Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 693/2022-T
Data da decisão: 2023-05-17  IRS  
Valor do pedido: € 376.045,21
Tema: IRS – Mais-valias; Valor de aquisição; Ações ao portador imóveis; artigo 64.º do Código do IRC; artigo 12.º, n.º 1 do Código do IMT.
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Sumário:

I - A compra e venda de ações ao portador não configura um contrato real quoad effectum, sendo antes um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, por a lei exigir para a respetiva transmissão a tradição dos mesmos entre as partes do negócio jurídico.

II - A transmissão de ações ao portador considera-se perfeita se se verificar a existência de um negócio jurídico subjacente à transmissão e, cumulativamente, a entrega física dos títulos pelo transmitente ao seu adquirente.

II - Tendo o sujeito passivo doado a um familiar as ações ao portador, de que era titular, em 3 de outubro de 2016, que foram revertidas a seu favor em 14 de dezembro de 2016 e alienado as mesmas ações a uma terceira entidade em 4 de março de 2017, a data de aquisição a considerar, para efeitos do disposto no artigo 45.º, n.º 1, do CIRS, é determinada por referência ao momento em que foram revertidas as ações.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. Relatório

A… e B…, com os números de identificação fiscal … e …, respetivamente, residentes na Rua … 1250-091 Lisboa, (“Requerentes”), na sequência da formação da presunção do indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada, vieram deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

  1. Constituição do Tribunal Arbitral

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e notificado à Requerida no dia 30 de janeiro de 2023.

Pelo Conselho Deontológico do CAAD foram designados os árbitros signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 30 de janeiro de 2023, nos termos dos números 2, alínea a), e 3 do artigo 6.º do RJAT, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e nos termos legalmente previstos.

  1. História Processual

Os Requerentes pretendem que seja anulado o indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada e seja declarada a ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) referente ao ano de 2017, emitida com o n.º 2021…, e de juros compensatórios, das quais resultou o montante total a pagar de € 376.045,21, tendo este valor sido integralmente pago pelos Requerentes a 23 de dezembro de 2021.

Como fundamento da sua pretensão, os Requerentes invocam, sumariamente, que a liquidação em crise é ilegal, considerando que (i) não se verificou, por parte da Requerente B…, qualquer vontade ou qualquer animus donandi de transmitir gratuitamente à sua filha as suas 100.000 ações; (ii) no período em que surgem registadas as suas ações em nome de sua filha, C… (“C…”), não se verificou o empobrecimento do seu património; (iii) não se verificou, em qualquer momento, a transmissão física dos títulos representativos das ações, (iv) os referidos títulos físicos das ações nunca foram exibidos ao TOC, Sr. D… ; (v) a Requerente B… agiu unicamente com a vontade de evitar que fosse discutido na Assembleia Geral (“AG”) do dia 27 de outubro de 2016 a sua exclusão como acionista da sociedade E…, Sociedade Gestora De Participações Sociais, S.A. (“E… SGPS”). Com efeito, concluem os Requerentes que nunca se verificou qualquer transmissão das referidas ações, pelo que tais ações estiveram na posse e na titularidade da Requerente B…, ininterruptamente, desde o momento em que foram inicialmente adquiridas, em 5 de julho de 1996, até à sua venda, em 4 de março de 2017. Em conformidade, entendem os Requerentes que a data de aquisição a considerar, para efeitos do apuramento da mais-valia, deverá ser o dia 5 de julho de 1996 e o seu valor de aquisição deverá corresponder a € 1.324.681,04, devendo ser apurada uma menos-valia, no montante de € 268,37, decorrente da sua venda.

A 30 de janeiro de 2023 foi proferido despacho tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da AT para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, querendo, solicitar produção de prova adicional.

