Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 733/2022-T
Data da decisão: 2023-05-10  IRS  
Valor do pedido: € 354.368,56
Tema: IRS - Mais-valias - Artigo 43.º, n.º 3 do CIRS - Transmissão, por residente, de partes de capital de sociedades com sede noutro Estado Membro da UE.
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Sumário: IRS – Para efeitos do disposto no art. 43º, n.º 3, do IRS, a qualidade de PME de uma sociedade não residente sem estabelecimento em Portugal tem que ser feita através da apresentação de documentos autênticos ou, pelo menos, de documentos aceites pelas competentes autoridades do estado da sede, não bastando a apresentação de documentos particulares, que a Requerida não pode contraditar por se referirem a factos que não conhece nem tem obrigação de conhecer.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

A... e B..., residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ...-..., na Parede, contribuintes fiscais n.ºs ... e..., vieram, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

I - RELATÓRIO

A) O pedido

Os Requerentes peticionam a anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2022... e respetivo acerto de contas n.º 2022..., relativos ao ano de 2021, no montante a pagar de € 702.115,38, a qual deve ser substituída por outra que tenham em consideração apenas 50% da mais-valia obtida com a alienação onerosa de partes de capital de uma sociedade com sede em França.

 

B) O litígio

Os Requerentes entendem que a liquidação efetuada deverá ser parcialmente anulada, uma vez que não foi considerada, por parte da Autoridade Tributária, a qualidade de “pequena empresa” que aproveitava a sociedade C..., com sede em França, no ano a que respeita o imposto e, consequentemente, todas as consequências fiscais daí decorrentes.

Sustentam em suma que:

  • O n.º 4 do artigo 43.º do CIRS estabelece que “[p]ara efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro”.
  • O anexo do diploma para o qual se remete a qualificação de “pequenas empresas” estabelece que “uma pequena empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 10 milhões de euros”.
  • A C... é uma sociedade de direito francês que em 2021 cumpria os requisitos que lhe permitem ser qualificada como pequena empresa.
  • Ao alienarem onerosamente as partes de capital que detinham na mencionada empresa e tendo efetuado a respetiva declaração para efeitos de tributação em IRS, assiste-lhes o direito de serem tributados de acordo com o disposto no n.º 3 do mesmo preceito, que determina, para o efeito, a redução em 50% das mais-valias obtidas.
  • A AT exigiu-lhes o pagamento do IRS determinado com base na totalidade das mais-valias apuradas e não com base em apenas 50%, o que constitui vício de violação de lei.
  • O n.º 3 do disposto no artigo 43.º do CIRS ao referir-se a "empresas nacionais" viola a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 60.º do TFUE e, por esse motivo, não pode manter-se na ordem jurídica interna.

 

Na sua resposta, a AT sustenta a legalidade da liquidação em causa e, por isso, a insusceptibilidade de ser anulada.

 

C) Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 30/11/2022.

 

Os árbitros que constituem este Tribunal foram designados pelo CAAD e aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não foram objeto de impugnação.

 

O tribunal arbitral ficou constituído em 06/02/2023.

 

A Requerida apresentou Resposta e não juntou PA.

 

Por despacho arbitral de 00/04/2023 foi decidido dispensar, por falta de objeto, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e prescindir da produção de alegações, nenhuma das partes se tendo oposto a tal despacho.

 

II - SANEAMENTO

O processo não enferma de nulidades ou de irregularidades.

Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

III - PROVA

A) Factos provados

Consideram-se provados, exclusivamente em função da prova documental efetuada, não tendo sido produzida qualquer outra, os seguintes factos:

  1. Os requerentes apresentaram, optando por tributação conjunta, três declarações de IRS relativamente ao ano de 2021: uma primeira declaração, uma declaração de substituição que anulou a primeira declaração e uma segunda declaração de substituição que anulou a primeira declaração de substituição;

 

  1. A primeira declaração não originou qualquer liquidação em virtude de ter sido substituída pela primeira declaração de substituição

 

  1. A primeira declaração de substituição não originou qualquer liquidação, por ter sido substituída no prazo legal;

 

  1. A segunda declaração de substituição originou a liquidação n.º 2022..., de 202-09-2022, com a coleta líquida de 723.667,70 € e o valor a pagar de € 702.115,38 a que, em compensação, acresceu o valor do reembolso referido na alínea anterior;

 

  1.  O valor a pagar, de 708.775,82 €, foi pago em 28-09-2022, mediante transferência conta a conta, com o DUC ..., de que foi beneficiário o IGCP-DUC;

 

