SUMÁRIO
Prevendo a lei um modo especial de reacção contra as ilegalidades do acto de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., S.A., com o número único de matrícula e de identificação fiscal ... e sede em..., freguesia de ..., concelho de Loulé, apresentou, em 22-08-2022, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade da formação de indeferimento tácito de reclamação graciosa relativa aos actos tributários de liquidação do Imposto Municipal sobre os Imóveis - IMI com os n.º 2020..., 2020... e 2020... e do Adicional do Imposto Municipal sobre os Imóveis – AIMI com o n.º 2021..., referentes ao ano de 2020, e subsequente anulação parcial dos mesmos, com a restituição do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-08-2022.
3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 12-10-2022 as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 31-10-2022.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
3.5. Por despacho de 26-10-2022 foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT.
4. Com o pedido de pronúncia arbitral manifesta a Requerente a sua inconformidade com os actos de liquidação de IMI e de AIMI, bem como com o indeferimento tácito da reclamação graciosa que apresentou dos mesmos.
Sustenta, com tal fundamento, em suma:
- As liquidações de IMI e AIMI em causa tiveram por base, para efeitos de determinação do valor tributável e do correspondente montante de IMI e AIMI a pagar pelo Requerente, os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção fixados por aplicação da seguinte fórmula de cálculo: VPT = Vc x (A x %ai + Ac + Ad) x CI x Ca. Fórmula essa que estará em violação das disposições legais aplicáveis à data em que foram emitidos os actos de fixação do VPT em discussão (entre 2013 e 2020).
- Estando em causa “terrenos para construção” o VPT deverá ser determinado por avaliação directa nos estritos termos definidos no Código do IMI.
- A fórmula de determinação do VPT prevista no arigo 38º do Código do IMI apenas tem aplicação relativamente aos prédios urbanos nessa norma taxativamente discriminados, ou seja, àqueles que já se encontrem edificados e se encontrem afectoa a habitação, comércio, indústria ou serviços.
- O conceito de “valor das edificações autorizadas ou previstas” apenas poderá ser preenchido ou determinado com recurso a elementos objectivos que já se encontrem materializados ou que sejam possíveis de determinar, com certeza, através da documentação ao dispor do avaliador.
- Daí que que para a determinação do VPT dos terrenos para construção em causa, contrariamente ao que resulta das liquidações impugnadas, apenas releva (i) a área de implantação do edifício a construir e (ii) o terreno adjacente, sendo aplicáveis os ajustamentos referidos nos n.º 2, 3 e 4 do mesmo artigo, os quais pressupõem, nomeadamente, a aplicação dos elementos essenciais do coeficiente de localização (CI), previsto no artigo 42º do Código do IMI.
- O que significará que a fórmula de apuramento do VPT dos terrenos para construção prevista no artigo 45º do Código do IMI, podia, àquela data, ser ilustrada da seguinte forma. VPT = Vc x (A x %ai + Ac + Ad).
- A consideração dos coeficientes de localização, (CI) e de afectação (Ca) como factores multiplicadores do VPT dos terrenos para construção e a aplicação da majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39º do Código do IMI sobre o valor médio de construção por metro quadrado, não têm sustentação na redacção actual do artigo 45º do Código do IMI, sendo inclusivamente contrárias às regras expressamente previstas nesta norma.
- Consequentemente, as liquidações enfermam de vício de violação da lei, por erro sobre os pressupostos de direito do qual resultou um erro na determinação da matéria tributável que originou uma colecta ilegal dos tributos.
- Acresce que o facto de a Requerente não ter lançado mão do meio de reacção que, numa primeira linha, lhe teria permitido contestar os actos de fixação dos VPT dos imóveis aqui em causa (i.e., o procedimento de segunda avaliação previsto no artigo 76º do Código do IMI), não constitui impedimento a que venha, através do presente meio, contestar actos de liquidação subsequentes que se basearam em tais VPT ilegais.
