SUMÁRIO:
I. As isenções de IMI previstas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais exigem, além da componente subjectiva conexa com a natureza jurídica das entidades proprietárias, que os prédios estejam directamente afetos à prossecução dos seus fins estatutários.
II. Verificado o exercício de uma atividade lucrativa, paralelo ao exercício da atividade assistencial, por parte de uma corporação missionária, e não tendo sido feita prova de que essa sua atividade é exercida no âmbito de uma atividade mais abrangente de assistência e de solidariedade aos mais desfavorecido, as partes do prédio de que a mesma é titular que não estejam diretamente destinadas à realização dos fins de assistência e solidariedade não beneficiam da isenção constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF.
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Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 31-08-2022, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.
1. RELATÓRIO
A..., com o número de pessoa colectiva religiosa e de identificação fiscal..., com sede na Rua..., ..., ...-... Lisboa (doravante, abreviadamente designada de “Requerente), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”) respeitante ao ano de 2021, constante das notas de cobrança n.ºs 2021 ... e 2021 ..., no valor de € 33.837,22.
A Requerente, para fundamentar o pedido que deduz, alega em síntese, que:
a) É uma pessoa coletiva canonicamente ereta, reconhecida pelo Estado português ao abrigo da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, e que foi reconhecida como corporação missionária, por despacho de 22 de Janeiro de 1944.
b) Nos termos dos respectivos estatutos, dedica-se à missionação da Fé Católica e a ajuda aos mais carenciados, possuindo em Portugal os bens móveis e imóveis necessários à prossecução dos seus fins religiosos e caritativos.
c) É proprietária do prédio urbano em regime de propriedade total, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º..., freguesia de ... (extinta), atualmente inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ... da freguesia de..., que proveio do artigo ... da mesma freguesia.
d) Na sequência de notificação da AT, procedeu à entrega de pedido de alteração dos elementos constantes da matriz correspondente ao artigo da freguesia de ..., tendo a AT criado um novo artigo matricial, o artigo ... da mesma freguesia.
e) É também proprietária do prédio urbano inscrito, actualmente, na matriz predial urbana sob o artigo ...º da União das Freguesias de ... e ..., que resultou do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...° da mesma freguesia.
f) Quanto ao prédio urbano com a matriz ... da freguesia de ... passou a constar na caderneta predial um valor isento de IMI de 2 808 709,70 euros, ao abrigo da Concordata entre Portugal e a Santa Sé de 2004, quando o VPT do prédio é de 10 441 300,00 euros, e quanto o prédio urbano com a matriz ... da União das Freguesias de ... e ..., deixou de existir na caderneta predial qualquer menção à isenção de IMI.
g) Ambos os prédios beneficiavam até 2015 no caso do 3992 e até 2018 no caso do 11370, do reconhecimento oficioso da isenção de IMI ao abrigo do artigo 26º da Concordata.
h) Nunca foi notificada de qualquer acto administrativo, definitivo e executório e por isso impugnável, que determinasse a perda da supra aludida isenção ou de parte dela.
i) Foi notificada da liquidação de IMI de 2021, em conformidade com o que consta nas cadernetas prediais actuais e não aceita a liquidação, por não refletir a isenção de IMI de que beneficia, por força das disposições conjugadas dos artigos 1º, nº.1, alíneas a), c) e f) do n.º 1 do art.º 1º, 8º e 40.º do Decreto-Lei 119/83, de 25/2, alterado pelo Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14/11 (“Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social”), e disposto no artigo 12º da Concordata de 2004, que remetem para a aplicação da norma isentiva da alínea f) do nº 1 do artigo 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”).
j) Considerando os objetivos de solidariedade e assistência que constituem o fundamento da existência da Requerente, esta não pode deixar de ser considerada como sendo uma IPSS à luz do estatuto das IPSS.
k) As actividades prosseguidas pela Requerente, enquadram-se nas alíneas a), c) e f) do n.º 1 do art.º 1º do Decreto-Lei 119/83, de 25/2, alterado pelo Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14/11 (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social), pelo que, apesar de não ter, formalmente, o estatuto de IPSS, prossegue materialmente os fins destas entidades, encontrando-se os prédios cuja tributação constitui o objecto do presente litígio, afectos directamente à realização dos seus fins religiosos e de assistência e solidariedade, sendo tal facto público e notório, decorrente de se tratar de uma instituição da Igreja.
l) Face ao artigo 40.º do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, as organizações e instituições religiosas e os seus institutos que, para além de fins religiosos, exerçam atividades legalmente tipificadas como de interesse geral, são equiparáveis a IPSS, ficando sujeitas, quanto ao exercício daquelas atividades ao regime estabelecido para as IPSS.
m) Nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 44 do EBF, estão isentas de impostos “as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas a ela legalmente equiparadas., em relação aos prédios ou parte de prédios destinados directamente à realização dos seus fins (…)” sendo esta isenção de reconhecimento oficioso.
n) Tal equiparação é reconhecida pelo estado português, nos termos do artigo 12º da Concordata de 18/05/2004, que vigora na ordem interna nacional face ao artigo 8.º da CRP, que reconhece que as pessoas jurídicas canónicas com personalidade jurídica civil reconhecida pelo Estado Português que, além dos fins religiosos, também prossigam fins de assistência e solidariedade, gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas coletivas privadas que prossigam fins da mesma natureza.
o) Nos termos da concordata de 2004, tratado internacional que vigora na ordem jurídica interna por via do artigo 8º da CRP, a Requerente deve, para efeito de atribuição de direitos e benefícios, ser equiparada a IPSS, devendo beneficiar, nomeadamente, da isenção de IMI, reconhecida oficiosamente àquelas entidades.
p) Os prédios em questão, estão afectos directamente à realização dos seus fins de assistência e solidariedade, ou ao financiamento desses fins, o que para o efeito de isenção tem a mesma consequência, devendo beneficiar da isenção de IMI nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 44 do EBF.
q) Defende ainda que força da equiparação a IPSS é uma pessoa coletiva de utilidade pública, devendo beneficiar das isenções que lhe forem aplicáveis, designadamente da norma isentiva da alínea d) do artigo 1° da Lei 151/88, de 14.09, como foi decidido no processo arbitral 384/2020-T.