A Requerida respondeu, alegando, em síntese, que a transmissão da titularidade das 100.000 ações pela Requerente B… à sua filha C… operou por meio de uma transmissão gratuita, acompanhada da entrega dos respetivos títulos, encontrando-se preenchidos os pressupostos para a verificação da perfeição da transmissão das ações ao portador. Assim, considera a Requerida que a Requerente B… doou à sua filha C…, as ditas ações, a partir de 3 de outubro de 2016, e esta última voltou a doá-las à sua mãe, a partir de 14 dezembro de 2016. Para sustentar a tese por si defendida, a Requerida alega, sucintamente, que (i) a filha da Requerente B… compareceu na AG da sociedade E… SGPS, de 27 de outubro de 2016, na qualidade de acionista, cujos títulos estavam registados em seu nome no Livro de registos de ações, tendo nessa qualidade intervindo e votando os pontos submetidos a deliberação; (ii) com a transmissão gratuita das ações existiu um enriquecimento do património da filha à custa do património da sua mãe, a Requerente B…, uma vez que esta ao deixar de ser acionista para passar a sê-lo a sua filha teve como consequência que as 100.000 ações de que a mãe era titular/proprietária no capital social da referida sociedade, passaram para a esfera da sua filha C…; (iii) após a propriedade/titularidade das ações ter sido transmitida para a filha da Requerente B…, os dividendos pagos pela sociedade E… SGPS passaram a ser pagos à nova acionista, filha da Requerente B… e beneficiária da doação da referidas ações; (iv) independentemente da intenção da transmissão das ações ter sido, por mera hipótese, a abolição do ponto 5. da ordem de trabalhos da AG, os atos realizados configuram uma transmissão perfeita, integrando um negócio subjacente à mesma e a entrega efetiva dos títulos à adquirente. Face às evidências apuradas no procedimento inspetivo, a Requerida concluiu que o valor de aquisição a considerar deve ser o de € 819.000,00, sendo a data de 14 dezembro de 2016 que determina o valor de aquisição para os efeitos do apuramento da mais ou menos-valia em causa.

A 28 de março de 2023, teve no lugar na sede do CAAD, reunião do Tribunal Arbitral constituído para a inquirição de testemunhas por videoconferência, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, do RJAT. Na referida reunião foram prestadas declarações de parte, por parte da Requerente B…, e foram ouvidas as testemunhas arroladas pelos Requerentes, D…, F…, G…, H…, C…, I… e J…, tendo sido lavrada respetiva ata da reunião.

  1. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Questão a decidir

A principal questão a apreciar e a decidir, prende-se com saber qual o valor de aquisição relevante a considerar para efeitos de apuramento das mais-valias tributáveis de IRS em resultado da alienação, em 4 de março de 2017, de 100.000 ações ao portador e representativas do capital social da sociedade E… SGPS pela Requerente B… à sociedade K… – Unipessoal, Lda.

