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Sumário:
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Nos termos do Acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Douto Supremo Tribunal Administrativo em 23 de fevereiro de 2023, processo n.º 0102/22.2BALSB: Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável;
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Apesar da não impugnabilidade (normal) de atos de liquidação de IMI com fundamento em ilegalidade na fixação do VPT que lhes serviu de base, os n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT admitem a possibilidade (excecional) de revisão oficiosa de atos tributários (incluindo liquidações de IMI) com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.
DECISÃO ARBITRAL
A Árbitra Ana Pinto Moraes designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, decide o seguinte:
I. RELATÓRIO
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A..., S.A. com o número único de matrícula e de identificação fiscal ... e sede na ..., n.º..., ....-... Lisboa (“Requerente”), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa que apresentou, com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à anulação dos actos tributários de liquidação de IMI nº 2018..., 2018..., 2018..., 2019..., 2019..., 2019..., 2020..., 2020... e 2020..., referentes aos anos de 2018, 2019 e 2020, no montante total de € 11.752,77.
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 10 de janeiro de 2023 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
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A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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As partes foram notificadas dessa designação em 20 de fevereiro de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
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Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral singular ficou constituído em 20 de março de 2023.
I.1 ARGUMENTOS DAS PARTES
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A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:
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a AT liquidou um montante de IMI superior ao montante legalmente devido face aos valores patrimoniais tributários que deveriam ter sido considerados para efeitos de cálculo da colecta de imposto;
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A jurisprudência nacional (do STA, do TCA-Sul e dos Tribunais Arbitrais do CAAD) tem vindo reiteradamente a preconizar que, para efeitos de determinação dos valores patrimoniais tributários de terrenos para construção, não poderá ser aplicado o valor base dos prédios edificados;
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O valor base “corresponde ao valor médio de construção, por metro quadrado, adicionado do valor do metro quadrado do terreno de implantação fixado em 25 % daquele valor” conforme definição estabelecida no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI na redação anterior à alteração legislativa efectuada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro (Lei de Orçamento de Estado para 2021);
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Segundo a jurisprudência: (i) só o valor médio de construção, por metro quadrado, poderia ser considerado na fixação de valores patrimoniais tributários de terrenos para construção (valor médio este fixado no ano 2018 nos € 482,404, e nos anos 2019 e 2020 nos € 492,005; e que (ii) a majoração de 25% relativa ao valor do metro quadrado do terreno de implantação prevista no cálculo do valor base dos prédios edificados não poderia ser aplicada na fixação de valores patrimoniais tributários de terrenos para construção;
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As regras para a determinação do valor patrimonial tributário deste tipo de prédios encontra-se prevista no artigo 45.º do Código do IMI, sob a epígrafe “Valor Patrimonial dos terrenos para construção”, à redacção vigente à data dos factos tributários que deram origem às liquidações de IMI sub judice – i.e. 31 de Dezembro de 2018, 31 de Dezembro de 2019 e 31 de Dezembro de 2020;
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Os coeficientes de afetação (estabelecido no artigo 41.º), de localização (definido no artigo 42.º), de qualidade e conforto (regulado no artigo 43.º) e de vetustez (consagrado no artigo 44.º) não são aplicáveis aos “terrenos para construção”, não fazendo parte da fórmula de cálculo consagrada no n.º 1 do artigo 45.º do Código do IMI na redação vigente à data dos factos tributários relevantes para efeitos dos atos tributários de liquidação de IMI sub judice, mas sem prejuízo de este mesmo cálculo poder considerar elementos e características igualmente relevantes para efeitos de determinação estes coeficientes;
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O valor base dos prédios edificados (Vc) vigente nos anos in casu (2018 a 2020) “corresponde ao valor médio de construção, por metro quadrado, adicionado do valor do metro quadrado do terreno de implantação fixado em 25% daquele valor” (realce nosso), conforme o consagrado no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI na redacção conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2007) que vigorou até 31 de Dezembro de 2020;
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O que é relevante para o valor patrimonial tributário do terreno para construção é a soma do valor da área de implantação do edifício a construir (que varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas) e o valor do terreno adjacente à implantação (calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º do Código do IMI.
