Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 546/2022-T
Data da decisão: 2023-05-26  IVA  
Valor do pedido: € 33.047,95
Tema: IVA – Requisitos das faturas e direito à dedução; IRC – Gastos dedutíveis; IRC/Tributação Autónoma - Despesas não documentadas.
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Sumário:

I - Sendo a atividade da Requerente a de transportes de passageiros, com passagens pelos territórios francês e espanhol, e não discutindo a Requerida a conexão entre o gasto e a atividade, o IVA suportado naqueles Estados que não seja objeto de pedido de reembolso deve ser aceite como gasto dedutível em sede de IRC ao abrigo do artigo 23.º, n.º 1 do Código do IRC, posto que se trata de um gasto incorrido para obter os rendimentos sujeitos a imposto.

II - Não tendo a Requerente logrado produzir prova no sentido da justificação de um movimento contabilístico de saída de caixa, não resultando sequer dos diversos movimentos a débito e crédito o valor total registado como tendo saído da Conta 11 – Caixa, é de considerar tal saída como despesa não documentada, por total falta de suporte documental da despesa registada, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC.

III – Relativamente aos extratos/recibos que titulam os gastos incorridos com portagens cobradas através do sistema Via Verde, se a Requerida, através dos extratos juntos em sede inspetiva, tinha à sua disposição todos os meios para controlar e fiscalizar a liquidação e dedução de imposto, designadamente os números das faturas emitidas pelas concessionárias de autoestradas, o valor desagregado de IVA e preço cobrado, a identificação do adquirente e prestador, entre outros elementos, numa interpretação da norma resultante dos artigos 19.º, n.º 2 e 36.º, n.º 5 do Código do IVA conforme ao Direito Europeu, deve o IVA mencionado nos mencionados extratos ser considerado dedutível ao IVA liquidado pela Requerente.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I.RELATÓRIO

  1. A…, S.A, titular do NIPC …, com sede na Avenida …, Ponte de Lima (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 2, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista revogação do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa que correu termos sob o n.º …, proferido pelo Diretor de Finanças de …, que negou provimento ao pedido de declaração de ilegalidade parcial dos atos de liquidação adicional de i) Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, “IRC”) com o n.º 2021 …, relativo ao ano de 2018 e correspondentes demonstrações de juros compensatórios e acertos de contas, com saldo final a pagar de € 28.763,65, sendo contestado apenas o valor de € 21.160,63 e de ii) Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) identificadas pelos n.os …, período 1801M, …, período 1802M; …, período 1804M; …, período 1806M; …, período 1807M; …, período 1808M; …, período 1809M; …, período 1810M; …, período 1811M; …, período 1812M, seus atos consequentes e correspondentes demonstrações de liquidação de juros compensatórios, com um valor total a pagar de € 13.476,88, sendo contestado apenas o valor de € 10.935,33, e, bem assim, que se determine a condenação da Requerida a reembolsar a Requerente dos montantes de imposto pago, acrescidos de juros indemnizatórios nos termos da lei.
  2. A Requerida foi notificada do pedido arbitral em 26 de setembro de 2022, tendo designado juristas para acompanhar o processo através de despacho proferido no dia 27 de setembro de 2022.
  3. De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 28 de novembro de 2022, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
  5. Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua Resposta em 13 de janeiro de 2023, tendo na mesma, além do mais, informado o Tribunal de que revogou parcialmente a liquidação de IRC impugnada, no que respeitava a uma correção, de € 49.461,10 conexa com a não aceitação de dedução de gastos fiscais incorridos com portagens, reduzindo assim o IRC em causa nos presentes autos e solicitando que fosse declarada a inutilidade superveniente da lide nessa parte;
  6. Na sequência dessa revogação e em substituição da liquidação de IRC impugnada, foi emitida a liquidação de IRC n.º 2022 …, que passa a estar nos autos.
  7. Adicionalmente, a Requerida juntou aos autos o Processo Administrativo, simultaneamente com a Resposta.
  8. Por não ter sido requerida a produção de prova testemunhal e as questões colocadas serem essencialmente de ordem documental ou convocando mera análise jurídica, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, notificando-se as partes para apresentarem alegações escritas e se pronunciarem quanto às consequências da revogação parcial dos atos impugnados.
  9. Excluindo desde já a argumentação relativa à correção entretanto revogada pela AT, a Requerente alega, em síntese, que:
    1. Quanto ao IRC,
      1. a não aceitação, para efeitos de determinação do lucro tributável, como gasto, do montante de € 4.934,15 a título de IVA suportado pela Requerente com combustíveis adquiridos em Espanha e França viola o estatuído no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC, porquanto nada na lei portuguesa obriga a Requerente a efetivar o exercício do direito à dedução de IVA a que possa eventualmente ter direito com a consequência, na ausência desse exercício, do gasto assim incorrido ser desconsiderado para efeitos de IRC.
      2. A tributação autónoma (apurada no montante de € 8 017,50) de um valor registado na contabilidade como tendo alegadamente saído de caixa por contrapartida de outra rubrica do ativo não constitui despesa não documentada, posto que não altera a situação patrimonial da empresa, e que,
    2. Quanto ao IVA, que não existe qualquer razão legalmente fundada para os Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”) terem recusado a dedução do IVA suportado com portagens, uma vez que os factos tributários em causa se encontram adequadamente documentados através da documentação emitida pelo prestador, i.e. a Via Verde, pelo que devem as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios ser parcialmente anuladas, no valor de € 11.887,32.
  10. A este entendimento opõe-se a Requerida, que pugna pela manutenção dos atos postos em crise. 

