SUMÁRIO:
I – Para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT (pedido de revisão oficiosa), o “erro imputável aos serviços” concretiza qualquer ilegalidade relevante que seja imputável à conduta negligente da administração fiscal (ou seja, sempre que a errada aplicação da lei não decorra de elementos apresentados pelo contribuinte).
II - Quando o erro que vicia a liquidação decorre de elementos do contribuinte, deve distinguir-se (i) se, na apresentação desses elementos (maxime, na apresentação de uma declaração prevista lei, como seja a declaração modelo 22 de IRC), foram observadas orientações da administração tributária às quais o erro seja imputável, ou (ii) se, sobre o elemento que originou o erro, não existia qualquer orientação da administração tributária (e.g., instruções de preenchimento, circular ou ofício-circulado).
III - Só no primeiro caso é legitimo sustentar a verificação de “erro imputável aos serviços”. No segundo, inelutavelmente, o erro é imputável ao sujeito passivo.
IV - De acordo com as regras de repartição do ónus da prova constantes do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos de direitos cabe a quem os invocar. Revogado que foi o n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que estabelecia a presunção de que se considerava “imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”, o pedido de revisão oficiosa com fundamento em “erro imputável aos serviços”, incluído no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, passou a exigir, também no caso de autoliquidação, ao sujeito passivo a prova da imputabilidade aos serviços do erro que invoca.
DECISÃO ARBITRAL
O Tribunal Arbitral, composto pela Presidente, Professora Doutora Rita Correia da Cunha, e pelos Árbitros Vogais, Dr. Manuel da Fonseca Benfeito e Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 23-01-2023, acorda o seguinte:
I – RELATÓRIO
A A..., S.A., entidade com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede na Avenida …, … …, (doravante “Requerente”), tendo sido notificada da decisão final de indeferimento liminar do procedimento administrativo de revisão oficiosa n.º ...2022..., veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), bem como dos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d), da LGT e 99.º, alínea a), do CPPT, requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), tendo em vista: (i) A declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão final de indeferimento liminar da revisão oficiosa n.º ...2022..., da autoria do Diretor de Serviço da Unidade de Grandes Contribuintes; (ii) A consideração da correção da autoliquidação de IRC do período de tributação de 2017, efetuada pela B... – Sociedade Financeira de Crédito, S.A. (doravante “B...”), sociedade entretanto incorporada pela Requerente, mediante dedução da diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo e o valor de aquisição dos imóveis, no valor de € 1.575.496,17; (iii) O reembolso do valor de IRC indevidamente pago, resultante da não dedução acima referida, no montante de € 433.123,50; e (iv) O pagamento de juros indemnizatórios, por pagamento em excesso de prestação tributária no exercício de 2017.
A Requerente sustenta, em síntese, que a autoliquidação de IRC efetuada pela B... na Declaração anual modelo 22 apresentada em 29-06-2018, relativa ao exercício de 2017, enferma de erro nos pressupostos de facto e de direito do ato tributário por não ter considerado, na determinação do lucro tributável sujeito a IRC, a totalidade dos gastos permitidos pelo regime de dedutibilidade estabelecido no Código do IRC, o que se traduziu num imposto autoliquidado superior ao devido. E juntou diversos documentos.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
Cumpridos os necessários e legais trâmites processuais, designadamente os previstos no RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, foi constituído Tribunal Arbitral Coletivo, em 23-01-2023, formado pela Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr. Manuel Fonseca Benfeito e Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino (árbitros vogais), em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Notificada em 23-01-2023, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, veio a AT apresentar resposta e juntar o processo administrativo a 27-02-2023, invocando, desde logo, a exceção de intempestividade do PPA, fundada na consolidação na ordem jurídica da autoliquidação impugnada e da sua subsequente inimpugnabilidade.
Analisando também o mérito da causa, a Requerida, remeteu in totum para a decisão arbitral tirada no processo n.º 15/2022-T, que em grande parte transcreve.
