Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 398/2022-T
Data da decisão: 2023-05-02  IVA  
Valor do pedido: € 182.531,79
Tema: IVA - Locação financeira. Pro rata. Direito à dedução. Circular. Inconstitucionalidade.
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SUMÁRIO:

1. Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a Administração Tributária apenas pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando esteja demonstrado casuisticamente que a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação.

2. O normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Directiva.

3. Termos em que a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do "coeficiente de imputação específico" indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, não tendo o legislador feito uso  da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fracção.

DECISÃO ARBITRAL

I. Relatório

1. No dia 30-06-2022, o sujeito passivo A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, com o número de identificação fiscal ..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, nº1, alínea a), 3º, nº1, e 10.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, solicitando a apreciação da legalidade da autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), respeitante ao último período de 2019, com o n.º 112274416281, submetida a 10 de Fevereiro de 2020, e, bem assim, da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada no âmbito do procedimento n.º ...2021... .

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou como Árbitros deste processo a Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs  (Presidente), o Dr. Jorge Carita e o Prof. Doutor Luís Menezes Leitão  (relator), disso notificando as partes.

3. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula os seguintes:

4.1. A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral aprecie a legalidade da autoliquidação de IVA, respeitante a Dezembro de 2019, com o n.º ..., submetida a 10 de Fevereiro de 2020, e, bem assim, da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra aquele ato tributário.

4.2. A Requerente considera que os referidos actos enfermam de erro sobre os pressupostos de facto e de direito e, por via disso, de vícios de diversa ordem, razão pela qual solicita a emissão de pronúncia tendente às respetivas anulações, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo.

4.3. A Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a actividade comercial prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.

4.4. No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção plasmada no artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA – como as operações de financiamento e de concessão de crédito e, bem assim, as operações associadas a pagamentos –, as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado.

4.5. No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção plasmada no artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA – como as operações de financiamento e de concessão de crédito e, bem assim, as operações associadas a pagamentos –, as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado.

4.6. A Requerente realiza ainda operações que conferem o direito à dedução deste imposto nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, como sejam, entre outras, as operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos.

4.7. Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, do CIVA.

4.8. Tal sucedeu, desde logo, quanto à aquisição dos bens – como viaturas – objecto dos contratos de locação financeira, relativamente à qual foi deduzido, na íntegra, o IVA suportado, dado estar directamente ligada a operações tributadas realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira –, as quais conferem o direito à dedução do imposto.

4.9. Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

4.10. Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas e, simultaneamente, logrou determinar critérios objetivos do nível de utilização efetiva, aplicou o método da afectação real estabelecido no artigo 23.º, n.º 2, primeira parte, do CIVA.

4.11. O que sucedeu, nomeadamente, quanto aos encargos especificamente associados à aquisição de terminais de pagamento automático.

4.12. Com vista a determinar o quantum de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectos indistintamente às diversas operações por si realizadas [i.e., aos recursos indiferenciados – como os consumos de eletricidade, água, papel, material informático (hardware e software), telecomunicações, etc.], a Requerente aplicou o método de dedução plasmado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA.

4.13. Face às características específicas da actividade bancária, nomeadamente ao facto desta actividade traduzir-se na realização de operações que se desenvolvem e concretizam, muitas vezes, em simultâneo, torna-se inviável a aplicação de uma contabilidade analítica que permita à Requerente quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos indiferenciados afectos à sua atividade, nomeadamente à actividade de locação financeira e, concomitantemente, às suas diversas operações.

4.14. Por referência ao ano de 2019, a Requerente entregou as correspondentes declarações periódicas de IVA e procedeu ao pagamento do imposto delas resultante.

4.15. Os contratos de locação financeira celebrados pela Requerente (enquanto locadora) duram em média 5 anos.

4.16. Em regime de exclusividade, a Requerente afecta à actividade de locação financeira um colaborador, o qual, sendo responsável pela gestão de uma caixa de correio interna referente a esta atividade, direcciona para a área competente as questões e vicissitudes resultantes da vigência dos contratos de locação financeira.

4.17. Em regime de não exclusividade, a Requerente afecta ainda cerca de 10 a 15 colaboradores à atividade de locação financeira e, adicionalmente, todos os gestores de cliente tratam de questões referentes aos contratos de locação financeira.

4.18. A atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente divide-se em dois grupos de operações: (i) as operações de disponibilização e utilização dos bens locados; (ii) a operação de financiamento propriamente dita.

4.19. A Requerente dispõe de 10 a 15 balcões, podendo os clientes dirigir-se a qualquer balcão do seu segmento (consoante sejam particulares ou empresas) com vista a dar início ao processo de celebração do contrato de locação financeira.

4.20. A Requerente acorda com o cliente as condições de financiamento da aquisição do bem e, sendo obtida a aprovação da concessão do crédito, tal informação é transmitida à área de Compras para que efetue a compra do bem junto do fornecedor aprovado.

4.22. Nessa sequência, a área de Compras estabelece contacto com o fornecedor aprovado, no sentido de concretizar o processo de aquisição do bem e, subsequentemente, o disponibilizar ao cliente.

4.23. As operações disponibilização e utilização dos bens locados implicam a intervenção de diversas áreas internas da Requerente, nomeadamente:

• As áreas de negócio: Banca de Retalho ou Banca de Empresas e Corporativa;

• A Direcção de Risco, responsável por avaliar as propostas apresentadas pelas áreas supra e por estabelecer as condições do negócio, assegurando a aprovação de operações financeiramente sustentáveis;

• A área de Desenvolvimento de Negócio, área responsável pela validação e fixação dos preços de cada operação, prestando igualmente apoio à área específica de negócio e balcão;

• A Direcção de Compras, área que concretiza a operação de aquisição do bem a locar;

• A Direcção de Operações, área que apoia na concretização das operações de aquisição, disponibilização, utilização e transmissão do bem locado;

• A Direcção Jurídica, área que apoia na concretização das relações jurídicas que se estabelecem no âmbito desta atividade;

• A Direcção Financeira, área que presta assessoria contabilística e fiscal, nomeadamente, na avaliação dos respetivos impactos no balanço da Requerente.

4.24. A actividade de locação financeira da Requerente rege-se por um manual de procedimentos, aplicado por todos os funcionários da Requerente.

4.25. A partir do ano de 2018 (inclusive), a Requerente deixou de celebrar contratos de locação financeira.

4.26. Tal deveu-se ao facto de os novos contratos terem passado a ser celebrados por uma entidade independente do Grupo B..., a C..., S.A., com sede na..., n.º... (F/G/H), ..., ..., ...-... Lisboa, titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ... .

4.27. Em consequência, no ano de 2019, a Requerente era responsável pelos contratos de locação financeira celebrados até ao ano de 2017 e ainda vigentes (“contratos antigos”).

4.28. No ano de 2019, a carteira da Requerente ascendia a 299 contratos de locação financeira: 138 referentes a automóveis; 161 referentes a bens de equipamento.

4.29. Em termos pecuniários, os 138 contratos de locação financeira (relativos a automóveis) ascendiam a cerca de € 3.094.278,14 e os 161 contratos de locação financeira (relativos a equipamento) ascendiam a cerca de € 7.090.998,19.

4.30. No ano de 2019, as operações realizadas pela Requerente associadas à utilização dos bens locados consumiram mais recursos indiferenciados [i.e., consumos de eletricidade, água, papel, material informático (hardware e software), telecomunicações, etc.] do que as operações, igualmente realizadas pela Requerente, associadas ao financiamento propriamente dito.

4.31. Tal deve-se ao carácter automatizado (i.e., informatizado) das operações associadas ao financiamento propriamente dito, ao facto de as situações de incumprimento (atraso ou falta de pagamento de rendas) serem residuais e à circunstância de as tarefas integrantes de tais operações não diferirem das tarefas realizadas no âmbito da actividade core da Requerente (i.e., a actividade de concessão de crédito).

4.32. Diferentemente do que sucede quanto às operações associadas à utilização dos bens locados, as quais pressupõem uma maior intervenção humana e assumem um carácter mais personalizado e, por conseguinte, requerem um maior dispêndio de recursos (incluindo de recursos indiferenciados).

4.33. Além disso, quando os bens locados são equipamentos ou maquinaria com caraterísticas técnicas específicas, exigem maior know-how e, por conseguinte, recursos (incluindo humanos) em conformidade e, bem assim, uma análise de risco (quer de crédito quer ao nível da cobertura de seguro) mais complexa.

4.34. A título de exemplo, no âmbito das operações de utilização dos bens locados, a Requerente efetua as seguintes tarefas:

•  No que respeita a seguros: controlo da sua validade;

• No que respeita a infrações associadas a veículos: monitorização das multas ou coimas por infracções ao Código da Estrada; controlo das portagens não pagas e respectivas coimas; adopção de medidas destinadas à resolução destas situações de incumprimento;

• No que respeita a obrigações tributárias: cumprimento e controlo das obrigações tributárias, como, por exemplo, no caso de veículos, pagamento do Imposto Único de Circulação;

• No que respeita a avarias: selecção e controlo das entidades responsáveis pela reparação dos veículos e equipamentos;

• No que respeita a salvados: selecção de sucateiros e venda daqueles a estes;

• No que respeita à ocorrência de acidentes: contacto com as empresas seguradoras;

• No que respeita ao não exercício pelo locatário da opção de compra no final do contrato: realização de todas as diligências necessárias à venda do bem locado.

4.35. Todas essas tarefas ocorrem apenas nos contratos de locação financeira (já não nos contratos de concessão de crédito), sendo próprias deste tipo de contratos.

