dever acessório, o seu incumprimento pode gerar uma contraordenação tributária (cfr. art. 117.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), mas não interfere com o direito à redução ou isenção tributária adveniente do regime do residente não habitual, que assenta estritamente na satisfação das condições materiais legalmente previstas e não pressupõe, como requisito formal autónomo, a inscrição cadastral como tal.

Conclui-se, pois, que a aplicação do regime dos residentes não habituais exige a verificação dos requisitos de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores, mas não depende da inscrição correspondente no cadastro. Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime correspondente.

 

22. Firmado este entendimento do quadro legal, segue-se observar que o Requerente, ainda que não esteja inscrito como tal no registo dos contribuintes, por não ter formulado o pedido no prazo legal (cfr. os factos provados n.ºs III) e IX)), satisfaz as condições para ser considerado como residente não habitual, que se prendem com se ter tornado fiscalmente residente em território português no ano de 2018 e de não residência fiscal pretérita em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, conforme foi dado como assente nos n.ºs I) e II) dos factos provados.

A verificação das condições para ser considerado residente não habitual não é, aliás, objeto de controvérsia entre as partes (vd. acima n.ºs 6 e 7).

Deste modo, verificam-se os pressupostos legais, constantes do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, que são necessários e suficientes para que o Requerente seja considerado como residente não habitual e tributado como tal, em conformidade com o n.º 9 daquele mesmo preceito.

Em consequência, ao não ter aplicado ao Requerente o regime dos residentes não habituais, especificamente o disposto no art. 81.º, n.º 6 do CIRS (na versão aplicável ratione temporis), a liquidação de IRS n.º 2022 ... sindicada mostra-se ilegal por erro nos pressupostos, o que implica a sua anulação nos termos do art. 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, do que decorre a invalidade consequente da liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ... .

 

VI. Restituição da quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios

 

23. Peticiona o Requerente que, em consequência da anulação dos atos tributários sindicados, seja a Requerida condenada a reembolsar a quantia paga indevidamente, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios.

Nos termos do art. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, a “decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários“[r]estabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que abrange o pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do n.º 5 desse art. 24.º, bem como do art. 100.º da LGT, aplicável ex vi al. a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT.

Prescreve, a este respeito, o art. 43.º da LGT que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (n.º 1).

 

24. No caso sub judice, dada a anulação da liquidação de IRS impugnada, há que reconhecer o direito ao reembolso do montante de €20.101,44, por força dos citados arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, de modo a restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da anulação ora decretada não tivesse sido praticado.

Quanto aos juros indemnizatórios, dado que a Requerida efetuou a liquidação impugnada por sua iniciativa com a ilegalidade verificada, é-lhe imputável tal situação, pelo que, nos termos do n.º 1 do art. 43.º da LGT, cabe reconhecer ao Requerente o direito a juros indemnizatórios, contados desde a data de 29.08.2022 (cfr. facto provado X) até integral reembolso da quantia paga, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4 e 35.º, n.º 10, da LGT.

 

VII. Decisão

Termos em que se decide:

  1. julgar improcedentes as exceções invocadas pela Requerida;
  2. julgar procedente, nos termos expostos, o pedido objeto da presente pronúncia arbitral e, em consequência, anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2022 ..., respeitante ao ano de 2018, e da respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ..., no valor total de €20.101,44, com as legais consequências;
  3. condenar a Requerida na restituição do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data de 29.08.2022 até integral reembolso;
  4. condenar a Requerida nas custas processuais.

 

VIII. Valor do processo

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €20.101,44 (vinte mil, cento e um euros e quarenta e quatro cêntimos), que constitui a importância das liquidações objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

IX. Custas

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência integral do pedido de pronúncia arbitral.

 

 Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de Julho de 2023.

 

O Árbitro

 

(João Menezes Leitão)

 



[1] Observa-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, tendo sido atualizada, em conformidade, a grafia constante das citações efetuadas.