A Requerente juntou 5 documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outros meios de prova.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 22-06-2022 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 28-06-2022.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral, com árbitro singular, a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.
Em 10-08-2022 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 31-08-2022.
A Requerida, através de despacho arbitral proferido em 02-09-2022, foi notificada para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
Em 06-10-2022, a Requerida, apresentou a sua Resposta, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição do pedido, tendo alegado em síntese, que:
a) Em 07-06-2022, através do documento nº 2021 ..., efetuou a revisão oficiosa da liquidação do IMI do ano de 2021, na sequência da qual se verifica a correção do imposto inicialmente calculado de € 33.837,22 para o montante de € 31.571,70, decorrente da anulação da coleta de € 2.265,52, respeitante ao prédio urbano inscrito sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, tendo alegado que nesta medida se encontra parcialmente satisfeita a pretensão da Requerente, devendo o objeto da presente ação ficar reduzido à apreciação da legalidade do ato de liquidação de IMI do prédio urbano inscrito sob o artigo nºs ... da freguesia de ... (cf. 3º a 8º da resposta).
b) Para que haja lugar à isenção de IMI não basta que o prédio seja propriedade do ora sujeito passivo, mas sim, que prossiga diretamente os seus fins, conforme preceituado no nº 4 do artigo 44º do EBF.
c) A isenção de IMI prevista na alínea f) do nº 1 do artigo 44º do Estatuto dos Benefícios Fiscais é também aplicável aos prédios da titularidade de pessoas jurídicas canónicas que prossigam fins de assistência e solidariedade, por serem pessoas coletivas equiparadas a IPSS, e que estejam diretamente destinados à realização desses fins.
d) Atento o nº 2 do artigo 26º da Concordata de 2004 e instruções administrativas acima enunciadas, dúvidas não há quanto ao direito à isenção relativamente às partes do prédio (artigo urbano nº ... da freguesia de ...) afetas ao culto, à realização de fins religiosos e a apoio direto e exclusivo a atividades com estes mesmos fins e que, segundo apurou o SF de Lisboa ..., são a “igreja” e o “centro de apoio à juventude”.
e) Quanto às outras partes do prédio (“colégio” e “residência universitária”), a constatação de que não estão exclusivamente destinadas ao ensino da religião católica e/ou a lar de estudantes integrado em estabelecimento destinado ao ensino da religião católica (conforme exigido pela parte final da alínea c) do nº 2 do artigo 26º da Concordata) afasta o âmbito da isenção de IMI aí estabelecida.
f) Mas, admitindo que a impugnante destina tais partes do prédio (“colégio” e “residência universitária”) a fins de assistência e solidariedade, desenvolvendo a sua atividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português, poderá gozar dos direitos e benefícios das pessoas coletivas equiparadas a instituição particular de solidariedade social e, por isso, pode aproveitar da isenção de IMI constante da alínea f) do nº 1 do artigo 44º do EBF, desde que aquelas partes do prédio estejam diretamente afetas à realização desses fins de assistência e solidariedade.
g) Ora, não obstante, se estar perante uma isenção de reconhecimento oficioso, há pressupostos que carecem de ser demonstrados: a natureza jurídica do sujeito passivo (ser uma pessoa jurídica canónica, reconhecida nos termos do artigo 10º da Concordata, que, além de fins religiosos, prossegue fins de assistência e solidariedade) e a identificação dos prédios ou partes prédios que diretamente afeta à realização dos seus fins. E neste plano deve prevalecer o princípio geral de que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (nº 1 do artigo 342º do Código Civil), em detrimento do princípio da verdade declarativa a que alude o artigo 75º da Lei Geral Tributária, por não se estar ao nível de declarações para cumprimento de obrigações tributárias, mas sim do exercício de um direito a um benefício fiscal.
h) No caso em apreço não foi reconhecida a isenção de IMI prevista na alínea f) do nº 1 do artigo 44º do EBF em relação às partes do prédio destinadas a “colégio” e a “residência universitária” por não se ter concluído pela existência da destinação direta dos mesmos aos fins da IPSS, antes que, a utilização que lhes é dada transmite apenas uma destinação indireta (geração de rendimentos) que não cabe no âmbito daquela isenção.
i) Apesar da Requerente ter invocado o direito à isenção, não fez qualquer prova que sustente esse alegado direito. Pelo que é forçoso concluir que as partes do prédio destinadas a “colégio” e a “residência universitária” não estão diretamente destinadas à realização dos fins de assistência e solidariedade proclamados pela impugnante.
j) E este raciocínio aplicável ao prédio U-... da freguesia de ... é extensível a todos os prédios do sujeito passivo constantes das notas de liquidação impugnadas (exceto o prédio U...), pelo que, se não existe evidência e não tenha sido provado que esses prédios estão a ser destinados diretamente à prossecução dos fins da instituição conexos com a qualidade de IPSS, não há suporte ao reconhecimento da isenção prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, desde logo, porque este benefício fiscal não é apenas de natureza subjetiva.
