SUMÁRIO:
1 – A taxa de tributação aplicável às mais-valias mobiliárias é a que se encontra em vigor no momento da verificação do facto tributário.
2 – O prazo de caducidade de 4 anos do direito à liquidação de mais-valias mobiliárias sujeitas a IRS apenas se conta a partir do termo do ano em que se verificou a facto tributário.
3 – É aplicável à revogação/anulação de actos tributários o regime de prazos previsto quanto à revogação/anulação de actos administrativos.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Vasco Valdez e Alexandra Iglésias, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., com o número de identificação fiscal ..., com residência na Rua ..., ..., ... ...-... Borralha (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“RJAT”), no qual requereu a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) e juros compensatórios n.º 2016..., no montante global de € 250.432,85, referente ao ano de 2012, e da demonstração de acerto de contas com o estorno da liquidação n.º 2014..., no montante de € 134.537,59 €, dos quais resultou o apuramento do saldo a pagar de € 115.895,26, requerendo ainda a condenação do Estado na restituição daqueles valores acrescidos de juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 16 de Agosto de 2022 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 4 de Outubro de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:
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Em 11 de Abril de 2012, quando a Requerente obteve as mais-valias resultantes da alienação de partes sociais ou valores mobiliários (artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRS), a taxa aplicável a estes rendimentos era de 25%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do Código do IRS, na redacção da Lei n.º 64‑B/2011, de 30 de Dezembro, uma vez que era esta a Lei em vigor nesse momento;
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Só após a Requerente ter efectuado as operações que originaram as mais-valias, veio a ser aprovada a Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, que procedeu à alteração do artigo 72.º, n.º 4, do Código do IRS, por força da qual o saldo positivo das mais‑valias passaria a ser tributado à taxa de 26,5%;
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O artigo 7.º. n.º 2, da referida Lei dispôs que as alterações ao artigo 72.º do Código do IRS produzem efeitos desde 1 de Janeiro de 2012;
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Determinando, desta feita, um regime de retroactividade fiscal contrário aos Princípios Gerais de Direito, nos quais se prevê que a lei apenas dispõe para o futuro – artigo 12.º do Código Civil, artigo 12.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (“LGT”) e artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”);
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Tal regime de retroactividade viola também os princípios da segurança jurídica e da confiança pressupostos pelo Estado de Direito e vinculativos para o legislador ordinário português, ex vi dos artigos 1.º e 2.º da CRP;
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Posto que a norma do artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, pudesse passar o crivo da constitucionalidade relativamente aos factos jurídicos de formação contínua, complexa ou sucessiva (impostos periódicos), não pode deixar de claudicar perante a proibição da irretroactividade plasmada no citado artigo 103.º, n.º 3, da CRP, quando, como in casu, se trata de impostos de formação instantânea (impostos de obrigação única);
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O acto de liquidação emitido pela AT aplicou aos rendimentos das mais-valias uma taxa autónoma de 26,5%, pelo que que o mesmo está condenado a soçobrar, pelo menos na parte do excesso decorrente da aplicação dessa taxa à matéria tributável, por se fundar na aplicação de uma norma ferida de inconstitucionalidade material;
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Sem prescindir, a liquidação controvertida enferma também de ilegalidade por caducidade, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 4, da LGT, porque quando a Requerente foi notificada para pagar o IRS e os juros compensatórios, em 21.07.2016, já se tinha esgotado o prazo de caducidade do direito à liquidação;
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As partes sociais de que a Requerente era titular e que estão na origem do acto tributário foram alienadas em 11.04.2012, pelo que a liquidação tinha de ser notificada dentro dos quatro anos seguintes, ou seja, até 12.04.2016;
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Esta conclusão não se altera mesmo que se considere aplicável a suspensão do prazo de caducidade nos termos do artigo 46.º, n.º 1, da LGT por estar em causa um procedimento de inspecção externo;
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Sem prescindir, o acto tributário envolve a prática de um acto revogatório, ou seja, a revogação de um acto válido constitutivo de direitos – rectius a decisão que deferiu parcial e definitivamente a reclamação graciosa deduzida em 03.08.2016 e, consequentemente, anulou o montante de 134.537,59 € – sendo nessa medida ilegal;
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O despacho de deferimento parcial da reclamação graciosa foi proferido em 29.04.2014 e notificado à Requerente pelo ofício n.º ..., de 07.05.2014, pelo que, a sua revogação nos termos da legislação vigente ao tempo só poderia ter lugar no prazo de 1 ano a contar da sua prolação;
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No caso em apreço, do que se tratou foi de praticar um acto tributário ex novo com base no relatório de um procedimento inspectivo (denominado indevidamente de “externo”), absolutamente carecido de necessidade e fundamento legal, aberto e prosseguido até final em total revelia e abstraimento da decisão que, em 29/4/2014, tinha recaído e definido, com valor de caso decidido e estabilizado na ordem jurídica, a situação tributária da Requerente;
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Tal procedimento inspectivo – independentemente de ser ou não classificável como externo – está todo ele ferido de ilegalidade, desde logo por inexistência dos pressupostos fácticos e legais que o justificassem, mas também por não terem sido explicitadas as razões de facto e de direito que determinaram a decisão;
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O pedido de reclamação graciosa apresentado quanto aos actos de liquidação emitidos na sequência daquele procedimento inspectivo foi indeferido com fundamento ex novo na anulação administrativa da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa deduzida em 11.12.2013, e já não com fundamento na revogação daquela decisão tal como tinha sido defendido em sede de projecto de decisão;
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A incongruência ou contradição entre o projecto de decisão e a decisão definitiva, para além de violar o disposto nos artigos 268.º, n.º 3, da CRP, 77.º da LGT e 152.º e 153.º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), e de violar os princípios da boa fé e da justiça, atenta igualmente contra o disposto no artigo 60.º da LGT, uma vez que em momento algum do procedimento foi dada à Requerente oportunidade de se pronunciar sobre a nova fundamentação jurídica nele aduzida, fundamentação esta que sempre seria inócua, por inválida e ineficaz, pela sua extemporaneidade, já que não foi invocada no acto inexistente, ou, pelo menos, desconhecido, mas, ainda assim (agora designado como) anulatório;
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Sem prescindir, a decisão de abertura de um novo procedimento (de inspecção iniciada em 31/3/2016), incidente sobre a mesma situação tributária, postulava na sua fundamentação, como conditio sine qua non da respectiva legalidade formal, a externalização dos motivos e pressupostos de facto e de direito que pudessem constituir justificação e habilitação nos planos fáctico e jurídico para um tal procedimento inspectivo, pelo que todo o procedimento enferma de ilegalidade, incluindo o próprio acto tributário stricto sensu, por violação do artigo 63.º da LGT e do artigo 13.º do Regime Complementar de Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”);
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Sem prescindir, a argumentação aduzida no Projecto e no Relatório Final da Acção Inspectiva sempre seriam inábeis a produzir quaisquer efeitos convalidantes da decisão, ilegal e infundamentada, de abrir o procedimento inspectivo, e dos actos subsequentes até culminar na liquidação controvertida, uma vez que deles outra utilidade não se retira que não seja uma tentativa extemporânea (e, por isso, ineficaz) de justificar à posteriori a actuação da AT que, imperativamente, teria de ser fundamentada à priori;