Entretanto, em 06-03-2023, e perante a invocação de exceções na Resposta da Requerida, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho, notificado às partes no dia 07-03-2023:
(1) Notifique-se a Requerente para, querendo, no prazo de 10 dias, apresentar requerimento de resposta às exceções suscitadas pela Requerida na Resposta de 27-02-2023.
(2) Notifiquem-se as partes para, querendo, no prazo referido no número anterior, se pronunciarem sobre a necessidade de realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e da apresentação de alegações finais.
A Requerente apresentou, tempestivamente, em 21-03-2023, a resposta às exceções invocadas pela Requerida, contestando, em primeiro lugar a natureza da exceção, nos termos seguintes:
Uma vez que a AT afirma “Não houve erro dos serviços!”, o que contraria directamente aquilo que a Requerente afirma “há erro dos serviços!”, tal divergência exige a apreciação pelo tribunal do mérito da pretensão deduzida pela Requerente.
A necessidade dessa apreciação de mérito exclui desde logo a sua qualificação como excepção dilatória ao nível da presente acção arbitral. Trata-se na realidade de uma excepção peremptória.
AT pretende ser absolvida definitivamente do pedido formulado pelo Autor, com base num facto ocorrido no procedimento administrativo – decurso do tempo entre a liquidação e o pedido de revisão oficiosa – que inutilizaria definitivamente o pedido do Requerente.
E não se encontram na resposta outras matérias de excepção (apesar do plural utilizado pela AT), pelo que apenas sobre esta se irá pronunciar a Requerente.
Em segundo lugar, contestou a existência e a procedência das invocadas exceções, nos termos que a seguir se transcrevem:
Ora vejamos se essa excepção deve proceder.
A declaração de ilegalidade e consequente anulação requerida ao abrigo do PPA dizem respeito à decisão de indeferimento da revisão oficiosa n.º ...2022..., que teria, na opinião da AT, sido apresentada extemporaneamente.
Conforme exposto no PPA, está em causa uma correção à autoliquidação do IRC de 2017, por aplicação do artigo 64.º, n.º 3, alínea b), do CIRC.
Entende a Requerente ter ficado por efetuar uma dedução ao lucro tributável de € 1.575.496,17, daí resultando IRC pago em excesso no valor de € 433.123,50.
Essa correção foi objeto do pedido de revisão oficiosa n.º ...2022..., apresentado com base no disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT), o qual foi indeferido pela AT.
Contra esse acto foi apresentado o presente PPA, em que expressamente se requer a anulação dessa decisão de indeferimento liminar e, consequentemente, o reembolso do IRC pago em excesso.
O que está em causa – para o efeito desta excepção - é apenas e só o prazo para apresentação do pedido de revisão oficiosa.
Nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, a revisão do acto tributário pela entidade que o praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação graciosa (2 anos), ou por iniciativa da AT, no prazo de 4 anos com fundamento em erro imputável aos serviços.
Constitui hoje jurisprudência assente que a revisão dos actos tributários pode também ser requerida pelos sujeitos passivos, no prazo de 4 anos, com fundamento em erro imputável aos serviços. (2.ª parte do artigo 78.º, n.º 1, da LGT).
Assim afirma o Supremo Tribunal Administrativo (STA), segundo o qual “o «erro imputável aos serviços» a que alude o artigo 78.º, n.º 1, in fine, da LGT, compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afectada pelo erro” (cfr. Acórdão do STA, de 14.03.2012, proferido no âmbito do processo n.º 01007/11).
Na redação vigente até Março de 2016 considerava-se que o erro na autoliquidação era sempre imputável aos serviços (artigo 78.º, n.º 2, da LGT).
Essa regra foi revogada pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7- A/2016, de 30 de Março.
A AT considera inaplicável o prazo de 4 anos estabelecido no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte, da LGT, uma vez que os actos tributários sub judice correspondem a autoliquidações de IRC e nestes casos, desde a revogação do n.º 2 daquele artigo da LGT, deixou de se atribuir o erro de direito aos serviços da AT.
