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Sumário:
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O art. 6.º, n.º 4, do C.I.R.S., consagra uma presunção relativa a rendimentos de capitais, de que as quantias escrituradas em quaisquer contas de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
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Estando em causa a pretensa elisão de uma presunção legal relativa, impendia sobre a Requerente, o ónus de produzir prova do contrário (art. 6º, n.º5 do CIRS), ou seja, de desenvolver atuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objetivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou e/ou o direito presumido não existe.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
I.1
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Em 23 de junho de 2022 a contribuinte A... S.A., sociedade com o Número Único de Identificação Fiscal e de Pessoa Coletiva..., com sede em Avenida..., número..., ...-... Elvas, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 01 de Julho de 2022.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n. º1, do RJAT, foi designado um árbitro (Dr. Rui Ferreira Rodrigues) pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
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O Tribunal Arbitral foi constituído em 05.09.2022 e no mesmo dia proferiu um despacho a ordenar a notificação da Requerida para apresentar a sua resposta.
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A AT apresentou a sua resposta em 10.10.2022.
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Por despacho de 11.10.2022, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.
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A Requerida apresentou as suas alegações em 03 de novembro de 2022.
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A Requerente não apresentou alegações.
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Por despacho de 28.02.2023 determinou-se a prorrogação, por dois meses, do prazo para a prolação da decisão arbitral.
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O árbitro nomeado (Dr. Rui Ferreira Rodrigues), renunciou às funções arbitrais e foi designado árbitro o signatário, por ofício datado de 17.03.2023, do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
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Por despacho de 03.05.2023 determinou-se a prorrogação, por dois meses, do prazo para a prolação da decisão arbitral.
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Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare ilegal e anule o ato de liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2018 n.º2022..., no valor de €14.220,01.
I.2. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
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Os lançamentos na conta 2782019, têm origem na celebração entre a Requerente e B... (doravante Rendeira) de um Contrato de Arrendamento Rural (doravante Contrato de Arrendamento) no dia 1 de Janeiro de 2018, referente a três prédios rústicos dos quais é proprietária a Requerente.
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De acordo com o Contrato de Arrendamento, os terrenos objeto do contrato destinam-se à exploração, pela Rendeira, de “atividade agrícola, florestal ou pecuária e/ou outras atividades de produção de bens e serviços com ela conexas”.
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Para efeitos de prossecução das referidas atividades, ficou convencionado em “& Único” na página 4 do Contrato de Arrendamento que a Requerente suportaria as despesas relativas aos investimentos a realizar pela Rendeira nos imóveis locados, na medida em que as mesmas não fossem financiadas ao abrigo de processos de incentivos financeiros concedidos pelo IFAP/Ministério da Agricultura no âmbito da PAC-Política Agrícola Comum.
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Com efeito, a Rendeira apresentou uma candidatura ao apoio do investimento para a produção de vinhos de qualidade no âmbito da PAC-Política Agrícola Comum (PDR 2020) junto do IFAP no dia 23 de Julho de 2017, a qual viria a ser aprovada apenas em 26-06-2020.
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Assim, entre a data de apresentação e a data de celebração do Contrato de Arrendamento e a data de aprovação da candidatura, a Requerente custeou as despesas relativas ao investimento realizado nos imóveis arrendados.
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Relativamente aos montantes transferidos durante o exercício de 2018, os mesmos corresponderam a gastos de 52.845,94 € (cinquenta e dois mil oitocentos e quarenta e cinco euros e noventa e quatro cêntimos) conforme evidenciado nas faturas 20628120825, FA 68, FT 2018A1/860 e 180112 registadas na contabilidade da Rendeira.
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Já na esfera da Requerente, o investimento realizado nos imóveis arrendados foi, de acordo com indicação pelo Revisor Oficial de Contas da Requerente, contabilizado na conta 2782019 como um crédito sobre a sócia/Rendeira, o qual será posteriormente objeto de crédito nessa mesma conta, por contrapartida de débito na conta 43 – Ativos Fixos Tangíveis assim que se encontrem terminados os trabalhos sobre os imóveis arrendados, de forma a refletir a sua verdadeira natureza de investimento.