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Sem prescindir, no relatório definitivo em que se fundou a liquidação do IRS e juros compensatórios em discussão, a AT não assumiu nenhuma posição relativamente aos novos elementos invocados pela Requerente, em violação do artigo 60.º da LGT;
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Sem prescindir, a liquidação do IRS no valor de € 108.399,37 não teve origem em facto imputável à Requerente, mas sim, do comportamento adoptado pelos agentes da própria AT ao longo de todo o processo de apuramento do imposto, sendo que a Recorrente pagou em devido tempo, ou seja, em 24.8.2016, o valor do IRS e dos juros compensatórios controvertidos, de tal modo que é ilegal a liquidação de juros compensatórios.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 24 de Outubro de 2022, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 22 de Novembro de 2022, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e requerido a sua absolvição do pedido de pronúncia arbitral, com base nos seguintes argumentos:
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Não tendo o Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 72.º do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei 55-A/2012, não cabe em sede do presente pedido arbitral sindicar tal questão, sendo que a taxa autónoma aplicada na liquidação vigente era a que estava em vigor no momento do facto tributário;
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Carece de qualquer fundamento legal a alegada caducidade do direito a liquidar o imposto referente ao ano de 2012, porquanto sendo o IRS um imposto periódico e tendo a liquidação sido efectuada no ano de 2016, encontra-se dentro do prazo de quatro anos contados a partir do termo do ano (2012) em que se verificou a facto tributário (alienação de acções);
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Quanto à legalidade e fundamentação do procedimento inspectivo, verifica-se que este cumpriu o previsto no RCPITA, sendo inequívoco que constam quer no projecto de conclusões (o qual foi notificado à Requerente para exercício do direito de participação na decisão), quer no relatório final, os pressupostos e a fundamentação para a tributação da alienação onerosa dos valores mobiliários detidos nas empresas em causa;
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Por último, relativamente à alegação do acto tributário representar um acto revogatório de anterior decisão da reclamação graciosa, tal encontra-se suficientemente explicada, detalhada e fundamentada na reclamação graciosa n.º ...2016... .
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Não restam assim dúvidas quanto à possibilidade de revogação de decisão de anterior procedimento administrativo, quando verificada a invalidade dessa decisão, em circunstâncias apuradas e fundamentadas em procedimento inspectivo posterior, em que a Requerente interveio;
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E, consequentemente, não fica a Administração Tributária impedida de promover a liquidação de imposto, em concretização das conclusões do relatório do procedimento inspectivo, desde que dentro do prazo de caducidade do direito a liquidar o tributo, o que no caso se verificou;
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Termos em que se mantêm integralmente válidas e legais as liquidações ora impugnadas e devidamente fundamentadas no processo administrativo, concluindo-se pela legalidade das mesmas.
7. Em 23 de Dezembro de 2022, por despacho arbitral, foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Naquele despacho foram ainda as partes notificadas para, querendo, apresentarem alegações escritas por prazo simultâneo de 15 dias, direito que apenas a Requerida exerceu em 6 de Janeiro de 2023, mantendo na íntegra o teor da Resposta que apresentou.
8. Em 15 de Abril de 2023, foi prorrogado por 2 meses o prazo de arbitragem, nos
termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.
II. SANEAMENTO
9. O tribunal arbitral colectivo foi regularmente constituído nos termos do disposto no artigo 5.º do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades.
III. DO MÉRITO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
III.1.1. Factos provados
10. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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Em 27.05.2013, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS referente ao período de tributação de 2012;
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Naquela declaração de rendimentos a Requerente considerou a totalidade do valor das mais-valias mobiliárias obtidas em 11.04.2012, resultantes da alienação das partes sociais das sociedades “B..., Lda, NIPC ...; C..., SA, NIPC ... e D..., SA, NIPC ...;
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Na sequência daquela declaração foi emitido o acto de liquidação de IRS n.º 2013..., de 20.06.2013, no montante de € 242.936,96, que foi pago pela Requerente em 29.08.2013;
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Em 11.12.2013, a Requerente apresentou reclamação graciosa quanto à liquidação de IRS referida na alínea anterior, tendo a mesma sido parcialmente deferida pela AT por despacho de 29.04.2014, notificado pelo ofício n.º..., de 07.05.2014;
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Na decisão de deferimento parcial considerou a AT que as mais-valias decorrentes da alienação das acções detidas pela Requerente nas sociedades C..., SA, NIPC ... e D..., SA, NIPC ..., deveriam ser tributadas em apenas 50 % do respectivo valor, por ser aplicável o disposto no artigo 43.º, n.º 3 do Código do IRS na redacção vigente à data dos factos;
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Na sequência do deferimento parcial da reclamação graciosa foi emitido o acto de liquidação de IRS n.º 2014..., de 17.05.2014, no valor de € 134.537,59, do qual resultou um valor a reembolsar de € 108.399,37, que foi restituído à Requerente em 17.09.2014;
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No período de 31.03.2016 a 22.04.2016, os Serviços de Inspecção Tributária (“SIT”) da Direcção de Finanças de Aveiro, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2016..., realizaram um procedimento inspectivo externo de âmbito parcial, ao IRS do período de tributação de 2012;
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O projecto do Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), foi notificado à Requerente pelo ofício n.º ..., de 13.05.2016, no qual os SIT concluíram da seguinte forma:
“(…) para efeitos do nº 3 do art.º 43º CIRS, as empresas D.... e B... são de facto médias empresas, e como tal, não poderão ser obtidos quaisquer benefícios fiscais na tributação das mais-valias derivadas da alienação de partes sociais por pessoas singulares aquando da apresentação da declaração de rendimentos mod.3 IRS, pelo que o montante de imposto a pagar pelo sujeito passivo ascende a € 244.395,08, resultando uma diferença a favor do Estado no montante de € 108.399,36 (…)”;
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A Requerente exerceu o direito de audição quanto ao projecto de RIT;
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A Requerente foi notificada do RIT final através do ofício n.º ..., de 14.06.2016;
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Na sequência daquele procedimento inspectivo, foi emitido o acto de liquidação de IRS n.º 2016..., de 1 de Julho de 2016, no valor de € 242.936,96, e o acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2016..., no valor de € 7.495,89, no montante total de € 250.432,85, notificados à Requerente em 21.07.2016, que resultaram num saldo apurado a pagar por acerto de contas de € 115.895,26;
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Em 03.08.2016, a Requerente apresentou reclamação graciosa quanto aos actos de liquidação referidos na alínea anterior;
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A reclamação graciosa foi totalmente indeferida pela AT por despacho de 10.01.2017;
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Em 20.02.2017, na sequência do indeferimento da reclamação graciosa referida na alínea anterior, a Requerente apresentou recurso hierárquico, que foi totalmente indeferido por despacho da Direcção de Serviços Central da Direcção de Serviços de IRS – 6220, ao abrigo de subdelegação de competências, e que foi notificado ao mandatário judicial da Requerente em 20.04.2022 pelo ofício n.º..., de 18.04.202;
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Em 12 de Agosto de 2022, na sequência do indeferimento do recurso hierárquico, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem aos presentes autos.