Contudo, mesmo após a alteração legislativa introduzida ao artigo 78.º da LGT, o Tribunal Arbitral já seguiu a jurisprudência do STA citada no ponto 22 acima, considerando tempestivo um pedido de revisão oficiosa nos mesmos termos aos quais se reporta o caso em análise (cfr. Decisão Arbitral emitida no âmbito do processo n.º 911/2019-T, de 05.09.2020).
Importa contrariar o que argumenta a AT relativamente ao período a que se reporta essa jurisprudência, pois alega que se refere a factos tributários anteriores à alteração do artigo 78.º da LGT em 2016, o que é inexacto, pois trata-se de jurisprudência relativa a factos tributários ocorridos entre 2015 e 2018, tendo o Tributal mostrado perfeita perceção desse facto e decidido no sentido acima referido precisamente para o período posterior à referida alteração da LGT.
Embora a citada jurisprudência do Tribunal Arbitral se refira a outro imposto que não o IRC - Imposto do Selo -, estamos em ambos os casos perante uma autoliquidação de imposto, que é o que releva no caso presente.
De resto, a conclusão vertida nesta jurisprudência é a que a doutrina tem considerado como a única possível em defesa do princípio da justiça e da verdade material.
Adicionalmente, importa referir que o carácter lesivo dos actos de autoliquidação, apesar de praticados pelo próprio contribuinte, é expressamente reconhecido pela alínea a) do n.º 2 do artigo 95.o da LGT, que os equipara a actos de liquidação praticados pela AT para efeitos de impugnação contenciosa.
Tendo a Requerente invocado a existência de erro imputável aos serviços da AT como fundamento para a apresentação do seu pedido de revisão oficiosa, caberá ao tribunal arbitral um juízo de mérito quanto à existência desse erro.
Será portanto apreciado na acção arbitral se ocorreu erro imputável aos serviços e se a pretensão material da Requerente deve proceder.
Fazendo ambos parte do pedido no presente processo, tal como a Requerente o configurou no PPA.
Em 23-03-2023, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho, na parte que aqui interessa, no mesmo dia notificado às partes:
(1) Considerando que as partes não requereram a produção de prova adicional, determina-se a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
(2) Notifique-se as partes para apresentarem alegações escritas finais no prazo (simultâneo) de 10 dias.
Apenas a Requerida apresentou alegações finais, em 18-04-2023, isto é, intempestivamente, pois o prazo de 10 dias terminou em 11-04-2023 (contadas a dilação de 5 dias para notificação e as férias judiciais), pelo que não serão consideradas pelo Tribunal.
II – SANEAMENTO
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
Verifica-se a competência deste tribunal arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades. No entanto, foram invocadas exceções pelo que se impõe delas conhecer de imediato, nos termos do disposto no artigo 88.º do CPTA, aplicável ao PPA por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Com efeito, a respetiva procedência pode implicar o não conhecimento de mérito.
Para o efeito, consideram-se relevantes e provados os seguintes factos:
(1) A Requerente é a A..., S.A., entidade com o número único de matrícula e de identificação fiscal ..., com sede na …, n.º …, … …, que incorporou, por escritura pública realizada em 28-12-2020, no Cartório Notarial da Notária C…, a sociedade B... - Sociedade Financeira de Crédito, S.A.
(2) Em 2017, a sociedade B... - Sociedade Financeira de Crédito, S.A. era um sujeito passivo de IRC, nos termos do artigo 2.º do Código do IRC, encontrando-se registada para efeitos fiscais na área do Serviço de Finanças de Lisboa ….
(3) A sociedade B... - Sociedade Financeira de Crédito, S.A. apresentou, em 29-06-2018, a declaração modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2017, com autoliquidação de imposto nos termos do disposto no artigo 89.º do Código do IRC, onde apurou a coleta de IRC de € 2.455.444,18, validada pela Administração Fiscal, nos termos do disposto no n.º 12 do artigo 90.º do CIRC, pela liquidação n.º 2018 …, de 26-07-2018.
