Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 425/2022-T
Data da decisão: 2023-05-09  IRS  
Valor do pedido: € 54.013,70
Tema: IRS 2020
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SUMÁRIO

I – Os actos tributários, carecem de uma fundamentação, ainda que sucinta, que permita aos sujeitos passivos tomarem conhecimento das razões, de facto e de direito, que motivaram a produção desses actos, e que permitam o exercício do seu direito de defesa.

II – A preterição da obrigatoriedade de fundamentação de um acto de liquidação de IRS, tem como consequência a anulação desse acto.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro, Dr. João Marques Pinto, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 27 de Julho de 2022, acorda no seguinte:

 

1. Relatório

 

A... e B..., residentes na Rua ..., n.º..., ..., na freguesia de..., ...-... Guimarães, com os números de identificação fiscal ... e ..., respectivamente, (doravante designados, abreviadamente, por os “Requerentes”), vieram requerer, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º, do n.º 2, do artigo 5.º, do n.º 1, do artigo 6.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária-RJAT), e ainda dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, a constituição de Tribunal Arbitral, com árbitro singular, com vista à pronúncia arbitral sobre a legalidade do acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS), do qual resultou o valor a pagar de € 54.013,70, constante da liquidação n.º 2021 ..., e referente ao período de 2020.01.01 a 2020.12.31 (ano fiscal de 2020).

 

Os Requerentes requereram ao Tribunal Arbitral que:

  1. Anule a liquidação de IRS acima identificada; e, em conformidade
  2. Restitua os montantes indevidamente pagos, acrescidos dos respectivos juros indemnizatórios.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante AT).

Os Requerentes optaram por não designar Árbitro.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado, como já referido em 15 de Julho de 2022, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, tendo o Tribunal ficado constituído no dia 27 de Julho de 2022, facto que foi,  nessa mesma data, notificado a ambas as Partes.

Em 27 de Setembro de 2022, a AT apresentou um requerimento solicitando a extinção da instância, por o acto tributário impugnado ter sido objecto de uma revogação parcial com os fundamentos que constavam da Informação nº ...2022... da Direcção de Serviços de IRS.

Em resposta a este requerimento, os Requerentes, em 12 de Outubro de 2022, pronunciaram-se pela intempestividade do acto de revogação, pelo que não abdicavam da apreciação da legalidade do acto, que consideram, reforçando o entendimento anterior, no requerimento inicial, manifestamente ilegal.

Em 19 de Janeiro de 2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho determinando o prosseguimento do processo, e solicitando, o envio das respectivas alegações no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias.

No seguimento deste despacho, os Requerentes enviaram as suas alegações no dia 28 de Março de 2023 e a Requerida no dia 3 de Abril do mesmo ano.

 

  1. Factos considerados provados:

 

- Os Requerentes são pessoas singulares, residentes em Portugal, e, como tal, sujeitos passivos de IRS e aqui tributados pelo seu rendimento universal.

2º - O Requerente A... é sócio da sociedade comercial espanhola “C..., S.L.”, com sede social na..., Tenerife, Espanha, com o número de identificação fiscal , detendo 2.000 participações sociais, representativas de 50% do capital social.

3º - A restante percentagem de 50% do capital social da “C..., S.L.” pertencem ao Sr. D....

4º - Em 21 de abril de 2020, os mencionados sócios da sociedade comercial espanhola “C..., S.L.” deliberaram uma distribuição de lucros no montante de € 623.529,42, repartida em partes iguais, cabendo, por isso, ao Requerente A... o valor de € 311.764,71.

5º - O Requerente A... submeteu o “Modelo 296” da Agência Tributaria de Espanha – Declaração Informativa sobre Retenções e Pagamentos por Conta do Imposto sobre o Rendimento dos Não Residentes em Espanha, sem Estabelecimento Estável.

6º - Os lucros distribuídos foram tributados em Espanha, pela aplicação a esse rendimento da taxa de retenção na fonte de 15% (em conformidade com a redução fixada no artigo 10.º da Convenção celebrada entre Portugal e Espanha para Eliminação da Dupla Tributação Internacional).