4.36. No âmbito da actividade de locação financeira, as comissões cobradas pela Requerente não visam compensar diretamente o consumo de recursos indiferenciados, correspondendo a um montante mínimo, com poucas (ou nenhumas) flutuações de ano para ano, determinado em linha com os demais concorrentes no mercado.

4.37. Não existe uma ligação directa entre os recursos indiferenciados e as rendas cobradas pela Requerente aos seus clientes no âmbito da actividade de locação financeira, pelo que aqueles recursos não são diretamente repercutidos pela Requerente no preço destas rendas.

4.38. De acordo com o Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA, para efeitos de dedução do IVA incidente sobre recursos indiferenciados por sujeitos passivos que prossigam a atividade de locação financeira, “(…) deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD”.

4.39. No ano de 2019, aplicando o entendimento vertido no referido Ofício-Circulado, a Requerente deduziu provisoriamente, a título de IVA, o montante de €253.198,05.

4.40. Esta dedução foi apurada considerando apenas os juros e outros encargos relativos à atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente [ou seja, desconsiderando o capital (i.e., a amortização financeira) incluído nas rendas auferidas pela Requerente no âmbito de tal atividade].

4.41. Neste contexto, na declaração periódica de IVA de Dezembro de 2019, a Requerente deduziu a título definitivo IVA o montante de €456.329,47, decorrente do apuramento de uma percentagem de dedução definitiva de 10%.

4.42. A Requerente não concorda com a posição expressa no referido Ofício-Circulado, entendendo, ao invés, ser de incluir no numerador e denominador da respetiva fracção de cálculo, não apenas os juros e encargos similares, mas, também, a componente do capital (i.e., da amortização financeira) associado à actividade de locação financeira.

4.43. Pelo que, no entender da Requerente, a mesma tem direito a deduzir IVA no montante global de €638.861,25, decorrente do apuramento de uma percentagem de dedução definitiva de 14%.

4.44. Em face do exposto, a 28 de Dezembro de 2021, a Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IVA n.º ..., tendo solicitado a respetiva correcção, no montante de 182.531,79 EUR (638.861,25 EUR – 456.329,47 EUR), a título de imposto indevidamente não deduzido.

4.45. Em Fevereiro de 2022, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, porque a AT "pode obrigar um banco que exerce, nomeadamente, a atividade de locação financeira, a incluir, no numerador e denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes nos contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e para gestão desses contratos, e não pela disponibilização dos veículos".

4.46. A 1 de Abril de 2022, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, tendo a Autoridade Tributária convertido em definitivo o entendimento anteriormente projetado.

4.47. O mencionado Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, sob a autoproclamada intenção de divulgar a correcta interpretação a conferir ao artigo 23.º do CIVA, determina a aplicação imperativa do método da afectação real, assente num “coeficiente de imputação específico”, às instituições de crédito que desenvolvam a atividade de locação financeira.

4.48. Discorda a Requerente do entendimento veiculado no referido Ofício-circulado, considerando, ao invés, ser-lhe aplicável o método do pro rata estabelecido no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA, entendendo por isso ascender o IVA dedutível ao montante de €638.861,25, impondo-se a restituição da diferença, correspondente ao imposto por si indevidamente suportado, no montante de €182.531,79 (€638.861,25 – €456.329,47), acrescido de juros indemnizatórios.

4.49. Isto porque, de acordo quer com a doutrina quer com a jurisprudência europeia, o direito à dedução do IVA, manifestação do princípio da neutralidade, visando libertar integralmente os operadores económicos do encargo do imposto suportado no âmbito da sua actividade, não pode, em princípio, ser limitado, designadamente através da desconsideração, no cálculo do montante a deduzir, de certo quantitativo que, de outro modo, contribuiria para a formação do crédito de imposto.

4.50. Ora, na situação sub judice, tendo presente que o IVA incide sobre a totalidade das rendas obtidas pela Requerente decorrentes dos contratos de locação financeira por si celebrados, o critério preconizado pela Autoridade Tributária, na medida em que impede a dedução do imposto na proporção das receitas provenientes dessas rendas, sem que se demonstre a inadequação da utilização do método do pro rata, não se coaduna com o princípio da neutralidade fiscal.

4.51. Resulta assim evidente que uma interpretação conforme ao princípio da neutralidade fiscal – princípio basilar do sistema comum do IVA – necessariamente imporá a desconsideração do entendimento vertido pela Autoridade Tributária no âmbito do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, conforme adiante melhor se explanará.

4.52. De acordo com o artigo 23.º, n.os 2, parte final, e 3, do CIVA, a Autoridade Tributária pode fazer cessar o método aplicado pelo sujeito passivo [método da afetação real (com base em critérios objetivos) ou método do pro rata], impondo-lhe condições especiais, caso aquele método provoque ou seja suscetível de provocar distorções significativas na tributação.

4.53. Supostamente a coberto desta norma, a Autoridade Tributária prevê no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, que “sempre que não seja possível a aplicação [do método da afectação real com base em] (…) critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado [o método da afectação real com base] [n]um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA”.

4.54. Ora, os Ofícios-Circulados são meras orientações administrativas, as quais, apesar da sua juridicidade, não são suscetíveis de vincular os contribuintes, nem os tribunais, à interpretação da lei efectuada pela Autoridade Tributária, revestindo eficácia puramente interna (i.e., apenas são oponíveis no seio da Autoridade Tributária).

4.55. Assim sendo, à luz dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, o referido regime não pode ser imposto por ofício-circulado.

4.56. Ora, sendo as regras sobre o direito à dedução regras de incidência objectiva, na medida em que determinam a matéria colectável em sede de IVA, o artigo 23.º, n.os 2, parte final, e 3, do CIVA, ao permitir que tais regras sejam determinadas pelo Ofício-circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, bule necessariamente com os referidos preceitos constitucionais.

4.57. Na situação sub judice, a Autoridade Tributária não concretizou em momento algum em que se materializam as hipotéticas distorções significativa na tributação, necessárias para a aplicação do art. 23º, nºs 2 e 3 do CIVA.

4.58. Como resulta do artigo 173.º, n.º 2, da Directiva IVA e, bem assim, do artigo 23.º, n.º 3, do CIVA, a imposição do método da afectação real (com condições especiais) pela Autoridade Tributária deve ter lugar casuisticamente.

4.59. O facto de a percentagem apurada ser incrementada pela inclusão nas rendas de locação financeira da parcela relativa à amortização do capital não permite, por si só, concluir pela existência de distorções significativas na tributação, constituindo tão-somente uma decorrência natural da aplicação do método do pro rata.

4.60. É que se o volume de operações de locação financeira tributadas for significativo, face ao volume de negócios global da Requerente, a fracção algébrica de cálculo do pro rata irá necessariamente reflectir tal realidade, não representando isso, em si mesmo, qualquer distorção.

4.61. A natureza primacialmente financeira dos contratos de locação não permite inferir qualquer conclusão quanto à alocação de recursos, antes impondo uma análise das circunstâncias do caso concreto.

4.62. Não demonstrou assim a Autoridade Tributária ocorrência de quaisquer distorções significativas na tributação susceptíveis de afastar a aplicação do método pro rata nos termos propugnados, o que impede a aplicação do artigo 23.º, n.os 2, parte final, e 3, do CIVA, não bastando para o efeito a alusão genérica ao facto de a inclusão da totalidade das rendas no cálculo do pro rata conduzir a um aumento da percentagem de dedução, nem tão-pouco com a invocação de um qualquer pretenso facto notório atinente à organização do negócio da Requerente.

4.63. Neste contexto, constata-se ser manifestamente ilegal a imposição da aplicação do método de dedução estabelecido no artigo 23.º, n.os 2, parte final, e 3, do CIVA [i.e., do método da afetação real (ainda que com base num coeficiente de imputação específico, como estipula o Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009)], não estando verificados os pressupostos de que depende o afastamento do método do pro rata.

4.64. Pelo que não pode senão concluir-se que a faculdade conferida à Autoridade Tributária através do artigo 23.º, n.os 2, parte final, e 3, do CIVA não pode ser exercida de modo generalizado através de um Ofício-Circulado, impondo-se que seja exercida de forma casuística, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade.

4.65. Sem prejuízo, entende a Requerente ter logrado demonstrar, com base na factualidade supra exposta, que a utilização dos seus recursos indiferenciados [i.e., consumos de eletricidade, água, papel, material informático (hardware e software), telecomunicações, etc.] foi sobretudo determinada no ano de 2019, no âmbito da actividade de locação financeira, pelas tarefas inerentes à utilização dos bens locados (ao invés de às tarefas inerentes ao financiamento propriamente dito).

4.66. Assim sendo, as rendas percepcionadas pela Requerente devem relevar na sua globalidade – incluindo a componente subjacente à amortização do capital – na determinação do imposto dedutível relativo aos recursos indiferenciados por si consumidos.

4.67. Por tudo quanto se expôs, requer-se que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade dos actos tributário e decisório ora contestados, diligenciando pela sua anulação nos termos do artigo 163.º do CPA, impondo-se a restituição do imposto indevidamente suportado, nos termos do artigo 100.º da LGT, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, tudo com as demais consequências legais.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. A Requerente vem pedir a apreciação da legalidade da autoliquidação de IVA, respeitante ao último período de 2019, com o n.º ..., submetida a 10 de Fevereiro de 2020, e, bem assim, da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa.

5.2. A Requerente é uma sociedade comercial com sede em território nacional, ao abrigo do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

5.3. Para efeitos de IVA, configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma.

5.4. Caracteriza-se por ser um sujeito passivo "misto", uma vez que exerce atividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da atividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do nº 27 do artigo 9º do CIVA, procedendo ao apuramento do IVA de cada período com recurso ao disposto no artigo 23.º do mesmo diploma.