  1. A última declaração de substituição, apresentada em 01-09-2022, foi aceite pela AT, e substitui as que antes tinham sido submetidas e, para além de outros rendimentos, continha, no anexo J (rendimentos obtidos no estrangeiro), a declaração da alienação onerosa de partes de capital, sob a forma de ações de uma sociedade de direito francês, de que o Requerente,  A..., era titular e que foi efetuada por contrato de 20 de outubro de 2021;

 

  1. O anexo J da declaração mod. 3 de IRS não dispõe, ao contrário do que sucede com o anexo G, campo para ser declarada a natureza de "pequena empresa", após a declaração da operação de alienação das respetivas partes sociais;

 

  1. As ações alienadas onerosamente representavam parte do capital social da sociedade C..., com sede na ... Paris;

 

  1. O ganho determinado na operação de alienação das ações referidas foi, na liquidação, considerado na totalidade para efeitos de tributação especial à taxa de 28% e não apenas em 50%;

 

  1. A sociedade C... estava matriculada no Registo do Comércio e das Sociedades francês, em Paris, sob o n.º ... R.C.S. Paris, desde 01/01/2019, tendo sido transferida do RCS de Bordeaux onde havia sido originariamente matriculada em 20/01/2015.

O dado como provado em e) e g) corresponde ao contrato de cedência das participações sociais, junto como documento que, embora particular, comprova um facto contrário ao interesse do Requerente (artigo 376.º do CC).

O dado como provado em j) teve igualmente base documental: o certificado de matrícula da sociedade, o qual, embora não original, tem indícios suficientes para ser considerado documento oficial e, logo, autêntico, com as legais consequências (artigos 369.º a 371.º do CC).

 

B) Factos não provados

Este tribunal não considera provado que a sociedade C... fosse, no exercício de 2021, uma PME, na aceção relevante para efeitos de aplicação do n.º 3 do artigo 43.º do CIRS. Funda-se a sua convicção nos seguintes termos:

  • Desde logo, porque não foram juntos ao processo quaisquer documentos oficiais, ou com indícios de o serem, emitidos por entidades legalmente competentes que fizessem prova plena, em França ou em Portugal ou mesmo em ambos os Estados, da natureza de "PME" da sociedade C... . Ou, em sua substituição, documento que comprovasse, com a devida fundamentação, a impossibilidade de obter tais documentos.

 

  • Em segundo lugar, os Requerentes, a quem incumbia o ónus de provarem os factos constitutivos do direito que se arrogam, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, juntaram aos autos unicamente, como documentos avulsos, em forma de documentos particulares:
    • o Balanço e a Demonstração de Resultados relativos ao exercício de 2021 e à sociedade em questão, não assinados.
    • um "parecer" assinado, pedido, expressamente para o efeito, ao "Comissaire aux Comptes" da Sociedade, reportado ao mês de novembro de 2021, o qual parece ter por objeto certificar o "quadro do pessoal" da sociedade em 30 de novembro de 2021 mas cujo teor é manifestamente dubitativo.
    • um mapa denominado "Registre du Personnel - Du 1 de novembre 2021 au 30 novembre 2021".

 

  • Sublinha-se, pois, que não foram juntos aos autos documentos autênticos suscetíveis de formarem a convicção do tribunal sobre a natureza da sociedade e que, designadamente, poderiam ter sido:
    • declarações oficiais fiscais, independentemente da sua natureza, apresentadas às autoridades fiscais francesas, em que a sociedade tivesse invocado a sua qualidade de PME
    • declarações apresentadas à segurança social francesa.
    • o Relatório e Contas da sociedade, relativos ao ano de 2021, devidamente autenticado - podendo, por exemplo, tratar-se das contas depositadas pela sociedade em França, tal como sucede com as contas depositadas pelas sociedades portuguesas junto do Registo Comercial Português.

 

IV - O DIREITO

O artigo 43.º do CIRS, na parte aplicável ao caso sob julgamento, dispõe o seguinte:

3 - O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor.

4 - Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.

Na Decisão Arbitral n.º 597/2018-T, de 20 de dezembro de 2019[1], explicita-se uma fundamentação jurídica sobre a interpretação e a aplicação do preceito transcrita, cuja pertinência não está em causa, nomeadamente quando ali se escreve:

Não se identifica, assim, qualquer elemento interpretativo que possa sustentar que a remissão do artigo 43.º, n.º 4 do Código do IRS foi efetuada, em exclusivo, para as sociedades – micro e pequenas empresas – “certificadas como tal pelo D..., I.P.” com sede em Portugal. O regime das empresas PME certificadas pelo D..., I.P. consta do corpo do Decreto-lei n. 372/2007, para o qual o Código do IRS não remete, fazendo-o de forma expressa e específica tão-só́ para o anexo do diploma que, como acima dito, determina os requisitos quantitativos exigíveis para que a entidade beneficie da qualificação de PME, seja ou não certificada e independentemente do (sem qualquer referência ao) local da sua sede ou direção efetiva.

