Sumário:
I. A anulação do ato tributário pela própria AT, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do Requerente, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
II. No âmbito do processo arbitral, o pagamento de juros indemnizatórios é devido como efeito da decisão arbitral de procedência sobre o mérito da pretensão deduzida pelo sujeito passivo e tem em vista restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto de decisão arbitral não tivesse sido praticado (cf. artigo 24.º, n.ºs 1, alínea b), e 5, do RJAT).
III. A condenação em juros indemnizatórios não pode resultar diretamente da anulação oficiosa, pois implica o prosseguimento do processo a fim de ser apreciada a validade do ato tributário – o que se afigura impossível, por efeito da respetiva anulação administrativa –, uma vez que só em caso de procedência do mérito da pretensão é que o Tribunal Arbitral pode proferir uma decisão condenatória nesse sentido.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 6 de março de 2023, A..., NIF..., solteira, maior, residente no ..., ..., ..., ...-... Lisboa (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à (i)legalidade:
(a) parcial do ato de liquidação de IRS, respeitante ao ano de 2020;
(b) do ato de deferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2022...; e
(c) do ato de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2022... interposto contra a referida decisão de deferimento parcial de reclamação graciosa.
A Requerente juntou prova documental e requereu a produção de prova testemunhal.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), a Requerente alega, essencialmente, o seguinte:
É titular, conjuntamente com a sua irmã e em partes iguais, de uma conta no Mercantil Bank (Schweiz) AG, composta por duas carteiras de investimento (portfolios), identificadas com os números ... e ... geradoras de rendimentos de capitais detidos em diversas entidades, sendo tais investimentos intermediados por aquela entidade bancária.
No decurso do ano de 2020, os aludidos portfolios geraram um montante global de rendimentos de CHF 18.327,47, valor este que, à taxa de câmbio em vigor em 31.12.2020, resulta num rendimento global de € 16.927,25; este montante deve ser repartido, em partes iguais, pela Requerente e sua irmã, resultando um rendimento total de € 8.463,62, para cada uma.
Em virtude da aplicação de normas fiscais do Reino Unido, a sobredita entidade bancária, na qualidade de substituto tributário, reteve na fonte o valor de CHF 126,76 – que, à taxa de câmbio em vigor em 31.12.2020, se cifra em € 117,08 –, atinente a imposto sobre o rendimento auferido naquele país, no âmbito do portfolio ...; este valor deve ser imputado, em partes iguais, à Requerente e sua irmã, daí resultando a quantia de € 58,54, para cada uma.
A Requerente apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2020, tendo, no respetivo Anexo J, declarado rendimentos de capitais no valor de € 18.327,47; sequentemente, foi emitida a respetiva liquidação de IRS, da qual resultou o valor a pagar de € 5.131,69. A declaração daquele valor de rendimentos de capitais incorre num triplo lapso: não reflete o câmbio para Euros; não considera a repartição de tais rendimentos, em partes iguais, entre a Requerente e a sua irmã; e, desconsidera o dito valor de imposto pago no Reino Unido.
Por tal motivo, a Requerente apresentou uma declaração de substituição Modelo 3 de IRS, na qual inseriu o valor corrigido de rendimentos de capitais de € 8.463,62 e o valor de imposto retido na fonte, no Reino Unido, no valor de € 58,54; essa declaração de rendimentos foi convolada na reclamação graciosa n.º ...2022... .
Por lapso, a Requerente não apresentou com nenhuma das sobreditas declarações de rendimentos o respetivo Anexo H, com vista a beneficiar da dedução de despesas fiscalmente relevantes, tendo-o feito em sede de audição prévia da reclamação graciosa. Assim, nos atos tributários impugnados apenas foram consideradas, a título de despesas dedutíveis, as despesas gerais e familiares, de saúde, de educação e formação e as relativas à exigência de fatura, no montante total de € 341,30. Acontece que, relativamente a encargos com imóveis, a Requerente poderia ter deduzido à coleta o valor correspondente a 15% do montante de € 1.750,00, suportado com rendas no âmbito do contrato de arrendamento referente à sua habitação permanente.
Inconformada com a decisão da reclamação graciosa, a Requerente interpôs o recurso hierárquico n.º ...2022..., o qual foi indeferido.