5.5. A ora Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IVA do período de Dezembro de 2019, na medida em que, por força da aplicação dos critérios estabelecidos no Oficio-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, não considerou no cálculo da percentagem de dedução definitiva prevista no artigo 23.º do CIVA, o valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira (leasing e ALD).

5.6. Não resulta que a Requerente, nos contratos de locação em causa, tenha realizado alguma ou algumas daquelas actividades, e, em caso afirmativo, quantas vezes, cada uma delas e no âmbito de quais contratos.

5.7. E, note-se que, os exemplos referidos pela Requerente, dentro do que são as regras da experiência comum, sempre seriam tarefas realizadas total ou parcialmente, através de documentos (emails, cartas, orçamentos, etc), pelo que, a pretender fazer prova daqueles factos (que não alegou), sempre deveria juntar os respectivos documentos de prova.

5.8. De igual forma, diga-se, a singela afirmação de que as comissões previstas nos preçários da Requerente, “nem sempre são cobradas”, sem concretizar em quantos daqueles 299 contractos, não foram cobradas comissões e, quais as comissões não cobradas, não pode permitir provar que, efectivamente não tenham sido cobradas algumas das comissões previstas.

5.9. Obsta, por maioria de razão, à conclusão de que os inputs em que incorre com a disponibilização dos veículos nos contratos de locação financeira são predominantes em relação aos inputs gastos com o financiamento e gestão, pelo simples facto de a Requerente, confessadamente, não conseguir “quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade”, uns e outros.

5.10. A Requerente realiza operações financeiras que não conferem o direito à dedução de IVA, por se encontrarem isentas ao abrigo do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA e operações com liquidação de IVA, como acontece, por exemplo, com as rendas de leasing e ALD, que conferem direito à dedução do IVA suportado.

5.11. Acresce que, a Requerente realiza ainda outras operações financeiras ou acessórias que lhe conferem, igualmente, o direito à dedução de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 20.º do CIVA.

5.12. No conjunto das operações que conferem direito à dedução de IVA, integram-se os contratos de locação, nos quais a Requerente assume a posição de locadora e, nessa qualidade, adquire os bens (ou o financiamento para a sua aquisição) que são objecto desses contratos, acrescidos de IVA, sendo os mesmos entregues aos respetivos locatários para seu uso e fruição.

5.13. Por sua vez, a Requerente factura rendas aos locatários, às quais acresce o IVA.

5.14. Invoca, ainda, a Requerente, que, por erro, não considerou quer no numerador, quer no denominador da fórmula de cálculo do pro rata o valor do capital das rendas de locação financeira.

5.15. Ora, ao contrário do que pretende fazer valer a Requerente, importa referir que não existe qualquer erro no preenchimento da declaração, consubstanciado em erro no apuramento do pro rata de dedução.

5.16. Na verdade, o apuramento da percentagem de dedução efetuado pela Requerente está em perfeita concordância com as normas de direito comunitário e interno.

5.17. Efectivamente, o Oficio-circulado nº 30108, de 30 de Janeiro de 2009, veio contemplar a doutrina defendida pela então DGCI (actual AT) que visou "( ...) divulgar a correta interpretação a dar ao artigo 23º, do Código do IVA, no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD (...)".

5.18. Da sua leitura, conclui-se que o apuramento da percentagem de dedução “específica” definitiva para o ano de 2019 foi efectuado, pela Requerente, em perfeita concordância com os termos aí previstos, que se transcrevem: "7. Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista. 8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no nº4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a "distorções significativas na tributação", os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.". 9. Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico. tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALO. Neste caso. a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA".

5.19. Isto é, a percentagem de dedução, inicialmente apurada, não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, mas sim da aplicação do método de afectação real, através da utilização de um critério de imputação objectivo, tendo em conta os valores envolvidos nas operações praticadas no âmbito das atividades de Leasing ou de ALD.

5.20. O objecto deste tipo de contrato não é a transferência da propriedade, mas sim a cedência, pela locadora do uso do bem, isto é, a locadora obriga-se a prestar um serviço, traduzido na disponibilidade do bem em causa, recebendo em contrapartida, uma prestação, sem prejuízo de nele se poder prever a opção de compra, no final do contrato, a favor do locatário, por um valor residual fixado por acordo das partes.

5.21. Assim, forçoso é concluir que a locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do CIVA, e é efetuada pela Requerente no âmbito duma atividade económica.

5.22. No entanto, não podemos abstrair-nos do facto dessas operações de locação (leasing e ALD) consubstanciarem uma modalidade de crédito (entre outras), pelo que a atividade da entidade locadora é, em substância, a concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída, essencialmente, por juros e outros encargos incluídos nas rendas.

5.23. O facto de o valor integral da renda, pago pelo locatário ao locador, constituir o valor tributável sobre o qual incidirá IVA não significa que a parte integrante da renda, correspondente à amortização financeira ou do capital tenha de ser incluída no cômputo do apuramento da percentagem de dedução, conjuntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos.

5.24. Desde logo, porque a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia "emprestada" e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.

5.25. As rendas são influenciadas pelos gastos gerais, isto é, estes gastos gerais inerentes à carga administrativa da locação financeira encontram-se reflectidos nas próprias rendas, sobre que o Banco faz incidir o respectivo IVA e que cobram junto do cliente locatário.

5.26. Ainda sobre a questão da remuneração do Banco, observe-se de igual modo o preçário de comissões, a partir do qual o Banco se remunera relativamente a determinadas prestações de serviços expectáveis prestar ao longo do período de vida útil dos contratos junto dos clientes:

https://www...pt/content/dam/public-web/portugal/documents/Precario...pdf

5.27. Aí, é possível verificar diversos actos – prestações de serviços - que são directamente debitados ao cliente, como seja, a título de exemplo, os que seguem:

Comissões Dossier

Comissão com cessão de posição contratual

Comissão com aditamentos a contratos

Comissão com transferência de propriedade

Documentos de viaturas

Outros Documentos (Facturas, Notas de Débito, etc.)

Portes

Alteração de Domiciliação

Emissão de declaração informação

Tratamento de Multas / Notificações

5.28. Acresce que, no momento da aquisição desse mesmo input, a Requerente (locadora) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação directa.

5.29. Assim, a parte da amortização financeira incluída na renda não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afectação real com recurso a um critério de imputação objectivo, uma vez que aquela mais não é do que a restituição do capital financiado ou investido para a aquisição do bem.

5.30. Logo, à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo.

5.31. Por outro lado, a inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante da renda, provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que será significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição.

5.32. Tal redundaria em deduções acrescidas, por parte da ora Requerente, relativamente à generalidade dos inputs de utilização mista, por via da utilização de um coeficiente, que nessa medida, se apresenta como exagerado, face à realidade das operações tributáveis.

5.33. A actividade principal da Requerente não radica na compra e venda de bens, - essa é apenas uma actividade acessória face à principal -, mas tão só na concessão de créditos a terceiros para aquisição desses bens, ainda que se substitua aos destinatários dos bens na aquisição, reservando para si o direito de propriedade.

5.34. Sendo que, no exercício dessa actividade obtém, fundamentalmente, juros.

5.35. Daí que, no cálculo do mencionado coeficiente de imputação específico, seja de considerar, apenas, o montante que excede o valor dos custos utilizados nas operações tributadas, uma vez que, através do método de imputação directa o IVA da parte relativa ao capital é integralmente deduzido.

5.36. Na verdade, é apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados, indistintamente, em operações com e sem direito à dedução.

5.37. A não ocorrer assim, permite-se um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens ou serviços com utilização mista adquiridos pela Requerente.

5.38. Não ocorre, pois, qualquer restrição do direito legítimo à dedução, como alega a Requerente.

5.39. Acresce, ainda, que o método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, que a Requerente pretende ver aplicado, não tem mérito para medir o grau de utilização que as duas categorias de operações, com e sem direito à dedução, fazem dos bens e serviços que lhe são indistintamente alocados (utilização mista).

5.40. Como tal, não pode, pois, ser utilizado para determinar a parcela dedutível, cuja liquidação foi efectuada a montante por outros operadores económicos que se situam na fase imediatamente anterior do circuito económico.

5.41. É no âmbito dos poderes conferidos à Administração Tributária pela alínea b) do nº 3 do artigo 23° CIVA, que tem  por base  a  faculdade  que  vinha  conferida  na línea  c)  do  terceiro parágrafo do n. º 5 do artigo 17.º da Sexta Diretiva, que se enquadra o Oficio-Circulado n.º 30.108, aqui em discussão, prevendo  uma  solução  que permite afastar  a  possibilidade  de ocorrência  de distorções  significativas,  quando  estamos  perante  sujeitos  passivos  que  realizem  operações  de locação financeira e ALD.

5.42. Na verdade, foram adoptados critérios mais adequados que permitem aferir com maior objetividade o grau de afectação de bens e serviços de utilização mista, nos casos como o presente.

5.43. Efectivamente, a adopção do referido critério admite a existência de algum grau de afectação dos recursos integrantes do conceito de despesas gerais incorridas pelas instituições financeiras, no âmbito da celebração deste tipo de contratos, pese embora as   operações   desta   natureza   exigirem   uma   utilização   de   recursos   técnicos   e administrativos bastante menos  relevante  que  aqueles  que  se  encontram  afectos  às  atividades principais desenvolvidas pelas instituições bancárias, como a Requerente.

5.44. Finalmente, importa referir que o procedimento, adoptado pelos serviços da Requerida, cumpre as normas internas e comunitárias, em especial, o artigo 16.º e 23.º CIVA, já referidos, e bem assim, os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA.