A questão que ora se coloca é, pois, uma questão de prova, a qual - tem de admitir-se - o Tribunal considerou feita na Decisão antes referida e que, quer a própria AT na Circular n.º 7/2014, de 29 de julho, quer a jurisprudência dos tribunais superiores - v. g., Ac. do STA n.º 01096/14, de 16-12-2015 e Ac. do TCS n.º 1596/13.2BESNT, de 07-04-2022 - concordam que pode ser efetuada pelos interessados e não necessária e exclusivamente pelo IAPMEI - ou por entidade equivalente de outro Estado membro, acrescentamos nós.

É ainda unânime o entendimento de que, existindo certificado do IAPMEI da qualidade de PME, aquele faz prova dessa mesma qualidade. Mas não faz prova definitiva. Como se sumaria no Ac. do TCS n.º 317/12.1BESNT, de 11-02-2021, "Em sede de redução da tributação das mais valias obtidas com a alienação de participações sociais, o certificado de PME emitido pelo IAPMEI pode ser afastado quanto à sua veracidade se, em face dos critérios legais do conceito de PME, for aduzida prova concludente nesse sentido".

Inexistindo certificação do IAPMEI ou de entidade estrangeira equivalente, cumpre a quem invoca o direito à redução das mais valias em 50% pelo facto de as partes de capital alienadas onerosamente titularem capital de uma PME comprová-lo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT.

A remissão do n.º 4 do artigo 43.º do CIRS é feita para o anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007. Não sendo uma remissão limitada, é, obviamente, uma remissão para a sua integralidade, pelo que, para emitir o juízo sobre se qualquer empresa preenche os requisitos necessários para que seja considerada como PME, haverá de considerar-se sempre a totalidade das normas consagradas no Anexo.

Há, pois, que ter em conta os requisitos estabelecidos no Anexo para que uma empresa se integre numa das categorias de PME:

  • Tem de ser uma empresa, ou seja, entidade que, independentemente da sua forma jurídica, exerça uma atividade económica (artigo 1.º).
  • Quanto aos efetivos e limiares financeiros, a "pequena empresa" é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total não exceda 10 milhões de euros (artigo 2.º, n.º 2).
  • Se não for uma "empresa autónoma", no sentido em que não possa ser qualificada como "empresa parceira" ou "empresa associada", existem restrições ou condicionalismos à sua qualificação como PME (artigo 3.º e 6.º, n.º 2).

De conformidade com o disposto no artigo 4.º, os dados considerados para o cálculo dos efetivos e dos montantes financeiros são os do último exercício contabilístico encerrado, calculados numa base anual. Por último, de acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 1, ainda do Anexo, "a determinação dos dados, incluindo os efetivos, efetua-se unicamente com base nas contas desta empresa".

Deste modo, objetivamente, os dados juntos ao PPA reportam-se a 2021. Ora, 2021 foi o ano da verificação do facto tributário. Logo, os dados que são legalmente exigíveis para verificação do exercício da atividade, para cálculo dos efetivos e para os montantes financeiros são os relativos ao exercício de 2020, que era, à data, "o último exercício contabilístico encerrado". Donde se conclui pela inutilidade dos documentos pretensamente probatórios, juntos ao PPA, por não se reportarem ao ano de 2020, mas antes ao ano de 2021.

Acresce o facto já referido, de serem elementos contabilísticos avulsos, isto é não consubstanciarem nem terem o conteúdo legal inerente às "contas da empresa". Tal como bem refere a AT na sua Resposta (Quando se trata de uma empresa com sede em território português) ... embora se não exija o certificado do IAPMEI como prova da qualidade de PME, a AT dispõe de um conjunto de meios oficiais que lhe permitem confirmar os requisitos necessários à qualificação de uma empresa como PME. Ora, no caso das empresas com sede noutro Estado, a AT não dispõe de tais meios. Ou seja, a AT encontra-se impossibilitada de contraditar as contas de uma empresa estrangeira, por não ter dados que lhe permitam exercer a respetiva impugnação.

Por último, são dados relativamente aos quais já se sublinhou constarem de documentos particulares e que, por consequência, apenas provam, nos termos legais, factos contrários aos interesses dos Requerentes.

 

VI - DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que se conclui pela total improcedência do peticionado.

Valor do Processo: 354.368,56 €

Custas arbitrais no valor de 6.120,00 €, a cargo dos Requerentes, dado o seu total decaimento.

10 de maio de 2023

Os árbitros,

 

Rui Duarte Morais (Presidente)

 

 

Augusto Vieira

 

 

 

 

Manuel Faustino (Relator)

 



[1] E também na Decisão Arbitral n.º 155/2013-T, de 27-01-2014