- Por não se conformar com o indeferimento tácito do Pedido de Revisão Oficiosa por si formulado e, por conseguinte, com a legalidade dos actos de liquidação de IMI e de AIMI que lhe estão subjacentes, vem suscitar a apreciação da legalidade daquela decisão de indeferimento, tacitamente presumida, e dos próprios actos de liquidação, requerendo a respectiva anulação, e da correspondente restituição do imposto indevidamente pago.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, por impugnação, nos seguintes termos:
- A Requerente pretende a anulação dos actos impugnados com fundamento em vícios, não do acto de liquidação, mas sim dos actos que fixaram o Valor patrimonial Tributário.
- O que está em causa, ou seja, o que a Requerente contesta é, apenas e só, o acto destacável de fixação do VPT e não o acto de liquidação.
- Acontece que os vícios do acto que definiu o valor patrimonial tributário (VPT) não são susceptíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo.
- No que respeita aos prédios urbanos (terrenos para construção) identificados nas linhas 1 a 21, 24 a 39 e 42 a 44, do anexo mapa_prédios_CAAD_494-2022-T, verifica-se que as liquidações de IMI 2020 e AIMI 2021 contestadas, foram apuradas tendo em conta o VPT que constavam das matrizes prediais à data de 31 de dezembro do ano a que respeita o IMI e 1 de Janeiro do ano a que respeita o AIMI.
- No que se refere aos prédios urbanos identificados nas linhas 24 a 30, 37 a 39 e 42 a 44 do anexo mapa_prédios_CAAD_494-2022-T, verifica-se que o procedimento de avaliação que esteve na base das liquidações contestadas, foi instaurado em consequência da modelo 1 de IMI apresentada 2020, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 106.º do CIMI, não tendo as respetivas avaliações considerado os coeficientes de localização e de afetação, em conformidade com o entendimento jurisprudencial em vigor à data das avaliações e ratificado pela Instrução de Serviço n.º .../2021 Série I emitida pela DSJT nos termos do artigo 68.º A da LGT.
- Em relação à liquidação de IMI de 2020 e AIMI 2021, referentes aos prédios urbanos (terrenos para construção) identificados nas linhas 22 e 23 e 40 e 41 do anexo mapa_prédios_CAAD_494-2022-T, foram anuladas por despacho da Subdiretora Geral do Património em 30-09-2022, como consta do PA que juntou.
- Os prédios urbanos identificados nas linhas 24 a 30, 37 a 39 e 42 a 44 do anexo mapa_prédios_CAAD_494-2022-T, já foram objeto de nova avaliação em 2020. Assim, relativamente a estes artigos, as avaliações ora impugnadas cuja fórmula de cálculo é contestada e refletidas nas liquidações de 2020 de IMI e 2021 de AIMI, não consideraram os coeficientes de localização e de afetação, em conformidade com o entendimento jurisprudencial em vigor à data das avaliações e ratificado pela Instrução de Serviço n.º 60 318/2021 Série I emitida pela DSJT nos termos do artigo 68.º A da LGT.
- Pelo que, os atos de fixação de valores patrimoniais em apreço não são passíveis de anulação com fundamento em invalidade, por não estarmos perante uma situação de erro sobre os pressupostos de facto ou de direito que se traduza num vício de violação de lei. devendo ser mantidos na ordem jurídica, assim como as liquidações nesta parte, porque legais.
- No que respeita aos prédios urbanos inscritos sob os artigos ..., ..., ... e ... da Freguesia de..., Concelho de Loulé, também identificados nas linhas 22 e 23 e 40 e 41 do anexo mapa_prédios_CAAD_494-2022-T, as liquidações de IMI 2020 e AIMI 2021 foram anuladas por despacho da Subdiretora Geral do Património em 30-09-2022.
- Nessa medida, a presente impugnação deve ser considerada extinta nas partes indicadas, pois carece de objeto no que se refere às liquidações de IMI 2020 e AIMI de 2021, referente aos imóveis identificados nas linhas 22 e 23 e 40 e 41 por terem sido anuladas e aos imóveis identificados nas linhas 24 a 30, 37 a 39 e 42 a 44 todos do anexo mapa_prédios_CAAD_494-2022-T, pois não sofrem das ilegalidades apontadas.