Acresce, ainda, que foi instaurado à Requerente o processo de execução fiscal n.º ...2021..., sendo a quantia exequenda, no valor de € 5.131,69, proveniente da sobredita liquidação de IRS do ano de 2020; por conta daquele montante, a Requerente já pagou o valor total de € 1.730,16, designadamente no âmbito de um plano prestacional em curso.
Neste enquadramento, a Requerente entende que os atos tributários controvertidos padecem de vícios de violação de lei, radicados em “erro de direito sobre a prova dos rendimentos da A. e do imposto por esta suportado no estrangeiro, perante as autoridades fiscais do Reino Unido”, “erro de facto e de direito sobre o valor dos rendimentos auferidos pela A.”, “erro de facto e de direito sobre a dedutibilidade dos encargos com imóveis” e “erro de facto e de direito sobre o imposto suportado no estrangeiro, perante as autoridades fiscais do Reino Unido”.
A Requerente termina propugnando a procedência do pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, que:
“i) Sejam anulados o ato de liquidação do IRS com referência ao exercício de 2020, na parte ilegal de € 2.933,73 (dois mil novecentos e trinta e três euros e setenta e três cêntimos), e as decisões da reclamação graciosa e do recurso hierárquico, nessa parcela;
ii) Seja a A. efetivamente tributada sobre a matéria coletável de € 8.463,62 (oito mil quatrocentos e sessenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), correspondente à sua quota sobre os portfolios de investimento detidos juntamente com a sua irmã;
iii) Seja aplicada a opção pelo englobamento a que se referem os artigos 22.º, n.º 3, alínea b), e 71.º, n.º 8, do Código do IRS;
iv) Sejam efetuadas todas as deduções legais a que tem direito a A., no valor global de € 662,34 (seiscentos e sessenta e dois euros e trinta e quatro cêntimos), incluindo as ínsitas nos artigos 78º-E e 81º do Código do IRS; ou, caso assim não se entenda,
v) Sejam efetuadas todas as deduções legais a que tem direito a A., no valor global de € 603,80 (seiscentos e três euros e oitenta cêntimos), incluindo as ínsitas no artigo 78.º-E do Código do IRS;
vi) Sejam devolvidos o valor global de € 1.068,85 (mil e sessenta e oito euros e oitenta e cinco cêntimos) e, bem assim, quaisquer outros valores indevidamente pagos ou a pagar pela A., com referência ao IRS do período de tributação de 2020; e, ainda,
vii) Sejam liquidados e pagos os correspondentes juros indemnizatórios vencidos, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, contados desde a data dos pagamentos indevidos do IRS e até à presente data, no valor de € 29,90 (vinte e nove euros e noventa cêntimos), e os vincendos, a partir da presente data e até efetivo e integral pagamento;
sempre com todas as devidas e legais consequências.”
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 12 de março de 2023.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 27 de abril de 2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 17 de maio de 2023.
5. Em 29 de maio de 2023, a Requerida veio “informar que, por despacho de 17/05/2023 da Senhora Subdiretora-Geral para a Área da Gestão Tributária-IR, a liquidação objeto do pedido foi revogada, nos termos da Informação que se junta”; a Requerida instruiu esse seu requerimento com a “Informação da DSIRS onde foi exarado o despacho revogatório”, documento do qual consta o sobredito despacho, proferido por delegação de competências, com o seguinte teor: “Revogo o ato contestado nos termos propostos, não havendo lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.”
Tal ato revogatório teve por base a Informação da DSIRS, constante do referido documento e que aqui se dá por inteiramente reproduzida, da qual importa destacar os seguintes segmentos:
“(…)
2. Com efeito, a impetrante argumenta que teria auferido, tão-somente, a título de rendimentos de capitais, a quantia de € 8.463,62.
(…)
17. Os ganhos totais, imputados à impetrante, contabilizaram 9.163,735 CHF.
18. Que, a conversão monetária, a 31-12-2020, totalizava 8.483,37€.
19. Um montante que prescreve o lapso alinhado pela contribuinte.
20. Mais se diga que, perante as conclusões precedentes, nada obsta à tributação deste montante, por via do respetivo englobamento, conforme requerido pela autora.