7º - Os lucros distribuídos ao Requerente A... no valor de € 311.764,71 [50% de € 623.529,42], foram, por isso, objecto de retenção na fonte, a título de imposto sobre o rendimento espanhol, à taxa de 15%, de que resultou o pagamento de imposto em Espanha no valor de € 46.724,71.

8º - Valor desse de imposto espanhol pago no dia 20.07.2020.

9º - No dia 30 de junho de 2021, os Requerentes submeterem eletronicamente a sua declaração de rendimentos de IRS, relativa ao ano de 2020, tendo declarado, no anexo J – Rendimentos Obtidos no Estrangeiro, no quadro 8 A, o montante de € 155.882,36 correspondente aos 50% dos rendimentos distribuídos a título de dividendos pela supra referida sociedade.

10º - A declaração de 50% dos rendimentos resultou do facto de os Requerentes terem optado pelo englobamento daqueles rendimentos (Quadro 8 B), de acordo com o regime previsto no artigo 40.º-A do Código do IRS.

11º - Os Requerentes declararam, no quadro 8 A, do anexo J, o valor total do imposto retido na fonte em Espanha, ou seja, o montante de € 46.764,71.

11º - Em Julho de 2021, foi emitida a liquidação n.º 2021..., com imposto a pagar pelos Requerentes no montante de € 54.013,70.

12º - Esse valor foi pago pelos Requerentes em 22.09.2021.

13º - Em 20 de Dezembro de 2021, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação de IRS indicada no ponto 11º supra.

14º - A Autoridade Tributária não se pronunciou, no prazo de 4 meses, sobre a reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, pelo que, decorrido este prazo, estes presumiram o seu indeferimento tácito.

15º - No seguimento deste indeferimento tácito, foi deduzido o requerimento ora em apreciação.

16º - A Requerida revogou parcialmente o acto de liquidação por despacho da Senhora Subdirectora Geral de Impostos datado de 13.09.2022 e inserido no sistema de gestão processual em 27.09.2022.

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos aos autos pela Requerente e pela Requerida.

 

 

  1. Matéria de Direito

 

2.1. Fundamentos das posições das Partes

 

1º - Os Requerentes fundamentaram a sua impugnação do acto de liquidação suportados, basicamente, nos seguintes argumentos:

  1. O imposto retido na fonte em Espanha é integralmente dedutível ao imposto a pagar sobre os rendimentos (dividendos) ilíquidos recebidos de uma fonte situada naquele pais, tendo em consideração o mecanismo de eliminação da dupla tributação previsto não só no artigo 81º do Código do IRS, como também o artigo 22º nº 3 da Convenção para Eliminar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e a Espanha.
  2. O facto de ter procedido ao englobamento de apenas 50% do rendimento recebido, não pode implicar a não dedutibilidade de igual percentagem do imposto retido na fonte em Espanha, sobre a distribuição dos dividendos;
  3. As declarações dos contribuintes, presumem-se verdadeiras e feitas de boa-fé, face ao disposto no artigo 75º nº 1 da LGT, pelo que compete à AT, no caso de fazer alguma correção à declaração apresentada pelo sujeito passivo demonstrar, que essa declaração não respeita e não cumpre as disposições legais aplicáveis,
  4. Demonstração essa que, no caso em apreço, no entendimento dos Requerentes não se verificou;
  5. A divergência no tratamento fiscal dos rendimentos obtidos em Estados que não o da residência, mas num país da União Europeia, do tratamento de rendimentos auferidos no Estado da residência desse sujeito passivo, afronta de forma directa e injustificada a liberdade de circulação de capitais estabelecida no artigo 63º nº 1 do TFUE;
  6. O acto perpetrado pela AT, viola o princípio da legalidade, pois a disposição legal é clara e inequívoca e, em nenhum momento pretendeu limitar a 50%, a dedução à colecta de IRS por crédito de imposto por dupla tributação internacional, mesmo quando o sujeito passivo procedeu ao englobamento de apenas 50% do montante total dos rendimentos (dividendos) auferidos no estrangeiro.