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Sobre a AT impende o ónus de provar que os lançamentos em conta corrente dos sócios não resultam “de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais” (cf. n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS) e apenas após tal prova, invocar a presunção da qualificação de tais lançamentos como distribuições ou adiantamentos por conta de lucros.
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Isto, claro, sem prejuízo de nos termos do n.º 5 do mesmo artigo, tal presunção poder ser afastada perante suficiente prova de que a tais lançamentos subjaz uma realidade diferente do adiantamento por conta de lucros.
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Estabelece o artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que o adiantamento por conta de lucros de uma sociedade deve obedecer a determinadas regras, nomeadamente à sua deliberação pelo órgão de administração da sociedade (cf. n.º 1, alínea a) do artigo 297.º do CSC), e à existência, com base num balanço intercalar elaborado com a antecedência máxima de 30 dias, de importâncias passíveis de constituir um adiantamento por conta de lucros (cf. n.º 1, alínea b) do artigo 297.º do CSC).
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Ou seja, nos termos do CSC, apenas poderá ocorrer a alocação aos sócios de um “adiantamento” por conta de lucros quando a sociedade verifique, efetivamente, a existência desses lucros no período a que respeita tal adiantamento.
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Analisando a demonstração de resultados da Requerente para o ano de 2018 – durante o qual, presume a AT, a Requerente obteve lucros em montante suficiente para realizar um adiantamento aos seus sócios é inadmissível a aplicação da presunção de adiantamento por conta de lucros.
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Perante o supra exposto, a AT entende, ainda assim, que a existência de uma rúbrica denominada “Outras Reservas” no balanço da Requerente sempre permitiria uma distribuição de lucros aos seus sócios
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Naturalmente que tal observação é realizada sem que se note, por um lado, que a rúbrica de “Resultados Transitados” não apresenta qualquer valor e, por outro lado, que a denominação “Outras Reservas” não tem qualquer correspondência com a disponibilidade de lucros para distribuição.
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Se se concedesse no sentido do que pretende a AT – o que nem por benefício de raciocínio se concede – estaríamos perante uma tripla presunção: 1. De que os lançamentos na conta 2782019 – B... têm a natureza de adiantamentos por conta de lucros; 2. De que as reservas registadas no balanço da Requerente são integralmente constituídas por lucros não distribuídos; e 3. De que os sócios da Requerente deliberaram na sua distribuição à sócia B... .
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E se a presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS se encontra assim, e por demais, ilidida, às restantes presunções dirimidas pela AT cabe apenas a sua total desconsideração.
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Ora, no caso em apreço, a Requerente produziu perante a AT prova documental suficiente para suportar o facto económico concreto que deu origem aos lançamentos na conta corrente dos seus sócios: um contrato de arrendamento com assunção da obrigação de custeio de investimento até ao momento de aprovação de incentivos financeiros a conceder pelo IFAP/Ministério da Agricultura e qualificação como benfeitorias nos imóveis arrendados (i.e. como ativo/benefício da Requerente) do montante remanescente.
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Só a qualificação desses lançamentos como transferências ao abrigo de um contrato de investimento se afigura correta, porquanto é a única que respeita a verdade material dos factos, a sua substância económica e o respeito pelo princípio da capacidade contributiva – pressuposto essencial do sistema fiscal português, conforme estabelecido no n.º 1 do artigo 4.º da LGT.
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Provado que se encontra que (i) a Requerente não obteve lucros em montante suficiente para realizar distribuições aos sócios no montante de 45.000,00 €; e (ii) que a realidade factual, económica, jurídica e contabilística subjacente demonstra a qualificação como investimento dos lançamentos em conta-corrente da sócia B..., a tributação, seja a que título for, de tais montantes é uma tributação sobre um lucro e um rendimento inexistentes.
I.3 Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:
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No caso em apreço, não existem dúvidas que foram lançados valores nas contas corrente dos sócios e que a origem das transferências para a esfera patrimonial dos mesmos não resulta da restituição de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, mas de fundos gerados pela sociedade, pelo que estão preenchidas as condições do facto base constitutivo da presunção prevista no nº 4 do artº 6º do CIRS.