5.45. Na  verdade, a componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução, uma vez que não constitui rendimento da actividade  do  sujeito  passivo, ao  invés  do  que  sucede  com  as  demais  variáveis  que  integram  a  fórmula, sendo que a sua consideração provocaria distorções significativas na  tributação e também desvirtuaria o próprio método do pro rata e todos a sistema de dedução do  IVA, ao reconhecer como dedutíveis custos que  não  contribuíram para a  realização de operações tributadas.

5.46. Por assim ser, consubstanciando a componente das rendas correspondente à amortização financeira, um mero reembolso de capital, que nesse sentido, não gera qualquer valor acrescentado, só a título muito diminuto é que os custos comuns suportados pelo locador numa operação de locação financeira, poderão, eventualmente, contribuir para a sua realização.

5.47. Face a tudo   o   que   ficou   dito, não subsistem   dúvidas   que   o   procedimento adotado pela Requerida está de acordo com as normas internas e comunitárias e nenhuma ilegalidade se lhe pode assacar.

5.48. Pese embora a alínea h) do nº 2, do artigo 16º do CIVA, referir que, nas operações de locação financeira, o valor tributável corresponde à renda recebida no seu todo, a verdade é que a parcela correspondente à amortização financeira, não assume a natureza de proveito, e como tal, não integra o conceito de volume de negócios nas instituições de crédito, pelo que não pode influenciar o cálculo da percentagem de dedução.

5.49. A este respeito, cumpre esclarecer que as orientações constantes no ponto 9 do Oficio-Circulado 30.108, mais não fazem do que contribuir para a praticabilidade dos desígnios constitucionais previstos nos artigos 103º e 104º, da Constituição da República Portuguesa, sendo um factor decisivo para garantir e tutelar a confiança dos contribuintes.

5.50. De modo que apenas e somente a Requerente tem o ónus de provar que o método que pretende utilizar não provoca distorção significativa na própria tributação em sede de IVA.

5.51. Para mais, quando no presente caso a Requerente procedeu à autoliquidação, aplicando para o efeito o que constava no Ofício-circulado n.º 30.108, para depois reclamar graciosamente aquele método de imputação específica, sem no entanto apresentar quaisquer provas de que, como afirma, os actos de disponibilização de veículos assumem uma preponderância nos gastos que são comuns à actividade sujeita a IVA e à actividade isenta face aos gastos incorridos com actos de gestão e de financiamento do contrato.

5.52. Conforme resulta das regras de conhecimento geral, as quais têm saído evidenciadas do conjunto da prova que vem sendo produzida na globalidade dos processos arbitrais relativamente a esta e outras entidades bancárias, que incidem sobre a temática do direito à dedução de IVA em sede de contratos de locação financeira, o período de disponibilização dos veículos apenas se reduz a uma janela temporal de 15 dias a 1 mês, sendo que todos os actos de financiamento e gestão se perpetuam durante o período de vida útil do contrato.

5.53. Claro que ao longo do tempo, em contexto arbitral, desde o ano de 2018 até ao presente, de uma maneira geral, as entidades bancárias têm tentado fazer crer que aquilo que na verdade mais não são que, e sempre foram, actos de gestão e de financiamento de um contrato de locação financeira, passem agora a ser erroneamente apelidados de actos de disponibilização de veículos.

5.54. A actividade do Banco em questão é a de um financiamento alternativo, de uma concessão de crédito com contornos especiais, e não, conforme é alegado, um contrato que tem na disponibilização do veículo a sua principal actividade.

5.55. A entrega ou disponibilização do veículo é instrumental face à concessão do crédito, porque o que o cliente remunera, através do pagamento do juro, o preço do dinheiro que o Banco disponibilizou em sua substituição junto de um stand de automóveis, a título de empréstimo e que, ao longo dos anos, será restituído através do cumprimento do pagamento das rendas.

5.56. Não corresponde à realidade que os actos de disponibilização de veículos absorvam uma carga administrativa predominante no âmbito dos contratos de locação financeira face aos actos de gestão e de financiamento, que, ao fim ao cabo, conforme jurisprudência firmada pelo STA, é a verdadeira questão que tem obrigatoriamente que tem de ser discutida e provada pela Requerente.

5.57. Para além de parte desses custos mistos estarem reflectidos nas próprias comissões, que consubstanciam o preço a pagar pelos utentes do crédito de leasing para pagamento de prestação de serviços pelo A..., esses custos estão igualmente estimados nos custos gerais que e encargos que compõem o valor da renda, a que acresce o capital, o risco e os juros pelo empréstimo.

5.58. Tudo visto e ponderado, o cálculo de dedução em sede de IVA inicialmente calculado pela Requerente, de acordo com a interpretação veiculada pela ora Requerida, não merece qualquer censura.

5.59. Tudo visto e ponderado, devem os actos tributários contestados serem mantidos intactos na ordem jurídica e a Requerida ser absolvida do pedido.

6. No dia 18 de Outubro de 2022 foi proferido despacho arbitral, solicitando à Requerente que informasse quais os factos sobre que pretendia produzir prova testemunhal, tendo a 21 de Outubro de 2022 sido proferido novo despacho para o Requerente se pronunciar sobre o aproveitamento da prova produzida no processo 576/2020-T, solicitado pela Requerida.

7. No dia 2 de Novembro de 2023 o Requerente indicou os factos sobre que pretendia produzir prova testemunhal, tendo se oposto ao aproveitamento da prova produzida no processo 576/2020-T.

8. Por despacho de 12 de Novembro de 2022 foi indeferido o pedido de aproveitamento da prova solicitado pela Requerida, tendo sido designado o dia 28 de Novembro às 14h30m para a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, bem como a audiência de julgamento.

9. Em 22 de Novembro de 2022 foi solicitado pela Requerente o adiamento da inquirição de testemunhas, tendo em consequência por despacho de 24 de Novembro de 2022 sido adiada a reunião prevista no art. 18º do RJAT para dia 6 de Janeiro de 2023 às 10h30m.

10. Em 6 de Janeiro de 2023 teve lugar a reunião prevista no art. 18º do RJAT, com a audiência de julgamento, tendo sido inquirida a testemunha D..., colaborador da Requerente na área do negócio e gestão de produto de leasing, e fixada a data de 15 dias para a apresentação de alegações escritas pelas partes.

11. Apenas a Requerente apresentou alegações escritas onde sustentou ter ficado demonstrado pelo depoimento da testemunha inquirida a matéria de facto oportunamente exposta nos artigos 8.º a 59.º do pedido de pronúncia arbitral, não sendo a resposta da Entidade Requerida e o processo administrativo instrutor susceptíveis de infirmar tal asserção.

 

II – Factos provados

12. Com base na prova documental constante da documentação junta pela Requerente e do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, bem como da inquirição da testemunha D... na audiência, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

12.1. A Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a actividade comercial prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

12.2. No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção constante do artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA – como as operações de financiamento e concessão de crédito e, bem assim, as operações associadas a pagamentos –, as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado.

12.3. Simultaneamente, a Requerente realiza operações que conferem o direito à dedução deste imposto nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, como sejam, entre outras, as operações de locação financeira mobiliária, a locação de cofres e a custódia de títulos.

12.4. Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação direta, ao abrigo do disposto no artigo 20.º, n.º 1, do CIVA.

12.5. Tal sucedeu, desde logo, quanto à aquisição dos bens – como viaturas – objecto dos contratos de locação financeira, relativamente aos quais foi deduzido na íntegra o IVA suportado, dado estarem diretamente ligados a operações tributadas realizadas a jusante pela Requerente – a locação financeira –, as quais conferem direito à dedução do imposto.

12.6. Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

12.7. Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas e, simultaneamente, logrou determinar critérios objectivos do nível de utilização efetiva, aplicou o método da afetação real estabelecido no artigo 23.º, n.º 2, primeira parte, do CIVA, o que sucedeu, nomeadamente, quanto aos encargos especificamente associados à aquisição de terminais de pagamento automático.

12.8. Para determinar o quantum de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afetos indistintamente às diversas operações por si realizadas (isto é, aos recursos de “utilização mista” – como os consumos de eletricidade, água, papel, material informático (hardware e software), telecomunicações, etc.), a  Requerente aplicou o método de dedução indicada no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA.

12.9. Relativamente a estes recursos de utilização mista, não foi possível à Requerente aplicar o método da afectação real, por não ser possível concluir com precisão e fidedignidade sobre o grau de utilização dos recursos em cada uma das actividades por si desenvolvidas.

12.10. As caraterísticas específicas da actividade bancária tornam inviável a aplicação de uma contabilidade analítica que permita à Requerente quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos de utilização mista afectos à actividade de locação financeira e, concomitantemente, às suas diversas operações.

12.11. Por referência ao ano de 2019, a Requerente entregou as correspondentes declarações periódicas de IVA e procedeu ao pagamento do imposto delas resultante.

12.12. No conjunto de operações que conferem direito à dedução do IVA integram-se os contratos de locação financeira, nos quais a Requerente figura como locadora e, nessa qualidade, adquire os bens a locar, sendo os mesmos posteriormente entregues aos respectivos locatários para seu uso e fruição.

12.12. Os contratos de locação financeira mobiliária (relativos a automóveis e bens de equipamento) celebrados pela Requerente duram, em média, 5 anos.

12.13. Em regime de exclusividade, a Requerente afecta à actividade de locação financeira um colaborador, o qual, sendo responsável pela gestão de uma caixa de correio interna referente a esta atividade, direcciona para a área competente as questões e vicissitudes resultantes da vigência dos contratos de locação financeira.

12.14. Em regime de não exclusividade, a Requerente afecta ainda cerca de 10 a 15 colaboradores à atividade de locação financeira.