  1. Matéria de Facto
  1.  Matéria de Facto Provada

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  1. Em 5 de julho de 1996, constava no Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS que a Requerente B… era titular/proprietário de 100.000 ações ao portador da referida Sociedade, com o valor nominal total de €500.000,00;
  2. Em 3 de outubro de 2016, constava no Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS que a filha da Requerente B… era titular/proprietário das 100.000 ações ao portador referidas no ponto anterior, com o valor nominal total de €500.000,00;
  3. Em 27 de outubro de 2016, realizou-se a AG da sociedade E… SGPS, tendo sido lavrada a respetiva ata por ato notarial;
  4. A Requerente B… interveio na referida AG na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da sociedade E… SGPS;
  5. A filha da Requerente B… interveio na referida AG na qualidade de acionista da sociedade E… SGPS, titular de 100.000 ações;
  6. Do Ponto 5. da ordem de trabalhos da referida AG constava «Deliberar a propositura de ação de exclusão judicial da Dra. B… de sócia da E… – SGPS, S.A., designadamente sobre a contrapartida a pagar pela exclusão de sócia da E…-SGPS, S.A., que deverá corresponder a uma participação social direta nas sociedades participadas, equivalente à participação que detém na E…-SGPS, S.A.»;
  7. Na referida AG, o Presidente da Mesa da AG afirmou que a Requerente B… informou que as suas 100.000 ações passaram para a sua filha C… e entregou à Mesa o livro de registo de ações, tendo, nessa qualidade, verificado que lhe correspondem os registos 89 e 90, de 3 de outubro de 2016;
  8. A filha da Requerente B… afirmou naquela AG «que estando-se no âmbito de uma sociedade anónima e não de uma sociedade por quotas, as ações foram transmitidas não interessa de que forma foram, pelo que a aferição da sua legitimidade compete só à Dr.ª B…, e não sendo já acionista desde 03/10, fica sem objeto o ponto 5 da ordem de trabalhos»;
  9. O Presidente da Mesa disse na aludida AG que «Não tem esta Mesa capacidade para aferir da legitimidade/legalidade do contrato subjacente à transmissão das ações da Dr.ª B… à Dr.ª C…; ademais, a Mesa não conhece sequer o teor de tal contrato. São factos: as ações são ao portador, as ações estão registadas no livro de registo de ações da sociedade desde 03/10/2016; não chegou qualquer pedido de esclarecimento ou a solicitação ou a arguição de qualquer vicio ou irregularidade, pelo que, resumindo, são estes os factos que se apresentam para a presente decisão. Conjugando a factualidade com o teor do ponto 5 da ordem de trabalhos, temos desde logo que fazer ressaltar que a Dr.ª B… à data da assembleia geral não é acionista.»;
  10. Em 14 de Dezembro de 2016, constava no Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS que as 100.000 ações ao portador referidas, com o valor nominal total de €500.000,00, foram revertidas a favor da Requerente B…;
  11. Em 4 de março de 2017, a Requerente B… alienou as 100.000 ações ao portador, representativas do capital social da sociedade E… SGPS, à sociedade K… – Unipessoal, Lda.;
  12. Em 9 de julho de 2018, os Requerentes entregaram a sua declaração anual do IRS, por referência aos rendimentos obtidos em 2017, tendo declarado no Anexo G1 a alienação onerosa de partes sociais ou outros valores mobiliários do seguinte modo:
  • Data de Aquisição: julho de 1996
  • Valor de Aquisição: € 1.324.677,50
  • Data de Realização: março de 2017
  • Valor de Realização: € 2.000.009,99
  1. A entrega da declaração referida no ponto anterior originou a liquidação n.º 2018…, com data de 12 de julho de 2018, com o valor a reembolsar aos Requerentes de € 1.137,23;
  2. A Requerida instaurou uma ação inspetiva, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2019…, de âmbito parcial, por referência ao ano de 2017;
  3. No âmbito da referida ação inspetiva e face à factualidade apurada, concluiu a AT no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), em síntese, que a Requerente B… doou à sua filha C…, as 100.000 ações na sociedade E… SGPS, a partir de 3 de outubro de 2016, e esta última voltou a doá-las à sua mãe, a Requerente B…, a partir de 14 dezembro de 2016, mediante a sua transmissão com as demais consequências fiscais;
  4. A Requerida procedeu à correção do valor de aquisição das participações, alienadas pela Requerente B…, para € 819.000,00, tendo considerado a data de 14 dezembro de 2016 a data de aquisição relevante para efeitos de determinação do valor de aquisição para o apuramento da mais ou menos-valia em causa;
  5. Os Requerentes foram notificados da liquidação adicional de IRS, emitida com o n.º 2021… e de juros compensatórios, com o valor a pagar de € 376.045,21, referentes ao ano de 2017;
  6. Em 22 de abril de 2022, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra a referida liquidação.
  1.  Factos Não Provados

Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

  1. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.

Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental, testemunhal e de parte junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.

  1. Direito

O pedido de pronúncia arbitral a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa e do ato de liquidação de IRS, previamente melhor identificado, atinente ao período de 2017.

Para tanto, os Requerente invocam, sumariamente, que não se verificou, por parte da Requerente B…, em qualquer momento, qualquer transmissão das suas 100.000 ações na sociedade E… SGPS para a sua filha C…, porquanto, entre outras razões, não se verificou existir, por parte daquela, qualquer vontade de transmitir gratuitamente à sua filha as referidas ações e que os atos praticados pela Requerente B… tiveram como único objetivo o de evitar que fosse discutido na AG da sociedade E… SGPS a sua exclusão como acionista da sociedade.