 

II.MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

  1.  A Requerente tem como objeto “Transporte público colectivo interno e internacional de passageiros, transporte colectivo de crianças, transportes turísticos e outros transportes, excursões nacionais e estrangeiras. Representações, comércio, manutenção e reparação de veículos automóveis, comércio de peças e acessórios para veículos automóveis. Exploração de agência de viagens e turismo. Transportador interurbano em autocarros, transportes terrestres, urbanos e suburbanos, de passageiros. Aluguer de veículos automóveis ligeiros e pesados. Transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem, de âmbito nacional ou internacional, em veículos de peso bruto igual ou superior a 2.500 kg. Compra e venda de bens imobiliários, arrendamento de bens imobiliários. Comércio a retalho de combustível e lubrificantes. Transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros. Transporte de doentes não urgentes. Transporte rodoviário de passageiros em viaturas de lotação até 9 lugares. Exercício de atividade acessórias das agências de viagem e turismo. Assistência a veículos na estrada. Comércio de outros veículos automóveis, comércio de veículos automóveis ligeiros. Atividades de operadores turísticos e outros serviços de reservas, atividades auxiliares de transportes terrestres. Manuseamento de cargas e serviços de organização do transporte. Atividades de consultoria e acompanhamento técnico”.
  2. A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva, conduzida pela Direção de Finanças de … ao exercício de 2018, de âmbito externo, a coberto da OI2020…, da qual resultaram correções meramente aritméticas em sede de IRC e IVA.
  3. Com relevância para o caso dos autos, essas correções são as seguintes:
    1. Não foi aceite, para efeitos de determinação do lucro tributável em IRC, como gasto, o montante de € 4.934,15 a título de IVA suportado pela Requerente com combustíveis adquiridos em Espanha e França, pelo facto de a Requerente não ter solicitado o reembolso do IVA aos Estados em causa.

Neste contexto, dão-se como provados os seguintes factos:

  1. Na sua atividade regular de transporte de passageiros, por vezes a Requerente faz parte do caminho por território francês e/ou espanhol;
  2. Em 2018 adquiriu combustível nesses países, no contexto desses transportes efetuados;
  3. A Requerente não se encontra registada em Espanha nem em França para efeitos de IVA;
  4. A Requerente não solicitou reembolso de IVA suportado em nenhum desses países.
  5. Foi considerada como despesa não documentada, e em consequência sujeita a tributação autónoma (apurada no montante de € 8.017,50) um valor de € 16.035. Neste âmbito, dão-se como provados os seguintes factos:
    1. Foi registado contabilisticamente em 31-12-2018, como lançamento 311, a crédito da conta 111 – Caixa, o montante de € 16.035;
    2. A Requerida, no âmbito da inspeção conduzida, não recebeu da Requerente qualquer documento de que resultasse a origem ou destino desse valor de € 16.035 – v. anexo IX ao Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) – tendo-se limitado a Requerente a referir, no âmbito do procedimento inspetivo, que o registo daquela saída de caixa se devia a reconciliação de movimentos contabilísticos
    3. No final de 2018 a Requerente passou por um processo de reorganização da contabilidade uma vez que considerou que esta se encontrava a ser efetuada de forma pouco rigorosa;
  6. Foi considerado como não dedutível o IVA suportado no pagamento de portagens por falta de requisitos dos documentos de suporte, emitidos pela Via Verde S.A. Relativamente a esta correção, relevam os factos seguintes, que se dão por provados:
    1. A Requerente utiliza frequentemente vias portajadas no exercício da sua atividade de transporte;
    2. No contexto da inspeção de que foi alvo, a Requerente apresentou a integralidade dos extratos emitidos pela Via Verde S.A. como forma de suporte aos gastos registados na contabilidade;
    3. A Requerida não coloca em causa a efetividade desses gastos;
    4. A Requerida veio a aceitar a dedução dos mencionados gastos em sede de IRC;
    5. Os “extratos/recibos” emitidos pela VIA VERDE constantes dos autos não são faturas mas contêm os números das faturas emitidas por terceiros, v.g. concessionárias de autoestradas, referem o nome e NIPC da Requerente bem como o das referidas concessionárias.
  7. Em consequência das correções constantes do RIT, foram emitidas as liquidações adicionais de IRC e IVA aqui mediatamente impugnadas.
  8. A Requerente apresentou reclamação graciosa, a qual veio a ser indeferida na sua totalidade.
  9. O presente pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 19 de setembro de 2022, tendo sido notificado à AT em 26 de setembro de 2022.
  10. O Tribunal considera-se constituído em 28 de novembro de 2022.
  11. A liquidação de IRC impugnada foi parcialmente revogada por despacho da Senhora Subdiretora Geral do IRC datado de 22 de novembro de 2022, que chegou ao conhecimento do Tribunal em 13 de janeiro de 2023, através do Processo Administrativo junto aos autos na referida data.
  12. Tal revogação parcial deriva da aceitação, como gasto dedutível em sede de IRC, dos gastos incorridos com a passagem em vias portajadas, cobrados pela Via Verde S.A.

 

A.2. Factos dados como não provados

- Apesar de ter alegado que o montante de € 16.035, que deu origem à correção em sede de tributação autónoma, não correspondeu a uma efetiva despesa mas que, ao invés, resultava de compensações e reconciliações relativas a exercícios anteriores, a Requerente não logrou provar, por qualquer meio, quais os movimentos contabilísticos ou reconciliações de movimentos que deram origem ao registo daquela saída de caixa.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

 Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

 

III.DO DIREITO

  1. Erro sobre os pressupostos de facto e de direito – IVA suportado em França e Espanha

Analisado o Pedido de Pronúncia Arbitral, o RIT, o indeferimento da reclamação graciosa, a resposta e alegações da Requerida, é bem notório que não está aqui em causa a efetividade dos gastos incorridos com a aquisição de combustível ou sequer a pertinência desses gastos para o exercício da atividade da Requerente mas apenas, na parte que se refere ao IVA suportado nessas aquisições, da sua subsunção ao conceito de “gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, num montante total de € 4.934,15.

