Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 31/2023-T
Data da decisão: 2023-05-29   Outros 
Valor do pedido: € 3.234.409,52
Tema: Contribuição financeira. Âmbito da jurisdição arbitral. Competência dos tribunais arbitrais. Falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Versão em PDF

 

Decisão Arbitral

 

            Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Miguel Patrício e Dr. Alberto Amorim Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 21-03-2023, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

           

A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida..., ..., ...-... Lisboa, de ora em diante designada por Requerente, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), pretendendo a anulação do  acto de liquidação de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (“ISP”) e de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) n.º..., referente ao mês de Maio de 2018, na parte relativa à CSR e ao valor de € 3.234.409,53.

A Requerente pede ainda a restituição daquele valor acrescido de juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 16-01-2023.

Os Árbitros designados pelo Conselho Deontológico do CAAD aceitaram as designações.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 03-03-2023.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 21-03-2023.

A AT apresentou resposta em que suscitou as excepções da incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria, da ilegitimidade da Requerente e da caducidade do direito de acção e defendeu que deve julgar-se improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 28-04-2023 foi decidido dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações, com possibilidade de a Requerente responder às excepções.

A Requerente pronunciou-se sobre as excepções.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

Importa apreciar previamente as excepções suscitadas, começando pela de incompetência, de harmonia com o disposto no artigo 13.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

 

            2. Matéria de facto

 

a) Foram emitidas à Requerente pela Autoridade Tributária e Aduaneira as liquidações que se indicam no documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, relativas a Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos e Contribuição de Serviço Rodoviário;

b) A Requerente pagou as quantias indicadas nas liquidações referidas (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

c) Em 20-06-2022, a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa faz liquidações referidas, nas partes respeitantes à CSR (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

d) A Requerente não foi notificada de decisão do pedido de revisão oficiosa até 13-01-2023, data em que apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.1. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto 

 

Não há factos relevantes a decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto.

 

3. Questão da competência do Tribunal Arbitral

 

O Sujeito Passivo requereu a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), pretendendo a anulação do  acto de liquidação de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (“ISP”) e de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) n.º ..., referente ao mês de Maio de 2018, na parte relativa à CSR e ao valor de € 3.234.409,53.

A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) foi criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, visando financiar a rede rodoviária nacional, tendo-se mantido em vigor até ao presente, com alterações introduzidas pelas Lei n.ºs 67-A/2007, de 31 de Dezembro, 64-A/2008,  de 31 de Dezembro, 64-B/2011, de 30 de Dezembro, 66-B/2012, de 31 de Dezembro, 83-C/2013, de 31 de Dezembro, 82-B/2014, de 31 de Dezembro, 7-A/2016, de 30 de Março, e 24-E/2022, de 30 de Dezembro.

 

 

3.1. Posições das Partes

 

A AT suscita esta questão de incompetência por entender, em suma, o seguinte:

– a CSR é qualificada como contribuição financeira e não como imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição;

– quanto à natureza jurídica da CSR, não se suscitam dúvidas que a mesma constitui uma contribuição financeira, distinguindo-se, assim, do imposto;

– de acordo com o disposto no artigo 1.º e no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, a CSR foi criada com o objetivo de financiar a rede rodoviária nacional, a cargo da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. (doravante IP), nos termos do Contrato de Concessão Geral da rede rodoviária nacional celebrado com o Estado, e “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”;

– existindo um vínculo entre o destino dado às receitas da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, a rede rodoviária nacional a cargo da IP é financiada pelos seus utilizadores (princípio do utilizador-pagador), e apenas subsidiariamente pelo Estado, cf. artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, constituindo receita própria da IP.