k) Assim, não existindo a causalidade direta entre as afetações dos prédios não isentados e o exercício da atividade fiscalmente protegida, apenas só poderão estar isentos aqueles prédios na parte cuja destinação seja aos fins daquela entidade e não há evidência de que os mesmos estejam afetos, não tendo o contribuinte apresentado prova que permitam o reconhecimento da isenção. Refira-se, por fim, que o alegado direito à isenção decorrente da alínea d) do n.º 1 da Lei n.º 151/99, de 14 de setembro, suportado no facto de todos os prédios da impugnante estarem destinados à realização dos seus fins estatutários, quer direta, quer indiretamente, sempre dependeria da existência de um pedido de reconhecimento do benefício fiscal, uma vez que o mesmo não decorria diretamente de lei. E não há evidências desse pedido ter sido realizado em qualquer momento.
l) Mais, ainda, esta norma de benefício fiscal foi expressamente revogada pela Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, cuja vigência se iniciou em 1 de julho de 2021, o que acarreta que a mesma já não seria aplicável relativamente aos factos tributários do IMI ocorridos em 31.12.2021, como aquele que deu azo à liquidação impugnada neste processo arbitral.
m) A atividade principal do colégio é o alojamento de alunos universitários (não sendo lecionado qualquer tipo de disciplina nessas instalações), disponibilizando vários serviços mediante o pagamento de uma mensalidade.
n) Consultando o enquadramento do ora contribuinte, verificamos que está coletado com a atividade de organizações religiosas, CAE 94910, desde 2008/01/02 e com a atividade de Ensinos Secundário Tecnológico, Artístico e Profissional desde 27/01/2015.
o) Ora a atividade de alojamento a estudantes universitários mediante o pagamento de um preço, uma mensalidade, não corresponde a uma atividade de assistência social ou de solidariedade.
p) O que se verifica de consultas efetuadas aos sistemas informáticos da Autoridade Tributária e Aduaneira é que a Requerente está registada, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), com atividade mista desenvolvida no âmbito do setor social (sem finalidade lucrativa) e no setor comercial, industrial e de prestação de serviços (com finalidade lucrativa), e, em sede de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), está enquadrada no regime normal mensal, revelando um fluxo de bens e serviços com muita expressão.
q) Verifica-se assim que os fins prosseguidos pela Requerente neste âmbito não se equiparam aos fins prosseguidos pelas instituições particulares de solidariedade social e pessoas coletivas de utilidade pública.
r) Assim sendo, atento o nº 2 do artigo 26.º da Concordata de 2004 e demais instruções administrativas complementares, dúvidas não há quanto ao direito à isenção relativamente às partes do prédio afetas ao culto, à realização de fins religiosos e a apoio direto e exclusivo a atividades com estes mesmos fins e que são a “igreja” e o “centro de apoio à juventude”.
s) Daí que, tendo em vista o reconhecimento da isenção de IMI prevista na alínea f) do n.º 1do artigo 44.º do EBF, teria a requerente de demonstrar que essa sua atividade desenvolvida no setor comercial, industrial e de prestação de serviços é exercida no âmbito de uma atividade mais abrangente de assistência e solidariedade aos mais desfavorecidos, para o que sempre deveria existir um contrato de associação ou de parceria com a Segurança Social ou a Ação Social Escolar.
t) Ora, não tendo sido feita qualquer prova que sustente esse alegado direito (…) forçoso é concluir que as partes do prédio destinadas a “colégio” e a “residência universitária” não estão diretamente destinadas à realização dos fins de assistência e solidariedade proclamados pela requerente.
u) Por não tenha sido provado que esses prédios estão a ser destinados diretamente à prossecução dos fins da instituição conexos com a qualidade de IPSS, não há suporte ao reconhecimento da isenção prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, desde logo, porque este benefício fiscal não é apenas de natureza subjetiva. Donde, não se mostrando verificados os pressupostos da isenção constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, desde logo, porque este benefício fiscal não é apenas de natureza subjetiva.
v) Donde, não se mostrando verificados os pressupostos da isenção constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, não há lugar ao reconhecimento da mesma em relação a essas partes do prédio (“colégio” e “residência universitária”) e o ato de liquidação impugnado não merece qualquer censura.
w) Mas, mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de referir que não foi feita prova nos presentes autos que os imóveis objeto da liquidação estão diretamente destinados aos fins de assistência e de solidariedade.
x) Quanto à alegada falta de fundamentação, a AT pugna pela respetiva improcedência, sustentando que a liquidação de IMI do ano de 2021, é legal e corretamente processada, não estando aquela eivada de quaisquer vícios de forma de insuficiência e fundamentação de direito, por erro sobre o direito aplicável, e, por violação de lei imperativa, pelo que a mesma é devida e exigível, devendo manter-se na ordem jurídica com a produção total dos seus efeitos jurídico-fiscais, razão pela qual devem improceder as pretensões do Requerente.
Por despacho de 10-10-2022, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas, tendo a Requerente sido também notificada para, em sede de alegações, se pronunciar quanto ao alegado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em 3º a 8º da sua Resposta.
Em 27-10-2022, a Requerente apresentou alegações escritas, nas quais se pronunciou quanto ao alegado pela AT em 3º a 8º da sua Resposta, confirmando que a AT procedeu à correção do imposto inicialmente calculado de € 33.837,22 para o montante de € 31.571,70, decorrente da anulação da coleta de € 2.265,52, respeitante ao prédio urbano inscrito sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ... e ... . A Requerente manifestou ainda intenção no prosseguimento do pedido de pronúncia arbitral quanto aos restantes prédios que integram a nota de liquidação impugnada, que não foram afetados pela correção oficiosa da liquidação. Com as suas alegações, a Requerente juntou ainda 1 documento.
A AT não remeteu ao tribunal arbitral, cópia do processo administrativo (“PA”), tendo requerido em sede de resposta a dispensa de o fazer, o que foi deferido por despacho de 10-10-2022.
Por despachos de 27-02-2023 e de 28-04-2023, foi determinada, nos termos do disposto na norma do artigo 21º-2 do RJAT, a prorrogação, pelo período de dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral nestes autos.
2. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Considerando que ambas as partes suscitaram a questão prévia da revisão oficiosa da liquidação do IMI do ano de 2021, efetuada pela AT em 07-06-2022, importa desde já conhecer desta questão, o que se passará seguidamente a fazer.
2.1. Questão prévia – Da revisão oficiosa da liquidação do IMI do ano de 2021
A Requerente na sua petição inicial, a título de “questão prévia”, alegou que, já após o termo do prazo para pagamento voluntário da primeira prestação de IMI referente ao ano de 2021, foi notificada de um acto de revisão tributário, efetuada pela AT através do documento com o n.º 2021 ... que corrigiu a situação tributária do prédio de que é proprietária, inscrito na matriz predial sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e ... .
A Requerida em sede de Resposta (cf. artigos 3º a 8º), confirmou que em 07-06-2022, através do documento nº 2021..., efetuou a revisão oficiosa da liquidação do IMI do ano de 2021, na sequência da qual se verifica a correção do imposto inicialmente calculado de € 33.837,22 para o montante de € 31.571,70, decorrente da anulação da coleta de € 2.265,52, respeitante ao prédio urbano inscrito sob o artigo nº..., da União das freguesias de ... e..., concelho de Vila Nova de Gaia, tendo sustentando que nesta medida se encontra parcialmente satisfeita a pretensão da Requerente, devendo o objeto da presente ação ficar reduzido à apreciação da legalidade do ato de liquidação de IMI do prédios urbano inscrito sob o artigo nºs ... da freguesia de ... .
Notificada para se pronunciar quanto ao alegado pela AT em 3º a 8 da sua resposta, a Requerente em sede de alegações pronunciou-se no sentido de concordar com a AT, afirmando manter interesse no prosseguimento da presente ação, apenas em relação aos restantes prédios não isentos.
Cumpre apreciar.
Em face do antes enunciado, resulta que as partes estão de acordo em alterar o pedido inicial, no sentido da presente ação prosseguir relativamente à apreciação da legalidade do ato de liquidação de IMI referente ao ano de 2021, no que concerne a todos os prédios que constam discriminados na nota de cobrança n.º 2021..., com exceção do prédio urbano inscrito sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ...e ..., que foi objeto do ato de revisão oficiosa efetuado pela AT em 07-06-2022, através do documento nº 2021..., com a consequente alteração/redução do pedido de € 33.837,22 para o valor de € 31.571,70, por ser o valor do IMI efetivamente liquidado.
Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito (artigo 264º do CPC), o que não é o caso, pelo que se defere a alteração do pedido arbitral nos termos antes expostos.
Não foram invocadas quaisquer exceções ou suscitadas quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. MATÉRIA DE FACTO
3. 1.1. Factos provados
Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
A) A Requerente é uma pessoa coletiva religiosa (católica), moral e canonicamente ereta, registada em Portugal, reconhecida como corporação missionária, por despacho de 22 de Janeiro de 1944 do então Diretor Geral da Administração Política e Civil, que se dedica à missionação da fé católica e a ajuda aos mais carenciados, possuindo em Portugal os bens móveis e imóveis necessários à prossecução dos seus fins religiosos e caritativos [cf. documento n.º 3 junto à PI[1]].
B) A Requerente consta inscrita no Ficheiro Central de Pessoas Coletivas, com o NIPC..., tendo por objeto social “Actividades Religiosas e de ensino da religião católica; actividades de educação, ensino secundário tecnológico, artístico e profissional” [cf. doc. n.º 3 junto à PI].
C) A Requerente desenvolve a sua missão evangelizadora no quadro mais amplo do serviço integral à pessoa humana, quer em Portugal, quer em Angola e em São Tomé e Príncipe, aí dando além da assistência a pessoas carenciadas, a afirmação e difusão da língua portuguesa.
D) A Requerente possui um elevado número de obras de natureza social em todo o país, que visam actuar em vários sectores carenciados da sociedade trabalhando designadamente nas seguintes áreas:
i. Setúbal – paróquia de ..., na qual existe um Centro Social Paroquial com apoio a idosos e crianças e as Conferencias Vicentinas, com cerca de 350 utentes e 20 trabalhadores voluntários;
ii. Lisboa – Colégio..., para apoio logístico à formação e acompanhamento de 160 alunos do ensino superior, provenientes de pontos afastados de Lisboa, bem como das regiões autónomas da Madeira e dos Açores e mesmo dos PALOP; nos seus espaços desenvolvem-se ainda acções de apoio a associações de emigrantes, apoio aos sem-abrigo e mais necessitados da cidade de Lisboa em saídas semanais e entrega de alimentos, roupa, calçado e material de higiene, a cerca de 120 pessoas; desenvolve ainda actividades culturais variadas.
iii. Porto –..., que acolhe 130 crianças em risco e apoia famílias carenciadas e famílias de acolhimento.
iv. Colégio...– frequentado por cerca de 1.500 alunos com ensino totalmente gratuito, sendo em parte financiado por fundos comunitários, designadamente pelo Programa Operacional do Capital Humano e em parte pela própria congregação.
E) A Requerente está coletada com a atividade de organizações religiosas, CAE 94910, desde 2008/01/02 e com a atividade de Ensinos Secundário Tecnológico, Artístico e Profissional desde 27/01/2015.
F) A Requerente está registada, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), com atividade mista desenvolvida no âmbito do setor social (sem finalidade lucrativa) e no setor comercial, industrial e de prestação de serviços (com finalidade lucrativa).
G) A Requerente em sede de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), está enquadrada no regime normal mensal.
H) A Requerente é proprietária do prédio urbano em regime de propriedade total, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ..., freguesia de ... (extinta) [cf. certidão do registo predial com a chave de acesso PP-...- ...-...-...].