III.1.2. Factos não provados
11. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que se tenham considerados como não provados.
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
12. Compete ao Tribunal Arbitral seleccionar a factualidade que interessa à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre dos termos conjugados dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Nestes termos, tendo presente prova documental junta aos autos pelas partes, julgam-se provados e não provados os factos acima elencados.
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
a) Ordem de conhecimento dos vícios
13. Uma vez que a Requerente imputou aos actos tributários contestados nos presentes autos um conjunto diverso de vícios, numa relação de subsidiariedade, cumpre estabelecer a respectiva ordem de apreciação. Para o efeito, haverá que ter presente o disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT, nos termos do qual devem ser conhecidos, em primeiro lugar, os vícios que impliquem uma declaração de inexistência ou nulidade e, apenas em segundo lugar, os vícios que determinem a anulabilidade, respeitando quanto a estes últimos a ordem indicada pelo sujeito passivo se a mesma for determinada numa relação de subsidiariedade através da faculdade prevista no artigo 101.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT.
14. Assim sendo, será apreciado em primeiro lugar o vício de ilegalidade do acto de liquidação de IRS decorrente da inconstitucionalidade material do n.º 4, do artigo 72.º do Código do IRS, por aplicação retroactiva da redacção introduzida pela Lei n.º 55‑A/2012, de 29 de Outubro. Em segundo lugar, será apreciado o vício de ilegalidade decorrente da caducidade do direito à liquidação do IRS do período de tributação de 2012. Em terceiro lugar, será apreciado o vício de ilegalidade do acto de liquidação de IRS por determinar a revogação/anulação do acto de deferimento parcial da reclamação graciosa. Por fim, será conhecido o vício de ilegalidade do acto de liquidação resultante da ilegalidade do procedimento inspectivo que está na sua origem.
b) Aplicação retroactiva do artigo 72.º, n.º 4, do Código do IRS, na redacção introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro
15. Quanto a este ponto cumpre determinar qual a taxa de tributação aplicável às mais‑valias mobiliárias referidas na alínea b) da matéria de facto dada como provada, em virtude da sucessão de leis no tempo que se verificou naquele período de tributação.
16. Em 11.04.2012, data em que a Requerente procedeu à alienação das referidas participações sociais, dispunha-se no artigo 72.º, n.º 4, do Código do IRS que “O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 25 %”. Posteriormente, por via da aprovação da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, foi alterada a redacção daquela norma que passou a prever que “O saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias, resultante das operações previstas nas alíneas b), e), f) e g) do n.º 1 do artigo 10.º, é tributado à taxa de 26,5 %”, determinando‑se no artigo 7.º, n.º 2 da referida Lei que tal alteração produzia efeitos desde 1 de Janeiro de 2012.
17. Tendo presente esta sucessão de leis, verifica-se que a aplicação de uma taxa de 26,5% às mais-valias mobiliárias auferidas pela Requerente em 11.04.2012 configura, de facto, a aplicação de uma lei fiscal retroactiva mais desfavorável. Por conseguinte, impõe-se aferir se tal retroactividade é ou não admissível em face da proibição constante do artigo 103.º, n.º 3 da CRP e do princípio da segurança jurídica que se extrai do princípio de Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP.
18. A jurisprudência do Tribunal Constitucional a este respeito tem considerado de forma reiterada que a proibição que resulta do artigo 103.º, n.º 3 da CRP apenas abrange os casos de retroactividade autêntica/própria/forte, isto é, os casos de aplicação retroactiva de leis a factos já inteiramente verificados no âmbito de vigência da lei antiga. Quanto aos casos de retroactividade inautêntica/imprópria/fraca, isto é, os casos em que a formação do facto tributário se iniciou na vigência da lei antiga mas cuja verificação apenas se completou na vigência da lei nova, considera o Tribunal Constitucional que a retroactividade apenas será proibida se implicar uma violação dos corolários do princípio da protecção da confiança.
19. Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, proferido no processo n.º 843/19, em 16 de Dezembro de 2020, no qual se referiu o seguinte:
“No respeitante ao domínio fiscal, o Tribunal Constitucional entende que a proibição da retroatividade do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo por isso tão somente os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (assim, por exemplo, v. os Acórdãos n.ºs 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010; o caráter “absoluto” da proibição em apreço foi, todavia, questionado no Acórdão n.º 171/2017).”.
20. Portanto, para apreciar em que medida é ou não admissível a aplicação retroactiva da taxa de 26,5% às mais-valias mobiliárias auferidas pela Requerente, impõe-se determinar previamente qual o momento em que se considera verificado o facto tributário, identificando o “tipo” de retroactividade em causa tendo presente o critério a que alude o Tribunal Constitucional.
21. O IRS é um imposto que incide, nos termos do artigo 1.º do respectivo código, sobre o “valor anual dos rendimentos”, ainda que com certas especificidades quanto a cada uma das categorias de rendimento. No que em concreto respeita às mais-valias mobiliárias, que são rendimentos da categoria G nos termos dos artigos 9. º, n. º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS, determinava-se (e continua a determinar-se) no n.º 3, do artigo 10.º daquele código que “Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1”, isto é, no momento da alienação onerosa de partes sociais. Não obstante, previa-se na alínea a), do n.º 4, do artigo 10.º do Código do IRS na redacção vigente em 2012, que o ganho sujeito a IRS é constituído “pela diferença entre o valor da realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n. º 1 deste mesmo artigo” e no artigo 43.º, n.º 1 daquele código que “O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais‑valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano (…)”.