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A AT provou o facto base, ou seja, que os valores lançados nas contas dos sócios não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, uma vez que, conforme demonstrado no relatório de inspeção, da análise efetuada a toda a documentação enviada pela Requerente, não existe contrato de mútuo, ou pelo menos nunca foi apresentado, tanto no momento da recolha de elementos como no exercício do direito de audição, e, não existe evidência contabilística ou documental de que os montantes recebidos tenham sido pela prestação de trabalho, ou do exercício de cargos sociais.
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As normas de incidência em causa não postulam como pressuposto ou condição da tributação a observância dos requisitos previstos no artº 297.º do CSC ou a existência de uma deliberação em Assembleia Geral de Acionistas.
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Assim como, não relevará para a infirmação da presunção em apreço a inexistência de lucros suscetíveis de distribuição, uma vez que as quantias escrituradas em causa se presumem também como adiantamento de lucros.
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Efetivamente, não cabe à AT o ónus de demonstrar se os lucros ou adiantamento por conta de lucros presumidos foram efetivamente disponibilizados aos sócios da sociedade, porquanto, se tal acontecesse, era o mesmo que impor à AT o ónus de demonstrar a ocorrência do facto presumido.
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Da análise a toda a documentação entregue pela Requerente, bem como aos esclarecimentos prestados a solicitação dos SIT da DF de Portalegre, resulta com mediana clareza de que o contrato de arrendamento apresentado mais não é que uma “operação de cosmética” para querer justificar a saída de fundos da sociedade para a sócia B... .
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Na realidade, sendo o contrato de arrendamento celebrado em 2018, não existe fatura/recibo do pagamento das rendas, nem foram calculados/quantificados os montantes das transferências a efetuar (mesmo depois da candidatura ao IFAP ser apresentada e aprovada) e não foram apresentados elementos relevantes para o esclarecimento adequado do cálculo dos montantes envolvidos, o que contraria o constante no parágrafo único da 9ª do contrato de arrendamento.
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Ademais, os comprovativos dos investimentos efetuados em 2018, em nada coincidem com os investimentos a realizar constantes do “Comprovativo de submissão de candidatura” efetuado junto do IFAP.
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Acrescendo, ainda, que os investimentos nos terrenos arrendados não poderão ser contabilizados em contas da A..., pelo menos enquanto se mantiver em vigor o contrato de arrendamento, e, pela prova documental e contabilística apresentada é claro que saem fundos da A... para a sócia B..., e que esta faz investimentos nos terrenos arrendados, duas realidades económicas e fiscais autónomas e independentes.
II. SANEAMENTO
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e encontram-se legalmente representadas.
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
O processo é o próprio.
Inexistem questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito do pedido.
III. – MATÉRIA DE FACTO
III.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
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Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2021...a Requerente foi alvo de um processo de inspeção tributária relativo ao exercício de 2018.
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Através de ofício datado de 10-12-2021 foi a Requerente notificada do projeto de correções do relatório de inspeção tributária.
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A Requerente exerceu o seu direito de audição prévia no dia 6 de Janeiro de 2022.
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O relatório final de inspeção tributária foi notificado à Requerente no dia 29 de Março de 2022 e tem o seguinte conteúdo:
(…)
(…)
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Na contabilidade da Requerente a conta 2782019 – B... (acionista e administradora), regista no exercício de 2018 um saldo devedor que totaliza o montante de € 45.000,00.
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Os documentos de suporte apresentados para os lançamentos efetuados na conta da acionista, a débito, correspondem a transferências bancárias efetuadas da conta à ordem do sujeito passivo no banco BPI (IBAN n.º PT...), conforme assinalado no extrato de conta ou nos documentos comprovativos de transferências, que indicam como beneficiária a acionista B... (IBANPT...).
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Foi celebrado um contrato de arrendamento, datado de 01.01.2018, entre a Requerente (senhoria) e a Sra. B... (arrendatária) com o seguinte conteúdo:
(…)
(…)
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A Arrendatária apresentou uma candidatura ao apoio do investimento para a produção de vinhos de qualidade no âmbito da PAC-Política Agrícola Comum (PDR 2020) junto do IFAP no dia 23 de Julho de 2017, a qual viria a ser aprovada em 26.06.2020.
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A Requerente foi notificada da liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2018 n.º2022 ..., com data-limite de pagamento de 24 de Maio de 2022.
IV.2. Factos não provados
Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.
IV.3. Motivação da matéria de facto
Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.