(4) Em 31-05-2022, a Requerente apresentou, junto da entidade competente, pedido de revisão oficiosa, ali registado sob o n.º ...2022..., liminarmente rejeitado por extemporaneidade, decisão àquela notificada pela Unidade dos Grandes Contribuintes, da AT, pelo ofício n.º …-DJT/2022, de 21-07-2022, sob o registo dos CTT n.º RF…PT, considerando-se o sujeito passivo expressamente notificado a 25-07-2022.
(5) De tal decisão, a Requerente deduziu o presente PPA em 24-10-2022, pelo que o pedido foi tempestivo (o último dia, 23-10-2022, foi domingo, estando o CAAD encerrado e, consequentemente, o prazo transferiu-se para o primeiro dia útil, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 20.º do CPPT).
Não há factos não provados relevantes para a decisão.
III – DA PROCEDÊNCIA DA(S) EXCEÇÃO(ÕES)
a) Questões prévias
A Requerida invocou, a título de exceções dilatórias, os seguintes factos jurídicos: (i) a consolidação na ordem jurídica da autoliquidação em crise; e (ii) a subsequente inimpugnabilidade do ante mencionado ato.
Por sua vez, a Requerente fixou-se na divergência entre a existência ou não de “erro imputável aos serviços” para concluir que apenas existia essa exceção e que a exceção era perentória, e não dilatória, pelo que implicava que este Tribunal conhecesse de mérito.
Vejamos.
O artigo 78.º da LGT, dispõe o seguinte:
Artigo 78.º
Revisão dos actos tributários
1 - A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
2 - (Revogado pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março).
3 - A revisão dos actos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respectivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior. (Redação da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro).
4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. (Redação do n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de dezembro).
5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional. (Redação da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro) (Anterior n.º 4).
6 - A revisão do acto tributário por motivo de duplicação de colecta pode efectuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos. (Redação da Lei n.º 55-B/2004, de 30 de dezembro).
7 - Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização. (Redação da Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro) (Anterior n.º 6).
Há, desde logo, a sublinhar que, por notoriamente extemporâneo, não está em causa um pedido de revisão oficiosa “com fundamento em qualquer ilegalidade” - artigo 78.º, n.º 1, primeira parte, da LGT, uma vez que tal pedido teria de ser submetido à apreciação do órgão competente da AT “no prazo de reclamação administrativa”. Seguindo a tipologia da revisão dos atos tributários, enunciada por NABAIS (2010)[1], que distingue entre as “revisão normal ou ordinária”, com fundamento em “erro imputável aos serviços”, e as “revisões excecionais ou extraordinárias” (uma, a revisão da matéria tributável por injustiça grave e notória e, outra, a revisão por duplicação de coleta), tem de concluir-se que estamos perante um pedido de revisão normal ou ordinário, com fundamento em “erro imputável aos serviços”.
Assiste, pois, razão à Requerente nesta qualificação do tipo de revisão oficiosa que submeteu ao órgão competente da AT para decidir e que este rejeitou, liminarmente, por extemporaneidade. Isto é, a AT não aceitou o fundamento de “erro imputável aos serviços” que a Requerente invocou para efeitos do prazo de quatro anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Neste contexto, cumpre ao Tribunal decidir previamente sobre a verificação ou não do fundamento jurídico que a Requerente invocou. Ao fazê-lo, o Tribunal não conhece do mérito da causa, o que contenderia com a natureza de exceção que atribui à intempestividade ou extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa que fundamentou a rejeição limiar. Conhecer de mérito seria, no caso dos autos, decidir sobre se o montante não integrado como gastos na determinação da matéria coletável que originou a autoliquidação ora impugnada é suscetível de ter a natureza de gasto dedutível, como a Requerente, a final, pretende. Comprovadamente, a extemporaneidade do pedido é uma exceção meramente dilatória que, a confirmar-se, implica apenas a absolvição da instância.