12.15. As tarefas relativas a contratos de locação financeira implicam a intervenção de diversas áreas internas da Requerente.

12.16. A atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente divide-se em dois grupos de operações: (i) as operações de utilização dos bens locados; e (ii) a operação de financiamento propriamente dita.

12.17. As tarefas associadas ao financiamento encontram-se bastante automatizadas e informatizadas, pressupondo a intervenção de um colaborador da Requerente apenas em caso de incumprimento contratual, o que só ocorre residualmente.

12.18. Pelo contrário, as operações associadas à utilização dos bens locados pressupõem uma maior intervenção humana e assumem um carácter mais personalizado, requerendo um maior dispêndio de recursos (incluindo indiferenciados).

12.20. A partir do ano de 2018 (inclusive), a Requerente deixou de celebrar novos contratos de locação financeira, tendo passado tal função para uma entidade independente do Grupo B..., a C..., S.A., com sede na..., n.º ... (F/G/H), ..., Edifício ..., ..., ...-... Lisboa, titular do número único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ...(“C...”).

12.21. Em consequência, no ano de 2019, a Requerente era apenas responsável pelos contratos de locação financeira celebrados até ao ano de 2017 e ainda vigentes, o que, não implicava, porém, que a sua atividade estivesse facilitada, uma vez que durante a vigência do contrato se verificam diversas vicissitudes que requerem a intervenção dos seus colaboradores.

12.22. No ano de 2019, a carteira da Requerente ascendia a 299 contratos de locação financeira: 138 referentes a automóveis (no montante aproximado de 3 milhões de euros) e 161 referentes a bens de equipamento (no montante aproximado de 7 milhões de euros).

12.23. No âmbito das operações de utilização dos bens locados, a Requerente efetua, entre outras, as seguintes tarefas: 

– controlo da validade dos seguros; 

– no que respeita a infracções associadas a veículos, monitorização das coimas aplicadas no âmbito do Código da Estrada por infrações relacionadas com os veículos, controlo das portagens não pagas e respetivas coimas e adopção medidas destinadas à resolução destas situações de incumprimento;

 – monitorização do  cumprimento e controlo das obrigações tributárias relacionadas com os bens locados, como, por exemplo, no caso de veículos, pagamento do Imposto Único de Circulação; 

– no que respeita a avarias, selecção e controlo das entidades responsáveis pela reparação dos veículos e equipamentos; 

– no que respeita a salvados, selecção de sucateiros e venda daqueles a estes; 

– em caso de acidentes com os veículos, contactos com as empresas seguradoras; 

– nos casos de não exercício pelo locatário da opção de compra no final do contrato, realização das diligências necessárias à venda do bem locado;

– em caso de incumprimento contratual pelo locatário, realização de diligências para assegurar o cumprimento.

12.24. No ano de 2019, as operações realizadas pela Requerente associadas à utilização dos bens locados foram preponderantes em relação às operações associadas ao financiamento propriamente dito, pelo que os recursos indiferenciados (i.e., consumos de eletricidade, água, papel, material informático, telecomunicações, etc.) foram predominantemente consumidos com as tarefas associadas à utilização do bem.

12.25. A parte das rendas referente aos juros incorpora o custo do financiamento propriamente dito (i.e., o spread), o risco de solvabilidade do cliente e a margem de lucro da Requerente.

12.26. Não existe uma ligação direta entre os recursos indiferenciados e as rendas cobradas pela Requerente aos seus clientes, pelo que aqueles recursos não são directamente repercutidos pela Requerente no preço destas rendas.

12.27.     Em 30-01-2009, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu o Ofício-Circulado n.º 30.108, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte: 

"7. Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista. 

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades. 

9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23º do CIVA".

12.28. A Requerente apresentou em 28 de Dezembro de 2021 reclamação graciosa da autoliquidação de IVA n.º... relativa a Dezembro de 2019, na medida em que, por força da aplicação dos critérios estabelecidos no Oficio-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, não considerou no cálculo da percentagem de dedução definitiva prevista no artigo 23.º do CIVA, o valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira (leasing e ALD), tendo solicitado a respetiva correcção, no montante de €182.531,79 (€638.861,25 – €456.329,4), a título de imposto indevidamente não deduzido.

12.29. Em Fevereiro de 2022, a Requerente foi notificada do projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa porque a AT "pode obrigar um banco que exerce, nomeadamente, a atividade de locação financeira, a incluir, no numerador e denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes nos contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e para gestão desses contratos, e não pela disponibilização dos veículos".

12.30. A 1 de Abril de 2022, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, tendo a Autoridade Tributária convertido em definitivo o entendimento anteriormente projectado.

 

 

III - Factos não provados.

13. Por não ter sido efectuada prova adequada nesse sentido, consideram-se não provados os seguintes factos:

13.1. Não se provou a exacta medida da utilização de recursos de utilização mista pela Requerente relacionada com as operações de locação financeira.

13.2. Não se provou que, no caso em análise, a utilização do método de determinação do pro rata de baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar «distorções significativas da tributação», designadamente que possa «provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas provocar vantagens ou prejuízos injustificados», uma vez que, embora estes juízos conclusivos sejam utilizados no ponto 8 do Ofício-Circulado n.º 30108, não foi apresentada qualquer prova das afirmações neles contidas, nem sequer são esclarecidas quais as «vantagens ou prejuízos injustificados» a que se alude.

13.3. Não se provou que a Requerente tenha efectuado qualquer pagamento de IVA relativamente à autoliquidação referente ao último período de 2019.  A Requerente não alega ter feito esse pagamento nem apresentou qualquer documento comprovativo.  

 

IV - Fundamentação da decisão de facto.

14. A matéria de facto, para além da que se encontra aceite entre as partes, foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção sobre a mesma foi formada com base em prova documental, i.e., na documentação junta pela Requerente, bem como pela junção do processo administrativo, efectuada pela Requerida, e ainda pela prova testemunhal realizada em audiência de julgamento. Efectivamente, a testemunha D... aparentou depor com isenção e com conhecimento directo dos factos.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada pelas partes, devendo, por isso, seleccionar a matéria factual com relevância directa para a decisão.

O Tribunal Arbitral apreciou livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

 

V - Do Direito

15. Está em causa neste processo apenas a apreciação da legalidade da autoliquidação impugnada, bem como do indeferimento da reclamação graciosa impugnada, e ainda a eventual restituição de imposto pago em excesso e juros indemnizatórios.

Conforme refere a Requerente, esta questão já foi decidida por este Centro de Arbitragem em relação à autoliquidação de IVA 2018 da Requerente no âmbito do processo 844/2021-T. Posição idêntica em relação a outros contribuintes também foi decidida por este Centro de Arbitragem no âmbito dos processos 576/2021-T e 259/2022-T. Seguir-se-ão por isto neste processo a fundamentação destes doutos Acórdãos.

 

— A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA E DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO.

16. O Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se sobre uma situação deste tipo, atinente a instituição bancária que desenvolve actividades de locação financeira, que conferem direito à dedução, e outras actividades financeiras, que não conferem tal direito. 

As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º).

Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Directiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que "os Estados-Membros podem: c) autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços". 

No acórdão proferido em 10-07-2014, no processo n.º C-183/13 (Fazenda Pública contra Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, o TJUE declarou: "O artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar". 

Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que "os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros". 

Posteriormente, no acórdão de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17 (Commissioners for Her Majesty's Revenue and Customs contra Volkswagen Financial Services (UK) Ltd), o TJUE, corrigindo a interpretação que entendeu que se podia fazer do decidido no acórdão Banco Mais, esclareceu que "não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C-183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.°, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega".

Em consequência, o TJUE declarou neste processo: "Os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios".

O método de cálculo do pro rata indicado pela Administração Tributária no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 não tem em conta o valor do veículo, pelo que contraria manifestamente o decidido pelo TJUE, neste acórdão do processo C-153/17, sendo consequentemente ilegal, por violação do Direito da União. 

Por outro lado, como se refere no mesmo acórdão, este entendimento é aplicável "mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização" (n.º 59), como sucede no caso em análise. 

Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar  de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a actividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA. 

Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fracção, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fracção (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA). 

De qualquer forma, no citado acórdão 10 de Julho de 2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Fazenda Pública contra Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas se admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar». 

Como resulta desta parte final, na perspectiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da reclamação graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.

No entanto, o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que só se pode concluir pela ilegalidade, com um apuramento casuístico da utilização real dos bens e serviços de uso misto, quando sobre a matéria de facto se formule um juízo sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

É, essencialmente, esta jurisprudência que o Supremo Tribunal Administrativo terá tendencialmente estabilizado com o Acórdão uniformizador n.º 3/21, de 24-03-2021 (Francisco Rothes), proferido no processo n.º 87/20.0BALSB, publicado no Diário da República, I Série, de 18-11-2021, no qual se uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: "Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação". Esta posição foi reiterada no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 22/9/2021 (José Gomes Correia), processo 0145/20.0BALSB.

Recentemente no Acórdão de 23/3/2022 do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA (Gustavo Lopes Courinha) emitido no processo 066/21.0BASLSB, foi igualmente esclarecido que "cabe ao sujeito passivo de IVA alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de leasing e ALD, único ónus da prova que se impõe conhecer no caso".