Neste âmbito, é entendimento da Requerida, apoiado na Circular n.º 14/2008, de 8 de julho, que sendo aquele IVA potencialmente recuperável nos Estados Membros em causa, não se mostra o mesmo como “encargo indispensável à obtenção dos ganhos sujeitos a imposto” (cit., projeto de indeferimento da reclamação graciosa constante do PA instrutor).

Contudo,

Não só se encontra, pelo menos desde a reforma do IRC de 2014, legalmente ultrapassado o conceito de indispensabilidade dos custos para efeitos da respetiva dedutibilidade em sede de IRC, sendo hoje entendimento indisputado que “[n]a atual redação do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC, não consta que os gastos devam ser indispensáveis (ou necessários) para a obtenção de rendimentos, devendo apenas avaliar-se se os gastos ocorreram no âmbito e por força da atividade empresarial da Requerente, a qual tem, por definição, escopo lucrativo e é, nesse sentido, sujeita a IRC” (v. acórdão arbitral proferido no processo n.º 793/2021-T e também o acórdão arbitral relativo ao processo 306/2022-T em que o aqui signatário fez parte do coletivo de árbitros), como a questão da dedutibilidade, em sede de IRC, do IVA suportado no estrangeiro, mesmo que potencialmente reembolsável, foi já objeto de diversas decisões judiciais em sentido unânime.

Atentemos em particular no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) tirado em 15.11.2017, no processo n.º 0372/16, que se debruça também sobre a eficácia da mencionada Circular, e cujo teor acompanhamos (apesar de termos uma posição doutrinária diferente quanto ao valor das circulares, mas que levaria a resultados semelhantes se aplicada aqui):

“Tendo em conta que a actividade da ora Recorrida é o comércio de veículos automóveis ligeiros, afigura-se-nos inquestionável que o custo respeitante ao IVA suportado na aquisição intracomunitária daqueles veículos, inserindo-se sem margem para dúvida na actividade exercida, é, à luz das regras da experiência, potencialmente gerador de proveitos. Não pode sequer considerar-se existir, no momento relevante para aferir da indispensabilidade, qualquer dúvida quanto à correlação do custo com a actividade prosseguida […].

É certo que, como alega a Recorrente e a sentença deu como provado, a sociedade ora Recorrida não pediu o reembolso daquele imposto ao abrigo do disposto na 8.ª Directiva do Conselho, direito que lhe assistia. Mas, salvo o devido respeito, o não exercício desse direito – como direito que é, e não um ónus […] não tem como consequência a perda da possibilidade de deduzir o IVA suportado como custo na determinação da matéria tributável de IRC.

É certo que a AT, pela Circular n.º 14/2008 da Direcção de Serviços do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, de 11 de Julho de 2008 (Disponível em
http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/AB950A52-ABE5-4A0B-94B9-CA9D89EF78B4/0/Circular%2014_08.pdf.), pretendendo esclarecer «dúvidas sobre o enquadramento fiscal, em sede de IRC, do IVA suportado em resultado de não ser exercido o direito à sua restituição, conferido pela 8.ª Directiva do Conselho (79/1072/CEE), de 6 de Dezembro», veio dizer, no seu ponto 2, que «[s]empre que não seja exercido esse direito, o montante do IVA contabilizado como custo não é dedutível para efeitos de determinação do lucro tributável em IRC, porque não se verifica o requisito de indispensabilidade exigido pelo n.º 1 do artigo 23.º do respectivo Código».

No entanto essa circular, que a Recorrente [a aqui Requerida] invoca quer nos seus termos literais quer na sua razão de ser – aliás, afirmando expressamente que «nunca a impugnante contestou a ratio da Circular» –, não diz porque não se verifica o requisito da indispensabilidade se não for exercido o direito ao reembolso do IVA; afirma-o, pura e simplesmente.
[…].
Como deixámos já dito, os fundamentos que a AT externou em ordem à fixação da doutrina da referida circular não nos permitem aferir da validade da mesma. Quanto à alegada ratio da mesma, correndo o risco de não alcançarmos a verdadeira razão de ser subjacente à solução preconizada pela circular, ela será a seguinte: sendo o IVA reembolsável a pedido do sujeito passivo de IRC, se este não exercer esse direito, conclui-se que o custo só foi incorrido porque o sujeito passivo optou por não formular o pedido e, por conseguinte, o mesmo não pode ter-se por indispensável à obtenção de proveitos ou ganhos ou à manutenção da fonte produtora.
A ser essa a razão de ser da circular, pouco temos a acrescentar ao que deixámos já dito em torno do requisito da indispensabilidade, afigurando-se-nos que
a interpretação que a AT terá feito do mesmo está há muito afastada pela doutrina e pela jurisprudência. Tal interpretação, salvo o devido respeito, assenta num entendimento insustentável, quer à luz dos princípios legais que enformam a tributação sobre o rendimento, quer à luz das regras da experiência e até da praticabilidade, qual seja o de que apenas poderiam considerar-se como custos dedutíveis os estritamente indispensáveis «para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora», ficando de fora na determinação da matéria tributável todos aqueles que, não obstante não se questione a sua ligação a esse desígnio, se revelam de algum modo ou em alguma medida supérfluos ou não literalmente indispensáveis para o mesmo. No limite, haveria de se desconsiderar todos os gastos relativamente aos quais se comprovasse que poderiam ter sido incorridos por um valor inferior àquele por que o foram efectivamente. Isto, note-se, sem que a AT fizesse qualquer demonstração de intenção de evasão fiscal.