É verdade que a Requerente alegou “erro imputável aos serviços”, o que, em princípio, permitiria a inclusão do pedido no n.º 1 do artigo 78.º da LGT. Porém, não comprovou, como lhe competia, que o erro invocado foi efetivamente imputável aos serviços. Aliás, decorre da própria confissão da Requerente que o erro praticado lhe é exclusivamente imputável, pois foi a Requerente que não considerou, na sua declaração de IRC, o valor de € 1.575.496,17 como gastos do exercício em 2017, o que se traduziria num montante de imposto por si a receber adicionalmente que ela própria calculou em € 433.123,50.
b) Do erro imputável aos serviços
O n.º 3 do artigo 78.º da LGT esclarece que o “erro imputável aos serviços” é tanto o erro de facto, como o erro de direito. Funda-se neste preceito a jurisprudência, nomeadamente a do Douto Supremo Tribunal Administrativo, para afirmar que há um reconhecimento no direito tributário do dever de revogação dos atos ilegais, que decorre dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a administração tributária tem de observar na globalidade da sua atividade, princípios estes que impõem sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei.[2] Este dever, porém, sofre limitações, justificadas por necessidades de segurança jurídica, designadamente quando aas receitas liquidadas foram arrecadadas, o que justifica que sejam estabelecidas limitações temporais.[3]
Pode ler-se na Decisão Arbitral tirada no processo n.º 631/2021, de 31-03-2022 que:
Não se pode dizer que o conceito de “erro imputável aos serviços” seja de evidente e fácil aplicação, surgindo desde logo a dúvida pertinente suscitada por uma aparente oposição, consagrada no nº 1 do art.º 78º da LGT, entre dois tipos de fundamentos: “qualquer ilegalidade”, a utilizar por iniciativa do sujeito passivo, e “erro imputável aos serviços”, a utilizar por iniciativa da Administração Tributária.
Atualmente, não suscita controvérsia a interpretação de que:
- A revisão com fundamento em erro dos serviços, no prazo de 4 anos, pode ser desencadeada pelos contribuintes.
- E que o erro dos serviços abrange erros materiais e de direito.
Reconhece-se porém que “não ficam abrangidos quaisquer vícios (formais) como por exemplo, a falta de fundamentação (art.º 77.º da LGT) ou a falta de audição prévia do contribuinte (artigo 60.º, da LGT).”
Neste sentido, refira-se, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Administrativo, de 06-02-2013 (processo n.º 0839/11): “E embora o conceito de “erro imputável aos serviços” aludido na 2ª parte do n.º 1 do 78.º da LGT não compreenda todo e qualquer “vício” (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só “erros”, estes abrangem não só o erro material e o erro de facto, como, também, o erro de direito ou erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do acto afetado pelo erro - Cf. a jurisprudência consolidada no STA e que se encontra plasmada, entre outros, nos Acórdãos de 06/02/2002, no Proc. n.º 26.690; de 05/06/2002, no Proc. n.º 392/02; de 12/12/2001, no Proc. n.º 26.233; de 16/01/2002, no Proc. n.º 26.391; de 30/01/2002, no Proc. n.º 26231; de 12/11/2009, no Proc. n.º 681/09; de 22/03/2011, no Proc. n.º 1009/10; de 14/06/2012, no Proc. n.º 842/11; e de 14/03/2012, no Proc. n.º 1007/11.” (sublinhado nosso)
No entanto, a jurisprudência, mormente a do Supremo Tribunal de Administrativo, continua o labor de densificar o conceito de “erro imputável aos serviços”, em cada caso que se lhe apresenta.
Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Administrativo de 13-07-2021, processo n.º 0111/18.6BEPNF, onde se decidiu uma questão cuja factualidade ocorrera já após a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT (que estabelecia a presunção de que, na autoliquidação, os erros eram imputáveis aos serviços), sumariou-se o seguinte: “(i) Embora a declaração de rendimentos tenha sido apresentada de forma voluntária pelo contribuinte (que até àquela data tinha omitido a sua apresentação), a mesma foi apresentada de acordo com a qualificação e enquadramento dos rendimentos feita pelos Serviços no relatório elaborado (que desconsideraram como custos determinados pagamentos a anteriores titulares do estabelecimento de farmácia explorado pelo sujeito passivo, os quais foram acrescidos ao rendimento líquido); (ii) Nesta medida, tendo a declaração sido apresentada de acordo com as instruções da Administração Tributária, que o contribuinte acatou, e pretendendo este questionar a sua legalidade, estamos perante “erro imputável aos serviços” para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT”.
Por sua vez, no Acórdão do Supremo Tribunal de Administrativo de 21-04-2022, processo n.º 02030/16.1BEBRG, pode ler-se o seguinte sumário: “(i) No fundamento de revisão dos actos tributários, traduzido pelo legislador, na menção do “erro imputável aos serviços”, esta imputabilidade não se reporta, como no direito civil, ao estado normal da pessoa que lhe permite discernir a importância e efeitos dos seus actos, e muito menos tem a ver com a “capacidade de culpa” penalista; (ii) O termo “imputável” vale, aqui, em primeira linha, com o significado, comum, de suscetível de ser imputado; atribuível, o qual, conformado com a, necessária, compatibilização aos interesses em jogo, quer dizer erro, no sentido de ilegalidade, não resultante de, provocada por, atribuída a uma informação/declaração/intervenção do contribuinte ou obrigado tributário; (iii) Esta comprovação tem de ter presente que aos sujeitos passivos (tributários), além da, principal, de pagar a dívida tributária, são impostas por lei obrigações acessórias, “designadamente, as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações” - cf. art. 31.º da LGT, o que implica ter cautelas quanto à decisão de atribuir ou não o erro ao contribuinte ou outro obrigado”.
Conclui-se, pois, que o “erro imputável aos serviços”, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, concretiza qualquer ilegalidade relevante que seja imputável à conduta negligente da administração fiscal (ou seja, sempre que a errada aplicação da lei não decorra de elementos apresentados pelo contribuinte). Quando o erro que vicia a liquidação decorre de elementos do contribuinte, deve distinguir-se (i) se, na apresentação desses elementos (maxime, na apresentação de uma declaração prevista lei, como seja a declaração modelo 22 de IRC), foram observadas orientações da administração tributária às quais o erro seja imputável, ou (ii) se, sobre o elemento que originou o erro, não existia qualquer orientação da administração tributária (instruções de preenchimento, circular ou ofício-circulado). Só no primeiro caso é legitimo sustentar a verificação de “erro imputável aos serviços”. No segundo, inelutavelmente, o erro é imputável ao sujeito passivo.
Cumpre também sublinhar que, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova constantes do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos de direitos cabe a quem os invocar. Deste modo, revogado que foi o n.º 2 do artigo 78.º da LGT, que estabelecia a presunção de que se considerava “imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação”, e dispondo a lei nova para o futuro (cf. artigo 12.º do Código Civil), o pedido de revisão oficiosa com fundamento em “erro imputável aos serviços”, incluído no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, passou a exigir, também no caso de autoliquidação, ao contribuinte a prova da imputabilidade aos serviços do erro que invoca.
Significa isto que, no caso sub judice, cumpria à Requerente provar que o erro na sua modelo 22 de IRC era imputável à AT, o que não logrou fazer. Assim, não é aplicável o prazo de quatro anos previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
c) A procedência da exceção da intempestividade do pedido de revisão oficiosa do ato tributário sob impulso do sujeito passivo
Não obstante os factos elencados pela Requerida como constituindo obstáculo ao conhecimento de mérito, na informação prestada no respetivo processo, e como fundamento da rejeição liminar, é invocada a extemporaneidade do PPA. É, pois, essa a fundamentação da decisão que a Requerente pretende que seja anulada.