Assim, ao efectuar a liquidação objecto da presente impugnação a AT violou o princípio constitucional da legalidade, traduzido no artigo 103º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), nos seus corolários da reserva parlamentar de lei, da tipicidade e da segurança jurídica.

Para além disso, consideram os Requerentes que a actuação da AT configura ainda a violação dos princípios da justiça, da imparcialidade e da verdade material, igualmente consagrados na Constituição.

  1. Ao limitar a dedução por crédito de imposto por dupla tributação internacional, a AT está a violar e a afrontar de forma directa e injustificada a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63º nº 1 do TFUE, isto porque se trata de um caso evidente de divergência entre o tratamento fiscal aplicável a rendimentos obtidos noutros Estados, por um sujeito passivo residente em Portugal, relativamente aos rendimentos por este obtidos no próprio Estado de residência.

Desta forma, é entendimento dos Requerentes que, a ser aceite a posição da AT, tal poderia representar um entrave ao envolvimento de sujeitos passivos em actividades potencialmente geradoras de rendimentos fora do seu Estado de residência, facto que tem sido contestado e contrariado por diversas decisões do TJUE em face do disposto no já citado artigo 63º nº 1 do TFUE.

  1. Entenderam ainda os Requerentes que o acto de liquidação enferma do vicio da falta de fundamentação do acto e da obrigatória participação dos Requerentes na sua formação, já que, argumentam, os fundamentos de facto e de direito referentes à liquidação objecto da presente impugnação nunca lhes foram dados a conhecer, sendo que apenas tiveram conhecimento da correção à dedução à colecta quando a AT requereu a extinção da instância por revogação parcial do acto.

Assim, entendem os Requerentes que a fundamentação do acto administrativo de liquidação deveria ter sido clara, ainda que concisa, indicando e revelando os factos e o Direito que está em causa, de forma a permitir-lhes reclamar ou impugnar de uma forma efectiva e eficaz.

Donde, a fundamentação do acto é inequivocamente inexistente e viola a obrigação de os sujeitos passivos serem notificados, pelo menos, e no mínimo, de uma sucinta exposição das razões de facto e de direito que motivaram e originaram o acto tributário de  liquidação.

Para além da falta de fundamentação, alegam ainda os Requerentes que não lhes foi conferido o direito a participarem na decisão da AT que antecedeu a liquidação em crise, como, de forma clara, impõe o artigo 60º da LGT e, inclusive, a CRP no seu artigo 267º nº 5, pois, entre a entrega da declaração e o recebimento da nota de liquidação, não receberam, da AT, qualquer notificação para o exercício do direito de audição prévia e, dessa forma, pronunciarem-se e opinarem sobre a proposta de liquidação de IRS.

  1. Por fim, considerando que o imposto liquidado foi pago e que essa liquidação resulta de um erro imputável aos serviços, consideraram os Requerentes que têm direito a receber juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º nº 1 da LGT.

 

2º - Por seu lado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta ao requerimento inicial, defendeu-se, por excepção e por impugnação, da seguinte forma:

 

A – Por Excepção

  1. A AT veio pedir a extinção da instância tendo em consideração a revogação parcial do acto impugnado constante do despacho proferido pela Subdirectora Geral, Dra. E... em 13.09.2022, constante do Ofício nº ... de 19.09.2022 e submetido no sistema de gestão processual apenas no dia 27.09.2022.
  2. Facto este que levou à correção da liquidação ora em apreciação (com o nº 2021...)