Formulando um juízo de facto, no caso em análise, resulta claramente da prova produzida que há uma afectação real e significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, considerando como afectas à disponibilização dos veículos a generalidade das tarefas que apenas ocorrem na prestação de serviços de locação financeira, designadamente:

– controlo da validade dos seguros; 

– no que respeita a infracções associadas a veículos, monitorização das coimas aplicadas no âmbito do Código da Estrada por infrações relacionadas com os veículos, controlo das portagens não pagas e respetivas coimas e adopção medidas destinadas à resolução destas situações de incumprimento;

 – monitorização do  cumprimento e controlo das obrigações tributárias relacionadas com os bens locados, como, por exemplo, no caso de veículos, pagamento do Imposto Único de Circulação; 

– no que respeita a avarias, selecção e controlo das entidades responsáveis pela reparação dos veículos e equipamentos; 

– no que respeita a salvados, selecção de sucateiros e venda daqueles a estes; 

– em caso de acidentes com os veículos, contactos com as empresas seguradoras; 

– nos casos de não exercício pelo locatário da opção de compra no final do contrato, realização das diligências necessárias à venda do bem locado;

– em caso de incumprimento contratual pelo locatário, realização de diligências para assegurar o cumprimento.

Todas estas actividades ocorrem apenas nos contratos de locação financeira de veículos, porque o veículo é propriedade da Requerente e é disponibilizado ao cliente durante o período de duração do contrato, pelo que são actividades geradas pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento ou gestão dos contratos. 

Trata-se de actividades que não ocorrem quando não há disponibilização dos veículos, mas apenas financiamento, como sucede nos contratos de mera concessão de crédito para a  aquisição de veículos, em que os clientes adquirem os veículos para si  próprios.  

Assim, actividades relacionadas com a gestão dos contratos de locação financeira serão (como sucede com os contratos de concessão de crédito) apenas as que se reportam aos próprios contratos, como são a maior parte daquelas para que estão previstas comissões comuns para os contratos de leasing e crédito automóvel, designadamente o reembolso antecipado parcial ou total, o processamento mensal das rendas ou prestações, a recuperação de valores em dívida e alterações contratuais, além de algumas exclusivas dos contratos de locação financeira, como são a transmissão da posição jurídica do locatário e alteração de registos. 

Como resultou da prova produzida, as comissões apenas incluem os custos directamente quantificáveis, mas não as despesas gerais conexionadas com as actividades para que estas estão previstas (como são as despesas de electricidade, água, limpeza, despesas com informática, gastos de conservação dos edifícios, mobiliário e maquinaria neles existentes, etc.).  

Não se apurou a dimensão exacta de recursos de utilização mista não considerados no valor das comissões que são utilizados em cada uma das actividades referidas, nem há qualquer fundamento para concluir que sejam proporcionais ao número de pessoas que intervêm em cada uma das fases, designadamente porque, além dos colaboradores afectos em permanência e parcialmente à actividade de leasing

De qualquer modo, apurou-se que, além da actividade anterior à entrega dos veículos, destinada à sua disponibilização aos clientes, é significativa a actividade posterior à entrega dos veículos que é provocada pela sua disponibilização, actividade que não ocorre nos contratos de mero financiamento (crédito automóvel) em não é feita disponibilização dos veículos pela Requerente aos seus clientes. 

Assim, na linha do ponto 57 do acórdão do TJUE proferido no processo  C-153/17, é de concluir que o método imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que não tem em conta uma afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos, não se pode considerar que reflicta objectivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações.  

Por conseguinte, este método não é susceptível, no caso concreto em análise, de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios. 

Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exacta, que as actividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis actividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, foram de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos. 

Isto é, utilizando a terminologia do ponto 33 do acórdão do TJUE C-183/13 Fazenda Pública contra Banco Mais, é convicção  do Tribunal Arbitral que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira, foi sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes. 

Por isso, a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa, que têm como pressuposto de facto que a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente, quanto a contratos de locação financeira seria sobretudo determinada pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes e não pelas actividades conexas com a disponibilização dos veículos, enferma de vício de erro sobre os pressupostos de facto. 

Essas autoliquidação e decisão da reclamação graciosa enfermam ainda de erro sobre os pressupostos de direito, ao terem subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, como foi, de forma genérica, sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.  

 

— DA INCONSTITUCIONALIDADE DA PREVISÃO DE UM MÉTODO DE DEDUÇÃO NÃO PREVISTO EM DIPLOMA DE NATUREZA LEGISLATIVA.

17. Embora o artigo 173.º, n.º 2, da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português, além do mais, «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. 

Na verdade, entre os métodos para efectuar a dedução prevista no CIVA, não se inclui o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, mas sim, quanto a métodos que utilizam uma percentagem de dedução, apenas o indicado no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA e que o que foi permitido ao Estado Português pela Directiva, por via legislativa, não era permitido à Direcção-Geral dos Impostos, através de Ofício-Circular. 

Coloca-se, por isso, a questão de saber se, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP (atinentes ao princípio da legalidade tributária), é permitida a criação normas inovatórias sobre métodos de efectuar a dedução (que se reconduzem a normas de determinação da matéria tributável), por via de Ofício-Circulado emitido pela Direcção-Geral de Impostos, como se prevê no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, o que é uma questão distinta da de saber se o Estado Português, por via legislativa, podia criar tais métodos, à face do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE.   

Esta questão da compatibilidade com a CRP do referido artigo 23.º, n.º 2, do CIVA e do Ofício-Circulado referido, não é uma questão de interpretação do Direito da União, mas sim uma questão de Direito Nacional, uma questão de inconstitucionalidade de normas e não da correcção ou incorrecção da sua aplicação. 

Esta questão de inconstitucionalidade não é, assim, a de saber se, à face do Direito da União Europeia, do CIVA e do Ofício-Circulado n.º 30108, a Administração Tributária podia impor ao Sujeito Passivo o método previsto no ponto 9 deste Ofício-Circulado, mas sim a de saber se aquele artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional se interpretado como permitindo à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP. 

As regras sobre o direito à dedução de IVA, de que resulta o montante do imposto suportado pelo sujeito passivo, são regras de incidência objectiva. Na verdade, são normas de incidência, em sentido lato, uma vez que estabelecem o an e o quantum do IVA a pagar pelo contribuinte.   

Como bem refere ANA PAULA DOURADO, O princípio da legalidade fiscal. Tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Coimbra, Almedina, 2007, p. 110: "a «incidência» tem que ser interpretada em sentido amplo, porque se a legalidade fiscal tem funções garantistas, e se os impostos, mesmo que entendidos como deveres fundamentais, são limites imanentes ao direito de propriedade individual, então o alcance das funções da legalidade fiscal diz respeito a todos os elementos que contribuem para o cálculo do montante de imposto a pagar, ou à definição do an e do quantum dos impostos. Eles constituem afinal a própria essência da relação obrigacional fiscal, ou até se quisermos do conceito de imposto, uma vez que este se traduz, em concreto, pelo montante a pagar por um determinado sujeito passivo".

Assim, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, recusa-se a aplicação do  artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009,  segundo a qual, a Administração Tributária  poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.  Consequentemente, o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à Administração Tributária impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.

 

— DA ILEGALIDADE DA IMPOSIÇÃO ATRAVÉS DE NORMA ADMINISTRATIVA DE UM MÉTODO DE EXECUÇÃO NÃO PREVISTO LEGISLATIVAMENTE.

18. Não tendo o método de exercício do direito à dedução resultante do Ofício-Circulado n.º 30108 sido previsto em diploma de natureza legislativa, não pode a Administração Tributária determinar a sua aplicação, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que "os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins".

Conformem referem JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pp. 798-798: "Teoricamente o princípio da legalidade analisa-se em duas dimensões fundamentais: (a) princípio da legalidade negativa da administração, expresso através do princípio da prevalência da lei; (b) princípio da legalidade positiva da administração, traduzido no princípio da precedência de lei".

Por isso, não tendo suporte legislativo a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, é ilegal a imposição pela Autoridade Tributária da sua utilização pela Requerente.

Mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativa nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa "o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos" (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP).

Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas, circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essas orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os Tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através de despachos genéricos, circulares ou instruções (artigo 203.º da CRP).

Na verdade, como escreve JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 198-199:

"Um problema que aqui se coloca é o de saber qual o relevo das chamadas orientações administrativas, tradicionalmente apresentadas nas mais diversas formas como instruções, circulares, ofícios-circulados, despachos normativos, regulamentos, pareceres, etc. e que são muito frequentes no direito fiscal. Trata-se de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos.

Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de actuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares)".

É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que "a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias", não resultando das mesmas qualquer vinculação para os particulares ou para este Tribunal Arbitral. 

Consequentemente, a autoliquidação efectuada pela Requerente aplicando as regras dos n.ºs 8 e 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, impostas pela Administração Tributária, enferma de  vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, decorrente da ilegalidade da imposição dessas regras, vício esse que justifica a anulação da autoliquidação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a confirmou.

 

— DA FALTA DE PROVA DE «DISTORÇÕES SIGNIFICATIVAS DA TRIBUTAÇÃO».

19. De qualquer forma, a aceitar-se a possibilidade de a Administração Tributária impor o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado 30108, ele só é aplicável, como se refere na alínea b) do n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, "quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação".

A Administração Tributária defende que a aplicação do coeficiente de imputação específico é o único que se mostra adequado ao apuramento da percentagem de dedução, afastando as distorções na tributação, estando de acordo com o Direito da União Europeia e as normas de Direito interno (nomeadamente, artigo 173.º e 174.º da Diretiva IVA, e o artigo 23.º do CIVA), salvaguardando o princípio da neutralidade.

A Requerente defende que não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no supra referido Ofício-Circulado n.º 30108, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.

Na verdade, não se referem no Ofício-Circulado n.º 30108 em que consistem as "distorções significativas na tributação" que resultam da aplicação do método do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, formulando-se nesse sentido um juízo conclusivo, cujos fundamentos não se demonstram.