(…)
22. No que tange à consideração dos montantes retidos na fonte e entregues às autoridades do Reino Unido, também não pontificam dúvidas acerca da pretensão redigida pela autora.
(…)
27. A respetiva conversão, a 31-12-2020, dita a soma de 58,67€.
28. Um alinhamento condizente com o pedido em causa.
(…)
31. No que concerne às despesas arguidas, importa reiterar, na mesma medida já alinhada pela proposta de decisão do recurso hierárquico supramencionado, que as deduções à coleta peticionadas encontram-se contempladas na liquidação em crise.
32. Citamos a aludida proposta:
“40. Da referida liquidação foram consideradas as deduções à coleta, o valor total de € 341,30, sendo € 250,00 Dedução despesas gerais e familiares, € 42,79 Dedução com despesas de saúde e com seguros de saúde, € 10,46 Dedução com despesas de educação e formação e € 38,04 Dedução pela exigência de fatura.”
33. Sendo assim, não estamos perante uma questão controvertida.
34. Relativamente às deduções à coleta por pagamento de renda, a impetrante contesta que o domicílio fiscal possa sustentar, sem mais, o enquadramento das finalidades previstas na norma do artigo 78.º-E, n.º 1 al. a), do CIRS.
(…)
48. Ora, não sendo objetada a residência em território português, durante o ano 2020, e perante os elementos previamente assinalados, julgamos que a presunção associada ao domicílio fiscal, foi ilidida pela exponente.
49. Devendo a respetiva habitação permanente reportar-se, justamente, ao prédio que figura no contrato de arrendamento sobredito.
50. Um entendimento que não prejudica a dedução das quantias despendidas, a título de rendas, ao abrigo da norma do artigo 78.º-E, n.º 1 al. a), do CIRS.
51. Que totalizaram o montante de 1.750,00€.
52. Finalmente, no que respeita aos juros indemnizatórios não podemos secundar o entendimento da autora.
(…)
60. Descendo ao caso vertido nos autos, não é possível verificar qualquer erro, nos trâmites pugnados, porquanto a liquidação orientou-se, precisamente, no sentido dos elementos disponíveis à administração fiscal, aquando da respetiva emissão.
61. Inclusivamente, a liquidação refletiu os montantes apontados pela contribuinte, que ascenderam a 18.327,47€, no quadro 8ª, do anexo J, das declarações de rendimentos n.º ...-2020-... e ...-2020-..., submetidas pela impetrante, e replicadas na declaração modelo 3 vigente n.º ...-2020-... .
(…)
Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que a liquidação objetada deverá ser anulada, nos termos anteriormente mencionados.
Contudo, não pontificam razões que justifiquem o pagamento de juros indemnizatórios.
(…)
Por tudo o exposto, propõe-se a revogação da decisão proferida no recurso hierárquico n.º ...2022... .
Não obstante, não deverão ser pagos juros indemnizatórios à contribuinte.”
6. Em 12 de junho de 2023, devidamente notificada para o efeito, a Requerente pronunciou-se relativamente àquele ato revogatório, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos e dos quais importa respigar os seguintes segmentos:
“(…)
3. Sucede, contudo, que, nos presentes autos são contestados três atos (e não um), i.e., para além da decisão proferida no recurso hierárquico nº ...2022..., a decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa com o nº ...2022...e o ato de liquidação do IRS nº 2022..., de 02.11.2022, com referência ao exercício de 2020, na parte ilegal de € 2.933,73 (dois mil novecentos e trinta e três euros e setenta e três cêntimos), peticionando-se a respetiva anulação, com todas as legais consequências;
4. Donde, no despacho a que ora se responde, decidiu a Requerida revogar apenas o ato praticado no procedimento de recurso hierárquico nº...2022..., que correu termo na Direção de Finanças de Lisboa – mantendo na ordem jurídica os outros dois atos impugnados, estes praticados pelo Serviço de Finanças de Lisboa-... – não tendo regulado integralmente a relação jurídica tributária objeto dos autos;
(…)
8. Em suma, não tendo a Requerida regulado integralmente a situação jurídica em causa, mantendo na ordem jurídica dois dos três atos impugnados nos presentes autos, sem sequer ter reembolsado a Requerente dos valores por si pagos em excesso, salvo melhor opinião, não se encontram esgotados os efeitos a obter com os presentes autos, requerendo-se a V. Exa., muito respeitosamente, se digne mandar prosseguir os autos com vista à anulação da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa com o nº ...2022...e do ato de liquidação do IRS nº 2022..., de 02.11.2022, com referência ao exercício de 2020, estes na parcela ilegal de € 2.933,73 (dois mil novecentos e trinta e três euros e setenta e três cêntimos), conforme inicialmente peticionado;