– a CSR representa, assim, uma contraprestação/contrapartida pela utilização dos serviços prestados pela IP aos utentes/utilizadores das vias rodoviárias, em nome do Estado, por força das bases da referida concessão, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro;

– para além disso,  a Requerente vem suscitar uma questão que se prende com a natureza e conformidade jurídico-constitucional do regime jurídico da CSR, plasmado na Lei n.º 55/2007 (e artigo 204.º da Lei n.º 7-A/2016 – Lei do OE para 2016), e, concomitantemente, na restante legislação, incluindo o Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13/11, e Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29/05, todos na redação aplicável à data dos factos;

– pelo que, pretendendo a Requerente, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visa, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos;

– considerando o teor do pedido e sua fundamentação, o mesmo extravasa o âmbito da Ação Arbitral prevista no RJAT, e em concreto do artigo 2.º, o qual não consente o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, que, conforme decorre da restrição do perímetro desta forma processual à mera ilegalidade face a atos de liquidação de impostos, determina a exclusão do âmbito da jurisdição arbitral a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa.

 

A Requerente respondeu à excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, dizendo o seguinte, em suma:

 

– o artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”) a competência dos tribunais arbitrais abrange a declaração da ilegalidade da liquidação de quaisquer tributos, razão pela qual a qualificação da CSR como contribuição financeira não poderá determinar a incompetência do tribunal, mas apenas a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

– como tem sido reconhecido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, o nomen iuris não vincula o intérprete e aplicador da lei, sendo antes relevante, como é evidente, a análise da natureza, em concreto, do tributo em causa;

– sendo certo que o legislador optou pela designação “Contribuição sobre o Serviço Rodoviário” e a mesma estar estabelecida a favor da EP-Estradas de Portugal, E.P.E. (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6) é o próprio Tribunal de Contas que, na conta geral do Estado, esclarece que “Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105. º e 106. º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento de Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança. Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito passivo activo da respectiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento de Estado de cada ano.”.

– resta, pois, concluir, acompanhando o acórdão proferido no processo n.º 304/2022-T que improcede, em absoluto, a alegada exceção de incompetência material do Tribunal em virtude da natureza do tributo, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais abrange a apreciação das pretensões dos sujeitos passivos referentes a qualquer espécie de tributo, nos termos do art.º 2.º do RJAT e também não se verifica a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais no presente processo, por força do artigo 2.º da Postaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que limita essa vinculação prévia às “pretensões relativas a imposto”.

 

3.2. Apreciação da questão

 

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

     Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção -Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

     Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

     1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

     2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

     3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

            Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[1]

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». [2]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo  que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com  rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as  pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da  Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com  a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica  (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Como bem diz a Requerente e pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [3] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.

 

            4. Questões de conhecimento prejudicado

 

De harmonia com o exposto, é de julgar procedente a excepção de incompetência material deste Tribunal Arbitral por a pretensão da Requerente versar sobre um tributo não incluído na vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

Sendo de julgar procedente a excepção de incompetência suscitada ela Autoridade Tributária e Aduaneira, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo.

 

 

5. Decisão

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

Julgar procedente a excepção da incompetência deste Tribunal Arbitral invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, por falta da vinculação exigida pelo artigo 4.º do RJAT.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º -A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.234.409,52, indicado pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 41.310,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente

 

Lisboa, 29-05-2023

Os Árbitros

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

(Alberto Amorim Pereira)

(vencido conforme declaração anexa)

 

 

VOTO DE VENCIDO

 

Não posso subscrever a posição que fez vencimento, no que diz respeito à questão da incompetência material deste Tribunal Arbitral, pelas razões que passo a expor.

Na posição que fez vencimento, entendeu-se, em síntese, que a pretensão da Requerente versa sobre um tributo não incluído na vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

O artigo 4º do RJAT determina que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

De acordo com a AT, o artigo 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março restringe a vinculação da Autoridade Tributária à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo todos e quaisquer tributos, designadamente a Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR).

Da análise do artigo 2º da referida Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não se verifica qualquer restrição da vinculação da Autoridade Tributária à apreciação de pretensões relativas a impostos.

Pese embora a referida norma se refira a “apreciação das pretensões relativas a impostos”, a verdade é que remete para o artigo 2º nº 1 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT).