I) O prédio identificado em H) está atualmente inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de ... e teve origem no artigo ... da mesma freguesia de ... [cf. doc. n.º 4 junto à PI].
J) Na inscrição matricial do artigo ... da freguesia de ... (que deu origem ao atual artigo ...), consta que o prédio tinha o valor o VPT de €8.001.250,00, determinado em 2015 e beneficiava da seguinte isenção [cf. doc. 5 junto à PI]:
K) Dos elementos constantes da respetiva descrição predial, resulta que o prédio identificado supra em I), é composto por um conjunto de três edifícios e logradouro [cf. certidão do registo predial com a chave de acesso PP-...- ...-...-...]:
a) Cave, rés-do-chão e dois andares com área coberta de 1.102,21 m2;
b) Capela com cripta subjacente com área coberta de 561,33 m2;
c) Edifício com subcave, cave, rés-do-chão e dois andares com área coberta de 1.568, 98 m2, cuja área foi ampliada pela Ap. 06/2001/03/02 - AV.3, que deu lugar à apresentação do aludido modelo ficando com a área de 1.719,78 m2;
d) Logradouro comum a todo o prédio com área de 18.679 m2, ficando assim com a área de 14.618,03 m2, tendo ainda sido desanexada a área de 1.488,20 m2 (av. 4 à Ap. 12/...), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de ... .
L) Em 04/05/2017, na sequência de notificação do respetivo serviço de finanças, a Requerente procedeu à entrega de pedido de alteração dos elementos do prédio identificado supra em I), à data inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia de ... .
M) Subsequentemente à entrega pela Requerente do pedido de alteração a que se alude em L), a AT procedeu à avaliação do prédio referido em I), apurando um VPT de € 10.441.300,00 e criando um novo artigo matricial, o artigo ... da mesma freguesia, tendo passado a considerar isento apenas o valor de €2.808.709,70 [cf. doc. n.º 4 junto à PI].
N) Na ficha de avaliação do imóvel referido em I), realizada em 2018, consta o seguinte [cf. doc. n.º 4 junto à PI]:
O) Na ficha de avaliação do imóvel referido em I), realizada em 2018, consta a seguinte isenção [cf. doc. n.º 4 junto à PI]:
P) A Requerente é também proprietária do prédio urbano inscrito, actualmente, na matriz predial urbana sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e ..., que resultou do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...° da mesma freguesia, constituindo o conjunto edificado o Colégio ..., instituição de ensino gratuito que acolhe jovens carenciados de todo o país e do estrangeiro.
Q) Em 21/11/2019, em cumprimento de uma ordem de serviço para deslocação ao prédio da Requerente identificado supra em I), tendo em vista aferir a afetação do imóvel foi emitida a seguinte informação por parte dos serviços da AT:
“As instalações são compostas por área de estacionamento, área de lazer com campos desportivos, residência universitária e igreja para o culto religioso. A atividade principal do colégio é o alojamento de alunos universitários, não sendo lecionada qualquer tipo de disciplina nestas instalações. A residência é composta por 150 quartos com casa de banho privativa, um serviço de limpeza diário, assim como serviço de alimentação prestada aos alunos. O edifício em causa é composto por uma área de receção, onde os residentes depositam as chaves de acesso aos quartos; uma zona de refeitório e cozinha, salas de convívio, salas de conferências e a área de gabinetes destinados à administração e apoio aos alunos residentes. A igreja ainda com uma área generosa, encontra-se aberta de segunda a sábado, a todo o público; A instituição tem cariz religioso, que neste caso dedica a sua atividade ao acolhimento e acompanhamento de alunos universitários, disponibilizando para o efeito vários serviços mediante pagamento de uma mensalidade. A isenção em causa, segundo a informação prestada recai unicamente sobre o espaço religioso (igreja) e gabinetes envolventes; Cumpre informar que o prédio em alusão está atualmente inscrito sob o artigo ... da freguesia de ... e que a sua inscrição foi desencadeada pelo exercício do direito de audição, tendo o ora sujeito passivo sido notificado, conforme nosso ofício nº... de 17/03/2017, para proceder à entrega de modelos 1 de IMI, de modo a refletir o que expôs de que 47,38% se destina a fins religiosos e 52,62% a outros fins. Como o contribuinte não cumpriu com a entrega voluntária, procedeu o serviço de finanças à avaliação oficiosa, tendo ficado descrito, na ficha de avaliação, da qual o ora sujeito passivo foi notificado aos 26/03/2018, o seguinte: “Prédio em propriedade total com unidades independentes de natureza “outros” Igreja: Área de implantação de 561,33 m2, área bruta privativa de 1122,66 m2 e área bruta dependente de 561,33 m2 Centro de apoio à juventude: Área de implantação de 860 m2, área bruta privativa de 1175 m2 e área bruta dependente de 860 m2)
Serviços (colégio): Área de implantação de 1102,21 m2, área bruta privativa de 3306,63 m2 e área bruta dependente de 1102,21 Residência universitária: Área de implantação de 490 m2, área bruta privativa de 2940 m2 e área bruta dependente de 490 m2. Aplicou-se a idade média dos edifícios de serviços, uma vez que o colégio é de 1955 e a residência de 1971, ou seja, 55 anos de idade média, o que dá uma vetustez de 0,55”.