Os factos que constam dos números 1 a 9 são dados como assentes pela análise dos documentos 1 a 6 juntos pela Requerente, pelo processo administrativo e pela posição assumida pelas partes.
V. Do Direito
O artigo 5.º do CIRS, epigrafado de “Rendimentos da Categoria E”, dispõe que:
“1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.
2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:
(…)
h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º”.
O artigo 6.º, nº4, do CIRS, o qual sob a epígrafe de “presunções relativas a rendimentos da categoria E”, dispõe que:
“4 - Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”
Com esta presunção o legislador quis resolver a qualificação das quantias escrituradas nas contas correntes dos sócios, cuja "causa" jurídica não tenha sido expressamente declarada, assim conduzindo a que tais montantes tenham o tratamento dos lucros distribuídos. Estamos, portanto, perante presunção legal (estabelecida expressa e diretamente na lei), sendo incidente sobre o facto gerador do imposto. [1]Ora, do teor dos citados normativos retira-se que são considerados rendimentos de capitais sujeitos a incidência de IRS, os lucros, incluindo os adiantamentos por conta de lucros, colocados à disposição dos respetivos titulares, desde que se demonstrem, para o efeito, os factos génese.
A presunção legal estabelecida neste concreto particular encontra-se plasmada no citado artigo 6.º, nº4, do CIRS, da qual deriva, desde logo, que a operatividade da mesma pressupõe, ab initio, um registo em qualquer conta corrente do sócio, que reflita um acréscimo patrimonial na sua esfera jurídica. Daí que, o facto tributário se verifique quando ocorre a colocação do rendimento à disposição do seu titular (cf. artigo 7.º, nºs 1 e 3, alínea a), ponto 2) do CIRS).
A propósito do âmbito, delimitação e acionamento da aludida presunção diz-nos o Aresto do TCA Sul, prolatado no processo nº 06368/13, datado de 31 de março de 2016, que:
“Tendo presente a noção de presunção acolhida no artigo 349.º do Código Civil (“Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”), a distinção, também legalmente estabelecida, entre presunções legais e presunções judiciais (conforme a indução ou inferência é feita pela própria lei, que do facto conhecido presume a existência do facto desconhecido, sem dependência de apreciação do juiz, ou é feita por este através das regras da vida - cfr. artigo 350.º e 351.º do Código Civil) e a relevância ou distinto tratamento de que uma e outra podem ser objecto ao nível da sua infirmação (as presunções legais para serem destruídas, nos casos em que a lei o permite, têm de ser ilididas mediante prova em contrário, no caso de presunção natural, não é necessário fazer a prova do contrário do facto presumido, bastando abalar a convicção resultante da presunção, e não, necessariamente, fazer prova do contrário do facto a que ela conduz – cfr. artigos 350.º,n.º 2 e 351.º do Código Civil)(3), não nos assistem dúvidas quanto a que a presunção de que a Administração Tributária lançou mão constitui uma presunção legal. Isto é, o próprio legislador qualifica como “rendimentos da categoria E”, adiantamentos por conta dos lucros, os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamentos dos lucros. Ou seja, só nos casos ali expressamente previstos é que podem ser presumidos os rendimentos dessa categoria, são estas as únicas situações em que são consentidas presunções quanto a tais rendimentos, resultando esta conclusão inequivocamente dos elementos literal, lógico e sistemático dos normativos que regem a tributação dos rendimentos da categoria E.”
Ora, vista a fundamentação fáctico-jurídica externada e o competente quadro normativo, cumpre aquilatar se a factualidade vertida no probatório legitima o acionamento da presunção, donde a tributação enquanto Categoria E.
Face à factualidade dada como provada, verificamos que:
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a Sra. B... é acionista e administradora da Impugnante;
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Na contabilidade da Requerente a Sra. B... é a beneficiária da conta 2782019, onde consta a débito a quantia de €45.000,00;
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A impugnante transferiu em 2018, para a conta bancária da Sra. B... a quantia de €45.000,00.
A expressão “quaisquer contas correntes dos sócios” do n.º 4, do artigo 6.º, do CIRS, significa que a presunção contida nesta disposição não se limita aos casos em que existam lançamentos a favor dos sócios efetuados na conta 26, podendo abranger lançamentos noutras contas, como no caso em apreço (conta 27).[2]
Constata-se uma saída efetiva de um fluxo económico financeiro do sujeito passivo para a sua acionista.