22. Deste conjunto de normas resulta que apesar de o IRS ser um imposto de formação sucessiva no tempo, existem determinados tipos de rendimentos cujo facto tributário é de formação instantânea e se esgota no momento da respectiva verificação. É este o caso das mais‑valias mobiliárias, cujo facto se verifica e se esgota no momento da alienação onerosa das partes sociais, ainda que a tributação apenas ocorra a final e em relação ao saldo apurado entre as mais e menos-valias.
23. É este o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo, que no sumário do acórdão proferido no processo n.º 01313/16.5BEPRT, em 9 de Dezembro de 2021, referiu o seguinte:
“O STA, há longo tempo, entende, uniforme e reiteradamente, em suma, que:
- constituem mais-valias os ganhos obtidos com a alienação onerosa de partes sociais (e de outros valores mobiliários), os quais se consideram obtidos no momento da efetiva alienação, correspondendo (o(s) ganho(s)) à diferença entre o valor de realização e o de aquisição do bem transmitido – artigo 10.º, n.ºs 1, alínea b), 3 e 4 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS);
- as mais-valias não podem deixar de reportar-se a cada ganho de per si;
- o facto tributário (gerador de mais-valias) nasce e esgota-se no momento autónomo e completo da alienação/realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo e não um facto tributário complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano;
(…) - no campo das mais-valias (IRS), a lei aplicável é a vigente na data da ocorrência do facto tributário, instantâneo, gerador.”.
24. Aqui chegados, conclui-se que a aplicação retroactiva da taxa de 26,5% às mais‑valias mobiliárias auferidas pela Requerente em 11.04.2012, configura uma situação de retroactividade autêntica abrangida pela proibição consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da CRP. Por conseguinte, é ilegal o acto de liquidação de IRS que tributou as mais-valias auferidas pela Requerente com base na aplicação de uma lei materialmente desconforme à CRP, impondo-se a sua anulação parcial em conformidade.
25. Quanto a este ponto, cumpre por fim referir que é desprovido de sentido o argumento da Requerida segundo o qual não cabe em sede do presente pedido arbitral sindicar a aplicação retroactiva do artigo 72.º do Código do IRS, na redacção que lhe foi dada pela Lei 55‑A/2012 pelo facto de o Tribunal Constitucional não ter declarado a inconstitucionalidade da norma com força obrigatória geral. Pela profundidade e assertividade com que aborda a questão, citam-se a este respeito as considerações feitas pelo Tribunal Arbitral no acórdão de 24 de Janeiro de 2017, proferido no processo n.º 476/2016-T, no qual se mencionou o seguinte:
“O artigo 204.º da CRP estabelece que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».
Na mesma linha, o artigo 2.º, n.º 2, do ETAF de 2015, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, estabelece que «nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados».
Destas normas decorre que todos os tribunais, inclusivamente os tribunais arbitrais (previstos no artigo 209.º, n.º 2, da CRP) são competentes para apreciar a inconstitucionalidade das normas que tenham de ser aplicadas nas suas decisões.
«Como garantes da constituição, os tribunais são todos iguais e todos têm o mesmo peso na fiscalização judicial da constitucionalidade. Precisamente por isso, no âmbito da actividade jurisdicional, eles têm, em razão da sua competência, o dever de examinar se as normas relevantes para a decisão da questão substituída à sua apreciação estão ou não em conformidade com as normas e princípios constitucionais. Por outras palavras: a questão ou questões constitucionais que se colocam na decisão do caso a resolver pelos tribunais devem ser por eles conhecidas e respondidas». «Um corolário lógico de todas estas dimensões do dever de exame de actos normativos eventualmente aplicáveis nos feitos submetidos a julgamentos é o da garantia de uma decisão judicial em conformidade com a constituição no caso concreto («feito»). A garantia desta decisão judicial pode e obter-se através de vários esquemas processuais, mas, no direito constitucional português, ela pressupõe que o juiz da causa examine e conheça a questão de inconstitucionalidade e decida o caso em consonância com o juízo por ele feito sobre esta questão». ( [1] )
Trata-se da fiscalização concreta da inconstitucionalidade, prevista no artigo 280.º da CRP, de natureza incidental, a ter lugar no processo em que as questões são suscitadas e com efeito a ele restritos, que difere da fiscalização abstracta, a que se refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, que é da exclusiva competência do Tribunal Constitucional, através de meio processual próprio, nos termos do artigo 281.º da CRP.
Por outro lado, a circunstância de o princípio da legalidade obstar a que a Administração Tributária fiscalize a inconstitucionalidade das normas a aplica e esteja obrigada a aplicar normas inconstitucionais «a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP)» ( [2] ), o que é corolário do princípio da separação dos poderes, não implica que os tribunais tenham idêntico impedimento de fiscalização da constitucionalidade das normas que devam ser aplicadas nas suas decisões, pois é a própria Constituição, em concretização desse mesmo princípio da separação dos poderes, que atribui aos tribunais o poder/dever de efectuarem tal fiscalização dos actos normativos praticados pelos órgãos com poder legislativo.
No caso em apreço, como resulta do teor literal dos pedidos formulados, as questões de inconstitucionalidade e desaplicação da norma da verba 28.1. da TGIS são suscitadas com natureza incidental [pedido formulado na alínea a) do petitório], como pressuposto dos pedidos de anulação dos actos tributários impugnados [pedido b)] e de restituição dos valores arrecadados acrescidos de juros [pedido c)].
Por isso, não é pedida a este Tribunal Arbitral a fiscalização abstracta da constitucionalidade, que visa a sua declaração de ilegalidade sem conexão com qualquer acto Administrativo ou tributário que só é permitida ao Tribunal Constitucional em processo próprio, mas sim uma pronúncia de natureza incidental, conexionada com actos tributários determinados, que todos os tribunais devem fazer, mesmo oficiosamente, por força do artigo 204.º da CRP, relativamente a todas as normas que devam aplicar e sobre cuja constitucionalidade se suscitem dúvidas.
A violação da Constituição pelas normas aplicadas num acto tributário constitui ilegalidade e este Tribunal Arbitral que tem competência para apreciar todas as questões de legalidade de actos de liquidação, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, pelo que tem necessariamente competência para apreciar as questões de inconstitucionalidade suscitadas, com efeitos restritos ao presente processo.