A afirmação feita no ponto 8. do Ofício-Circulado de que a "aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas" é também conclusiva e obscura, pois não se esclarece quais as aludidas vantagens ou prejuízos, nem para quem, nem em que consiste a falta de coerência que se invoca. 

De qualquer forma, o procedimento que a Administração Tributária impôs no referido Ofício-Circulado tem a potencialidade de provocar distorções significativas na tributação, como bem demonstram JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS, "A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs «promíscuos» dos operadores de locação financeira: as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de julho de 2014 (Proc. C-183/13)" na Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, ano 10º, nº1, pp. 27-56 (46-47), relativamente à locação financeira com rendas mensais constantes:

"Ora não se consegue demonstrar que o expurgo da amortização financeira contribui para uma sintonia mais fina na determinação da parcela de imposto dedutível. Bem ao invés, demonstra-se que o procedimento que a AT quer obrigar o sujeito passivo a adoptar provoca distorções significativas de tributação e não consegue de modo algum o objectivo que a lei, no artigo 23.º, n.º 3, atribui ao método da afectação real – o objectivo de efectuar a dedução de “com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços [de uso “promíscuo”] em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito. 

Em financiamentos cujo reembolso é efectuado em prestações  periódicas, sabe-se que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, esta dada pela diferença entre renda total e juro pago. Nas sucessivas prestações, quer em termos de rendas constantes quer de rendas variáveis, como a seguir melhor se verá numericamente, a parte imputável a juros vai flutuando ao longo do tempo de duração do contrato».

Sendo assim, que consequência tem o apuramento do IVA dedutível segundo o método imposto pela AT de expurgar a amortização do cálculo da parcela dedutível? Tem a consequência de fazer flutuar a percentagem de IVA dedutível ao longo do tempo de duração do contrato.

Esta flutuação, porém, só teria razão de ser se houvesse fundamentos para crer que ao longo desse tempo a intensidade do uso dos inputs promíscuos flutuava também na mesma onda. Ora, é bem claro que não há qualquer razão para crer que seja assim. A intensidade do uso desses bens e serviços será eventualmente a mesma, ou se não for, não é através de uma percentagem de dedução calculada com quer a AT que poderá ser apurada essa eventual diferença de intensidade.

A solução imposta pela AT provoca, ela sim, distorções na tributação. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de actividade cujas operações conferem direito à dedução.

A pretensão da AT em aperfeiçoar o apuramento do imposto dedutível só poderia eventualmente ser conseguida impondo um verdadeiro método de afectação real, não um pro rata manipulado, sem significado e adequação ao objectivo pretendido de evitar distorções significativas na tributação".   

Assim, não se pode considerar demonstrado que, na situação em apreço, a  determinação do pro rata baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar "distorções significativas da tributação", havendo, antes, a certeza de que essas distorções resultam do método imposto pela Administração Tributária. 

Pelo exposto, ao pressuporem que a aplicação do método previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA gera distorções significativas de tributação e que elas são evitadas pelo método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto.

 

DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

20. As distorções da tributação que resultam da aplicação do método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 são amplificadas em termos incompatíveis com o princípio  constitucional da igualdade,  pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, adoptada pelo Pleno no acórdão de  30-09-2020, processo n.º 26/20.8BALSB, em que entendeu que a jurisprudência do Acórdão Banco Mais, apenas é aplicável quando o sujeito passivo é um banco, e já não quando é uma sociedade financeira de crédito que utilize para as suas operações tributadas recursos de utilização mista não quantificáveis. 

Na verdade, nas situações em que não seja possível a afectação real, não se aplicando o "coeficiente de imputação específico" quando o sujeito passivo é uma sociedade financeira, será aplicável ao cálculo do pro rata o regime do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, incluindo-se no numerador da fracção o valor total das rendas [que é na totalidade tributado, nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 16.º do CIVA], enquanto se o sujeito passivo for um banco apenas será incluída no numerador a parte das rendas que corresponde aos juros. Além das distorções de tributação que resultam da não inclusão do valor total das rendas na fracção quando o sujeito passivo é  um banco, a aplicação do método referido apenas aos bancos é incompaginável com o princípio da igualdade, pois duas situações idênticas de sujeitos passivos mistos que realizem concomitantemente operações de locação financeira e operações isentas teriam uma tributação em IVA (derivada da restrição do direito à dedução) consideravelmente distinta.

A distorção da tributação provocada pelo método previsto no Ofício-Circulado n.º 30108 detecta-se também quando se compara a limitação do direito à dedução quanto a recursos afectos à locação financeira quando é efectuada por um banco com a de um sujeito passivo que apenas se dedique à actividade de locação financeira.  

Na verdade, o sujeito passivo que apenas se dedique à locação financeira poderá, sem qualquer limitação, deduzir a totalidade do IVA suportado nos bens e serviços que adquira para exercer essa actividade, pois ela é totalmente tributada, nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea h) do CIVA, e o artigo 20.º, n.º 1, deste Código assegura o direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos para realização das operações de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. Em última análise, à luz da referida jurisprudência, bastará apenas a realização de uma única operação de concessão de crédito, a par de milhares de operações de locação financeira, para o direito de dedução do IVA suportado com os custos gerais passar de total a insignificante.   Assim, o princípio da igualdade (proporcionalidade) exigirá que ao locador financeiro que, além dessa actividade tributada, desenvolve também actividade isenta, possa deduzir o IVA na parte proporcional ao volume de  negócios daquela actividade. 

Por isso, são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), as normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, se interpretadas como  a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108.

Por outro lado, sendo obrigatória para os Tribunais Nacionais a jurisprudência do TJUE, pois as normas do Direito da União "são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União" (artigo 8.º, n.º 4, da CRP), as interpretações que contrariem essa jurisprudência violam esta norma constitucional.  Assim, decorrendo do acórdão do TJUE de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17, que à face dos artigos 168.° e 173.°, n.° 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE e do princípio da neutralidade,  "os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios" e sendo este o caso do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, os n.ºs 2, 3, alínea b), e 4 do artigo 23.º do CIVA são materialmente inconstitucionais, por violação daquele artigo 8.º, n.º 4, da CRP, se interpretados nos termos referidos naquele Ofício-Circulado. 

Por isso, recusa-se, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artigos 8.º, n.º 4, e 13.º da CRP, a aplicação dos n.ºs 2, 3, alínea b) e 4 do artigo 23.º do CIVA na interpretação que deles se faz  no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108. Por outro lado, sendo obrigatória para os Tribunais Nacionais a jurisprudência do TJUE, pois as normas do Direito da União "são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União" (artigo 8.º, n.º 4, da CRP), as interpretações que contrariem essa jurisprudência violam esta norma constitucional.

Assim, decorrendo do acórdão do TJUE de 18-10-2018, proferido no processo C-153/17, que à face dos artigos 168.° e 173.°, n.° 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE e do princípio da neutralidade,  "os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios" e sendo este o caso do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, os n.ºs 2, 3, alínea b), e 4 do artigo 23.º do CIVA são materialmente inconstitucionais, por violação daquele artigo 8.º, n.º 4, da CRP, se interpretados nos termos referidos naquele Ofício-Circulado.

Por isso, recusa-se, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artigos 8.º, n.º 4, e 13.º da CRP, a aplicação dos n.ºs 2, 3, alínea b) e 4 do artigo 23.º do CIVA na interpretação que deles se faz  no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108.

Pelo exposto, a imposição de utilização do "coeficiente de imputação específico" indicado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade e errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do CIVA, e da alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.

Consequentemente, a autoliquidação relativa ao último período de 2019, em que foi dada execução a essa imposição, enferma de vício de violação de lei, na parte correspondente à errada aplicação do método de cálculo do pro rata de dedução, o que justifica a sua anulação bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a manteve, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

— RESTITUIÇÃO DE QUANTIA PAGA EM EXCESSO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS.

21. Como se refere na decisão da matéria de facto, não se considerou provado que a Requerente tenha feito o pagamento da quantia autoliquidada (o que não é sequer alegado).              O reembolso e os juros indemnizatórios dependem do pagamento indevido e da data em que ele é efectuado, pelo que não há fundamento factual para se decidir neste processo se a Requerente tem ou não direito a reembolso e a juros indemnizatórios.             

A ter ocorrido pagamento, a Requerente, como consequência da anulação da autoliquidação,  terá direito a reembolso da quantia paga em excesso e também direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 2, da LGT, já que a anulação da autoliquidação se baseia em erro imputável aos serviços, pois a Requerente seguiu, no seu preenchimento, "as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas".             

Assim, não tendo sido feita prova do pagamento, aqueles  pedidos têm de ser julgados improcedentes, sem prejuízo dos eventuais direitos a reembolso e juros indemnizatórios poderem ser reconhecidos à Requerente em execução de julgado, que é o meio processual adequado para os definir, quando não há elementos para esse efeito no processo declarativo (artigo 609.º, n.º 2, do CPC e 61.º, n.º 2, do CPPT).

 

VI – Decisão

 

Nestes termos, acordam os Árbitros que compõem este Tribunal Arbitral em:

a) Recusar com fundamento em inconstitucionalidade, por ser incompaginável com os 112.º, n.º 5, e 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 1, da CRP, a aplicação do  artigo 23.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CIVA, na interpretação que consta do ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009;

b) Recusar com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), a aplicação das normas do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b) do CIVA, na interpretação de que permitem a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108;

c) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação parcial da autoliquidação de IVA respeitante ao mês de Dezembro de 2019, consubstanciada na declaração periódica n.º ...;

d) Anular a referida autoliquidação, na parte em que foi deduzido IVA em montante inferior ao que resulta do cálculo do pro rata nos termos do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, com inclusão do valor total das rendas de locação financeira, por enfermar de erros sobre os pressupostos de facto e de direito;

e) Anular a decisão da reclamação graciosa apresentada no âmbito do procedimento n.º ...2021... que manteve a autoliquidação;

f) Julgar improcedentes os pedidos de restituição da quantia paga em excesso e de juros indemnizatórios sem prejuízo de os respectivos direitos deverem ser apreciados em execução do presente acórdão.