9. Por outro lado, concluindo-se pela verificação de erro imputável aos serviços, como inequivocamente aponta a factualidade descrita na petição inicial, terá a Requerente direito a juros indemnizatórios, contados desde a data dos pagamentos indevidos e até à data do processamento da respetiva nota de crédito, nos termos do disposto no artigo 43º, nº 1, da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 61º, nº 5, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicáveis ex vi pela alínea a) do nº 1 do artigo 29º do RJAT;
10. Pelo que, tendo a Requerida recusado expressamente o direito da Requerente ao pagamento dos juros indemnizatórios (mal, salvo o devido respeito), afigura-se que a prossecução dos presentes autos é útil e adequada a regular essa pretensão jurídica da Requerente, reconhecendo-lhe o respetivo direito, nos termos legais;
(…)
Termos em que, e nos demais de direito, se requer a V. Exa. prossigam os autos para a pronúncia arbitral de mérito, com a consequente anulação dos atos que a Requerida manteve na ordem jurídica e a determinação de que houve in casu erro imputável aos serviços, com a consequente condenação da Requerida ao pagamento dos juros indemnizatórios e as demais devidas e legais consequências.”
7. Em 15 de junho de 2023, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual deduziu a exceção de falta de interesse em agir e impugnou os argumentos aduzidos pela Requerente, quanto aos juros indemnizatórios por esta peticionados, tendo concluído nos seguintes termos:
“a) Deve a exceção dilatória invocada proceder, no segmento assinalado, e a Requerida ser absolvida do pedido;
b) Quanto ao demais, deve a presente ação arbitral ser julgada improcedente, por não provada, a Requerida absolvida do pedido.”
A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas; posteriormente, em 23 de junho de 2023, procedeu à junção aos autos do processo administrativo (doravante, PA).
8. Em 16 de junho de 2023, a Requerente, para tal devidamente notificada, pronunciou-se sobre a aludida exceção invocada pela Requerida na sua Resposta, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, pugnando pela respetiva improcedência.
9. Por despacho arbitral, datado de 6 de julho de 2023, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas, tendo sido indicado o dia 31 de julho de 2023 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
II. Saneamento
10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo (cf. artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
A Requerida invocou a exceção da falta de interesse em agir “pois, tendo a liquidação objeto dos autos sido revogada e o despacho que recaiu sobre o recurso hierárquico sido anulado, inexiste objeto e ou interesse em agir que sustente o pedido”; adiante, aludiremos a esta questão.
III. Fundamentação
III.1. De Facto
11. Pelas razões adiante aduzidas e desenvolvidas, não há que elencar os factos relevantes para a apreciação do mérito da causa; com efeito, como veremos, o vertido no Relatório afigura-se bastante para alicerçar o que adiante se decidirá.
III.2. De Direito
12. A Requerente veio solicitar a constituição de tribunal arbitral para apreciar a (i)legalidade parcial do ato tributário de liquidação de IRS, referente ao ano de 2020, bem como a (i)legalidade do ato de deferimento parcial da reclamação graciosa n.º ...2022...e do ato de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2022... interposto contra aquela decisão de reclamação graciosa; a Requerente peticionou, ainda, a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso dos montantes de imposto indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios.
Por despacho de 17 de maio de 2023, da Subdiretora-Geral da Área de Gestão Tributária-IR, a anterior decisão de indeferimento do aludido recurso hierárquico foi revogado.
Como acima referido (cf. ponto 5 do Relatório), tal ato revogatório teve por base a sobredita e citada Informação da DSIRS que também aqui se dá por inteiramente reproduzida.