A Requerente aquando da inspeção tributária e aqui em juízo confirmou que este saldo devedor não resulta de mútuos, da prestação de trabalho nem do exercício de cargos sociais, mas sim, de uma alegada obrigação contratual resultante de um contrato de arrendamento.
Porquanto, os elementos base da presunção estão presentes na situação descrita nos autos, até porque nada consta que esse valor tenha sido devolvido à Requerente.
Alega a contribuinte que, para que a quantia de €45.000,00 pudesse ser considerada um adiantamento por conta dos lucros, seria necessária uma deliberação pelo órgão de administração da sociedade (art. 297º, n.º1, al . a) do CSC) a deliberar a sua distribuição.
Sucede que, não está aqui em causa avaliar a legalidade, ou não, do adiantamento, na perspetiva da relação dos acionistas com a sociedade. Porquanto, não é exigível o formalismo a que alude o art. 297º, n.º1 do CSC. Citando o Prof. José Guilherme Xavier de Basto: “A previsão de presunções deriva da própria natureza dos rendimentos de capitais, alguns deles de relativamente fácil sonegação.”[3]
Note-se, ademais, que conforme expendido no Acórdão do TCA Norte, prolatado no processo nº 00446/11, de 07 de julho de 2016: “[a] norma do artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do CIRS não exige a escrituração formal dessa realidade como pressuposto de incidência, mesmo porque “deixar ao critério do sujeito passivo a “classificação” como adiantamento por conta de lucros, de realidades da vida corrente das sociedades comerciais, que constituem verdadeiros desvios de fundos em proveito dos sócios, seria frustrar o interesse público do Estado na arrecadação de impostos e no combate à fraude e evasão fiscais e permitir que ficassem por tributar verdadeiros incrementos patrimoniais dos sócios”. É comummente aceite que quando os lucros distribuídos ou adiantamento por conta de lucros são devidamente escriturados, estamos perante um rendimento sujeito a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares. Porém, o mesmo não acontece quanto uma parte do património das sociedades é afectado ou onerado, por contrapartida da transferência duma parte deste, de modo permanente e definitivo, para a esfera jurídica de um associado ou titular, sem que às mesmas operações lhes sejam dados os qualificativos de "lucros distribuídos" ou "adiantamentos por conta dos lucros".
No mesmo sentido cita-se o Ac. do TCA Sul de 11.01.2023, proc. n.º 317/20.8 BEALM
“VI-A norma do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS, não exige a escrituração formal dessa realidade como pressuposto de incidência.”
Alega ainda a Impugnante que:
a) A AT não demonstrou que os lançamentos feitos na conta 2782019 B... têm a natureza de adiantamento por conta dos lucros;
b) No exercício de 2018 não teve lucros que permitam fazer qualquer distribuição.
Com efeito, a AT não tem de provar que os lançamentos e subsequentes transferências para a Sra. B... são a título de adiantamento por conta dos lucros porque tal equivaleria a impor à AT o ónus de demonstrar a ocorrência do facto presumido.
Citando a decisão do CAAD de 25.06.2013, proferido no processo n.º 131/2012-T:
“Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz – n.º 1 do art. 350.º do CC.”
No que diz respeito à inexistência de lucros em 2018, tal avaliação só poderia ser feita pela análise do balanço, o que não foi feito, e não pela análise da demonstração dos resultados por naturezas do exercício de 2018, que se revela insuficiente por não ter em conta os exercícios anteriores.
Mais, citando a decisão do CAAD de 28.02.2018, proferido no processo n.º 395/2017-T, cuja fundamentação aderimos:
“Assim, e desde logo, não relevará para a infirmação da presunção em apreço a inexistência de lucros susceptíveis de distribuição, uma vez que as quantias escrituradas nos termos em questão se presumem também como adiantamento de lucros.”