Na verdade, a violação da Constituição por um acto de liquidação constitui uma ilegalidade geradora de vício que o afecta ( [3] ) e, por isso, é susceptível de ser apreciada em processo arbitral, como qualquer outra, pois o artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do RJAT não afasta das competências dos tribunais arbitrais a declaração de tais ilegalidades.
Por outro lado, sendo claro que o processo de impugnação judicial é meio processual adequado para a apreciação de ilegalidades derivadas da aplicação de normas inconstitucionais ( [4] ) e sendo, em princípio, o processo arbitral um meio alternativo ao processo de impugnação judicial (artigo 124.º, n.º 2, da Lei n.º 3-B/2010, de 3 de Abril), também poderá no processo arbitral ser efectuada essa apreciação quando não exista norma especial que restrinja que afaste a sua competência.”
26. Julga-se, assim, procedente, o vício invocado pela Requerente a este respeito.
c) Caducidade do direito à liquidação
27. Relativamente a este vício, cabe apreciar se o acto de liquidação de IRS n.º 2016..., emitido pela AT em 1 de Julho de 2016 e notificado à Requerente em 21.07.2016, respeitou ou não o prazo de caducidade do direito à liquidação.
28. A este respeito, e ao que aqui importa, determina-se o seguinte no artigo 45.º da LGT, aplicável ex vi artigo 92.º, n.º 1 do código do IRS que:
“1 – O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.
(…)
4 – O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.”.
29. O IRS é um imposto periódico que incide sobre o valor anual dos rendimentos auferidos, com excepção de alguns tipos de rendimento que são liquidados através do mecanismo de retenção na fonte a título definitivo mediante a aplicação de uma taxa liberatória e sem prejuízo da opção pelo englobamento. Nesse conjunto de excepções não se inserem os rendimentos de mais-valias mobiliárias objecto do presente processo. Ainda que nas mais‑valias mobiliárias o facto tributário se esgote na alienação das participações sociais, e ainda que seja esse o momento que determina e delimita a legislação aplicável à tributação do rendimento auferido, a verdade é que não é esse o momento em que se procede ao apuramento do imposto e à emissão da consequente liquidação. Com efeito, o valor a considerar para determinar a base tributável de IRS e que será sujeito à liquidação anual de imposto – ainda que por via da aplicação da taxa especial prevista no artigo 72.º do código do IRS – é o saldo apurado entre as mais-valias e as menos‑valias realizadas em todo o período de tributação.
30. Significa isto que o prazo de caducidade de 4 anos se conta a partir do termo do ano em que se verificou a facto tributário. Ora, como a alienação das participações sociais ocorreu em 11.04.2012, data em que se considera verificado o facto tributário, o prazo de caducidade do direito à liquidação tem o seu termo inicial em 31.12.2012. Por conseguinte, a liquidação de IRS emitida em 1.07.2016 e notificado à Requerente em 21.07.2016, respeitou o prazo de caducidade do direito à liquidação, cujo termo final correspondia ao dia 31.12.2016.
31. Nestes termos, nem se coloca em causa quanto a este ponto a análise da admissibilidade do procedimento inspectivo externo e das consequências do efeito suspensivo do direito à liquidação, porquanto foi respeitado pela AT o prazo (mais reduzido) de 4 anos previsto nos artigos 45.º da LGT e 92.º, n.º 1 do código do IRS.
32. Perante o exposto, julga-se improcedente o vício de caducidade do direito à liquidação invocado pela Requerente.
d) Ilegalidade do acto de liquidação de IRS por determinar a revogação/anulação do acto de deferimento parcial da reclamação graciosa
33. No que respeita a este vício invocou a Requerente que o acto de liquidação de IRS n.º 2016..., notificado em 21.07.2016, revogou/anulou ilegalmente o despacho de deferimento parcial da reclamação graciosa anteriormente apresentada pela Requerente. Isto porque, no entender da Requerente, aquela revogação só poderia ter sido feita, nos termos da legislação vigente à data, no prazo de 1 ano a contar da prolação do acto revogado.
34. Pelo contrário, alegou a Requerida que o despacho que deferiu parcialmente a primeira reclamação graciosa apresentada pela Requerente era ilegal por vício de violação de lei, sendo consequentemente inválido. Assim sendo, no entender da Requerida, a AT poderia anular administrativamente aquele acto nos termos do n.º 1, do artigo 168.º do novo CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro.
35. Ora, a faculdade que assiste à AT de revogar/anular uma decisão de deferimento parcial de um pedido de reclamação graciosa com a consequente emissão de um novo acto de liquidação de IRS encontra‑se prevista no artigo 79.º, n.º 1 da LGT, no qual se dispõe que “O acto decisório pode revogar total ou parcialmente acto anterior”. Uma vez que não se regula na LGT nem na demais legislação tributária o prazo no qual poderá ser efectuada tal revogação, caberá aplicar subsidiariamente as normas aplicáveis à revogação dos actos administrativos, ao abrigo da remissão constante dos artigos 2.º, alínea c), da LGT e 2.º, alínea d), do CPPT.
36. Na data da prolação do despacho de deferimento parcial da reclamação graciosa, isto é, em 29.04.2014, encontrava-se em vigor o “antigo” CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro. Nos termos do n.º 1 do artigo 131.º daquele diploma, previa-se que “O acto administrativo anulável pode ser revogado nos termos previstos no artigo 141.º” que, por sua vez, dispunha no n.º 1 que “Os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida”, sendo certo que “Se houver prazos diferentes para o recurso contencioso, atender-se-á ao que terminar em último lugar”, conforme previsto no n.º 2, do referido artigo 141.º do “antigo” CPA. Como no artigo 58.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPTA vigente naquela data se previa que os actos podiam ser impugnados no prazo de três meses ou de um ano, era este último o prazo que à data vigorava para a revogação dos actos tributários.
37. Neste preciso sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no processo n.º 0449/14, em 15.03.2017, por referência à redacção do “antigo” CPA, nos seguintes termos:
“A possibilidade legal de revogação dos actos administrativos em matéria tributária está prevista no art. 79º da LGT (a revogação é um acto que faz cessar ou elimina os efeitos de um acto anterior, com fundamento na sua inconveniência ou invalidade, estando o respectivo regime previsto nos arts. 138º a 146º do CPA).
