Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 18/2023-T
Data da decisão: 2023-07-11  IMI  
Valor do pedido: € 1.865,88
Tema: AIMI – terrenos para construção - insindicabilidade dos atos de liquidação por vícios próprios do ato de fixação do VPT.
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SUMÁRIO

 

Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação de AIMI com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jorge Belchior de Campos Laires, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

  1. Relatório

SOCIEDADE A..., S.A. (doravante designada por “Requerente”), com o número de identificação fiscal ..., e com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, requereu a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) para anulação parcial do ato tributário de liquidação do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (“AIMI”) n.ºs 2019 ... e  2020 ..., com referência, respetivamente, aos anos 2019 e 2020.

 

 

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 10/01/2023, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT a 16/01/2023.

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular o signatário em 28/02/2023, sem oposição das partes.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 20/03/2023.

Em 02/05/2023, a Requerida apresentou a Resposta, concluindo pela improcedência do PPA, apresentando defesa por exceção e por impugnação.

Apesar de a Requerida não ter individualizado na sua resposta o tipo de defesa efetuada, certo é que apresentou argumentos que configuram defesa por exceção, pelo que, em 08/05/2023, o Tribunal notificou o Requerente para que se pronunciasse sobre a matéria de exceção, o que a Requerente fez em 15/05/2023.

Por Despacho de 18/05/2023, o Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, dando a possibilidade às partes de, querendo, apresentarem alegações escritas por prazo simultâneo de 15 dias, que as partes não exerceram.

  1. Saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, todos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade.

Tendo o Requerente apresentado o pedido de revisão oficiosa no dia 15/07/2022 (cf. os factos dados como provados), o indeferimento presumido deu-se no prazo de 4 meses, conforme a regra do artigo 57.º da Lei Geral Tributária, ou seja, 15/11/2022, sendo o pedido tempestivo ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e da alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

  1. Matéria de Facto

 

  1. Factos Provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente foi notificada dos atos tributários de liquidação de AIMI com os n.ºs 2019 ... e 2020 ..., referentes ao ano de 2019 e 2020, respetivamente (cf. Documento 2 junto com o PPA).
  2. Parte das liquidações tiveram por base, para efeitos de determinação do valor tributável e do correspondente montante de AIMI a pagar pela Requerente, o valor patrimonial tributário (“VPT”) do terreno para construção, inscrito na matriz predial sob o artigo ..., da freguesia de ... do Concelho de Loures (cf. Documento 2 junto com o PPA).
  3. O referido VPT estava fixado segundo a fórmula que considerou a aplicação de coeficientes de (i) localização, (ii) de afetação e/ou (iii) de qualidade e conforto, bem como a aplicação da majoração de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação (cf. Documento 4 junto com o PPA).
  4. A Requerente procedeu ao pagamento, integral e atempado, das liquidações de AIMI supra identificadas (facto alegado pela Requerente e não contestado pela Requerida).
  5. No dia 15/07/2022 a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa quanto às liquidações em causa (cf. Documentos 1 e 3 junto com o PPA).
  6. Decorridos 4 meses desde a data da apresentação do Pedido de Revisão Oficiosa, a AT não proferiu qualquer resposta (facto alegado pela Requerente e não contestado pela Requerida).

 

  1. Factos não Provados

Não existem factos não provados com relevância para a decisão.

De referir que as notas de liquidação juntas pela Requerente como Documento 2 não apresentam o valor de AIMI liquidado (nota de cobrança), mas unicamente a respetiva base tributável.

Não tendo a Requerida juntado o processo administrativo, as notas de cobrança do AIMI também não se encontram no processo arbitral por essa via.

Porém, o Tribunal considera que este facto não é relevante para o sentido da decisão. 

  1. Motivação da Decisão de Facto

A convicção do Tribunal fundou-se unicamente nas alegações das partes e na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.