No mesmo sentido, vejamos a decisão do CAAD no processo n.º23/2019-T de 12.11.2019, que se cita:
“Não pode aderir-se a esta conceção de índole formalista e desprovida de suporte nas normas de incidência de IRS. A questão jurídica da admissibilidade da distribuição de lucros, designadamente no tocante ao cumprimento de rácios de capitais próprios ou outros indicadores, não é recortada como condição negativa pela norma de incidência do artigo 5.º do Código do IRS ou pelo artigo 6.º, n.º 4 do mesmo diploma. Aliás, se tal entendimento fosse procedente, estava aberto o caminho para o desfecho paradoxal de se tributarem como rendimentos de capitais os adiantamentos por conta de lucros efetuados de acordo com a legislação comercial, deixando-se sem qualquer tributação aqueles que fossem feitos em infração dessas regras. O princípio geral que rege o direito fiscal é o de que a ilicitude ou irregularidade não compromete a tributação que seja devida, de acordo com o preceituado no artigo 10.º da LGT, para além de que, como se disse acima, as normas de incidência em exame não postulam como pressuposto ou condição da tributação a observância dos requisitos previstos no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais ou a existência de uma deliberação em Assembleia Geral de acionistas”
Daqui resulta que, atento o disposto no n.º 4 do art.º 6.º do CIRS, reunidos que estejam os seus pressupostos (ou seja, a existência de lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais), presume-se que estamos perante lucros ou adiantamento dos lucros, presunção essa que, tendo presente o disposto no art.º 73.º da Lei Geral Tributária (LGT), é passível de prova em contrário.
Assim, nestes casos, compete, num primeiro momento, à AT demonstrar os pressupostos da sua atuação. Demonstrados tais pressupostos, caberá ao sujeito passivo a prova de que os valores em causa não corresponderam a lucros ou seu adiantamento, nomeadamente por resultarem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.
Citando o Ac. do TCA Sul de 28.11.2019, proc. n.º 613/12.8 BEALM:
“2. A ilisão da presunção faz-se através da demonstração do contrário do facto base da presunção, ou seja, aduzindo justificação consistente para os pagamentos feitos ao sócio.”
Estando em causa a pretensa elisão de uma presunção legal relativa (iuris tantum), impendia sobre a impugnante, o ónus de produzir prova do contrário (cfr.artº.350, nº.2, do CC), ou seja, de desenvolver atuação probatória dirigida contra o casuístico facto presumido, com o objetivo e de molde a convencer o julgador de que, não obstante a ocorrência do facto (lançamentos em conta corrente da acionistas, escriturada na sociedade comercial) que serve de base ao funcionamento da presunção invocada, o facto presumido não se verificou e/ou o direito presumido não existe. Acresce, tratando-se da presunção prevista no artº.6, nº.4, do C.I.R.S., por força do disposto, de forma expressa, no nº.5 do mesmo normativo, a necessidade incontornável de a mesma poder ser ilidida pelos quatro meios de prova aí previstos, decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos.
Consequentemente, tendo a Administração Tributária demonstrado a legalidade do seu agir, incumbia à Requerente o ónus da elisão da identificada presunção. Para este efeito, junta um contrato de arrendamento de três prédios rústicos, onde consta como senhoria e a Sra. B... consta como arrendatária. Nesse contrato, supostamente, a Senhoria ficaria responsável pelo pagamento de todas as benfeitorias que a Arrendatária efetuasse e não fossem comparticipadas pela IFAP no âmbito da política agrícola comum. Esta obrigação justificaria, na perspetiva da Impugnante, o débito de €45.000,00 na conta 2782019 – B...- e as subsequentes transferências bancárias feitas para a acionista. Cabia à Impugnante demonstrar a relação entre o débito na referida conta e as suas obrigações assumidas no contrato de arrendamento.
É indubitável que o débito na conta 2782019 não resulta de mútuos, da prestação de trabalho nem do exercício de cargos sociais.