Deste modo, entendem os Requerentes que tais ações estiveram na posse e na titularidade da Requerente B…, ininterruptamente, desde que as adquiriu (i.e., desde 5 de julho de 1996) até à sua venda (i.e., em 4 de março de 2017) e, com efeito, a data de aquisição a considerar, para efeitos do apuramento da mais-valia, deverá ser o dia 5 de julho de 1996 e o seu valor de aquisição deverá corresponder a € 1.324.681,04, com as demais consequências fiscais.

Assim, a pretensão dos Requerentes traduz-se, em síntese, na declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRS e de juros compensatórios em causa e, bem assim, do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 22 de abril de 2022 pelos Requerentes, bem como a ordenação do reembolso da quantia paga e o reconhecimento do direito aos juros indemnizatórios a favor dos Requerentes, calculados desde a data do pagamento até à emissão da respetiva nota de crédito.

Por seu turno, a AT, ora Requerida, impugnando os factos controvertidos, vem argumentar, sumariamente, que a transmissão da titularidade das 100.000 ações pela Requerente B… à sua filha C… operou por meio de uma transmissão gratuita, acompanhada da entrega dos respetivos títulos, encontrando-se preenchidos os pressupostos para a verificação da perfeição da transmissão das ações ao portador.

Assim, considera a Requerida que a Requerente B… doou à sua filha C…, as ditas ações, a partir de 3 de outubro de 2016, e esta última voltou a doá-las à sua mãe, a partir de 14 de dezembro de 2016, pelo que deverá a data de 14 dezembro de 2016 considerar-se a data relevante que determina o valor de aquisição, a que corresponde o montante de € 819.000,00, para os efeitos do apuramento da mais ou menos-valia em causa.

Neste sentido, entende a ora Requerida que deve improceder o pedido de pronúncia arbitral apresentado pelos Requerentes por falta de respaldo legal, devendo manter-se a liquidação de IRS posta em crise.

Assim, cumpre apreciar a questão controvertida que se traduz, no essencial, em determinar, face à factualidade provada exposta supra, qual o valor de aquisição relevante a considerar para efeitos de apuramento das mais-valias tributáveis de IRS em resultado da alienação, em 4 de março de 2017, das 100.000 ações ao portador e representativas do capital social da sociedade E… SGPS, por parte da Requerente B… à sociedade K… – Unipessoal, Lda.

Vejamos:

A título preliminar, importa atender à regra geral ínsita no artigo 408.º, n.º 1, do Código Civil (“CC”), a qual estabelece que a propriedade transfere-se / adquire-se como efeito imediato do negócio jurídico.

Contudo, a referida regra da eficácia real dos contratos, admite exceções.

Uma das exceções à referida regra da eficácia real dos contratos é a norma prevista no artigo 101.º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliário (“CMV”), na redação em vigor à data dos factos, a qual estabelecia que os valores mobiliários titulados ao portador transmitem-se por entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado.

Assim, o artigo 101.º, n.º 1, do CVM, enquanto lei especial, estabelece uma exceção à regra geral prevista no artigo 408.º, n.º 1, do CC, porquanto aquela norma exige para a transmissão da propriedade, no caso de ações ao portador, para além do negócio jurídico subjacente ao referido ato, a entrega física dos próprios títulos pelo transmitente ao seu adquirente.

Neste sentido, a compra e venda de ações ao portador não configura, assim, um contrato real quoad effectum, sendo antes um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, por a lei exigir para a respetiva transmissão a tradição dos mesmos entre as partes do negócio jurídico.

A este respeito, importa atender às decisões proferidas pelos tribunais nacionais superiores, em particular ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”), Processo n.º 08B153, de 15-05-2008, quando aí se refere que «A transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista, só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais); mas estes actos – que integram e traduzem o modo – não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.», significando que «a propriedade sobre as acções – independentemente da sua forma de representação ou da modalidade que revestem – não se transmite por mero efeito do contrato, antes se concretiza por força do contrato e do modo.» [sublinhado nosso]

No Acórdão citado, o Tribunal concluiu que «A compra e venda de acções não é, assim, um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.» [sublinhado nosso]

Neste mesmo sentido, atente-se ao teor do Acórdão do STJ, Processo n.º 5470/09.9TVLSB.L1.S1, de 19-01-2017 e do Acórdão do STJ Processo n.º 07A379, de 13-03-2007.