  1. Matéria de Direito

 

  1. Pedido da Requerente

A Requerente peticiona a anulação parcial das liquidações de AIMI identificadas, na medida em que, de forma ilegal, tiveram por base, para efeitos de determinação do valor tributável e do correspondente montante de AIMI a pagar, um VPT do terreno para construção que considerou a aplicação de coeficientes de localização e de afetação, bem como a aplicação da majoração de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação constante do n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI.

 

  1. Matéria de exceção invocada pela Requerida - insindicabilidade dos atos de liquidação por vícios próprios do ato de fixação do VPT

Importa antes de mais conhecer a matéria de exceção invocada pela Requerida, na medida em que a solução dada a esta questão pode prejudicar a análise das restantes.

Resumo da posição da Requerida

A Requerida alega que a Requerente pretende a anulação do ato impugnado com fundamento em vícios, não do ato de liquidação, mas sim dos atos que fixaram o VPT, os quais constituem atos finais do procedimento de avaliação.

Nessa medida, tal circunstância obstaria a que no pedido de revisão oficiosa fosse possível discutir a legalidade das liquidações de AIMI com base numa determinação do VPT pretensamente ilegal.

Além de outros argumentos apresentados, sustenta a sua posição na mais recente jurisprudência consolidada do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 23.02.2023, emitido pelo STA no processo n.º 102/22.2BALSB, em que se decidiu no sentido de eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT serem insuscetíveis de impugnação no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo.

Cita o Acórdão referido na parte em que postula que, “não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida”.

Assim, no caso em apreço, não tendo a Requerente colocado em causa o VPT obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.

Resumo da posição da Requerente

A Requerente considera que a posição da AT constitui uma violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, ao impedir um contribuinte de contestar um ato tributário de liquidação de um tributo, pelo mero facto de o contribuinte não se ter socorrido de uma prévia contestação do ato interlocutório (a determinação do VPT), passível de impugnação autónoma nos termos das exceções ao princípio da impugnação unitária, do qual se originou a ilegalidade que vicia o ato de liquidação.

Acrescenta a Requerente que ainda que, estando consolidado na ordem jurídica o VPT de cada um dos prédios aqui em causa, a anulação parcial dos atos impugnados não terá de acarretar consigo a alteração desses valores, mas antes e apenas a correção dos atos tributários de liquidação de IMI ou AIMI cuja ilegalidade não pode deixar de ser reconhecida e cuja possibilidade de impugnação não se extinguiu.

Para esse efeito a Requerente cita um conjunto de jurisprudência favorável à sua posição, alegando ainda que a argumentação da Requerida assenta, única e exclusivamente, no pressuposto de que o que se pretende sindicar nos autos são os atos de avaliação dos terrenos para construção, cujos valores apurados foram considerados nos atos tributários de liquidação de AIMI, mas na verdade o que a Requerente visa ‘atacar’ é a ilegalidade subjacente aos atos tributários de liquidação de AIMI controvertidos, ilegalidade essa que resultou da errónea quantificação dos VPTs daqueles terrenos para construção.

Quanto ao Acórdão uniformizador de jurisprudência citado pela Requerida, a Requerente considera que:

“A falta de identidade fáctica das duas realidades ora em apreço fica demonstrada uma vez que, a Recorrente no processo n.º 102/22.2BALSB procedeu à reavaliação dos terrenos para construção dos quais era proprietária nos anos de 2019 e 2020, como tal, há menos de cinco anos da sindicância das liquidações de AIMI”.

“Contrariamente, e tal como exposto pela aqui Requerida, no articulado 13.º da sua Resposta, Artigo Urbano -..., da freguesia de ... (...) do Concelho de Loures, a avaliação relevante e que fixou o VPT, eficaz para as liquidações contestadas, foi efetuada com a declaração Modelo 1 nº ... de 01.08.2006 - Ficha Avaliação nº ...de 17.09.2010” (realce nosso), como tal, há mais de cinco anos da sindicância das liquidações de AIMI aqui em crise”.