Nessa tese, todas as opções do sujeito passivo de IRC no âmbito da sua actividade que não se mostrassem as mais económicas seriam penalizadas, pois o custo, na parte em que excedesse essa perfeição economicamente utópica, não seria deduzido para efeitos de determinação da matéria tributável. Levada ao extremo, a tese constituiria um entrave intransponível à iniciativa privada e a toda a actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, pois exigiria do sujeito passivo de imposto sobre o rendimento que fizesse sempre as melhores opções económicas e jurídicas, sob pena de ser penalizado em sede de imposto sobre o rendimento.
Manifestamente, não é essa a vontade do legislador, que logo na Lei fundamental (cfr. o art. 104.º, n.º 2, da CRP) consagrou como objecto da tributação das empresas o rendimento real e não o rendimento ideal.

A indispensabilidade, tal como a entendemos, configura uma ligação dos custos à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, em suma, à actividade desenvolvida pelo contribuinte, pelo que só não serão indispensáveis os custos que não tenham relação causal e justificada com a actividade produtiva da empresa. Concluímos, assim, que não há motivo para desconsiderar como custo fiscal o IVA em causa” (sublinhados nossos).

Atenta a clareza da análise efetuada e a manifesta aplicabilidade da jurisprudência citada ao caso dos autos, sendo a atividade da Requerente aqui em causa a de transportes de passageiros com passagens pelos territórios francês e espanhol e não discutindo a Requerida a conexão entre o gasto e a atividade, não vemos razões para dela divergir, razão pela qual nesta parte se julga procedente o pedido arbitral, anulando-se parcialmente a liquidação de IRC impugnada por violação do artigo 23.º, n.º 1 do Código do IRC, expurgando-se a mesma do imposto e juros compensatórios correspondentes à não aceitação do valor de € 4.934,15 como gasto dedutível em sede de IRC, posto que se trata de um gasto incorrido para obter os rendimentos sujeitos a IRC.

 

  1. Erro sobre os pressupostos de direito – correções relativas a despesas não documentadas – tributação autónoma em IRC

De acordo com o RIT, a Resposta e as Alegações da Requerida, esta correção deriva do facto de a aqui Requerente ter efetuado um movimento, com o n.º 311, do Diário 050, datado de 31-12-2018 (Anexo IX do RIT) onde são movimentadas, entre outras, as contas de diversos fornecedores e a conta 21111001 – Clientes Diversos, estando também refletida, nesse movimento, uma saída da conta 111 – Caixa, no montante de € 16.035,00.

Questionada pelos serviços inspetivos, a contabilista da Requerente terá explicado que, a movimentação da conta 11 (entre outras), no valor de € 16.035,00 resultou de um esforço de reconciliação e acerto das contas correntes de clientes e fornecedores que foi efetuada por contrapartida da conta de caixa sem que, contudo, tivesse apresentado qualquer documento, para além do lançamento contabilístico, que suportasse a saída de meios patrimoniais da sociedade. Nestas circunstâncias, considerou a Requerida que “a contabilização da saída de meios financeiros, no montante de € 16.035,00, é uma despesa não documentada e tal tem enquadramento no n.º 1 do art.º 88º do CIRC, sendo de manter a correção efetuada no montante de € 8.017,50” – cfr. §39 das Alegações da Requerida.

A Requerente impugna a correção em apreço com o principal argumento de que o valor de € 16.035, lançado com o n.º 311, a crédito, na conta 11 – Caixa, da Requerente, não correspondeu a uma despesa efetiva, razão pela qual não poderia ser tributado autonomamente como despesa não documentada, mais aduzindo que não pode a Requerida apoiar-se numa despesa presumida para liquidar uma tributação autónoma (in casu  no valor de € 8.017,50).

Como fica patente pela análise do PPA e da Resposta, e uma pesquisa pelas bases de dados relevantes confirma, este tema não é unânime na jurisprudência (seja na ordem judicial, seja em sede arbitral, como fica patente, pelo menos, nos acórdãos arbitrais relativos aos processos 54/2013-T e 752/2019-T), mostrando-se fulcral uma análise casuística das provas carreadas para os autos para solucionar a questão.

Ora, no caso presente, é a própria Requerente quem admite que no final de 2018 procedeu a reconciliações e operações contabilísticas semelhantes pelo facto de a contabilidade não apresentar o rigor devido, mais acrescentando que a conta 11 – Caixa, era utilizada de forma razoavelmente indiscriminada. Questionada pelos serviços de inspeção da Requerida sobre aquele montante em concreto, não logrou a Requerente demonstrar – sequer indiciariamente – as movimentações a débito e crédito relativas àquela reconciliação que alega ter sucedido e que teriam resultado no registo contabilístico de saída daquele valor (já que a Requerente alega, mesmo sem provar, que o valor em causa não “saiu” da sociedade e que o registo de saída se resume a uma necessidade de reconciliar contas). Não o fez à data e não o fez com o PPA, nem por documentos, nem por testemunhas, que não indicou.

Do lado da Requerida, refere-se i) que a contabilidade da Requerente não cumpria com as boas práticas aplicáveis (o que a Requerente reconhece, quer nas respostas dadas em sede de inspeção quer no PPA) e que ii)  a movimentação da conta 11 – Caixa, pressupõe a movimentação de meios financeiros, ou seja, a efetiva saída de dinheiro da sociedade, pelo que aquele valor corresponderia a efetiva despesa..

Tendo esse contexto por base, a análise que este tribunal faz do acerto ou ilegalidade desta correção é necessariamente baseada em indícios e na subsunção desses indícios ao regime jurídico de distribuição do ónus da prova.