Mais, suscitam-se as seguintes inconsistências:
1) O valor de débito (€45.000,00) na conta 2782019 não corresponde ao valor da suposta dívida decorrente do contrato de arrendamento (€52.845,94)(doc. 6 do ppa.);
2) Não existem recibos de pagamento de qualquer renda relativa ao contrato de arrendamento;
3) O contrato de arrendamento não prevê qualquer forma ou mecanismo de cálculo, nem qualquer limite, no valor a pagar à Arrendatária pelas benfeitorias que realizasse;
4) A candidatura ao apoio do investimento para a produção de vinhos de qualidade no âmbito da PAC-Política Agrícola Comum (PDR 2020), junto do IFAP, foi apresentada dia 23 de Julho de 2017. Contudo o contrato de arrendamento só foi celebrado em data posterior -01.01.2018;
5) Alega a Requerente (art. 22º do ppa) que assumiu a obrigação de custear as despesas relativas ao investimento a realizar pela Arrendatária, partir da data da apresentação da candidatura (23.07.2017) ao PAC, ou seja, antes de ter celebrado o contrato de arrendamento (01.01.2018), onde assume essa obrigação. Esta alegação é contrária às regras de experiência comum, as quais ditam que, em regra, existindo um contrato formal, as partes assumem as obrigações e deveres nele constantes a partir dessa data, até porque, o contrato é omisso no que diz respeito a supostos efeitos retroativos;
6) O pagamento de uma suposta obrigação da Requerente, resultante do contrato de arrendamento, onde é senhoria, gera na contabilidade da Requerente um débito sobre a acionista;
7) Os supostos gastos da Requerente são documentados com faturas emitidas por terceiros a favor da acionista;
8) As benfeitorias supostamente pagas à Arrendatária são tituladas por faturas relativas à compra de plantas (fatura FT2018-A1/860 - €7.245,31), ripagem dos terrenos (fatura n.º180112 - €22.164,60), projeto de eletrificação (FA 68 - €1.107,00) e ligação à rede elétrica – fatura 20628120825 - €22.329,03). Sucede que, a Requerente não desenvolve a atividade agrícola;
9) As supostas benfeitorias foram efetuadas em 2018 e a candidatura ao PAC foi aprovada em 2020. Contudo, o suposto movimento a crédito na conta 2782019 ainda não foi feito, revelando-se assim definitiva a transferência feita para a acionista;
10) A impugnante não estabelece de forma detalhada qualquer ligação entre os valores e verbas da candidatura ao IFAP pela arrendatária (doc. 5 do ppa) e o valor do débito da acionista, até porque os valores não são coincidentes.
Destarte, a Impugnante não cumpriu o seu ónus probatório. Considerando todo exposto, onde se evidenciam as diversas inconsistências da documentação apresentada, a versão apresentada pela Impugnante, atenta a prova produzida, não é de molde a permitir elidir a presunção no sentido que as importâncias correspondentes ao saldo devedor do ano de 2018, entregue à Sra. B..., correspondem a adiantamentos por conta de lucros, tal como entendeu a AT.
Ainda que assim não fosse, dispõe o art.º 74.º, n.º 1 da LGT que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.” O legislador do art. 6º, n.º4 do CIRS prevê um ónus especial da prova ao contribuinte, afastando a aplicação da regra geral prevista no art. 100º, n.º1 do CPPT[4]. No Código Civil, quanto a ónus da prova, determina o art.º 342.º, n.º 1 que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.” Em coerência, dispõe por sua vez o CPC no seu art.º 414.º, aplicável ex vi art. 29, n.º1, al. e) do RJAT, sob a epígrafe “Princípio a observar em casos de dúvida”, que “A dúvida sobre a realidade de um facto (...) resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.”[5].
Destarte, julga-se improcedente a presente ação.
VI) DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar integralmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2018 n.º2022 e em consequência absolver a Requerida do pedido;
c) Condenar a Requerente nas custas do processo face ao decaimento.
Fixa-se o valor do processo em €14.220,01 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n. º1 do artigo 29.º do RJAT e do n. º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de maio de 2023
O Árbitro
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(André Festas da Silva)
[1] Cf. Ac. do TCA Sul, 11/01/2011, proc.4357/10; Ac.do TCA Sul, 05/02/2015, proc.8216/14; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.337 e seg.; Rui Duarte Morais, Sobre o I.R.S., 3ª. edição, Almedina, 2014, pág.102.
[2] Cf. decisão do CAAD, proc. n.º 371/2020-T de 25.11.2020
[3] In IRS - Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág. 338
[4] Neste sentido cf. Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado, Áreas Editora, 6º ed., 2011, pág. 133 e Ac. do TCA do Sul de 04.06.2015, proc. n.º 07453/14
[5] Neste sentido cf. decisão do CAAD de 19.07.2022, proc. n.º 744/2021
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