“De facto, em ambas as situações estão em causa sujeitos passivos que requerem a pronúncia sobre a legalidade dos atos tributários de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre os Imóveis, por não concordarem com o montante de tributo suportado, face aos valores patrimoniais tributários que deveriam ter sido considerados para efeitos de cálculo da coleta de AIMI”.

“Porém, o último período de reavaliação dos respetivos terrenos para construção são distintos e mereceram uma análise (e conclusão) distinta da prolatada por esse Digníssimo Tribunal”.

“Destarte, ainda que a AT venha invocar a identidade substancial das situações de facto em causa nos arestos aqui convocados, não pode a Requerente deixar de demonstrar que in casu não se verifica aquela identidade e, como tal, nunca poderá o entendimento plasmado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proceder”.

Análise da questão controvertida

Quanto à possibilidade legal de sindicância, nomeadamente em sede de revisão oficiosa, dos atos de liquidação de IMI ou AIMI com base numa errónea quantificação do VPT, existe abundante jurisprudência deste Tribunal Arbitral, quer no sentido da possibilidade, quer no sentido inverso, sendo um exercício sem interesse estar neste foro a citar ou reproduzir as diversas decisões, uma vez que, nesse contexto e conforme citado pela Requerida na sua resposta, o STA proferiu recentemente o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 23.02.2023 no processo n.º 102/22.2BALSB.

Por força do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

A jurisprudência referida emana do STA, tribunal que, nos termos do RJAT, seria convocado a decidir um processo de recurso, afigurando-se assim a este Tribunal, como imperativo, zelar pela “interpretação e aplicação uniformes do direito”, sobretudo tratando-se de matéria intensamente discutida em diversos processos deste Tribunal arbitral.

Desta forma, e uma vez que a apreciação desta questão se fundamenta na jurisprudência referida, citam-se, procurando sistematizar, as passagens consideradas mais relevantes.

Assim, centrando a questão: “A questão, relembramos, é a de saber se deixando um contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, poderá ainda assim arguir a ilegalidade das liquidações de AIMI com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo dos VPT’s que serviram de base às liquidações”.

“(…) prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação”.

“(…) quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada”.

“Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior”.

“Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida”.

“Em face do que fica dito é de concluir que deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável”.

Das passagens citadas, afigura-se perentória a conclusão de que “não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida” (sublinhado nosso), o que no entender deste Tribunal deve ser aplicável em todas as situações, qualquer que seja a via processual escolhida pela Requerente, isto é, a revisão oficiosa a que se refere o n.º 1 do artigo 78.º, ou a que se encontra no seu n.º 4 (tendo por fundamento a injustiça grave ou notória). É o que se retira da conclusão: “não pode voltar a ser discutida”

A Requerente opõe-se a que esta jurisprudência possa ser aplicável ao caso em análise, não se vislumbrando em que medida pode acolher a argumentação apresentada, uma vez que, independentemente da data em que procedeu à avaliação dos imóveis, a questão central é a de saber se a liquidação pode ser atacada com base na determinação ilegal do VPT.

Nesse sentido, deve proceder a exceção invocada pela Requerida

  1. Restantes questões

Julgando-se procedente a exceção invocada pela Requerida, fica prejudicada a apreciação das restantes questões invocadas, conforme resulta do artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

  1. Do pedido de juros indemnizatórios

Em resultado do pedido de anulação parcial da liquidação de AIMI em causa, o Requerente pede que lhe seja reembolsado o montante de imposto, bem como a atribuição de juros indemnizatórios. Sendo julgada procedente a exceção invocada, não há lugar a reembolso do imposto e a atribuição de juros indemnizatórios.

  1. Decisão

De harmonia com o supra exposto, decide o Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

  1. Valor do Processo

Fixa-se como valor do processo o indicado pelo Requerente, € 1.865,88, o que corresponde ao AIMI cujo pagamento em excesso se pugna.

  1. Custas

Custas no montante de € 306,00 a cargo da Requerente, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Notifique-se.

Lisboa, 11 de julho de 2023

O Árbitro,

 

Jorge Belchior de Campos Laires