R) Em 07-04-2022 foi emitida a liquidação de IMI referente ao ano de 2021, correspondente ao documento de cobrança nº. 2021..., no valor total de € 33.837,22, onde consta [cf. doc. n.º 2 junto à PI]:
S) Em 05-05-2021, a Requerente foi notificada pela AT nos termos e para os efeitos que constam do documento nº1 junto com as alegações da Requerente, onde consta:
T) Em 12-09-2021, a Requerente foi notificada pela AT, nos termos e para os efeitos que constam do documento nº1 junto com as alegações da Requerente, onde consta:
U) Em 07-06-2022, através do documento nº 2021..., a AT efetuou a revisão oficiosa da liquidação do IMI do ano de 2021, identificada supra em R), na sequência da qual se verifica a correção do imposto inicialmente calculado de € 33.837,22 para o montante de € 31.571,70, decorrente da anulação da coleta de € 2.265,52, respeitante ao prédio urbano inscrito sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, que passou a beneficiar de isenção total de IMI, constando averbada a isenção tipo 51 - Permanente CONCORDATA DE 2004: SANTA SÉ, A CONF EPISCOPAL PORTUGUESA, DIOCESES..., sobre o VPT total de € 596.190,00, com início no ano de 2019, permanecendo vigente em 2021.
V) Em 20-06-2022, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
3.1.2. Factos considerados não provados
Não foram considerados como não provados nenhum dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
3.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente os documentos juntos pela Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.
Finalmente, importa sublinhar que a questão essencial a decidir é de direito e assenta na prova documental junta aos autos pela Requerente, não contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.2. MATÉRIA DE DIREITO
Em ponto preambular há que referir, que as liquidações de IMI impugnadas respeitam a um conjunto de prédios de que a Requerente era proprietária em 2021, incluindo prédios rústicos e urbanos, localizados nos municípios de Lisboa, Sintra, Porto, Vila Nova de Gaia, Ourém, Setúbal e Tondela, existindo prédios com elevado valor patrimonial tributário (“VPT”) e outros de VPT reduzido, alguns prédio com indicação de estarem totalmente isentos de IMI, outros com isenção parcial e outros totalmente sujeitos. O imposto liquidado, no montante total de € 33.837,22, é a soma das tributações parciais que incidem sobre os prédios parcial ou totalmente sujeitos, constantes da referida listagem.
A Requerente, com exceção dos prédios urbanos inscritos na matriz sob o artigo ... da freguesia de ... e sob o artigo ... da União das Freguesias de ... e ..., não carreou para o processo qualquer informação quanto aos restantes prédios cuja liquidação de IMI constitui o objecto do presente processo, designadamente no que respeita à sua localização concreta, afetação e isenções (parciais ou totais) de que alguns destes prédios já beneficiam, nem juntou aos autos qualquer prova documental, designadamente cadernetas prediais e certidões do registo predial respeitantes aqueles prédios.
Na realidade, e com exceção dos dois prédios antes referidos, constata-se que a Requerente não imputa qualquer ilegalidade concreta e individualizada quanto à sujeição, parcial ou total, de cada um dos restantes prédios que integram a listagem que consta nas notas de liquidação impugnadas, pretendendo no entanto que o tribunal arbitral conheça, como um todo, da legalidade da tributação de todos os prédios que integram a dita listagem e que declare a ilegalidade da referida liquidação, no seu conjunto.
Feito este intróito, analisemos então quais são os fundamentos que a Requerente invoca para sustentar a pretensão que aqui deduz.
Considera a Requerente, que atenta a sua qualidade de pessoa colectiva religiosa, canonicamente ereta, reconhecida pelo Estado Português ao abrigo da Concordata de 18/05/2004, e o facto de ter como atividade principal a prestação de serviços de natureza social e fins de assistência e solidariedade, são argumentos suficientes para se declarar o direito à isenção de IMI de todos os prédios que é proprietária, constantes das notas de liquidação impugnadas, com a sua consequente declaração de ilegalidade.
Entende também a Requerente, que a atividade e fins que prossegue lhe conferem o direito a ser equiparada a uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), dado que prossegue as actividades previstas no artigo 1.º, n.º 1, alíneas a), c) e f) do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25/2 (“Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social”), donde decorre o direito de beneficiar da isenção de IMI prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), e que este direito abrange a totalidade dos prédios de que é proprietária, constantes das notas de liquidação impugnadas.
Defende ainda a Requerente, que para além da isenção prevista na referida alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, o tipo de atividade que desenvolve e a sua equiparação a IPSS lhe conferem a qualidade de pessoa colectiva de utilidade pública e o consequente direito às isenções que a lei estatui para estas entidades, designadamente à isenção prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF e, também à isenção prevista na alínea d) do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 151/99, de 14/9.
Vejamos se lhe assiste razão.
Nos termos do artigo 1.º n.º 1 e 1º-A, do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 172- A/2014, de 14 de novembro, que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social das IPSS, estas são definidas como “as pessoas coletivas, sem finalidade lucrativa, constituídas exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público (…) para prosseguir, entre outros, os seguintes objetivos mediante a concessão de bens e a prestação de serviços: a) Apoio à infância e juventude, incluindo as crianças e jovens em perigo; b) Apoio à família; c) Apoio às pessoas idosas; d) Apoio às pessoas com deficiência e incapacidade; e) Apoio à integração social e comunitária; f) Proteção social dos cidadãos nas eventualidades da doença, velhice, invalidez e morte, bem como em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho; g) Prevenção, promoção e proteção da saúde, nomeadamente através da prestação de cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação e assistência medicamentosa; h) Educação e formação profissional dos cidadãos; i) Resolução dos problemas habitacionais das populações; j) Outras respostas sociais não incluídas nas alíneas anteriores, desde que contribuam para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos.”
Nos termos da norma do artigo 40.º do mesmo diploma, as organizações e instituições religiosas que, para além dos fins religiosos, se proponham exercer atividades enquadráveis no artigo 1.º ficam sujeitas, quanto ao exercício destas atividades, ao regime estabelecido no regime das IPSS.