- O procedimento avaliativo constitui um acto autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral que, se não for impugnado nos termos e prazo fixado, se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado.
- Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela 1.ª avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação, de eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.
- Sobre a impugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do VPT, o Tribunal Arbitral está limitado pelo princípio do pedido, vide n.º 1 do art.º 609.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 29.º do RJAT.
- Constitui jurisprudência assente, quer dos Tribunais judiciais quer dos Tribunais arbitrais, bem como da mais abalizada doutrina, o entendimento que o acto de avaliação do valor patrimonial tributável é um acto destacável, autonomamente impugnável. pelo que os vícios da fixação do VPT, não são sindicáveis na análise da legalidade do acto de liquidação, porquanto os mesmos, sendo destacáveis e antecedentes destes, já́ se consolidaram na ordem jurídica.
- De qualquer forma, revogação e a anulação dos actos administrativos em matéria tributária, estão previstas no artigo 79º da Lei Geral Tributária (LGT), sendo subsidiariamente aplicável o regime previsto nos artigos 165° a 174° do Código de Procedimento Administrativo (CPA), por força do artigo 2.º, alínea c) da LGT.
- Decorre do texto da lei que apenas são passíveis de anulação os atos de fixação dos VPT que contrariam o recente entendimento jurisprudencial nos casos em que não tenha decorrido cinco anos desde a respetiva emissão.
- De tudo o que se aduziu conclui-se que já se encontra precludido o prazo para anulação administrativa do ato que fixe valor patrimonial tributário o qual se encontra sanado e produz efeitos jurídicos, nomeadamente para efeitos de cálculo de IMI e AIMI.
- Finalmente cumpre referir que a atual interpretação da forma de cálculo do VPT dos terrenos para construção já está alinhada com o mais recente entendimento do Supremo Tribunal Administrativo pelo que se afigura prejudicada a controvérsia sobre a aplicação do artigo 38º ou do 45º do Código do IMI na avaliação dos terrenos para construção.
- O Tribunal Arbitral está obrigado a julgar de acordo com o direito constituído, estando impedido de julgar o processo de acordo com critérios da equidade.
- Não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade tributária.
- Por estar a Administração Tributária vinculada ao princípio da legalidade previsto no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e concretizado nos artigos 55.º da Lei Geral Tributária e no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou em vigor no ordenamento jurídico, conforme se verificou no caso em apreço.
- Conclui, pois, a Requerida no sentido de se deverem manter as liquidações de IMI e de AIMI aqui em causa, bem como indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.
6. Tendo a Requerente sido convidada a pronunciar-se relativamente à matéria de excepção constante da resposta, veio dizer:
- Não questiona que tenham sido efectuadas novas avaliações como se alega na resposta, todavia, o que contesta de forma expressa é a aplicação da majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI sobre o valor médio de construção por metro quadrado, o que resultou na utilização de um valor base dos prédios edificados (Vc) manifestamente errado, pelo que as novas avaliações não têm qualquer efeito na correção que é peticionada nos presentes autos e, por conseguinte, não têm qualquer relevância para a decisão do processo, devendo improceder a exceção ora invocada.
- Do mesmo modo, no que concerne à anulação resultante do Despacho proferido em 30 de setembro de 2020, relativamente aos imóveis com os artigos matriciais ..., ..., ... e ..., a Requerente reitera que a questão dos coeficientes de localização e de afetação não foi objeto de contestação relativamente aos referidos imóveis, e pelo que resulta do referido Despacho, a majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI sobre o valor médio de construção por metro quadrado, não foi objeto de qualquer anulação e, por conseguinte, a exceção ora deduzida deve igualmente improceder, devendo prosseguir os presentes autos, conforme peticionado pela Requerente.