Ora, em primeiro lugar, afigura-se que as múltiplas falhas ao nível do trato sucessivo de lançamentos contabilísticos da Requerente são de molde a afetar a presunção de veracidade da contabilidade relativa ao exercício de 2018, nos termos e para os efeitos do artigo 75.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, o que não deixa de ter consequências ao nível da distribuição do ónus da prova. Com efeito, tal como se decidiu no processo arbitral n.º 236/14-T, em 4.05.2015, citado em múltipla jurisprudência arbitral posterior, “de acordo com o artigo 74.º, n.º 1 da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

Em consequência, cabe à Administração Tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua actuação, para o que deve provar os factos constitutivos de que legalmente depende a decisão administrativo-tributária com certo conteúdo e com certo sentido. Pelo seu lado, cabe ao contribuinte provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca.

Ora, impõe-se observar que as correcções impugnadas […] prendem-se com a afirmação de posições e a realização de ajustamentos com repercussão fiscal por parte da Requerente, consubstanciando as liquidações tributárias realizadas, na parte correspondente, o não reconhecimento dessas posições a que se arroga a Requerente, designadamente pela falta de comprovação dos pressupostos subjacentes [tal como sucede in casu, refira-se]. Como tal, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 74.º da LGT, cabe à Requerente a demonstração das bases e situações fácticas em que se sustentam os ajustamentos, desreconhecimentos e regularizações que, por ela, foram promovidos e cuja relevância e consistência tributárias afirma, recaindo, pois, sobre a Requerente o ónus de esclarecer, comprovar e documentar as operações em causa e sua justificação.” (sublinhados nossos).

Como se deixou referido nos Factos Provados, no caso dos autos é a própria Requerente quem reconhece as deficiências e falta de rigor da contabilidade à data dos factos, que terá motivado esforços de regularização/conciliação. Pelo que, tal como se refere no acórdão arbitral acima citado, e sublinha Jorge Lopes de Sousa, sempre que se aplique a alínea a), do n.º 2, do artigo 75.º da LGT, “será sobre o contribuinte que recai o ónus de prova dos factos declarados ou inscritos na sua contabilidade ou escrita sobre que existam dúvidas probatórias”, razão pela qual “as dúvidas que no processo judicial subsistam sobre a matéria de facto, não podem considerar-se dúvidas fundadas” para os efeitos do n.º 1 do art. 100.º do CPPT – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, vol. II, 6.ª ed, Areal (Lisboa: 2011), p. 133.

 “Daí que” – como bem se assinala na decisão arbitral que vimos acompanhando – “incida sobre a Requerente o ónus da demonstração efectiva dos factos inscritos e das razões na base dos ajustamentos realizados na contabilidade, não bastando ficar a dúvida sobre a viabilidade da respectiva justificação, […]. Deste modo, a prova produzida deve assegurar, com a certeza exigível, que as regularizações e ajustamentos realizados [pela Requerente na contabilidade] possuem consistência e materialidade bastante em face das justificações que lhe presidem.

Sucede que, como a esta altura já estará claro, a Requerente não logrou produzir qualquer prova sobre a origem ou destino da saída de caixa registada no valor de € 16.035 nem foi capaz de demonstrar qualquer sequência de movimentos contabilísticos de reconciliação que, somados, resultassem naquele valor, de molde a pelo menos criar a dúvida razoável no espírito deste Tribunal quanto à existência de uma eventual justificação para aquele registo contabilístico de saída de meios financeiros.

Sendo certo que, como vem decidindo a jurisprudência do STA, designadamente no acórdão proferido em 31 de março de 2016 no âmbito do processo n.º 505/15, o artigo 88.º do Código do IRC (correspondente ao artigo 81.º na data dos factos a que se refere tal acórdão) não contém qualquer exigência de que as despesas tributadas autonomamente ao abrigo de tal normativo sejam, ou tenham sido, consideradas como custos fiscais do sujeito passivo, jurisprudência que tem vindo a ser retomada em inúmeros acórdãos e decisões arbitrais, de que são exemplo as tomadas nos processos n.os 259/2021-T, 752/2019-T ou 486/2018-T, apenas para referir algumas. É que, como bem se faz notar no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, de 13 de abril de 2016, “[a] introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada[…]por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407)”, considerando que “a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal […]”.

Não tendo a Requerente logrado produzir prova no sentido da justificação do movimento contabilístico de saída de meios da sociedade, e tendo a Requerida conseguido fazer prova dos pressupostos da sua atuação, decide este tribunal considerar que a contabilização da saída de meios financeiros, no montante de € 16.035,00, é uma despesa não documentada, nessa medida enquadrada no artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC, pelo que nesta parte é de manter a correção efetuada pela Requerida, no valor de € 8.017,50, improcedendo parcialmente o pedido arbitral neste contexto.

  1. Do vício de forma por falta de fundamentação

Mais se refira que, não obstante a alegação meramente conclusiva e sem concretização de que a liquidação de IRC aqui em causa sempre estaria ferida de vício de forma por falta de fundamentação, devendo nessa medida ser anulada – o que foi subsidiariamente pedido pela Requerente – é manifesto no caso dos autos que tal vício não se verifica.

Como tivemos oportunidade de escrever noutra sede, “[a] fundamentação não pode ser um dever administrativo formal, abstracto e de conteúdo fixo: a fundamentação, como aquilo que permite ao contribuinte «tomar conhecimento de todo o percurso decisório da Administração», há-de depender da decisão que deva fundamentar. Assim, o parâmetro de fundamentação exigido não é o mesmo para todo o tipo de actos tributários nem se coloca com a mesma intensidade em relação a todos os itens de uma correcção administrativa” – cfr. J. L. Saldanha Sanches / João Taborda da Gama, «Audição - Participação - Fundamentação: a co-responsabilização do sujeito passivo  na  decisão  tributária»,  in  Estudos  em  Homenagem  ao  Doutor  José  Xavier  de Basto, Coimbra, 2006, p. 294 .

E, como se sumaria no acórdão do STA de 12 de março de 2014, tirado no processo n.º 01674/13, “[o] acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual. III - Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto”.