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A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta em 2 de maio 2023, tendo concluído pela improcedência da presente ação e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.
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A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:
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Começou a Requerida por invocar que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do CIMI e não outra, não sendo considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e conforto;
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Nos termos da mais recente jurisprudência consolidada através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 23.02.2023 proferido no processo n.º 102/22.2BALSB eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT são insuscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo;
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O que a Requerente contesta é, apenas e só, o ato de fixação do VPT e não o ato de liquidação;
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Os atos de fixação do VPT não são atos de liquidação. São atos autónomos e individualizados com eficácia jurídica própria e diretamente sindicáveis que põem fim ao procedimento de avaliação;
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Uma vez que os vícios da fixação do VPT, não são sindicáveis na análise da legalidade do ato de liquidação, porquanto os mesmos já se consolidaram na ordem jurídica não é, nem legal, nem admissível, a apreciação da correção do VPT em sede de impugnação do ato de liquidação;
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A errónea qualificação e quantificação do valor patrimonial apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da 2.ª avaliação e não na posterior liquidação consequente;
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Se assim não se entendesse, o artigo 78.º da LGT não abrange os atos de avaliação patrimonial, que não são atos tributários, previstos no n.º 1, nem são atos de apuramento da matéria tributável previstos no n.º 4 daquela norma;
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O fundamento da injustiça grave ou notória do nº 4 do art. 78° da LGT, não é invocável quando a liquidação do IMI tenha sido efetuada de acordo com o nº 1 do artigo 113º do CIM, com base nos valores patrimoniais inscritos na matriz predial, não impugnados com esse fundamento pelo sujeito passivo no prazo e nos termos previstos na lei, tal como se refere na Decisão arbitral n.º 667/2021-T de 28/02/2022;
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Apesar questão da inadmissibilidade do pedido de revisão oficiosa sobre esta matéria estar resolvida face à Uniformização da Jurisprudência do Acórdão de 23.02.2023 do Supremo Tribunal Administrativo supra referido, o pedido de revisão oficiosa - tendo em conta a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa das liquidações e de interposição da presente ação - sempre seria intempestivo face ao prazo previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária
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A Requerente exerceu o contraditório quanto às exceções invocadas pela Requerida na sua resposta, em 15 de maio de 2023, essencialmente com os seguintes argumentos:
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Não se pode confundir o meio de impugnação do ato de fixação do valor patrimonial tributário – que corresponde ao meio de impugnação autónoma deste ato destacável per se – com o meio de impugnação do ato tributário de liquidação de IMI ou AIMI com fundamento em ilegalidade na determinação do valor patrimonial / base tributável do tributo efetuado pela AT – impugnação última esta para o qual o Tribunal Arbitral é competente;
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No âmbito do contencioso tributário, vigora o princípio geral da impugnação unitária que, nos termos do artigo 54.º do CPPT;
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A suscetibilidade de impugnação administrativa dos atos interlocutórios de um determinado procedimento tributário nos termos do n.º 1 do artigo 66.º da LGT, não impede que os interessados possam “recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade”, conforme o disposto no n.º 2 deste artigo 66.º;
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Um dos exemplos de atos destacáveis – i.e. atos interlocutórios do procedimento tributário suscetíveis de impugnação autónoma (face ao ato final) – é o ato de fixação do VPT de bens imóveis nos termos das regras de avaliação estabelecidas no Código do IMI;
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O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência recentemente proferido pelo STA, no âmbito do processo n.º 102/22.2BALSB não se aplica ao presente pedido, uma vez que não se verifica uma identidade substancial entre as situações de facto.
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Por despacho proferido em 14 de junho de 2023, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT, bem como a realização de alegações, em sintonia com o previsto no artigo 113.º do CPPT, subsidiariamente aplicável, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
II. SANEAMENTO
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O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
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O processo não enferma de nulidades.
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Tal como resulta do relatório, a Requerida apresentou parte da sua defesa por exceção, cujo conhecimento será feito logo após a fixação da matéria de facto, que é necessária a parte da sua apreciação.