Todavia, não constando da LGT nem do CPPT norma definidora do prazo para tal revogação, é incontroverso que hão-de acolher-se as regras constantes dos arts. 136º e ss. do CPA, que directamente regulam a revogação dos actos administrativos [sendo que o CPA constitui legislação complementar e subsidiária ao direito tributário — arts. 2º, al. c), da LGT e 2º, al. d), do CPPT (Cfr., por todos, o ac. desta Secção do STA, de 15/5/2013, proc. nº 0566/12; bem como Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª ed., 2012, anotação 1 ao art. 79º, p. 724 e Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária, anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 350, nota 7.)].
Ora, nos termos do nº 1 do art. 136º do CPA (Regime da anulabilidade) «O acto administrativo anulável pode ser revogado nos termos previstos no artigo 141º» e de acordo com o disposto neste art. 141º, tal acto que seja inválido só pode ser revogado com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso (um ano, se a impugnação for promovida pelo Ministério Público, ou três meses, nos restantes casos – cfr. as als. a) e b) do nº 2 do art. 58º do CPTA) ou até à resposta da entidade recorrida.
E havendo prazos diferentes, atender-se-á ao que terminar em último lugar (nº 2 do art. 141º do CPA).
Assim, o prazo para a revogação do acto administrativo de deferimento da reclamação graciosa que anteriormente fora apresentada pelos impugnantes, só pode ser o constante das normas do CPA, que não, ao invés do que se entendeu na sentença recorrida, o de 15 dias, então previsto no nº 2 (entretanto revogado pela al. d) do art. 16º da Lei nº 82-E/2014, de 31/12) do art. 102º do CPPT para impugnar o indeferimento da reclamação graciosa.
No caso, os impugnantes apresentaram em 15/3/2010 reclamações graciosas (duas – já que, dada a entrega de declarações separadas, a AT também procedera a liquidações individualizadas) contra os actos de liquidação de IRS (do ano de 2006), tendo a reclamação apresentada por A………… (impugnante marido) sido deferida por despacho de 17/6/2010 pelo DF de Faro, notificado aos reclamantes/impugnantes, através de carta registada remetida em 18/6/2010 e tendo a reclamação apresentada por B………… (impugnante mulher) sido arquivada com fundamento na inutilidade superveniente da lide, pelo facto de a pretensão da reclamante ter sido atendida com base no despacho de deferimento proferido no processo de reclamação graciosa nº ...2010... .
Em 17/9/2010 foi proferida nova decisão na reclamação deduzida pelo impugnante A…………, reformando aquela primitiva decisão/despacho e deferindo agora apenas parcialmente a dita reclamação: deferindo-a na parte relativa ao estado civil de casados e indeferindo-a na parte restante. E esta decisão de 17/9/2010, foi notificada aos reclamantes em 27/9/2010 e dela foi interposto recurso hierárquico, ao qual foi negado provimento, por despacho de 20/12/2010, notificado aos interessados através de ofício remetido em 4/1/2011.
E é no seguimento do indeferimento deste recurso hierárquico que foi apresentada em 7/4/2011 a impugnação judicial que deu origem aos presentes autos.
Porém, conforme decorre do Probatório, a decisão do DF de Faro que apreciou a reclamação graciosa apresentada pelo impugnante marido teve por objecto a legalidade do acto de liquidação (IRS de 2006), pelo que embora tenha sido apresentado recurso hierárquico do indeferimento parcial, sempre caberia impugnação judicial da decisão deste último: na verdade, é o processo de impugnação judicial e não o recurso contencioso o meio processual adequado para impugnar contenciosamente actos que apreciem actos de liquidação [quer se trate de indeferimento de reclamações graciosas quer se trate de recursos hierárquicos delas interpostos (Cfr. art. 97º, nº 1, al. d) do CPPT.
Cfr. Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, Anotado, I vol., 6ª edição, 2011, p. 667 – anotação 7 ao art. 76º.)] e, no caso, apesar de a decisão que indeferiu o recurso hierárquico interposto do despacho do DF de Faro (em que se decidiu proceder à reforma do primitivo despacho que deferira a reclamação graciosa deduzida pelo contribuinte A…………) se fundamentar, também, na tempestividade do próprio despacho que procede à reforma, vai para além desta apreciação da vertente formal, pois que apreciou (e teve por objecto) a legalidade daquele acto tributário de liquidação de IRS.
Assim, como sublinha o MP, não obstante ter sido apresentado recurso hierárquico do indeferimento parcial, da decisão deste último cabe impugnação judicial.
Ora, se o acto de deferimento da reclamação graciosa apresentada pelo contribuinte marido, A………… (e esse deferimento é a primeira decisão ali proferida) lhe foi notificado em 21/6/2010 (carta registada remetida em 18/6/2010, presumindo-se a notificação em 21/6/2010 – cfr. al. H) do Probatório) e se a reforma desse acto foi notificada em 27/9/2010 (cfr. al. K) do Probatório), então, face ao disposto na citada al. a) nº 2 do art. 58º do CPTA (prazo de um ano para a impugnação de actos anuláveis), a AT dispunha deste prazo para o fazer, devendo concluir-se portanto que a reforma do despacho de deferimento é tempestiva e mantendo-se válida com todos as consequências legais daí decorrentes.
Acresce que, como também sublinha o MP, podendo a revogação ser operada dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida (nº 1 do art. 141º do CPA), resultando da factualidade provada que a segunda decisão foi notificada aos contribuintes em 27/9/2010 e que a impugnação judicial foi deduzida em 7/4/2011, é manifesto que a revogação foi efectuada em data anterior ao prazo que a entidade demandada tinha para contestar a acção de impugnação judicial. Sendo que, como decorre do disposto no art. 112º do CPPT (ao possibilitar à AT a revogação do acto impugnado no prazo que tem para contestar a respectiva acção de impugnação judicial) a faculdade de revogação do acto inválido persiste enquanto este não estiver estabilizado, ou seja, enquanto possa ser impugnado contenciosamente.”.
38. Também por referência à redacção do “antigo” CPA, e em concretização da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo acabada de citar, pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido no processo n.º 08028/14, em 26.10.2017, da seguinte forma:
“A questão a decidir no presente recurso jurisdicional prende-se, nos termos vistos, com saber qual é o prazo de revogação de decisão de deferimento de reclamação graciosa interposta contra um acto de liquidação de IRS, na qual foi deferida a pretensão do contribuinte.
Em concreto, importa apreciar a (i)legalidade da decisão de 22/12/10 que, revogando anterior decisão em que se deferira a pretensão da contribuinte formulada em sede de reclamação graciosa, veio agora a deferir apenas parcialmente essa pretensão.