Ora, da análise da reclamação graciosa bem como do presente pedido de pronúncia arbitral relativo ao indeferimento da mesma, e em última ratio dirigido à anulação parcial das liquidações adicionais de IRC e IVA impugnadas, fica bem patente que a Requerente compreendeu bem o tal iter cognoscitivo e valorativo que conduziu a Autoridade Tributária às decisões que tomou e liquidações adicionais que emitiu, razão pela qual conseguiu contestar e até rebater vários dos argumentos utilizados pela Requerida e reverter parcialmente a decisão tomada.

Improcede, por isso, o pedido subsidiário de anulação do indeferimento e liquidações por vício de forma resultante de falta de fundamentação dos atos tributários em crise.

  1. Direito à dedução de IVA - Portagens

Entendeu a Requerida no RIT que os “nos termos do nº 2 do artigo 19º do Código do IVA, “só confere direito à dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo: a) Em faturas passadas na forma legal; (…). Ou seja, o direito à dedução do IVA está dependente do Sujeito Passivo ter, na sua posse e em seu nome, uma fatura (fatura, fatura-recibo ou fatura simplificada) emitida sob a forma legal. Ora, nos termos do nº 6 do artigo 19º, “… consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos. Assim, as faturas, para permitirem o direito à dedução, devem conter os elementos constantes do nº 5 do artigo 36º do Código do IVA”, tendo decido que os “«extratos/recibos» emitidos pela VIA VERDE não cumprem com o disposto no nº 2 do artigo 19º, conjugado com nº 5 do artigo 36º, ambos do Código do IVA, uma vez que, do detalhe de cada das faturas aí incluídas, não consta a identificação ou número de contribuinte do adquirente, ou ainda a descrição dos serviços prestados, a coberto dessas faturas (Ver, a título de exemplo os documentos constantes do Anexo II – Fls 3 a 13 e Anexo VI). Por outro lado, nos termos do nº 19 do artigo 29º do mesmo Código, a prestação de serviços em causa não pode ser titulada por um «extrato/recibo», como nestas situações aconteceu”.

Ultrapassado que está o tema do IRC, posto que a Requerida decidiu aceitar esse gasto como dedutível para efeitos desse imposto, revogando a liquidação de IRC impugnada nessa parte, cumpre verificar se deveria ou não ter adotado semelhante raciocínio para efeitos de IVA, caso em que deverá julgar-se procedente o pedido de anulação das liquidações adicionais de IVA aqui em crise.

Também aqui entendemos que deve ser reconhecida razão à Requerente. Vejamos:

Desde logo estranha-se que, tendo sido revogada a não aceitação destes gastos para efeitos de IRC, não venha a Requerida na Resposta ou nas Alegações aduzir as razões pelas quais considera que o mesmo raciocínio não é aplicável em sede de IVA. Afinal, estamos em presença das mesmas operações, justificadas pelos mesmos documentos.

É verdade que o exercício do direito à dedução de IVA está sujeito a exigências de forma substanciais e não meramente ad probationem como sucede em sede de IRC, o que resulta do confronto entre as normas resultantes dos artigos 19.º, n.º 2, alínea a) e 36.º, n.º 5 do Código do IVA com as do artigo 23.º, n.os 3 a 6 do Código do IRC e tem sido sublinhado pela jurisprudência ao longo do tempo (v., por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 05.07.2012, relativo ao processo n.º 0658/11 e do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 29.09.2022, no âmbito do processo n.º 910/09.0 BELRS).

 Tais exigências derivam das especiais preocupações de combate à fraude e evasão fiscal mas também se conexionam com a necessidade de assegurar uma harmonização prática do sistema europeu de IVA, procurando fazer assemelhar, entre os Estados Membros as condições de exercício do direito à dedução, com salvaguarda das normas sujeitas à cláusula standstill.

Ora como refere Sérgio Vasques[1], também a este propósito citado na sentença arbitral proferida no processo n.º 272/2022-T (com conteúdo factual em alguma medida similar ao que se nos apresenta nestes autos), “[é] o artigo 178.º da Directiva IVA que vem fixar os requisitos de forma a que está sujeito o exercício do direito à dedução, determinando, logo na sua alínea a), que no tocante ao comum das transmissões de bens e das prestações de serviços o sujeito passivo deve para o efeito estar na posse de uma factura emitida nos termos da própria Directiva IVA […]. Nas suas decisões o tribunal [de Justiça da União Europeia], reiterando embora a função da factura como suporte do direito à dedução, em correspondência com o artigo 178.º da Directiva, tem permitido que sobre este requisito de forma prevaleça a substância das operações, sempre que isso se mostre necessário para garantir a neutralidade do IVA e não coloque risco demasiado […].

Em resumo, podemos dizer que o TJUE tem vindo a relativizar de algum modo os requisitos de forma para o exercício do direito à dedução e a função que nisso cabe às facturas disciplinadas pelo Título XI, Capítulo 3, da Directiva IVA. O tribunal admite que a substância das operações prevaleça sobre os vícios da factura, quando estejam em causa elementos previstos exclusivamente na lei interna dos estados-membros, e na limitada medida em que a Directiva IVA permite a sua introdução. E o tribunal admite mesmo que a substância das operações prevaleça sobre vícios das facturas relativos a elementos tipificados na Directiva IVA, posto que não se crie com isso risco de fraude.”

O objectivo desta abordagem «flexível» […] é o de garantir o direito à dedução a qualquer sujeito passivo que efectivamente tenha suportado o pagamento do imposto. A multiplicação de exigências pelos estados-membros no momento de emissão das facturas pode levar a que se dificulte ou anule o direito à dedução por quem deve exercê-lo na substância, um resultado frontalmente contrário aos objectivos perseguidos pela Directiva IVA.”