Neste contexto, a jurisprudência dos tribunais nacionais superiores tem vindo a impor de forma consistente o entendimento, segundo o qual a transmissão das ações ao portador só se considera perfeita com a respetiva entrega, não sendo, só por si, bastante para operar a transmissão, exigindo-se que a sua transmissão se apoie num negócio jurídico subjacente.

No que se refere ao entendimento que tem vindo a ser sufragado pela doutrina, também tem sido maioritariamente adotada a posição que, nos casos das ações ao portador, a propriedade sobre as mesmas não se transmite por mero efeito do contrato, exigindo, além da natural existência de acordo entre as partes, a necessidade da sua entrega. A este respeito, vejam-se, a título de exemplo, as posições de Coutinho de Abreu em Curso de Direito Comercial, Vol. II, Das sociedades, Coimbra, Almedina, 2002, e Vera Eiró em A Transmissão de Valores Mobiliários, As Acções em Especial, THEMIS, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano VI, n.º 11, 2005.

Em suma, a transmissão de ações ao portador só se considera perfeita se se verificar a existência de um negócio jurídico subjacente à transmissão (o meio) e, cumulativamente, a entrega das ações ao seu adquirente (o modo).

Em conformidade com o exposto supra, o adquirente que não receba as ações ao portador, no âmbito de um negócio jurídico, não poderá qualificar-se como titular das mesmas, não detendo um direito de propriedade sobre aquelas participações socias.

Ora, voltando à análise do caso sub judice, e conforme consta dos factos dados como provados, em 5 de julho de 1996, a Requerente B… era titular/proprietário de 100.000 ações ao portador da referida sociedade, com o valor nominal total de € 500.000,00.

Por seu turno, em 3 de outubro de 2016, as referidas ações já não eram da sua titularidade, mas antes de sua filha C…, conforme consta no Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS.

Por fim, em 14 de dezembro de 2016, as 100.000 ações ao portador foram revertidas para a esfera da Requerente B….

Assim, resulta claro da prova carreada para o processo, em particular do Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS, que as 100.000 ações ao portador foram transmitidas pela Requerente B… para a esfera da sua filha C… e, subsequentemente, revertidas para a esfera Requerente B….

Não tendo a referida transmissão assentado num negócio jurídico oneroso, então é forçoso concluir que a transmissão das aludidas participações sociais operou por via de doação pela Requerente B… à sua filha C….

Nos termos do artigo 940.º, n.º 1, do CC, «Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente».

Por outro lado, e face ao disposto no artigo 945.º do CC verifica-se que a doação é um negócio jurídico bilateral, que pressupõe duas vontades negociais, a “proposta de doação” e a “aceitação”, caducando a primeira se a segunda não ocorrer em vida do doador.

Ora, a declaração negocial pode ser expressa ou tácita, nos termos do artigo 217.º do CC, deduzindo-se esta de factos que, com toda a probabilidade, a revelam. Assim, como a generalidade das declarações negociais, a aceitação das liberalidades também pode ser manifestada tacitamente.

Neste âmbito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Processo n.º 9226/2007-6, de 25-09-2008, salienta que «Mesmo não se provando aceitação expressa da liberalidade pelo donatário, pode a aceitação da doação resultar de factos concludentes no sentido de que houve aceitação tácita, ou seja, dos quais se deduza, com toda a probabilidade, a vontade do donatário de aceitação da doação proposta.» [sublinhado nosso]

Ademais, refira-se que, conforme estabelece o artigo 947.º, n.º 2, do CC, «A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada».

Neste contexto, e conforme decorre dos factos provados, a Requerente B… transmitiu para a sua filha C… a titularidade das 100.000 ações em apreço, tendo a sua transmissão sido acompanhada da entrega dos títulos ao portador em papel que estavam na sua posse, conforme espelha o Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS.

Ora, não tendo a transmissão das ações sido indevidamente registada no referido livro, então a transmissão daquelas participações sociais para a esfera da filha da Requerente B…, tiveram, necessariamente, um negócio jurídico subjacente.