Independentemente do que seguidamente se dirá quanto à natureza jurídica do ato, a revogação do ato de indeferimento do mencionado recurso hierárquico, com base nos fundamentos constantes da dita Informação da DSIRS, designadamente nos segmentos acima citados (cf. ponto 5 do Relatório), tem inequivocamente implícita a anulação quer da decisão da reclamação graciosa n.º ...2022..., quer do ato tributário de liquidação de IRS, referente ao ano de 2020; aliás, tal é explicitado na conclusão da referida Informação: “Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que a liquidação objetada, deverá ser anulada, nos termos anteriormente mencionados.” Assim, contrariamente ao afirmado pela Requerente, a Requerida não decidiu “revogar apenas o ato praticado no procedimento de recurso hierárquico n.º ...2022...” e, por isso, não manteve “na ordem jurídica dois dos três atos impugnados nos presentes autos”.
13. Dito isto e centrando agora a nossa atenção na natureza jurídica daquele ato praticado pela Subdiretora-Geral da Área de Gestão Tributária-IR, importa referir que o atual Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação, ou seja, a revogação ab-rogatória ou extintiva e a revogação anulatória.
Como decorre do vertido no artigo 165.º do CPA, a revogação “é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade” cf. n.º 1), sendo a anulação administrativa “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade” (cf. n.º 2). A revogação, por regra, “apenas produz efeitos para o futuro” (cf. artigo 171.º, n.º 1, do CPA), enquanto que a anulação administrativa, salvo disposição especial, “produz efeitos retroativos” (cf. artigo 171.º, n.º 3, do CPA) e “produz efeitos repristinatórios” (cf. artigo 171.º, n.º 4, do CPA).
Por outro lado, como estatuído no artigo 197.º, n.º 1, do CPA, no âmbito do recurso hierárquico, “o órgão competente para conhecer do recurso pode, salvas as exceções previstas na lei, confirmar ou anular o ato recorrido e, se a competência do autor do ato recorrido não for exclusiva, pode também revogá-lo, modificá-lo ou substituí-lo, ainda que em sentido desfavorável ao recorrente”.
No caso sub judice, a AT entendeu revogar o ato recorrido com fundamento em considerações de legalidade e não de mera discricionariedade, pelo que, apesar de adotar a terminologia anteriormente aplicável, praticou, segundo a atual terminologia, um ato de anulação administrativa, tendo determinado, no rigor dos termos, a anulação do ato tributário que foi impugnado por via do recurso hierárquico.
14. No respeitante às consequências processuais de tal anulação administrativa, importa ter em consideração o artigo 64.º do CPTA, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, particularmente o disposto nos seus n.ºs 1 e 2:
“1 – Quando, na pendência do processo, o ato impugnado seja objeto de anulação administrativa acompanhada ou sucedida de nova regulação, pode o autor requerer que o processo prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades, sendo aproveitada a prova produzida e dispondo o autor da faculdade de oferecer novos meios de prova.
2 – O requerimento a que se refere o número anterior deve ser apresentado no prazo de impugnação do ato anulatório e antes do trânsito em julgado da decisão que julgue extinta a instância.
(…)”
Nesta norma está prevista a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição, contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em agir.
No caso sub judice, afigura-se evidente que não é essa a situação que se verifica. Com efeito, a AT anulou o ato tributário sem que tenha instituído uma qualquer nova regulação da situação jurídica, tendo-se, pois, limitado a conformar-se com o reconhecimento da ilegalidade do ato tributário anteriormente praticado. Ora, como decorre do estatuído no citado n.º 2 do artigo 64.º do CPTA, a anulação do ato impugnado pela própria Administração, na pendência do processo, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Efetivamente, “a anulação administrativa determina a destruição dos efeitos do acto administrativo anulado (artigo 165.º, n.º 2, do CPA), com a sua consequente eliminação da ordem jurídica, pelo que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente da lide por falta de objecto processual” (decisão arbitral do processo n.º 215/2018-T), conducente à extinção da instância e que, por isso, obsta a uma “pronúncia arbitral de mérito”, como pretende a Requerente.