Mantendo-nos a acompanhar a decisão arbitral proferida no processo n.º 272/2022-T, citando Augusta Andrade Lopes, Osvaldo Seixas e Pedro Batista Rúben em «Importância da Fatura no Edifício Do IVA: A Formalidade na Substância e a Substancialidade na Forma», in Cadernos do IVA 2022, Sérgio Vasques (Coord.), Almedina (Coimbra, 2022) facto é que “o TJUE tem vindo a entender que as faturas, tendo uma evidente função de suporte à dedução, visam sobretudo o controlo da exacta cobrança, a correta fiscalização da aplicação do imposto e a prevenção da fraude e da evasão fiscal, afirmando ainda, de forma reiterada, que os Estados-membros não podem negar o direito a dedução pelo simples facto de uma fatura não satisfazer os requisitos formais exigidos pela DIVA, na condição de que, não obstante a existência de «vícios formais», a fatura permita assegurar a exata cobrança do imposto nela liquidado e permita também a respetiva fiscalização pelas autoridades fiscais competentes. Como salientou em vários acórdãos, constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA, tal como resulta da disciplina comunitária, o direito dos sujeitos passivos a deduzirem o IVA devido ou já pago, em bens e serviços adquiridos, do IVA de que eles sejam devedores por liquidação nas suas operações ativas. A exceção deve recair apenas nos casos em que, o não cumprimento dos requisitos formais, na obrigação de faturação, impeça, de forma efetiva, a produção de prova conclusiva de que os requisitos substanciais se encontram satisfeitos.

Esta orientação da jurisprudência comunitária começa a ser recorrente na matéria, conforme podemos constatar, por exemplo, nos acórdãos: Pannon Gép Centrum, proc. C-368/09, de 15/07/2010 n.ºs 43 a 45; Petroma Transports e o., proc. C-271/12 de 08/05/2013; Barlis, proc. C-516/16, de 15/09/2016; Senatex GmbH, proc. C-518/14, de 15/09/2016; Volkswagen, proc. C-533/18, de 21/03/2018; Biosafe, proc. C-8/17, de 12/04/2018”.

Esta posição é também adotada no já referido acórdão do TCA-Sul proferido no âmbito do processo n.º 910/09.0 BELRS e, ainda no acórdão arbitral proferido em 30.10.2018, no processo n.º 96/2018-T, que sublinha particularmente a posição sufragada pelo TJUE no Acórdão Barlis, quando refere que “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direitocfr. Acórdão Barlis, n.º 42. Defendendo ainda o TJUE no mesmo aresto (§43) que o artigo 178.º, alínea a) da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.º 6 desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos.

Ora, assim, esta jurisprudência será de aplicar também no caso dos autos na medida em que a Requerida, através dos extratos juntos em sede inspetiva, tinha à sua disposição todos os meios para controlar e fiscalizar a liquidação e dedução de imposto, designadamente os números das faturas emitidas pelas concessionárias, o valor desagregado de IVA e preço cobrado, a identificação do adquirente e prestador, entre outros elementos, como ficou provado.

Aliás, essa mesma capacidade de controlo infere-se da já referida aceitação, no decurso do presente processo arbitral, daqueles custos (excluindo IVA) para efeitos de IRC, que resultaram na emissão da liquidação de IRC corrigida.

É que, sobretudo depois da jurisprudência Barlis, não podemos deixar de entender que há um dever de coerência intra-sistemática na relevância fiscal de gastos entre impostos, estando a Autoridade Tributária impedida de adotar um comportamento que seja logicamente incongruente entre o imposto sobre o rendimento e o imposto sobre o valor acrescentado.

Neste caso, a Requerida entende que, por exemplo, os gastos com portagens resumidos pelo extrato com o n.º … (titulados pelas faturas aí referidas) são dedutíveis em IRC no montante de € 545, qualificando-os como gastos efetivamente incorridos e conexos com a atividade, mas já não aceita a dedução em IVA do valor de € 125 referido no mesmo extrato e resultante das mesmas faturas. Por estas razões, numa interpretação da norma resultante dos artigos 19.º, n.º 2 e 36.º, n.º 5 do Código do IVA conforme ao Direito Europeu, também nesta parte se julga procedente o pedido arbitral, e se anulam parcialmente as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios na medida de € 10.935,33 em que foram impugnadas.

Por fim,

  1. Extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, em razão da revogação parcial do ato impugnado.

Como vimos, tendo a AT revogado parcialmente o ato de indeferimento de reclamação impugnado e, nessa medida, parte da liquidação de IRC contestada, que foi substituída por ato de liquidação expurgado da correção revogada, veio a Requerida, na Resposta e nas Alegações, pugnar pela extinção parcial da instância por inutilidade superveniente de lide,

Como referimos na decisão arbitral que tomámos no processo n.º 796/2021-T e da qual não vemos razão para divergir (embora ali estivesse em causa uma extinção total da lide) “a inutilidade superveniente da lide decorre da verificação de um facto, na pendência da instância judicial ou arbitral, mediante a qual a solução do litígio deixa de ter interesse e utilidade, designadamente por ter sido satisfeita, por meios extrajudiciais, a pretensão deduzida pelo autor. […]

Deverá entender-se que ocorrendo a revogação parcial do ato impugnado, e decorrido o prazo de 30 dias a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, já após constituição do tribunal arbitral, se produzirá o mesmo efeito jurídico previsto no artigo 13.º, n.º 2, (ou seja, o processo arbitral manterá o seu curso se o Requerente nada disser) por aplicação subsidiária do artigo 112.º, n.º 3, do CPPT, ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT (não constituindo as liquidações corretivas um novo ato tributário, como se vem decidindo de forma substancialmente uniforme na jurisprudência, tal como resulta, por exemplo, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 01104/13, em 14 de outubro de 2015).[…]

Por outro lado, o artigo 168.º, n.º 3 do CPA determina que a anulação de atos que tenham sido objeto de impugnação jurisdicional, como é o caso, pode ter lugar até ao encerramento da discussão.»”.