III. DO MÉRITO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
III.1.1. Factos provados
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Analisada a prova produzida no âmbito do presente processo, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é proprietária de diversos prédios, incluindo terrenos para construção
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A Requerente foi notificada dos seguintes actos tributários de liquidação de IMI: i. Liquidações com os n.os 2018..., 2018... e 2018 ... referentes ao ano 2018, no montante total de € 44.008,98; ii. Liquidações com os n.os 2019 ..., 2019 ... e 2019..., referentes ao ano 2019, no montante total de € 48.523,30; e, iii. Liquidações com os n.os 2020..., 2020 ... e 2020..., referentes ao ano 2020, no montante total de € 42.922,95;
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A Requerente apresentou ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT, um pedido de revisão oficiosa submetido junto da AT no dia 15 de Julho de 2022;
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O referido pedido de revisão oficiosa sub judice veio a presumir-se tacitamente indeferido, dentro do prazo de 4 meses previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT;
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Em 8 de janeiro de 2023 a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos.
III.1.2. Factos não provados
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Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
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Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
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Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
III.2.1. Questões prévias
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Cumpre apreciar a título prévio a matéria de exceção invocada pela Requerida na sua resposta, designadamente a consolidação do ato tributário que determinou o VPT, a inimpugnabilidade dos atos de liquidação com fundamento em vícios próprios do ato de fixação do VPT e a intempestividade do pedido de revisão oficiosa.
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Na sua resposta invocou a Requerida a consolidação do ato tributário que determinou o VPT e a inimpugnabilidade dos atos de liquidação com fundamento em vícios próprios do ato de fixação do VPT. Tendo em conta que estas são exceções que estão intrinsecamente ligadas, a sua apreciação será feita de forma conjunta.
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Quanto a estas exceções, cabe desde logo aferir se o princípio da impugnação unitária, consagrado no artigo 54.º do CPPT, obsta ou não a que sejam discutidas ilegalidades inerentes à determinação do VPT no âmbito da impugnação da legalidade dos atos de liquidação de IMI que lhe são subsequentes.
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Do referido princípio decorre que, em regra, os vícios dos atos interlocutórios do procedimento apenas são invocáveis no âmbito da impugnação do ato de liquidação final. Só assim não será nos casos em que os atos interlocutórios produzam um efeito externo imediatamente lesivo na esfera jurídica dos contribuintes, caso em que poderão ser objeto de impugnação contenciosa direta e autónoma.
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Um exemplo deste tipo de situações em que os atos interlocutórios representam desde logo um potencial efeito lesivo externo na esfera dos contribuintes é precisamente o ato de fixação do VPT, que ao estabelecer a base de incidência para efeitos de tributação em sede de IMI, implica igualmente consequências no âmbito da liquidação de outros tributos, tais como o AIMI, o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, o Imposto do Selo ou outros tributos nos quais o VPT pode ser juridicamente relevante, tais como o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares ou o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.
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Sucede que, a resposta a esta questão dividiu a jurisprudência dos Tribunais Arbitrais.
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Em resultado destas divergências doutrinárias, o Supremo Tribunal Administrativo foi chamado a pronunciar-se, tendo proferido o acórdão de uniformização de jurisprudência, em 23 de fevereiro de 2023, no âmbito do processo n.º 0102/22.2BALSB, onde decidiu o seguinte:
«Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável».
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Conforme decidiu o Supremo Tribunal Administrativo:
«Vigora no contencioso tributário o princípio da impugnação unitária segundo o qual só há lugar a impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que tem assento legal nos artigos 66.º da LGT e 54.º do CPPT. O primeiro dispositivo legal estabelece que os contribuintes e demais interessados podem, no decurso do procedimento, reclamar de quaisquer atos ou omissões da administração tributária (n.º 1), mas a reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 2). O segundo, com a epígrafe “impugnação unitária”, estabelece que “Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
O princípio da impugnação unitária tem, assim, duas exceções, admitindo a lei adjetiva tributária a impugnação imediata dos atos interlocutórios (i) “quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte”, e (ii) quando “exista disposição expressa em sentido diferente”, ou seja, quando exista lei que admita expressamente a impugnação imediata do ato interlocutório.