Sendo que o número 1 do artigo 2º do RJAT não restringe a competência dos tribunais arbitrais à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de impostos, abrangendo antes a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos no geral, entre os quais entendemos que se incluem as contribuições financeiras.

Ademais, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março previu de forma taxativa as pretensões excluídas da vinculação da Autoridade Tributária, entre as quais não se encontra a análise de pretensões relativas a liquidações de contribuições financeiras.

E, onde a lei não distinguiu, entendo que não pode nem deve o intérprete fazê-lo.

De onde resulta, segundo entendo, que a vinculação da AT aos tribunais arbitrais não se restringe a impostos, abrangendo todos e quaisquer tributos.

Mas, ainda que se aceitasse que a vinculação da AT aos tribunais arbitrais se restringe aos impostos, ainda assim entendo que não se verificaria qualquer incompetência do tribunal arbitral.

Isto porque, é meu entendimento que a CSR constitui um verdadeiro imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, e não uma mera contribuição financeira.

Para determinar a qualificação de um tributo como imposto ou como contribuição impõe-se ao intérprete analisar o conteúdo específico de tal tributo e não apenas a sua denominação.

Como é sabido, o sistema tributário português compreende três categorias de tributos: impostos, taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas - cfr. artigo 165º nº 1 i) da CRP.

Conforme ensina SOARES MARTINÉZ [4] , a relação jurídica de imposto tem carácter obrigacional, tem por fim a realização de uma receita pública e não depende de outros vínculos jurídicos, nem determina para o sujeito ativo respetivo qualquer dever de prestar específico, o que significa que tem carácter unilateral, não bilateral ou sinalagmático.

O imposto consiste ainda numa prestação pecuniária sem carácter sancionatório.

Por seu turno, a taxa tem origem sinalagmática, correspondendo, por parte do sujeito ativo, a um dever de prestar específico. Nas palavras do indicado autor, a taxa “tem por causa a prestação por uma entidade pública de utilidades individualizadas”.

Já quanto à contribuição, explica o indicado autor que as respetivas relações são obrigacionais, o seu fim é a criação de receitas públicas e não dependem de outros vínculos jurídicos nem determinam para o sujeito ativo qualquer dever de prestar específico.

Para ALBERTO XAVIER [5] , os tributos dividem-se em duas grandes categorias: os impostos e as taxas.

O tributo, segundo ensina este autor, “é a prestação patrimonial estabelecida por lei a favor de uma entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, com o fim imediato de obter meios destinados ao seu financiamento.”

São, pois, elementos caracterizadores do tributo (i) a patrimonialidade; (ii) o carácter obrigacional e (iii) a origem legal.

Nas palavras do indicado autor, “a prestação patrimonial em que o imposto consiste é uma prestação unilateral, no sentido de não sinalagmática, pois a obrigação de que resulta não se encontra entrelaçada com qualquer outra obrigação recíproca com o mesmo fundamento a cargo do titular do imposto, que seja a contrapartida da atribuição patrimonial que através dela se obtém.

Isto porque, como explica, “a situação que dá origem ao imposto não gera para o credor qualquer dever específico de efetuar uma contraprestação.”

O imposto diferencia-se da taxa por aquele ser o modo de funcionamento próprio dos serviços públicos indivisíveis e a taxa dos serviços divisíveis, isto é, que proporcionam vantagens ou satisfações individualizadas a quem os utiliza.

A taxa reveste carácter sinalagmático, não unilateral. Aqui, o fundamento do tributo é a prestação da atividade pública, a utilização do domínio e a remoção do limite jurídico e por isso estas realidades e a taxa que lhes corresponde encontram-se entre si ligadas por um nexo sinalagmático, em termos de uma se apresentar como contraprestação da outra.