 

B – Por impugnação

  1. Considerando os fundamentos apresentados pelos Requerentes, a Requerida entendeu que os mesmos não tinham qualquer suporte legal, porque tendo-se optado pelo englobamento dos rendimentos (dividendos) recebidos da empresa residente em Espanha, nos termos previstos pelo artigo 40º-A do Código do IRS, o valor a considerar, para efeitos de dedução à colecta, deverá ser igualmente de apenas 50% do imposto retido em Espanha.
  2. Dessa forma, considerou a AT, na contestação apresentada que o valor de dedução à colecta dos Requerentes deveria ser reduzida em idêntica proporção, pois, com a opção pelo englobamento, apenas 50% do rendimento teria sido objecto de dupla tributação.
  1. Considerou ainda a AT, que decorrendo ainda o prazo de reclamação, os Requerentes poderiam ter optado pelo não englobamento dos rendimentos, caso em que seria considerada a totalidade do rendimento por eles auferido em Espanha, sendo aplicada a taxa liberatória de 28% e deduzido integralmente o imposto retido na fonte naquele pais.

 

3º - Em resposta à excepção invocada pela Requerida, os Requerentes vieram considerar que o pedido de extinção da instância não deveria ser aceite, tendo em consideração que o mesmo tinha sido apresentado intempestivamente, pois fora inserido no sistema apenas no dia 27 de Setembro de 2022, e, como tal, notificado fora do prazo de 30 dias, fixado no artigo 13º nº 1 do RJAT.

Desta forma, os Requerentes rejeitaram o pedido apresentado pela AT de extinção da instância, solicitando ao Tribunal que procedesse à apreciação da questão, ou questões, por eles suscitadas.

 

2.2.Análise das questões suscitadas

2.2.1. Da excepção invocada pela Requerida

Conforme se referiu no capítulo anterior, a Requerida suscitou a possibilidade de extinção da instância com fundamento em que o acto de liquidação em crise tinha sido parcialmente revogado pelo Despacho da Subdirectora Geral datado de 13.09.2022.

Em resposta a este pedido da AT, os Requerentes vieram invocar a intempestividade da revogação parcial do acto de liquidação em crise, pelo que não devia essa revogação ser considerada.

Entende este Tribunal que acolhe razão aos Requerentes, pois, de facto, o despacho de revogação apenas lhes foi notificado, após a sua inserção no sistema de gestão processual do CAAD, ou seja, apenas no dia 27 de Setembro.

Ou seja, mais de 30 dias após ter tomado conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, o qual ocorreu no dia 27 de Julho de 2022.

Entende este Tribunal, no seguimento, aliás, do despacho proferido em 19 de Janeiro de 2023, que a excepção invocada pela AT, (aliás, mais que a invocação de uma excepção, tratou-se de um pedido aos Requerentes), foi, de facto, apresentada fora do prazo, pelo que não deve proceder, devendo por isso, o Tribunal proceder à apreciação das questões suscitadas pelos Requerentes e a contestação (resposta) deduzida pela AT.

 

2.2.2. Da alegada falta de fundamentação dos actos de liquidação em crise:

De entre os diversos argumentos invocados pelos Requerentes, considera o Tribunal que deve apreciar, primeiramente, a alegação por eles feita de falta de fundamentação do acto de liquidação e da impossibilidade do exercício do direito de audição prévia, na medida em que a apreciação que se fizer desta questão, dependerá a necessidade de se analisar, ou não, os restantes argumentos por eles suscitadas e já sumariamente indicadas no ponto 2.1. (vi) desta decisão.

No seu pedido de pronuncia arbitral, invocam os Requerentes que os fundamentos de facto e de direito referentes à liquidação objecto da presente impugnação, nunca foram dados a conhecer, anteriormente à produção do acto de liquidação, pelo credor tributário.

Sendo que apenas tiveram conhecimento da correcção à dedução à colecta na notificação da liquidação de IRS, momento em lhes foi permitido concluir, desconhecendo, porém, os motivos, que o montante de imposto retido na fonte em Espanha, tinha sido considerado pela AT em apenas 50%.

Invocaram ainda os Requerentes que não tiveram qualquer participação no processo de tomada de decisão do acto de liquidação, não lhes tendo sido conferido, em momento algum, a possibilidade de exercerem o seu direito de audição prévia.