- Por último, a Requerente não coloca em causa a natureza de acto destacável que é atribuída aos actos de avaliação de valores patrimoniais, e, por conseguinte, essa questão não é minimamente controvertida e não se compreende o alcance do que pretende a AT; o que está em causa é a possibilidade de a Requerente sindicar os actos de liquidação de IMI e de AIMI, na sequência de indeferimento tácito da reclamação graciosa.
- Independentemente da natureza destacável os actos de avaliação de valores patrimoniais, a verdade é que as liquidações podem sempre ser colocadas em causa por via de qualquer um dos meios de defesa do procedimento tributário. Sendo tal possibilidade aberta relativamente ao pedido de revisão oficiosa, por maioria de razão também deverá ser possível relativamente à apresentação de reclamação graciosa.
7. A Requerente apresentou alegações reiterando o constante dos seus anteriores articulados.
II – SANEAMENTO
8.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
8.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
8.3. O processo não enferma de nulidades.
8.4. A Requerente pronunciou-se relativamente às excepões deduzidas na resposta apresentada pela Requerida.
III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO
- Matéria de facto
A) Importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito.
Nesse enquadramento, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
a) A Requerente, A..., SA, é, no âmbito da sua actividade, proprietária de diversos prédios, incluindo terrenos para construção.
b) A Requerente foi notificada dos seguintes actos tributários de liquidação de AIMI:
- Liquidação de IMI n.º 2020... referente ao ano de 2020;
- Liquidação de IMI n.º 2020..., referente ao ano de 2020;
- Liquidação de IMI n.º 2020..., referente ao ano de 2020;
- Liquidação de AIMI com o n.º 2021... .
c) A Requerente procedeu ao pagamento integral das liquidações supra identificadas.
e) A Requerente apresentou, em 25-01-2022, reclamação graciosa de tais actos tributários.
f) Na data de apresentação do PPA – 22-08-2022 - a Requerente não tinha ainda sido notificada de qualquer decisão no aludido procedimento de reclamação graciosa.
B) Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
Fundamentação da matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida.
- Matéria de Direito
A questão essencial a apreciar no presente pedido arbitral consiste em saber, por um lado, se na avaliação do valor patrimonial dos terrenos para construção se deviam ter em consideração, ou não, os coeficientes de majoração previstos no artigo 39º do CIMI e, por outro lado, se os eventuais erros naquela determinação podem ser impugnados nos actos de liquidação de IMI e de AIMI que nelas assentam.
Comecemos por esta última questão, uma vez que, a proceder a tese da Requerida, ficará prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente.
A Requerida sustenta que a Requerente pretende a anulação dos actos impugnados com fundamento em vícios, não dos actos de liquidação, mas sim dos actos que fixaram o Valor Patrimonial Tributário (VPT) – que considera destacáveis e eles próprios autonomamente atacáveis, não sendo imputado aos actos impugnados qualquer vício específico da operação de liquidação ou do seu procedimento. No seu entendimento, os vícios do acto que definiu o VPT não são susceptíveis de ser impugnados no acto de liquidação que seja praticado com base no mesmo, o que, em última instância, determinaria a incompetência do Tribunal para apreciar a legalidade de actos que procedem à fixação do valor patrimonial.
A Requerente, por sua vez, não coloca em causa a natureza de ato destacável que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais, defendendo, todavia, a possibilidade da Requerente sindicar os atos de liquidação de IMI e de AIMI, na sequência de indeferimento tácito da reclamação graciosa.
Na linha do que a Requerente defende, também já sustentamos em decisões anteriores que pese embora se esteja perante um acto destacável, para o qual está prevista a sua impugnação judicial autónoma, nada obstaria a que tal acto, quando surja como instrumental relativamente a um acto de liquidação, pudesse, também, ser objecto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta.