No entanto, a anulação administrativa de um ato administrativo na pendência do processo judicial de impugnação pode não conduzir, necessariamente, à extinção da instância, concretamente quando tenham sido deduzidas, em cumulação com a pretensão impugnatória, outras pretensões, dirigidas a obter prestações repristinatórias, indemnizatórias ou outras, que a anulação do ato, só por si, não satisfaz; nesta hipótese, a anulação administrativa não impede o processo de prosseguir, para apreciação das pretensões que vinham cumuladas, como pedidos dependentes, com o pedido principal de impugnação (ver, neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2021, p. 440).
Contudo, essa possibilidade não se coloca no âmbito do processo arbitral pois, neste, o pagamento de juros indemnizatórios é devido como efeito da decisão arbitral de procedência sobre o mérito da pretensão deduzida pelo sujeito passivo e tem em vista restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto de decisão arbitral não tivesse sido praticado (cf. artigo 24.º, n.ºs 1, alínea b), e 5, do RJAT).
Ademais, a condenação em juros indemnizatórios não pode resultar diretamente da anulação oficiosa, pois implica necessariamente o prosseguimento do processo a fim de ser apreciada a validade do ato tributário, uma vez que só em caso de procedência do mérito da pretensão é que o Tribunal Arbitral pode proferir uma decisão condenatória. Com efeito, “o pedido arbitral referente aos juros indemnizatórios apenas pode ser entendido como uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, implicando que o processo devesse prosseguir para a apreciação incidental da legalidade do acto impugnado apenas para o efeito de saber se há lugar ao pretendido ressarcimento a título de juros indemnizatórios” (decisão arbitral do processo n.º 215/2018-T).
Acresce que o artigo 172.º do CPA, norma que visa regular as consequências da anulação administrativa, reproduz o disposto no artigo 173.º do CPTA, norma aplicável à execução de sentenças de anulação de atos administrativos, estipulando um conjunto de deveres de executar relativamente ao ato anulado administrativamente que correspondem aos que igualmente se impõem à Administração se houver lugar a anulação contenciosa no âmbito de um processo impugnatório. Tal coincidência normativa permite afirmar que as consequências resultantes da anulação de um ato administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente de a anulação resultar de um ato da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório.
Assim, sendo um dos deveres em que a AT fica constituída, por efeito da anulação administrativa do ato tributário, a reconstituição da situação que existiria se esse ato não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da LGT.
Destarte, não pode ser acolhida a pretensão da Requerente no sentido do prosseguimento destes autos para “determinação de que houve in casu erro imputável aos serviços, com a consequente condenação da Requerida ao pagamento dos juros indemnizatórios” pois, por efeito da anulação administrativa dos atos tributários impugnados, o presente processo arbitral não pode prosseguir por impossibilidade superveniente da lide; porquanto, “[f]ace ao RJAT, e dado que estamos no âmbito geral de um contencioso de anulação de actos, é inequívoco que um acto de um dos tipos previstos no artigo 2.º é imprescindível como objecto do processo arbitral, já que neste se visa apurar da sua legalidade ou ilegalidade. Sem um desses actos, falta objecto ao processo, gera-se uma impossibilidade da lide” (decisão arbitral do processo n.º 412/2017-T).
No entanto, não está de forma alguma precludida a possibilidade de a Requerente poder deduzir um pedido indemnizatório em ação de responsabilidade civil autónoma; com efeito, a Requerente mantém “o direito a exigir da Requerida os juros de que se acha credora. Este Tribunal é que não pode apreciá-lo no âmbito de uma lide que insubsiste” (decisão arbitral do processo n.º 412/2017-T).
15. Atento o exposto, resulta prejudicado o conhecimento da exceção da falta de interesse em agir.
16. A finalizar, importa referir que a AT procedeu à revogação dos atos tributários controvertidos quando este Tribunal Arbitral singular se encontrava já constituído – sendo que apenas o comunicou no processo após a notificação para apresentar Resposta e juntar o PA –, pelo que o prosseguimento do processo só à Requerida pode ser imputável; consequentemente, as custas do processo devem ser totalmente imputadas à Requerida (cf. artigo 536.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Decisão
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:
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Julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, com todas as legais consequências;
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Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.
V. Valor do Processo
Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 2.963,63 (dois mil novecentos e sessenta e três euros e sessenta e três cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 612,00 (seiscentos e doze euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique.
Lisboa, 13 de julho de 2023.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)