Argumentam ainda, nas suas alegações, que apenas numa fase mais adiantada do processo, num momento posterior à produção e notificação do acto de liquidação, quando a Requerida, notificada do pedido de pronuncia arbitral, veio propôr a extinção da instância, na sequência da revogação parcial do acto de liquidação, é que puderam tomar conhecimento, ainda que de forma limitada e, a seu ver, incompleta e insuficiente, dos fundamentos dessa liquidação.

Como é sabido, o ordenamento jurídico português, impõe, em diversos preceitos a obrigatoriedade de os actos produzidos pela Administração Publica sejam objecto de uma adequada fundamentação, que permita aos cidadãos tomarem conhecimento das razões que levaram à sua produção.

Assim, a este propósito o artigo 268º nº 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), veio estabelecer o seguinte (sublinhado nosso):

3. Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.

Na esteira deste preceito constitucional, o legislador no Código do Procedimento Administrativo, mais concretamente na redacção dada ao seu artigo 153º, sob o título “Requisitos da Fundamentação”, veio consagrar que (sublinhado nosso):

1 - A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respectivo ato.

2 - Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato.

Por seu lado, e em consonância com as disposições anteriormente citadas, a própria Lei Geral Tributária, veio regular esta questão, no seu artigo 77º, com o título “Fundamentação e Eficácia” onde se estabeleceu que (sublinhado nosso):

1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2 - A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

Destas disposições resulta claro que os actos administrativos e, em concreto, os actos tributários, carecem de uma fundamentação, ainda que sucinta, que permita aos sujeitos passivos (quando se trata de actos de natureza tributária), conhecerem as razões, de facto e de direito, que motivaram a produção desses actos, de forma a permitirem o exercício do seu direito de defesa de uma forma efectiva e, acima de tudo, eficiente.

Também a Jurisprudência tem considerado o dever de fundamentação dos actos tributários uma obrigação indispensável da entidade responsável pela sua produção e emissão, ou seja, da Autoridade Tributária e Aduaneira.

Atente-se, a este propósito, ao entendimento vertido no Acordão do STA, proferido no âmbito  do Proc. 0246/09, em 06.17.2009 (sublinhado nosso):

I - A dignidade constitucional do direito à fundamentação (artigo 268.º n.º 3 da Constituição da República) vale de igual modo para os actos tributários e procura acautelar quer a racionalidade da decisão tributária, quer as condições materiais para o adequado exercício dos direitos de defesa por parte dos contribuintes;

II - Nos casos em que a lei não imponha especiais requisitos de fundamentação, o cumprimento do dever de fundamentar por parte da Administração tributária afere-se em face do disposto nos números 1 e 2 do artigo 77.º da LGT e atendendo aos fins visados pelo dever de fundamentação;

III - Nos actos de liquidação de IRS, atenta sua natureza de “processo de massa”, o dever de fundamentação é cumprido pela Administração fiscal de forma “padronizada” e “informatizada”, mas sem que possa deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT ou de pôr em causa as finalidades do direito à fundamentação;

No mesmo sentido, o STA, na decisão proferida a 03.12.2014, no âmbito do Proc. 1674/13, veio considerar que a Administração Tributária “tem o dever de fundamentar os actos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77º da LGT” e o acto só estará “suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta ultima circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.”

Da legislação acima indicada, bem como da jurisprudência aqui citada, resulta que a Administração Tributária temdever de fundamentar os seus actos, nomeadamente, os de liquidação, de uma forma clara e congruente – mesmo que sinteticamente ou por remissão - e de molde que o sujeito passivo, colocado na posição de um destinatário normal, possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, o caminho cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração.

Para além disso, esse dever de fundamentação deve anteceder, ser anterior, ao acto de liquidação do imposto, não sendo, por isso, de admitir qualquer tipo de fundamentação que venha a ser feita após essa liquidação.

Ora, no caso em apreço, o que se pôde verificar é que o acto de liquidação em crise não foi antecedido de qualquer acto prévio de fundamentação, por muito reduzida ou diminuta que essa fundamentação tivesse sido, mas que permitisse aos Requerentes aperceberem-se porque foi considerado em apenas 50%, para efeitos de dedução à colecta, o imposto retido na forne em Espanha.