(…) No caso, a ora Recorrida apresentou, em 04/07/08, reclamação graciosa da liquidação de IRS a que corresponde a nota de cobrança nº 2008..., a qual veio a ser deferida por despacho de 28/11/08, comunicado à reclamante através de ofício datado de 02/12/08 (cfr. pontos 8, 12 e 13 dos factos provados).
Em 22/12/10, foi proferido o acto revogatório de anterior decisão de deferimento da reclamação graciosa, aí se reformando aquela primitiva decisão/despacho e deferindo agora apenas parcialmente a dita reclamação (cfr. ponto 18 dos factos provados).
Tal acto de revogação foi notificado à ora Recorrida em 14/03/11 e ao seu Advogado no dia 11/03/11 (cfr. pontos 19 e 21 dos factos provados).
Ora, se o acto de deferimento da reclamação graciosa apresentada pela contribuinte A... (e esse deferimento é a primeira decisão ali proferida) foi proferida em 28/11/08 e foi‑lhe notificada em 05/12/08 (carta remetida em 02/12/2008, presumindo-se a notificação em 05/12/2008) e se a reforma desse acto foi notificada em 11/03/2011, então, face ao disposto na citada alínea a) nº 2 do artigo 58º do CPTA (prazo de um ano para a impugnação de actos anuláveis), a AT dispunha deste prazo para o fazer, devendo concluir-se portanto que a reforma do despacho de deferimento é intempestiva e, como tal, não pode manter-se, com todos as consequências legais daí decorrentes.
Portanto, tem razão a impugnante, A....
Nesta conformidade, a presente impugnação judicial não pode deixar de ser julgada procedente, com a consequente anulação do acto contestado.
E nem se diga, como pretende a Recorrente, que sendo o acto em causa “ uma decisão de reclamação graciosa que tinha como objecto liquidação de IRS de 2004”, impunha-se “a aplicação das regra próprias do Direito Tributário”, “que permitem à AT rever o acto tributário dentro do prazo de caducidade da liquidação”, tudo nos termos do artigo 78º da LGT.
É que o artigo 78º da LGT (Revisão dos actos tributários) apenas prevê a revisão de actos tributários a favor da Administração em caso de a tributação ter resultado num “elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”, o que nem sequer consta da justificação do acto.
Mas mais. Como refere J. Lopes de Sousa e outros, in LGT, anotada e comentada, Encontro de Escrita, 4ª edição, pag. 706, “Porém, nos casos em que a revisão é operada a favor da administração tributária e o acto a rever é um acto de liquidação, não há propriamente uma revisão do acto anterior, que permanece válido, sendo apenas praticado um novo acto em que é liquidado adicionalmente o tributo que se entender em falta”.
Sobre esta questão, aliás, escreve Lima Guerreiro, in LGT, anotada, Rei dos Livros, pág. 343, considerando que a revisão a favor da Administração Tributária está unicamente “disciplinada nos artigos 45º e 46º, que regem sobre a caducidade do direito à liquidação dos tributos. (…)”.
Também não é de acolher aqui a argumentação seguida pela Recorrente no sentido de não obstar à possibilidade de revogação o disposto na alínea c) do artigo 69º do CPPT, nos termos da qual a inexistência do caso decidido ou resolvido é uma das regras fundamentais do procedimento de reclamação graciosa.
Sem prejuízo de entendermos que a apontada alínea c) é um comando com pouca utilidade, na economia das regras que enformam o procedimento e processo judicial tributário, a verdade é que a leitura que a Recorrente dela pretende extrair extrapola em muito o alcance da norma.
Estamos de acordo com J. Lopes de Sousa, in CPPT anotado, Áreas Editora , 6ª edição, 2011, págs. 635 e 636, quando afirma, além do mais, que:
“(…) Esta estabilidade é apenas relativa pois, por uma lado, as limitações temporais à impugnação existem apenas relativamente aos vícios geradores de anulabilidade (…), podendo a todo o tempo o acto ser impugnado com fundamento na impugnação de vícios geradores de nulidade ou invocando inexistência (…).
Por outro lado, admite-se nas leis tributárias a possibilidade de revisão de actos tributários (arts. 56º e 78º da LGT) e mesmo a invocação, em fase de execução, de vícios que afectem as próprias normas legais em que se baseou a liquidação (…) artigo 204º, nº1, alínea a) do CPPT.
De qualquer forma, não é perfeitamente clara a utilidade daquela alínea c) , uma vez que a decisão de reclamação graciosa só não formará caso decidido ou resolvido se a decisão for impugnada tempestivamente, por via administrativa, (…), ou contenciosa (…). Possivelmente, ter-se-á pretendido expressar que a decisão que não forma caso decidido ou resolvido é a decisão que é objecto de reclamação, pois, apesar de a reclamação graciosa ter carácter facultativo, o reclamante não perde o direito de impugnação contenciosa”.
Face a tudo quanto vem dito, e sem necessidade de mais amplas considerações, há que concluir que a AT andou mal, ao arrepio da lei, quando praticou (leia-se, no momento em que o fez) o acto revogatório da anterior decisão de deferimento da reclamação graciosa.”.
39. Em virtude da aprovação do “novo” CPA, através da publicação do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, os prazos que regulam a revogação dos actos administrativos passaram a constar do artigo 168.º daquele código, que dispõe no seu n.º 1 que “Os actos administrativos podem ser objecto de anulação administrativa no prazo de seis meses, a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade, ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro, em qualquer dos casos desde que não tenham decorrido cinco anos, a contar da respectiva emissão”. Em todo o caso, determina o n.º 2 daquele mesmo artigo que “os actos constitutivos de direitos só podem ser objecto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respectiva emissão”. Uma vez que o deferimento parcial de um pedido de reclamação graciosa consiste num acto constitutivo de direitos nos termos do artigo 167.º, n.º 3 do “novo” CPA, porquanto reconhece e atribui uma vantagem patrimonial ao sujeito passivo, é de um ano o prazo previsto para a respectiva revogação.
40. Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 23/16.8BELRS, em 14.10.2021, da seguinte forma:
“O ora Recorrente apresentou reclamação contra a liquidação de IRS efetuada e num primeiro momento a reclamação foi deferida. Posteriormente, a Autoridade Tributária e Aduaneira anulou a aquela decisão de deferimento da reclamação graciosa invocando para o efeito o artigo 165/2 do Código de Procedimento Administrativo e proferiu decisão nova decisão, agora, de indeferimento da reclamação apresentada.