Ora, a avaliação direta é um dos casos em que o legislador afastou o princípio da impugnação unitária e admitiu a impugnação imediata do ato de avaliação. Estabelece o artigo 86.º, n.º 1 da LGT que a avaliação direta é suscetível nos termos da lei de impugnação contenciosa direta. O que significa que se essa avaliação se inserir num procedimento de liquidação, o ato de avaliação é diretamente impugnável. A impugnabilidade fica, no entanto, dependente do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão (n.º 2 do artigo 86.º da LGT).
No que respeita em particular aos atos de fixação de valores patrimoniais rege o artigo 134.º do CPPT, em consonância com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 86.º da LGT, que admite a sua impugnação com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1), não tendo a impugnação efeito suspensivo, e só podendo ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação (n.º 7).
Particularizando ainda mais, e centrando-nos no caso sub judice, o procedimento de determinação do valor patrimonial tributário (ato de fixação de valores patrimoniais – artigo 37.º a 46.º, e 71.º a 77.º, do Código do IMI) é uma espécie de procedimento de avaliação direta, prevendo o Código do IMI um expediente especial de reação contra as ilegalidades da avaliação.
Assim, quando o sujeito passivo não concorda com o resultado da avaliação (primeira avaliação) pode requerer uma segunda avaliação, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI. E do resultado desta segunda avaliação cabe impugnação judicial, tal como o prevê o artigo 77.º do mesmo Código.
O disposto nestes dois artigos 76.º e 77.º do Código do IMI devem ser interpretados em conjugação com o disposto no referido artigo 134.º do CPPT, que prevê, como atrás referimos, a impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais, e no seu n.º 7 condiciona a impugnabilidade ao esgotamento dos meios graciosos (“7- A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”), que por sua vez está em consonância com o artigo 86.º, n.º 2, da LGT, que determina, como também já se referiu, que os atos de avaliação direta só são contenciosamente impugnáveis quando estiverem esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão. Esta necessidade de esgotamento dos meios graciosos como condição de impugnação do valor fixado através de avaliação direta, reiterada nas diferentes disposições legais, evidencia que a segunda avaliação não é, para efeitos de impugnação, uma mera faculdade.
Tendo em conta o que fica dito duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável – admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio.
E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.
Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt).
Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial.
De qualquer forma, quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada.
O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10).
Aliás, como refere Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 472) “Neste caso da avaliação directa da matéria tributável, resulta claramente do n.º 4 do at.º 86.º da LGT, embora a contrario, que a invocação das ilegalidades de actos de avaliação direta só pode sem efetuada em impugnação autónoma. Na verdade, tratando este art. 86.º da LGT da impugnação de actos de avaliação directa e de avaliação indirecta da matéria tributável, o facto de se prever no seu n.º 4, apenas para os atos de avaliação indirecta, a possibilidade de invocação das respectivas ilegalidades na impugnação do acto de liquidação, revela com clareza uma intenção legislativa de que só nesses casos de avaliação indireta tal é possível, pois, se assim não fosse, decerto se faria referência cumulativa à generalidade de actos de avaliação da matéria tributável.”
Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior.
3.3. Em face do que fica dito é de concluir que deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável».
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Da leitura do referido Acórdão de uniformização de jurisprudência resulta claro e evidente que o Supremo Tribunal Administrativo pretendeu afastar a possibilidade de os sujeitos passivos contestarem a legalidade de liquidações de IMI e AIMI, com fundamento em ilegalidade na fixação do VPT a elas subjacente, através de pedido de revisão oficiosa apresentado ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT.
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Sucede que o referido acórdão não se pronuncia especificamente sobre as restantes situações de revisão oficiosa previstas artigo 78.º, em que se preveem exceções à inimpugnabilidade de atos de fixação da matéria tributável consolidados.
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Seguindo o entendimento vertido na Decisão do Processo n.º 769/2022-T, de 11 de abril de 2023:
«Diferente da questão da impugnabilidade dos actos de liquidação de IMI com fundamento em ilegalidade, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é a da possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, que a Requerente pediu, e que é um afloramento do dever de revogação de actos ilegais, que emerge do princípio a legalidade da actuação da Administração Tributária (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT).