Ora, no caso dos autos, este Tribunal Arbitral apenas teve conhecimento da revogação parcial da liquidação de IRC em crise com a notificação do Processo Administrativo, em simultâneo com a Resposta, em 13 de janeiro de 2023. Em tal requerimento, acompanhado de informação da DSIRC sancionada por despacho confirmatório da Subdiretora Geral competente, deu-se nota da revogação parcial dos atos impugnados no presente processo, por considerar a AT que seriam de aceitar os gastos incorridos com portagens titulados pelos extratos emitidos pela Via Verde, sendo também reconhecido o direito da Requerente a juros indemnizatórios.

Assim, tendo a liquidação de IRC sido apenas parcialmente revogada, verifica-se, quanto àquela causa de pedir em concreto, uma integral satisfação da pretensão da Requerente conducente à inutilidade superveniente da lide nessa parte.

Sendo certo que, voltando ao que deixámos saliente na decisão arbitral que adotámos no processo n.º 796/2021-T, “decorre da jurisprudência firmada no Acórdão do STA proferido no processo n.º 01104/13, em 14 de outubro de 2015 [que] «se a AT emitir uma nova demonstração de liquidação na qual, por referência à primeira, se limita a corrigir o cálculo do imposto por não ter levado em conta que o contribuinte tinha efectuado a opção pelo não englobamento dos rendimentos (deixando totalmente intocada a matéria tributável), não está a praticar um acto novo de liquidação tributária, mas apenas a dar expressão quantitativa à correcção do acto praticado», pelo que não devem considerar-se as liquidações corretivas como novos atos para efeitos do artigo 13.º, n.º 3 do RJAT.

Neste caso encontra-se verificada a alegada inutilidade superveniente parcial da lide no que concerne aos pedido de anulação parcial dos atos tributários de indeferimento e liquidação de IRC, no que se refere à causa de pedir assente na violação de lei por falta de aceitação da dedutibilidade dos gastos incorridos com portagens, o que determina a extinção da instância nessa parte, dado que é manifesto que a Requerente obteve a satisfação dessa sua pretensão por via administrativa, tendo-lhe sido inclusivamente reconhecido o direito a juros indemnizatórios.

Nestes termos, acompanhando e subscrevendo também a fundamentação da decisão arbitral proferida no processo n.º 884/2019-T e atendendo à factualidade descrita e ao iter processual observado, entende este Tribunal dever dar-se por verificada a exceção de inutilidade superveniente parcial da lide quanto à parte do pedido de anulação que tinha por causa a violação de lei por falta de aceitação da dedutibilidade dos gastos incorridos com portagens, ao abrigo do artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil, posto que, como aduzem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra: 2008, p. 555, a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou se encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.

Em complemento, e tal como decidimos no processo arbitral n.º 796/2021-T, tendo a revogação parcial dos atos impugnados pela Requerida chegado ao conhecimento do tribunal em data em que o mesmo já se encontrava constituído, decide-se também, para efeitos de definição do valor da causa e de condenação em custas, que o valor original da causa se mantém, sendo contabilizado para efeitos de proporção do decaimento de cada uma das partes e inerente responsabilidade em custas, como em sede própria se decidirá..

Quanto ao pedido subsidiário:

Tendo logrado procedência dois dos pedidos principais e analisada a questão relativamente ao pedido julgado improcedente, não se justifica a analisar o pedido subsidiário de anulação das liquidações por falta de fundamentação relativamente aos pedidos procedentes.

 

IV.DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  1. Declara-se parcialmente extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto à correção de IRC revogada pela Requerida;
  2. Julga-se improcedente o pedido arbitral no que concerne à anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa proferido no âmbito do procedimento n.º … pelo Diretor de Finanças de …, no que concerne à tributação autónoma de despesas não documentadas, no valor de € 8.017,50, constante da liquidação adicional de IRC n.º 2022 …, que corrigiu/substituiu a liquidação n.º 2021 …, relativas ao exercício de 2018, que devem nesta parte manter-se na ordem jurídica;
  3. Anula-se parcialmente o mesmo ato de indeferimento de reclamação graciosa e a referida liquidação adicional de IRC, bem como as liquidações de juros compensatórios e demonstrações de acertos de contas com ela conexas e em causa nos autos, sendo anulado o valor de IRC correspondente à correção de € 4.934,15, relativa à dedução, em sede de IRC, do IVA suportado na aquisição de combustível em França e Espanha, que aqui se anula;
  4. Anulam-se parcialmente, na exata medida do pedido arbitral, ou seja, no valor global de € 11.887,32 as liquidações adicionais de IVA identificadas pelos n.os …, período 1801M, …, período 1802M; …, período 1804M; …, período 1806M; …, período 1807M; …, período 1808M; …, período 1809M; …, período 1810M; …, período 1811M; …, período 1812M, seus atos consequentes e correspondentes demonstrações de liquidação de juros compensatórios;
  5. Condena-se a Requerida a reembolsar a Requerente dos valores de IRC e IVA pagos em excesso e agora anulados, acrescidos de juros indemnizatórios à taxa legal, nos termos e para os efeitos do artigo 43.º da LGT.

V.VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 33.047,95nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. 

 

VI.CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € € 1836 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, que se considera ter decaído em 25%, e pela Requerida, que se considera ter decaído em 75%, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

Notifique-se.

Lisboa, 26 de maio de 2023

 

O Árbitro,

 


(João Taborda da Gama)



[1] O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina (Coimbra, 2019), pp. 340 e ss.