Atenta a factualidade que resultou provada, dúvidas não subsistem que as atividades prosseguidas pela Requerente se enquadram, claramente, nas alíneas a), c) e f) do n.º 1 do art.º 1º do citado Estatuto das IPSS, sendo como tal a Requerente equiparável a uma IPSS.
A norma contida na alínea f) do n.º 1 do art.º 44 do EBF, dispõe que estão isentas de IMI “As instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas a elas legalmente equiparadas, quanto aos prédios ou parte de prédios destinados directamente à realização dos seus fins, salvo no que respeita às misericórdias, caso em que o benefício abrange quaisquer imóveis de que sejam proprietárias.”. Esta isenção inicia-se no ano em que se constitui o direito de propriedade (alínea b) do n.º 2) e é de reconhecimento oficioso (n.º 4).
A AT reconhece que a Requerente reúne condições para ter direito a esta isenção, pelo que esse ponto não é controverso.
A controvérsia reside no facto da AT considerar que existem partes do prédio (inscrito na matriz atualmente sob o artigo ... da freguesia de ...) que estão isentas, como é o caso das partes afetas ao culto, à realização de fins religiosos e ao apoio direto e exclusivo a atividades com estes mesmos fins e que, segundo apurou o SF de Lisboa ..., são a “igreja” e o “centro de apoio à juventude”, e outras partes do citado prédio, como são o “colégio” e a “residência universitária” que não o estão.
Para o enquadramento da questão, invoca a AT o disposto no nº 2 do artigo 26º da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 18 de maio de 2004, que estabelece que a Santa Sé, a Conferência Episcopal Portuguesa, as dioceses e demais jurisdições eclesiásticas, bem como outras pessoas jurídicas canónicas constituídas pelas competentes autoridades eclesiásticas para a prossecução de fins religiosos, às quais tenha sido reconhecida personalidade civil nos termos dos artigos 9º e 10º, estão isentas de qualquer imposto ou contribuição geral, regional ou local, sobre: a)Os lugares de culto ou outros prédios ou parte deles diretamente destinados à realização de fins religiosos; b) As instalações de apoio direto e exclusivo às atividades com fins religiosos; c) Os seminários ou quaisquer estabelecimentos destinados à formação eclesiástica ou ao ensino da religião católica; d) As dependências ou anexos dos prédios descritos nas alíneas a) a c) a uso de instituições particulares de solidariedade social; e) Os jardins e logradouros dos prédios descritos nas alíneas a) a d) desde que não estejam destinados a fins lucrativos; f) Os bens móveis de caráter religioso, integrados nos imóveis referidos nas alíneas anteriores ou que deles sejam acessórios. Invoca ainda a AT o n.º 4 da Circular nº 10/2005, de 21 de Novembro, da DGCI, que concretizou o alcance da isenção de IMI prevista no nº 2 do artigo 26º da Concordata, determinando que se encontram integrados na isenção: “a) As residências dos eclesiásticos (quer sejam residências paroquiais, episcopais ou de congregações religiosas, institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica), nos termos das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 26º da Nova Concordata; b) Os imóveis afetos a lares de estudantes, a casas de exercícios espirituais e a formação de religiosos, desde que, em qualquer dos casos, estejam integrados em estabelecimentos destinados à formação eclesiástica ou ao ensino da religião católica, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 26º da Nova Concordata; c) Os imóveis pertencentes a pessoas jurídicas canónicas e cedidos gratuitamente a instituições particulares de solidariedade social ou a estabelecimentos de ensino”.
Afirma ainda a AT que, admitindo que as partes do prédio que correspondem ao “colégio” e à “residência universitária” não estão exclusivamente destinadas a esses fins religiosos, por aí poderem ser admitidos quaisquer estudantes independentemente da existência ou inexistência de vocação eclesiástica ou religiosa, há que não desconsiderar o facto de estarmos perante uma situação em que o titular do prédio onde se integram essas partes é uma pessoa jurídica canónica, reconhecida nos termos do artigo 10.º da Concordata. Continua dizendo que, além de fins religiosos, esta instituição prossegue fins de assistência e solidariedade, desenvolvendo a sua atividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português, pelo que goza dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas coletivas privadas com fins da mesma natureza (vide artigo 12.º da Concordata), sendo equiparada a IPSS e, por isso, podendo aproveitar a isenção de IMI constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, desde que aquelas partes do prédio estejam diretamente afetas à realização desses fins de assistência e solidariedade. Refere ainda a AT que, tendo em vista o reconhecimento oficioso desta isenção, tem o sujeito passivo de fazer prova da sua natureza jurídica (ser uma pessoa jurídica canónica, reconhecida nos termos do artigo 10.º da Concordata, que, além de fins religiosos, prossegue fins de assistência e solidariedade) e, além disso, de identificar os prédios ou partes de prédios que diretamente afeta à realização dos seus fins, devendo, nesta parte e por se tratar do exercício de um direito, prevalecer o princípio geral de que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil), em detrimento do princípio da verdade declarativa a que alude o artigo 75.º da Lei Geral Tributária, por não se estar ao nível de declarações para cumprimento de obrigações tributárias, mas antes de um direito a um benefício fiscal.