Na verdade, a utilidade prática da revisão da matéria tributável, admitida «excepcionalmente», com fundamento em injustiça grave ou notória prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, admitida apenas quando «o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte», verifica-se apenas após o decurso do prazo normal de impugnação dos actos de fixação da matéria tributável, pois, se se estiver dentro deste prazo, a impugnação é admitida «com fundamento em qualquer ilegalidade» (artigo 134.º, n.º 1, do CPPT), ela é admitida como regra e não a título excepcional e independentemente de o erro ter conduzido ou não a injustiça grave ou notória ou de ser imputável a actuação negligente do contribuinte.
Por isso, tem de se concluir que a revisão da matéria tributável admitida pelo n.º 4 do artigo 78.º da LGT tem necessariamente por objecto actos de fixação da matéria tributável «consolidados», por falta de impugnação tempestiva.
Trata-se de uma possibilidade admitida a título excepcional, como expressamente se refere n.º 4 do artigo 78.º, e só constitui excepção porque afasta a aplicação da regra da inimpugnabilidade dos actos «consolidados» por decurso dos prazos normais de impugnação.
Assim, tem de se concluir que a normal consolidação que decorre da não impugnação das avaliações nos prazos legais não é obstáculo à aplicação do n.º 4 do artigo 78.º e, antes pelo contrário, é um pressuposto prático da sua aplicação, pois a sua utilidade só existe quando o acto rever está consolidado.
Trata-se de uma solução legal resultante da ponderação concomitante do princípios da segurança jurídica (que justifica a inimpugnabilidade por decurso do prazo normal de impugnação) e da justiça, admitindo-se o sacrifício do primeiro em situações em que a sua aplicação se reconduz a uma injustiça grave, ostensiva e inequívoca, como definida no n.º 5 do artigo 78.º da LGT.
Mas, esta possibilidade de revisão da matéria tributável no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, admitida como excepção à regra da inimpugnabilidade de actos «consolidados». está prevista em termos mais restritos do que aqueles em que podem ser tempestivamente impugnados os actos de liquidação, pois, por um lado, só a injustiça grave ou notória é fundamento de revisão (e não qualquer ilegalidade), e , por outro lado, o prazo é os «três anos posteriores ao do acto tributário», em vez dos quatro previstos no n.º 1, mesmo que o erro seja imputável à Administração Tributária, e a revisão é afastada quando o erro for imputável a comportamento negligente do contribuinte.
Desta perspectiva, a possibilidade de revisão de actos «consolidados» não é contraditória com o regime de impugnação previsto no artigo 134.º, antes o complementa, mantendo, como regra, a preclusão do direito de impugnar actos de fixação de valores patrimoniais quando não seja observado o regime aí previsto, mas admitindo o afastamento desse regime quando existam razões excepcionais que, na perspectiva legislativa, justificam que ele não seja aplicado.
De resto, a limitação dos efeitos de determinada regulamentação concreta por aplicação de princípios que protegem outros valores é generalizadamente admitida no nosso direito, desde logo no âmbito do regime do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), mas também por força de outros princípios com protecção constitucional e legal em matéria de tributação, como é o caso do princípio da justiça (artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigos 5.º, n.º 2, e 55.º da LGT).»
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Quanto à tempestividade da revisão oficiosa, aplicar-se-ia o prazo reduzido de «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º, o que significa que os «três anos posteriores ao do ato tributário» terminam no dia 31 de dezembro do terceiro ano posterior àquele em que foi praticado o ato tributário.
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Sucede que resulta do pedido de revisão oficiosa que consta como Documento 1 do Pedido de Pronúncia arbitral que a Requerente apresentou o referido pedido ao abrigo do n.º 1 e não do n.º 4 do artigo 78.º da LGT.
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Pelo que, independentemente da posição da ora signatária, inclusive em Decisões Arbitrais anteriores, a mesma aceita o carácter orientador e persuasivo do Acórdão de uniformização de jurisprudência proferido no processo n.º 0102/22.2BALSB. Nos termos do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
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Fica, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões formuladas pela Requerente
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Consequentemente, indefere-se o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide:
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Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e os atos de liquidação objeto do presente processo;
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Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;
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Condenar a Requerente a suportar integralmente as custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 11.752,77 atribuído pela Requerente e sem contestação da Requerida.
VI. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 918, a cargo da Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 7 de julho de 2023.
Ana Pinto Moraes
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