É contra esta nova decisão que se insurge o Recorrente, alegando, em suma, que ao contrário do decidido na sentença recorrida, não era aplicável ao caso o prazo de revisão do ato tributário previsto artigo 78º CPPT, por não se estar já perante um ato tributário stricto sensu, mas sim as regras aplicáveis à revogação de ato administrativo, por se tratar, agora, da revogação de ato administrativo em matéria tributável.
Desde já adiantaremos que mesmo a aceitar-se a tese do Recorrente de que se trata de ato administrativo em matéria tributável, este carece de razão quanto à questão. Porquanto, é consabido que a revogação e a anulação dos atos administrativos em matéria tributária está prevista no artigo 79º da Lei Geral Tributária (LGT), sendo subsidiariamente aplicável o regime previsto nos artigos 165º a 174º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), por força do artigo 2.c) LGT. Nesse mesmo sentido, aliás, se pronuncia o Recorrente nas conclusões d) e e) das alegações de recurso.
(…) No caso em análise, o Impugnante, ora Recorrente, apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares nº 40025..., relativa ao ano de 2013, a qual foi deferida por despacho de 29 de setembro de 2014 (cf. ponto 7 dos factos provados).
A 9 de setembro de 2015, a Autoridade Tributária e Aduaneira enviou por via postal ao Impugnante, ora Recorrente, o projeto de decisão de anulação daquela decisão, para efeitos de exercício do direito de audição prévia.
E em 28 de setembro de 2015 foi proferido o despacho que anulou a decisão/despacho e indeferiu a reclamação apresentada pelo Impugnante, ora Recorrente.
Nos termos do artigo 168º CPA com a epígrafe Condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa:
1 - Os atos administrativos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de seis meses, a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade, ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro, em qualquer dos casos desde que não tenham decorrido cinco anos, a contar da respetiva emissão.
2 - Salvo nos casos previstos nos números seguintes, os atos constitutivos de direitos só podem ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respetiva emissão.
(…) Defende o Recorrente que há muito que se tinha esgotado o prazo de 6 meses para a anulação administrativa.
Vejamos:
Com a reforma de 2015, no que respeita aos atos administrativos em matéria tributária, importa agora distinguir os casos em que haja lugar à impugnação do ato junto dos tribunais, dos demais.
Quanto a estes últimos introduziu-se também uma diferença no regime de anulação administrativa dos atos administrativos, em que o prazo de anulação, por iniciativa da Administração, é de seis meses, contados do conhecimento do vício ou da cessação do erro do agente, com um limite máximo de cinco anos, e o dos atos constitutivos de direitos, em que o prazo de anulação será de um ano a contar da respetiva emissão, salvo se a lei ou o direito da União Europeia prescreverem prazo diferente - artigo 168/4.c) do CPA.
À luz do novo CPA o regime da anulação administrativa, consagra uma multiplicidade de prazos nos quais um ato administrativo pode ser anulado pela Administração, que variam consoante uma diversidade de fatores, como sejam (i) o vício que inquina o ato, (ii) o facto de estarmos (ou não) perante um ato constitutivo de direitos, (iii) a circunstância de o ato ter ou não sido impugnado jurisdicionalmente ou (iv) a boa ou má fé do beneficiário do ato (1).
Os atos administrativos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de 6 meses, a constar da data do conhecimento do órgão da causa da invalidade ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro e em qualquer caso, desde que não tenham decorrido 5 anos, a contar da respetiva emissão – artigo 168/1 CPA.
Salvo nos casos previstos nos n.ºs 3 a 7, do artigo 168º CPA, os atos constitutivos de direitos só podem ser objeto de anulação administrativa dentro do prazo de um ano, a contar da data da respetiva emissão - artigo 168º, n.º 2, do CPA.
Nos termos do artigo 167/3 CPA, consideram-se atos constitutivos de direitos os atos administrativos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagens ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições.
Anote-se que apesar de defender que ao caso era aplicável o prazo de seis meses, o Recorrente nada alega sobre qual a data de conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade ou sobre o momento da cessação do erro do agente, mas que, se bem compreendemos o alegado, o termo inicial (dies a quo) do prazo de seis meses deveria ser o da emissão do ato.
Entendemos, porém, no caso concreto, que independentemente da data de conhecimento da causa invalidante ou da data de cessação do erro do agente, estamos perante um ato administrativo constitutivo de conteúdo pecuniário e logo que a anulação administrativa da decisão de deferimento da reclamação apresentada pelo contribuinte podia ser operada dentro do prazo de um ano, a contar da respetiva emissão, por aplicação do disposto no artigo 168/2 CPA.”.
41. Aqui chegados, e tendo presente a jurisprudência acabada de citar, cumpre então verificar se o acto revogatório foi ou não praticado pela AT dentro do prazo previsto para o efeito. O despacho de deferimento parcial da reclamação graciosa foi notificado à Requerente em 07.05.2014, de tal forma que o prazo de 1 ano para revogar o acto nos termos da legislação já evidenciada terminava em 07.05.2015, isto é, muito antes da emissão do acto revogatório que apenas foi notificado em 21.07.2016.
42. Tal conclusão não é posta em causa pela entrada em vigor do “novo” CPA que passou a conformar de modo não exactamente coincidente os prazos de revogação dos actos administrativos. Desde logo porque o regime previsto no “antigo” CPA se insere nas “garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes” cuja aplicabilidade é salvaguardada em virtude do disposto no artigo 12.º, n.º 3 da LGT. Mas também porque, conforme se viu, o regime previsto no “novo” CPA determina igualmente no presente caso que é de um ano o prazo de revogação do acto tributário.
43. Perante o exposto, julga-se procedente o vício invocado pela Requerente a este respeito, impondo-se a anulação total dos actos de liquidação de IRS e de juros compensatórios contestados nos presentes autos.
44. Uma vez que a emissão daqueles actos levou ao pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, por erro unicamente imputável à AT, considera-se devido à Requerente o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT.
45. Tendo em conta que a Requerente obtém, nesta medida, a satisfação das respectivas pretensões, julga‑se prejudicada a apreciação dos demais vícios imputados ao acto de liquidação.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente nos termos acima evidenciados;
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Determinar anulação dos actos de liquidação de IRS e juros compensatórios contestados;
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Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
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Condenar a Requerida nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 115.895,26.
VI. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.060,00, a suportar pela Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de Junho de 2023
A Árbitra Presidente,
Carla Castelo Trindade
(Relatora)
O Árbitro Adjunto,
Vasco Valdez
O Árbitro Adjunto,
Alexandra Iglésias