Defende a AT que não foi reconhecida a isenção de IMI prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF em relação às partes do prédio destinadas ao “colégio” e a “residência universitária” por se ter concluído que o sujeito passivo (uma pessoa jurídica canónica, reconhecida nos termos do artigo 10.º da Concordata, que, além de fins religiosos, prossegue fins de assistência e solidariedade) tem fins lucrativos, já que recebe uma mensalidade dos estudantes que acolhe. Entende a AT que o recebimento de uma mensalidade não seria suficiente para desvirtuar os fins de assistência e de solidariedade prosseguidos pela pessoa jurídica canónica, reconhecida nos termos do artigo 10.º da Concordata, se a Requerente, no âmbito dos serviços que presta (alojamento, alimentação, tratamento de roupas, espaços para estudar e praticar desporto), tivesse escalões definidos em contratos de associação ou de parceria com a Segurança Social ou a Ação Social Escolar que fixassem os custos imputáveis aos estudantes em função do seu agregado familiar e respetivos rendimentos. Contudo, tendo a AT verificado que a Requerente está registada, em sede de IRC, como entidade com atividade mista desenvolvida no âmbito do sector social (sem finalidade lucrativa) e no sector comercial, industrial e de prestação de serviços (com finalidade lucrativa), e que, em sede de IVA, está enquadrada no regime normal mensal, revelando um fluxo de bens e serviços significativo, tendo em vista o reconhecimento da isenção aqui em causa, teria a Requerente que demonstrar que essa sua atividade desenvolvida no sector comercial, industrial e de prestação de serviços é exercida no âmbito de uma atividade mais abrangente de assistência e solidariedade aos mais desfavorecidos. Assim, verificado o exercício de uma atividade lucrativa e não tendo sido feita prova de que essa sua atividade é exercida no âmbito de uma atividade mais abrangente de assistência e de solidariedade aos mais desfavorecidos, entende a AT estar plenamente justificada a sua decisão de ter considerado que as partes do prédio destinadas a “colégio” e a “residência universitária” não estão diretamente destinadas à realização dos fins de assistência e solidariedade prosseguidos pela Requerente, concluindo, assim, que não se mostrando verificados os pressupostos da isenção constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, não se verifica o direito à isenção em relação a essas partes do prédio (“colégio” e “residência universitária”).
Entende este tribunal que assiste razão à posição defendida e sustentada pela AT.
Efetivamente, a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 44.º do EBF, estabelece que a isenção de IMI beneficia “as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas a elas legalmente equiparadas, quanto aos prédios ou parte de prédios destinados diretamente à realização dos seus fins, salvo no que respeita às misericórdias, caso em que o benefício abrange quaisquer imóveis de que sejam proprietárias.”
A norma é clara ao precisar que as entidades em causa, à exceção das misericórdias (categoria em que a Requerente não se insere), só beneficiam da isenção relativamente aos prédios ou parte de prédios destinados diretamente à realização dos seus fins. Há uma lógica subjacente a esta previsão: o Estado dá o seu apoio às IPSS ou entidades equiparadas, inibindo-se da angariação de um imposto sobre a propriedade imobiliária que, de outro modo seria cobrado, na medida em que essa propriedade esteja afeta à realização dos fins que motivam o apoio do Estado. Esses fins, pela sua própria natureza, são, em princípio, incompatíveis com a presença de lucro na atividade da entidade que os prossegue. Não sendo impossível que a entidade tenha uma atividade lucrativa que seja exercida no âmbito de uma atividade mais abrangente de assistência e de solidariedade aos mais desfavorecidos, teria que ter sido feita prova de que efetivamente assim o é.
Ora, a Requerente fundamenta o seu pedido de anulação dos atos impugnados fundamentalmente no facto de, em função do seu estatuto e das atividades que prossegue, ser titular do direito a esta isenção de IMI, não tendo feito prova de que são em exclusivo as atividades de assistência aos mais desfavorecidos que são prosseguidas no prédio (inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia de ...) objeto da tributação.
Por outro lado, a Requerente também não ofereceu prova de que a proporção calculada pela AT para a atribuição parcial da isenção estivesse errada ou mal calculada – prova que lhe cabia, naturalmente, nos termos gerais das regras sobre ónus da prova.
A Requerente invoca também que lhe assiste o direito de beneficiar da isenção de IMI, menos condicionada, que é concedida às pessoas colectivas de utilidade pública e entidades equiparadas, por via do disposto no artigo 8º do Estatuto das IPSS, e do disposto no artigo 1.º, alínea d), da Lei n.º 151/99, de 14/9, tendo alegado que este entendimento é sufragado na decisão arbitral proferida no âmbito do processo 384/2020-T.
Cremos que também quanto a este aspecto, não assiste razão à Requerente.
Com efeito, quer o artigo 8º do Estatuto das IPSS, quer a Lei n.º 151/99, de 14/9, foram revogadas pela Lei n.º 36/2021, de 14 de Junho[2], que aprovou a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, e entrou em vigor em 01-07-2021, sendo que o regime atual, no seu artigo 11º, nº1, alínea b), ii), apenas prevê a isenção de IMI no que respeita a bens imóveis destinados direta e imediatamente à realização dos fins estatutários da pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública, o que, como já antes vimos, não ocorre no caso em apreço.
Alega ainda a Requerente a violação dos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva, da justiça material e da equidade na distribuição dos encargos tributários, e também a violação do dever de fundamentação. Fá-lo contudo, sem invocar quaisquer factos que sustentem tal alegação, sendo que em face de tudo o que antes se expôs, entende o Tribunal que também quanto a este aspecto não lhe assiste razão no alegado.
Nestes termos, e atento os fundamentos expostos, impõe-se concluir que os atos impugnados respeitam a legalidade vigente, devendo, por conseguinte, ser mantidos na ordem jurídica, pelo que se julga improcedente o pedido formulado pela Requerente.
4. DECISÃO
Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
1. Julgar integralmente improcedente o pedido formulado pela Requerente;
2. Absolver a Requerida do pedido formulado pela Requerente;
3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
5. VALOR DO PROCESSO
Atenta a alteração do pedido por acordo das partes, fixa-se o valor do processo em € 31.571,70 (trinta e um mil, quinhentos e setenta e um euros e setenta cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
6. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de junho de 2023
O Árbitro
(Carla Almeida Cruz)
[1] Petição inicial do Requerente.
[2] cf. artigo 19º, alíneas g) e t).