Era, aliás, o que preconizava o Acórdão do STA de 29-03-2017 – Proc. 0312/15 ao dizer: “O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a esclarecer que a susceptibilidade de impugnação autónoma decorre da lesividade do acto e que caso o contribuinte não tenha contra ele reagido no momento em que ele surgiu e se tornou lesivo pode ainda vir a atacar esse mesmo acto quando ele se insira num procedimento de liquidação e venha a determinar um acto posterior de liquidação. Ou seja, quando se faz, como neste caso, uma inscrição oficiosa na matriz de um bem que o contribuinte entende que não é um prédio e não pode, por isso ser inscrito, como tal na matriz, pode imediatamente impugnar essa inscrição por ela ser, em si mesma, susceptível de vir a determinar a liquidação de um ou vários tributos. Mas, seguidamente, se o bem foi avaliado e lhe foi atribuído um valor, pode impugnar esse acto de avaliação e impugnar o tributo que venha a ser liquidado com base nessa avaliação. Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Novembro de 2013, proferido no rec. n.º 1725/13 – «o acto de inscrição oficiosa na matriz de uma determinada realidade física como prédio reconduz-se a acto imediatamente lesivo dado que provoca uma alteração significativa na esfera jurídica da recorrente, daí a admissibilidade de ser formulado pedido de suspensão da sua eficácia (…),o facto de a imediata lesividade de tal acto permitir, querendo, a sua impugnação autónoma, não obsta a que, não o tendo sido, possa ainda ser sindicado em sede de impugnação da liquidação do tributo». Não há, contrariamente ao indicado na sentença recorrida, qualquer obstáculo processual que impeça que na impugnação do acto de liquidação de IMI se questione a questão prévia relativa à qualificação jurídica do facto tributário dado que a errónea qualificação do facto tributário constitui uma ilegalidade expressamente tipificada na lei - cfr. a alínea a) do artigo 99.º do Código de Processo e Procedimento Tributário»”.
Sucede que veio, todavia, a ser recentemente proferido, sobre esta matéria, pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, em 23-02-2023, no Proc. 0102/22.2BALSB, acórdão uniformizador de jurisprudência que decidiu nos seguintes termos: “deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76º e 77º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria colectável”.
Acrescentando que “… prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação. Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património. Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial. De qualquer forma, quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada. O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida”.
Decorre do exposto que a este tribunal, acatando o decidido no aludido acórdão uniformizador de jurisprudência, não resta outra alternativa que não seja a de, decidindo em conformidade com o mesmo, declarar o presente pedido de pronúncia arbitral como meio impróprio para arguir a ilegalidade do VPT dos imóveis a que respeitam as liquidações impugnadas de IMI e AIMI.
Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado, dele absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira
-
Condenar a Requerente nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 96.867,33 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.754,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 21 de Abril de 2023
Os Árbitros
(Manuel Macaísta Malheiros)
(Vasco Branco Guimarães)
Com declaração de voto
(António A. Franco)
Relator
Declaração de voto do Árbitro
Vasco António Branco Guimarães
Votei favoravelmente o presente Acórdão por entender que não é possível utilizar a reclamação graciosa para reverter o erro sobre os pressupostos de facto e de Direito nas situações em que o Sujeito Passivo não utilizou o mecanismo de recurso da 1.a avaliação do Valor Patrimonial Tributário previsto no artigo 130.º do CIMI.
O efeito do Acórdão Uniformizador em Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, em 23-02-2023, no Proc. 0102/22.2BALSB, esgota-se nessa relação de reapreciação de acto discricionário de natureza técnica. A ausência do Sujeito Passivo no pedido possível de reapreciação técnica não transforma o acto de liquidação efetuado em erro num acto legal.
Pretender atribuir um efeito único, definitivo e impeditivo de reapreciação da liquidação efetuada em erro sobre os pressupostos de facto e de Direito (conforme aceite pela Autoridade Tributária e previsto no artigo 78.º da LGT) já se me afigura como interpretação que viola a Constituição da República no seu artigo 268.º n.º 4.
Este o sentido do nosso voto.
25.04.2023
(Vasco António Branco Guimarães)