Acresce que C…, filha da Requerente B…, interveio na referida AG de 27 de outubro de 2016, na qualidade de acionista da sociedade E… SGPS, o que apenas poderia ocorrer se a Requerente B… tivesse transmitido a propriedade sobre as referidas 100.000 ações, conforme consta dos registos n.º 89 e 90 do Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS.

Em conformidade com a documentação junta ao presente processo resulta indubitável que a transmissão da titularidade das aludidas ações operou por via de uma doação não reduzida a escrito, entre a Requerente B… e a sua filha C…, resultando no forçoso empobrecimento do património da primeira e o consequente enriquecimento desta última, acompanhada da sua tradição, tendo a sua titularidade sido revertida, posteriormente, para a esfera da Requerente B….

Ademais, o facto de ter ocorrido a entrega dos títulos em papel, conforme se infere pelo Livro de Registo de Ações da sociedade E… SGPS, faz pressupor, desse modo, uma correspondência clara entre o animus donandi da Requerente B…. e a materialidade consistente na transferência da titularidade das 100.00 ações para a esfera da sua filha C….

Os Requerentes não invocam qualquer falta, erro ou vício da vontade suscetível de abalar a validade da doação das 100.000 ações para a sua filha C…, não havendo, também por esta via, qualquer motivo para pôr em causa a transmissão das aludidas ações.

O facto de a Requerente B… não ter recebido os dividendos relativos aos meses de outubro, novembro e dezembro de 2016, como alega, também não contende em nada com a referida transmissão das ações, porquanto os dividendos pagos pela sociedade E… SGPS passaram, como não podia deixar de ser, a ser pagos à filha C… (e não à Requerente B…) titular do direito ao recebimento dos mesmos, em virtude da sua qualidade de acionista na referida entidade durante aquele período.

Também as motivações de facto, invocadas pelos Requerentes, que levaram à transmissão das ações, apesar de não se colocarem aqui em causa, não relevam e não afastam as consequentes implicações legais, em particular no plano fiscal, decorrentes da referida operação.

Consequentemente, e corroborando a argumentação apresentada pela Requerida, entende-se que é forçoso concluir que ocorreu a transmissão perfeita da titularidade / propriedade sobre as 100.000 ações da Requerente B… para a sua filha C… e, posteriormente, a sua reversão para a esfera da Requerente B…, não podendo deixar de surtir os demais efeitos previstos na lei.

Não merece, assim, reparo a conclusão a que chegou a Requerida ao considerar, para os efeitos do apuramento da mais ou menos-valia em causa, o valor de aquisição das 100.000 ações ao portador e representativas do capital social da sociedade E… SGPS de € 819.000,00, determinado por referência à data em que a titularidade das referidas participações foram revertidas para a esfera da Requerente B…, em 14 dezembro de 2016.

Em conclusão, deve improceder integralmente o pedido de pronuncia arbitral apresentado pelos Requerentes para anulação do indeferimento tácito da Reclamação Graciosa apresentada, mantendo-se, assim, na ordem jurídica a liquidação de IRS posta em crise.

Por fim, refira-se que os Requerentes peticionaram ainda juros indemnizatórios.

A esse respeito, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT determina que «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

No presente caso, e conforme decidido, verifica-se que os Requerentes não foram onerados com imposto pago indevidamente. Nessa medida, entende-se que não serão devidos juros indemnizatórios aos Requerentes. 

  1. Decisão

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:

  1. Julgar totalmente improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica as liquidações de IRS e de juros compensatórios impugnadas e, bem assim, o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada;
  2. Julgar totalmente improcedente o pedido de reembolso do montante de imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios;
  3. Absolver a Requerida dos pedidos formulados pelos Requerentes, com todas as consequências legais; 
  1. Valor do Processo

Fixa-se ao processo o valor de € 376.045,21, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

  1. Custas

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 6.426,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, ficando o referido montante, na íntegra, a cargo dos Requerentes.

Notifique-se.

Lisboa, 17 de maio de 2023

Os Árbitros,

 

Carlos Fernandes Cadilha – Árbitro Presidente

 

Rita Guerra Alves – Árbitro Adjunto

 

Sérgio Santos Pereira– Árbitro Adjunto