Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 614/2022-T
Data da decisão: 2023-05-04  IRS  
Valor do pedido: € 64.319,98
Tema: IRS - Exceção dilatória de incompetência material do tribunal.
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SUMÁRIO:

O tribunal arbitral não tem competência para apreciar a pretensão de anulação de um despacho através do qual o sujeito passivo é convidado a substituir a declaração de rendimentos anteriormente submetida.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Fernando Borges Araújo (Presidente), Gustavo Gramaxo Rozeira e Paulo Nogueira da Costa (relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 27 de dezembro de 2022, acordam no seguinte:

 

I – RELATÓRIO

  1. A..., titular do número de identificação fiscal..., e B..., titular do número de identificação fiscal..., unidos de facto, residentes em Rua..., n.º ..., ..., ...-... Caparica, vieram, ao abrigo do artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO, tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato que determina a substituição da Declaração de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares com a identificação 2021-...-...-..., referente ao ano de 2021, e, em consequência, a declaração da validade da Declaração de Rendimentos apresentada, excluindo-se de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa realizada pelos Requerentes com base no disposto no artigo 10.º, n.º 5 do CIRS.
  2. Os Requerentes alegam ser válida a Declaração de Rendimentos submetida, referente ao ano de 2021, a qual inclui os valores inseridos no quadro 5 do Anexo G do Modelo 3, onde se declaram rendimentos de mais-valias decorrentes da alienação onerosa de um imóvel que, no entender dos Requerentes, constituía habitação própria e permanente dos mesmos, bem como o reinvestimento de parte do valor obtido com a referida alienação na aquisição de um imóvel afeto à mesma finalidade, nesse mesmo ano, em Portugal, pelo que tais valores respeitantes a mais valias, no valor de € 64.319,98 (sessenta e quatro mil trezentos e dezanove euros e noventa e oito cêntimos), se encontrariam excluídos de tributação, contrariamente ao entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira.
  3. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).
  4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 17-10-2022.
  5. A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 23-10-2022.
  6. Os signatários foram designados como árbitros pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos termos dos números 2, alínea a), e 3 do artigo 6.º do RJAT, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e nos termos legalmente previstos.
  7. Em 09-12-2022 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  8. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 27-12-2022.
  9. Em 03-01-2023 foi a Requerida notificada para apresentar Resposta;
  10. A Requerida apresentou a sua Resposta em 02-02-2023, na qual apresenta defesa por exceção e por impugnação.
  11.  Por exceção, a Requerida invoca o erro na forma do processo e a incompetência material do tribunal arbitral em razão da matéria, considerando que os Requerentes não impugnam um ato de liquidação nem um ato de fixação da matéria coletável, mas sim “(…) o ato que determina a substituição da Declaração de Imposto sobre o Rendimento de pessoas Singulares com a identificação 2021-...-...-..., referente ao ano de 2021”.
  12. Entende a Requerida que, atendendo à inexistência de um ato tributário e ao disposto no artigo 2.º do RJAT, se verifica a exceção dilatória de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria.
  13. Sem prescindir, e à cautela, a Requerida apresenta defesa por impugnação, na qual sustenta que o imóvel alienado em março de 2021 (identificado nos autos) nunca foi afeto a habitação própria e permanente dos Requerentes, o que é evidenciado pelos elementos constantes da base de dados do património – matriz predial – e da base de dados do imposto do selo – arrendamento, bem como pela existência de recibos de renda de outro imóvel, em que o Requerente é arrendatário, desde 2015-04-01 a 2021-12-31, ininterruptamente, concluindo que deve ser julgado improcedente o pedido de pronuncia arbitral e, consequentemente, absolvida a Requerida do pedido.
  14. Em 06-02-2023, o Tribunal arbitral proferiu despacho para os Requerentes se pronunciarem, querendo, sobre a matéria de exceção contida na resposta da AT.
  15. Em 20-02-2023, os Requerentes pronunciaram-se sobre a exceção invocada pela Requerida, sustentando, em síntese, que o ato que é objeto do pedido de pronúncia arbitral “interfere diretamente com a determinação da matéria coletável”, pelo que o tribunal arbitral é competente para apreciar o pedido, com base no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, que determina a competência dos tribunais arbitrais para apreciar atos de determinação da matéria coletável, concluindo que a exceção invocada pela Requerida deve ser julgada improcedente.
  16. Por despacho arbitral de 13-03-2023, o Tribunal decidiu dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e conceder às Partes prazo para, querendo, apresentarem alegações escritas. Determinou, ainda o Tribunal que fossem notificados os Requerentes para juntarem cópia da Declaração Mod. 3 de IRS referente ao ano de 2021.
  17. Os Requerentes apresentaram as suas alegações em 24-03-2023, aí reiterando, no essencial, os argumentos contidos no pedido de pronúncia arbitral, e juntaram aos autos cópia da Declaração Mod. 3 de IRS referente ao ano de 2021.
  18. A Requerida apresentou as suas alegações em 03-04-2023, mantendo integralmente o teor da sua Resposta.