Já quanto à contribuição financeira, figura afim do imposto e da taxa, defende este autor que esta se verifica em dois casos distintos: naqueles em que é devida uma prestação, em virtude de uma vantagem económica particular resultante do exercício de uma atividade administrativa, por parte de todos aqueles que tal atividade indistintamente beneficia e naqueles em que é devida uma prestação em virtude das coisas possuídas ou da atividade exercida pelos particulares darem origem a uma maior despesa da entidade pública.

Para este autor, a contribuição financeira não tem seguramente a natureza de taxa, mas “nada leva a separá-las da categoria dos impostos”.

Também para NUNO DE SÁ GOMES [6], a distinção entre imposto e contribuição financeira não tem relevância do ponto de vista jurídico. Na verdade, segundo ensina, as contribuições financeiras, “de um ponto de vista jurídico, são verdadeiros impostos”.

Sobre a noção de imposto e sua distinção de figuras próximas, podem ver-se ainda, entre outros, ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, “Princípios de Direito Fiscal”, 1979, nºs 5 e 6; ALBERTO AMORIM PEREIRA, “Noções de Direito Fiscal”, 1981, parte I, Capítulo II, nºs 1 e 2; SOUSA FRANCO, “Direito Financeiro e Finanças Públicas”, Volume II, 1982, capítulo XVI.

Também o Tribunal Constitucional [7] se pronunciou sobre o tema, defendendo que a contribuição financeira tem uma estrutura paracomutativa, dirigida à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários.

Assim, o que determina a qualificação de um tributo como contribuição financeira é o facto de esse tributo ter por finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário ou a elas tenha dado causa. Por outras palavras, para que se possa defender estar perante uma contribuição financeira e não um imposto, é necessário que a prestação pública beneficie ou seja causada pelo respetivo sujeito passivo do tributo.

Não é este, claramente, o caso da CSR.

Por um lado, a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal, sendo esta a entidade titular da correspondente receita. No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da Infraestruturas de Portugal.

Por outro lado, a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa (conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas - artigo 3º nº 2 da Lei nº 55/2007, de 31 de agosto) não é dos sujeitos passivos da CSR (empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários), mas antes dos utilizadores da rede rodoviária nacional concessionada à Infraestruturas de Portugal.

Assim, os beneficiários e os responsáveis pelo financiamento da tarefa da Infraestruturas de Portugal não são os sujeitos passivos da CSR mas antes a população em geral, aqui se incluindo tanto os utilizadores da rede rodoviária nacional concessionada à Infraestruturas de Portugal como os utilizadores de vias rodoviárias não incluídas da rede concessionada.

De onde resulta não existir qualquer nexo de comutatividade coletiva entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da atividade ou entre aqueles e os benefícios retirados de tal atividade.

A qualificação da CSR como um verdadeiro imposto, ainda que de receita consignada, resulta ainda da análise da sua génese. Com efeito, a Lei nº 55/2007, de 31 de agosto criou a CSR por desdobramento do ISP, em relação ao qual é indiscutível a sua qualificação como imposto.

Sendo que tal desdobramento não tem a virtualidade de transformar aquilo que era imposto em mera contribuição financeira. Ao invés, e independentemente da sua nomenclatura, a CSR mantém-se como verdadeiro imposto, como sempre foi, antes do dito desdobramento.

Assim, entendo que a CSR deve ser qualificada como um verdadeiro imposto, pelo que o tribunal arbitral é competente para conhecimento da pretensão deduzida pela Requerente.

  

(Alberto Amorim Pereira)

 

 



[1] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[2] Publicado em https://www.caad.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.

[3] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB. 

[4] “Direito Fiscal”, Almedina, 10ª Edição, pp. 27 e ss.

 

[5]   “Manual de Direito Fiscal”, Volume I, Lisboa 1974, pp. 35 e ss.

[6] “Manual de Direito Fiscal”, Volume I, 1998, Editora Rei dos Livros, página 79.

 

[7]   Acórdão nº 7/2019, de 13MAIO2021, in www.dgsi.pt.