A exceção invocada refere-se ao meio processual que foi utilizado pela Requerente, o pedido de revisão de ato tributário, cujos termos textuais se transcrevem: “pedido de revisão de oficiosa, nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, no âmbito da qual peticionou a correção da autoliquidação de IRC em apreço ato tributário (cfr. Documento n.º 4)” - artigo 30.º do PPA.
Este é um meio processual previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, no qual se dispõe que “A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a sua liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
Estando em causa um pedido da iniciativa da Requerente, na sua qualidade de sujeito passivo, o prazo é o da reclamação administrativa (i.e., o prazo de 120 dias), conforme se dispõe no artigo 70.º, n,º 1, do CPPT, em que se prescreve que “A reclamação graciosa pode ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial e será apresentada no prazo de 120 dias contados a partidos dos factos previstos no nº 1 do artigo 102.º”. Nos termos do artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, o prazo começa a contar do “Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte”.
Ora, da leitura das peças e dos documentos processuais, observa-se que o pedido de revisão de ato tributário só foi apresentado em 31-05-2022, e não foi apresentado antes como reclamação graciosa – tal significando muito além do prazo de 120 dias a contar da liquidação ora contestada.
Outra possibilidade que aqui se suscita é a de ser feita uma revisão oficiosa do ato tributário mais alargada nos prazos, nos termos da parte final do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, prazo que, sendo de 4 anos, já poderia justificar a intervenção do Tribunal Arbitral, numa lógica em que a AT estaria vinculada à solicitação dessa mesma revisão, que seria em favor do sujeito passivo.
Mas, tal como referido supra, também aqui não parece viável essa possibilidade porquanto não há qualquer “erro imputável aos serviços” para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, já que os dados considerados foram os apurados em autoliquidação pela Requerente e, à data, já lhe não era aplicável a presunção constante do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, revogado anteriormente.
E a leitura que a Requerente faz do decidido no processo n.º 911/2019-T do CAAD não é suscetível de aplicação neste processo porque ali estava em causa um pedido de revisão oficiosa deduzido em prazo para os atos de liquidação praticados entre janeiro de 2015 e 31 de março de 2016 (embora o pedido se estendesse até outubro de 2016) e um pedido de reclamação graciosa, igualmente tempestivo, contra os atos de liquidação de imposto de selo emitidos no período de março de 2017 a outubro de 2018.
Concluindo: Não sendo aplicável o prazo de quatro anos ao caso em apreço, e tendo o pedido de revisão sido apresentado para além do prazo de 120 dias referido no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, verifica-se a exceção da intempestividade do pedido de revisão oficiosa, cumprindo ao Tribunal determinar a manutenção da decisão de rejeição liminar do pedido de revisão oficiosa e absolver a Requerida da instância, sem conhecer do pedido principal.
IV – DECISÃO
Termos em que este Tribunal Arbitral decide:
a) julgar procedente a exceção da intempestividade do pedido de revisão oficiosa;
b) absolver a Requerida da instância;
c) condenar a Requerente no pagamento das custas processuais.
V – VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor global de € 433.123,50, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI – CUSTAS
Custas no montante de € 7.038,00 a suportar pela Requerente, em conformidade com a Tabela I, anexa ao RCPAT, e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, artigos 4.º, n.º 5, do RCPAT, e artigos 527.º e 536.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de junho de 2023
A Presidente,
Rita Correia da Cunha
O Árbitro Vogal,
Manuel da Fonseca Benfeito
O Árbitro Vogal,
Manuel Faustino
(Relator)
[1] NABAIS, José Casalta, Por Um Estado Fiscal Suportável, Estudos de Direito Fiscal, Vol. III, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 220.
[2] STA, Ac. de 07-04-22, Processo 02555/13.0BEPRT.
[3] CAMPOS, Diogo Leite, et allii, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª edição, Encontro da Escrita, pp. 704.