 

II – FACTOS RELEVANTES

§1.       Factos provados

  1. Consideram-se provados os seguintes factos:
    1. Os Requerentes entregaram a declaração de rendimentos Mod.3 de IRS referente ao ano fiscal de 2021 em 08-06-2022,
    2. O Quadro 4 do Anexo G da referida declaração de rendimentos, referente a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, continha os seguintes elementos:

 

 

  1. O Quadro 5 do Anexo G da referida declaração de rendimentos continha os seguintes elementos:

 

 

  1. No dia 09-06-2022, os Requerentes foram informados, mediante correio eletrónico enviado pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que a sua Declaração de rendimentos Modelo 3, com a identificação .../42, fora selecionada para análise;
  2. No dia 17-06-2022, o Requerente A... apresentou na sua área pessoal, no site da Autoridade Tributária, a justificação relativa aos valores declarados no quadro 5 do anexo G do Mod. 3 de IRS, referente ao ano fiscal de 2021, tendo juntado, para o efeito, a documentação que serviu de base ao preenchimento desse quadro;
  3. No dia 09-08-2022, o Requerente A... remeteu através do portal das finanças, uma vez mais, os documentos que, em seu entender, deveriam ser analisados com vista à resolução da divergência;
  4. No dia 17-08-2022, o Requerente A... foi informado eletronicamente de que a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha identificado uma divergência na Declaração de IRS 2021-...-... -... apresentada, com a indicação de que deveria proceder à entrega de uma declaração de substituição, retirando os valores declarados no quadro 5 do anexo G, com o fundamento de que não cumpria os requisitos do n.º 5 do art. 10.º do CIRS, nomeadamente porque o imóvel vendido não se encontrava afeto a habitação própria e permanente dos sujeitos passivos;
  5. No seguimento da comunicação de 17-08-2022, o Requerente A... apresentou a respetiva justificação, juntando documentos emitidos pelo Instituto dos Registos e do Notariado, através dos quais procurou provar que fazia do imóvel em causa a sua habitação própria e permanente;
  6. No dia 22-08-2022, o Requerente A... foi notificado pela Autoridade Tributária de que “Da análise efetuada aos últimos documentos apresentados na divergência identificada na declaração IRS 2021-...-...-..., informamos que não comprova que o imóvel vendido era habitação própria e permanente à data da alienação. Para encerramento deste processo deverá entregar declaração de substituição e retirar os valores declarados no quadro 5 do anexo G”;
  7. No dia 26-09-2022, os Requerentes dirigiram um requerimento à Autoridade Tributária e Aduaneira, em concreto ao Chefe do Serviço de Finanças do Serviço de Finanças ...– Almada ..., onde expuseram os fundamentos de facto e de direito que, em seu entender, excluem de tributação a mais-valia em questão;
  8. No dia 28-09-2022, o Requerente A... foi notificado, por correio eletrónico, de que, da análise aos últimos documentos e “argumentos” apresentados, a Autoridade Tributária e Aduaneira mantém o seu entendimento, de que o imóvel em causa não constituía habitação própria e permanente dos Requerentes à data da alienação;
  9. Não foi praticado qualquer ato de fixação da matéria coletável;
  10. No dia 14-10-2022 foi apresentado o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;
  11. À data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, não existia qualquer liquidação referente ao IRS de 2021 dos Requerentes.

 

§2. Factos não provados

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

  1. Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Os factos pertinentes para a decisão são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito [cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental junta aos autos, e considerando as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

III – APRECIAÇÃO DA EXCEÇÃO DILATÓRIA DE INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL EM RAZÃO DA MATÉRIA

  1. Cumpre conhecer da exceção de incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, suscitada pela Requerida.
  2. O artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), estabelece o seguinte:

Artigo 2.º

Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;

c) (Revogada).

2 - Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade.

 

  1. Atendendo aos factos dados como provados, conclui-se que os Requerentes não impugnam qualquer ato de liquidação.
  2. E, contrariamente ao que sustentam os Requerentes, também não está em causa qualquer ato de fixação da matéria tributável.
  3. Em síntese, os Requerentes entendem que a matéria coletável é determinada com base na declaração de rendimentos e, consequentemente, se a AT determina a substituição da declaração de rendimentos entregue está a “praticar um ato que interfere diretamente com a determinação da matéria coletável”.
  4. Sucede que o convite da AT dirigido aos Requerentes para corrigirem a declaração entregue, substituindo-a por uma nova declaração, não produz qualquer efeito imediato na esfera jurídica dos Requerentes.
  5. Se os Requerentes não procederem à correção e substituição da declaração de rendimentos, caberá à AT proceder à correção dos valores constantes da declaração, se entender que existe fundamento para tal.
  6. Caso haja liquidação do imposto, os Requerentes poderão impugnar o ato de liquidação, em conformidade com o princípio da impugnação unitária, expresso nos artigos 54.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e 66.º da Lei Geral Tributária (LGT).
  7. O n.º 1 do artigo 66.º da LGT permite que os contribuintes e demais interessados, no decurso do procedimento, reclamem de quaisquer atos ou omissões da administração tributária, mas, conforme estabelece o n.º 2 do mesmo artigo, essa reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados “recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade”.
  8. O artigo 54.º do CPPT, que tem por epígrafe “impugnação unitária”, determina que “[s]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida”.
  9. No caso vertente, não estamos perante qualquer ato que seja imediatamente lesivo dos direitos dos Requerentes, nem existe disposição legal expressa que permita a impugnação contenciosa do ato interlocutório em causa.
  10. Nestes termos, verifica-se a incompetência deste tribunal em razão da matéria.
  11. A incompetência do tribunal em razão da matéria configura uma exceção dilatória, a qual é causa de extinção da instância e implica a absolvição da Requerida da instância, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), e 577.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
  12. Extinta a instância, não há lugar à apreciação, no mérito, das demais questões suscitadas pelas partes.

 

IV – DECISÃO

Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

  1. absolver da instância a Requerida, verificando existir uma exceção dilatória quanto à competência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, o que o impede de exercer o seu poder jurisdicional;

b) considerar prejudicada a apreciação de outras questões suscitadas;

c) condenar os Requerentes no pagamento das custas processuais.

 

V- VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 64.319,98.

 

VI – CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de maio de 2023

 

 

 

 

 

Os árbitros,

 

Fernando Araújo

(Presidente)

                                                                                                                

 

Paulo Nogueira da Costa

(Relator)

 

 

Gustavo Gramaxo Rozeira