Na realidade, estamos perante um caso evidente, não de fundamentação insuficiente ou pouco clara, mas sim, de uma verdadeira falta de fundamentação.

Efectivamente, entre o acto de entrega da declaração Modelo 3 do IRS e a emissão do acto de liquidação e respectiva notificação aos Requerentes, a AT não produziu qualquer acto, mais concretamente qualquer informação/comunicação que, notificada aos Requerentes possibilitasse determinar o fundamento ou fundamentos da liquidação.

Ou, por outras palavras, a AT não deu a conhecer, antes da produção do acto de liquidação, os motivos que determinaram este seu procedimento e as razões em que fundou a sua actuação.

Neste âmbito, se deve incluir, igualmente, a impossibilidade de os Requerentes exercerem o seu direito de audição prévia, nos termos do artigo 60º da LGT, tendo ficado, dessa forma, impedidos e impossibilitados de participar na formação da decisão.

Em face de tudo o exposto, não pode o Tribunal deixar de concluir pela procedência da causa de pedir da falta de fundamentação do acto de liquidação em crise e da impossibilidade do exercício do direito de audição prévia.

Em face deste entendimento e desta convicção, entende ainda o Tribunal, que fica prejudicado o conhecimento das restantes causas de pedir, sendo que a possibilidade do seu conhecimento apenas seria possível, se tivessem sido fornecidos e transmitidos aos Requerentes, em devido tempo, os fundamentos que suportaram a liquidação impugnada.

 

2.2.3. Dos juros indemnizatórios

De acordo com o art. 43º da LGT “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento de divida tributária em montante superior ao legalmente devido e que se considera também haver erros imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.”

A questão da interpretação da expressão “erro” usada nesta disposição legal, abrange qualquer erro nos pressupostos de facto o de direito, que tenha levado à liquidação e pagamento de imposto superior ao legalmente devido.

Neste sentido, atente-se à decisão proeferida pelo STA no âmbito do Proc. 0537/14, em 11.03.2015 (sublinhado nosso):

I - O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação “houve erro imputável aos serviços”, entendido este como o “erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal”.

II - A anulação de um acto de liquidação com o fundamento de que a AT não demonstrou a verificação dos pressupostos para o recurso à tributação por métodos indirectos de que se socorreu (vício de violação de lei por erro nos pressupostos) é de considerar como erro imputável aos serviços, erro que, porque levou a uma ilegal definição da relação jurídica tributária do contribuinte e da qual terá resultado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido à luz das normas fiscais substantivas, justifica a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

Assim sendo, é de concluir pela procedência do pedido de juros indemnizatórios apresentado pelos Requerentes, que são devidos à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto liquidado (22.09.2022), até ao integral reembolso.

 

 

3. Decisão

Tendo o Tribunal considerado que se verifica a preterição da obrigatoriedade de fundamentação do acto tributário de liquidação do imposto e do exercício do direito de audição prévia, decide-se:

  • Julgar procedente o pedido arbitral e anular a liquidação de IRS e correspondentes juros compensatórios, referente ao ano de 2020, com o número 2021..., no valor de € 54.013,70 (cinquenta e quatro mil e treze eros e setenta cêntimos), constante da liquidação n.º 2021 ... .
  • Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, vencidos, desde a data do pagamento da liquidação em crise (22.09.2022) e, vincendos, até ao efectivo e integral reembolso do imposto pago, nos termos dos artigos 43º nº 1 e 35º nº 10 da LGT, do artigo 24º nº 1 do RJAT, artigo 61º nºs 3 e 4 do CPPT, do artigo 559º do Código Civil e Portarias aplicáveis.

 

4. Valor da causa

 

Os Requerentes atribuíram à causa o valor de € 54.013,70 (cinquenta e quatro mil e treze eros e setenta cêntimos), constante da liquidação n.º 2021..., que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

5. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, que fica a cargo da Requerida.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 9 de Maio de 2023

 

O Tribunal Singular

 

 

João Marques Pinto