 

Fixa-se ao processo o valor de €182.531,79 (valor indicado e não contestado) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em €3.672,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.

Notifiquem-se as partes.

 

Notifique-se o Ministério Público.

 

Lisboa, 2 de maio de 2023

Os Árbitros

 

 

(Fernanda Maçãs)

 

 

(Jorge Carita)

(com declaração de voto em anexo)

 

 

 

(Luís Menezes Leitão- relator)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Com todo o respeito que me merecem posições contrárias à nossa e depois de ter procedido a uma exaustiva análise do douto Acórdão tirado neste processo, não posso acompanhá-lo na plenitude das suas razões.

 

A questão em causa gira em torno das operações de locação financeira mobiliária desenvolvidas por instituições de crédito.

 

Se a prestação de serviços de locação financeira está pela sua totalidade sujeita a IVA e tal permite deduzir o imposto nos “inputs”, essa não é a questão que aqui nos ocupa.

 

A diferença de posição entre as partes, reside no facto de que a Requerente entender que deve levar ao numerador e denominador da forma de cálculo do pro rata da dedução do imposto, o valor total da renda, incluindo a componente de amortização financeira, aplicável ao cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista, enquanto que a AT, entende que assim não deve ser, e o valor de tais amortizações deve ser excluído da fórmula e desse modo fazer baixar o valor relativo do IVA a deduzir pelo sujeito passivo (no caso concreto o “pro rata” passa de 14% como pretende a Requerente para 10%, como defende a AT e foi inicialmente declarado pela própria Requerente). 

 

O que se pretende encontrar é a capacidade de dedução do IVA suportado pelo banco, com o seus custos comuns (“de utilização mista”), face à incompreensível inexistência de uma contabilidade analítica que os permitisse imputar corretamente à atividade isenta (concessão de crédito) e à atividade sujeita (a locação financeira).

 

E aqui desde logo, começamos a sentir uma fragilidade da Requerente à semelhança das restantes instituições de crédito, pelo menos enquanto elas desenvolveram esta atividade, na prova da afetação desses custos comuns.

 

Diga-se, em abono da verdade, que o principal responsável pela dificuldade sentida na dedução do imposto e na litigiosidade criada, é o próprio sujeito passivo que teima em não desenvolver e aprofundar os seus registos contabilísticos, já que, por exemplo, não consegue elaborar uma chave de repartição, nem apresenta o suporte contabilístico relativamente a tudo o que afirma.

 

Por estas e por outras razões, a maior parte dos bancos portugueses criarem sociedades financeiras autónomas para o exercício exclusivo dessa atividade, que estava longe de ser o “core business” da banca e pelo menos este problema deixaram de ter.

 

Acontece que, como se sabe, a Jurisprudência do TJUE criou um critério que pretende ajudar a determinar se nestas situações, os gastos de utilização mista foram sobretudo determinados pela atividade de disponibilização dos veículos ou da concessão de crédito.

 

Ou seja, o Tribunal, na ausência de melhor critério, tenta separar a atividade ligada à locação financeira imobiliária em duas sub – atividades autónomas: Uma isenta de IVA: a função creditícia do banco e a outra, a relacionada com a compra da viatura, essa sim sujeita IVA.

 

Se a atividade em causa estivesse predominantemente ligada à disponibilização dos veículos, a aplicação da fórmula não se faria de acordo com o Ofício Circulado da AT, o valor das amortizações de capital não seriam expurgadas da fórmula e a capacidade de dedução do sujeito passivo ficaria ampliada (14%, neste caso concreto).

 

Se a atividade creditícia fosse preponderante em suportar esses custos mistos ou comuns, então já se poderia aplicar a regra do Ofício, o valor das amortizações seria expurgado da fórmula e o IVA dedutível seria em menor escala (10%, neste caso).

 

E é precisamente isso que os Tribunais superiores mandam os tribunais de 1ª. instância fazer (há situações e que os autos em recurso baixaram à 1ª. instância para que aí se fizesse essa prova).

 

Qual das sub atividade da locação financeira mobiliária é predominante?

 

Ou dito de outro modo: em qual delas se “gastou” (suportou) mais IVA para que fossem executadas junto do cliente.

 

A disponibilização dos veículos ou a atividade financeira e de gestão dos contratos?

 

A Requerente desvaloriza esta última, apesar de estarmos perante uma instituição de crédito que tem essa como a sua principal atividade: a concessão de crédito.

 

A AT acha que o sujeito passivo não fez essa prova e como tal não pode ter razão.

 

Isto pressupõe naturalmente que o ónus da prova neste caso caiba ao sujeito passivo, com o que concordamos (Vd. Artº. 125º. da Resposta fundada no recente Acórdão nº. 0101/19 BALSB do STA de 20.01.2021).

 

Lamentando que a Requerida não tenha apresentado alegações finais e apreciado a totalidade da prova produzida, tal acaba apenas por afetar a análise da prova testemunhal, já que toda a restante foi apreciada no contexto da sua Resposta.

 

A defesa da posição da Requerida encontra-se explanada nos artigos 138º. e segs. da sua Resposta, tendo a Requerente a sua posição final exposta nas suas Alegações.

 

É, por uma ou por outra, que este Tribunal tem que optar.

 

Eu, na minha modesta opinião, opto pela posição defendida pela Requerida.

 

A posição que fez maioria neste coletivo optou por reconhecer a razão da Requerente e anular a liquidação impugnada, com todas as consequências legais daí resultantes.

 

Na minha modesta opinião, em linguagem simples, as instituições de crédito servem para vender dinheiro.

 

O carro é um estratagema.

 

Senti algum conforto para tomar esta decisão, durante a leitura do presente acórdão, nomeadamente, na análise que faço à matéria de facto dada como provada.

 

Quanto a algumas das questões de direito aqui em causa, sigo de perto a Declaração de Voto do Dr. António de Barros Lima Guerreiro, que consta do Procº. nº. 259/2002-T em que a temática em causa se identifica com a dos presentes autos.

 

Comecemos pela análise da matéria de facto dada como provada pelo presente Acórdão:

“12.9. Relativamente a estes recursos de utilização mista, não foi possível à Requerente aplicar o método da afectação real, por não ser possível concluir com precisão e fidedignidade sobre o grau de utilização dos recursos em cada uma das actividades por si desenvolvidas.

12.10. As caraterísticas específicas da actividade bancária tornam inviável a aplicação de uma contabilidade analítica que permita à Requerente quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos de utilização mista afectos à actividade de locação financeira e, concomitantemente, às suas diversas operações.”

 

Não podemos deixar de referir que tais dificuldades, dadas como provadas, resultam da confissão da Requerente, mas só podem abonar em seu desfavor.

 

Se não foi possível “…com precisão e fidedignidade…” a imputação dos recursos a cada uma das diferenciadas atividades, tal poderia ter sido feito por aproximação, estimativa, com cálculos, devidamente quantificados de acordo com um determinado racional, o que não foi de modo algum concretizado.

 

Sabemos que a aplicação de regras rigorosos de afetação real reveste-se das suas dificuldades e sobretudo de custos relevantes, nomeadamente em sede de desenvolvimento de soluções informáticas. Mas não é impossível.

 

As instituições de crédito mais não fazem, porque os custos associados ultrapassam, por vezes, os benefícios que daí pudessem extrair, nomeadamente no aproveitamento de uma taxa de dedução de imposto superior.

 

A otimização fiscal, sempre presente nas organizações empresariais e respetivos consultores, esbarra, por vezes, numa simples análise de custo benefício.

 

Mas lá porque esses investimentos não se fazem, nãos se pode reconhecer aos sujeitos passivos, um direito que eles não lograram provar, abonando em seu favor as dificuldades da sua determinação.

 

Quem consegue quantificar o direito, utiliza-o, quem não consegue não pode dele beneficiar.

 

E é isso que o presente Tribunal está a fazer. Conceder um benefício sem que o sujeito passivo tenha provado o valor do mesmo.

 

E essa atribuição é validada apenas porque o sujeito passivo não o conseguiu fazer.

 

Ora, como se dá como provado no presente acórdão, se “As caraterísticas específicas da actividade bancária tornam inviável a aplicação de uma contabilidade analítica que permita à Requerente quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos de utilização mista afectos à actividade de locação financeira…”, então os sujeitos passivos nessa situação não reúnem as condições necessárias para usufruir desse direito a uma dedução acrescida.

 

Não nos podemos esquecer que o TJUE ordenou aos Tribunais de primeira instância, que reunissem os elementos de prova necessários para que fosse possível determinar o peso relativo de cada uma das atividades envolvidas na utilização desses recursos mistos.

 

E, na minha opinião, no caso concreto, a Requerente não produziu tal prova.

 

Por isso, e com todo o respeito, não entendo como é que o presente Tribunal dá como provado o seguinte:

“12.13. Em regime de exclusividade, a Requerente afecta à actividade de locação financeira um colaborador, o qual, sendo responsável pela gestão de uma caixa de correio interna referente a esta atividade, direcciona para a área competente as questões e vicissitudes resultantes da vigência dos contratos de locação financeira.

12.14. Em regime de não exclusividade, a Requerente afecta ainda cerca de 10 a 15 colaboradores à atividade de locação financeira.

12.15. As tarefas relativas a contratos de locação financeira implicam a intervenção de diversas áreas internas da Requerente.”

 

Tudo se bastando no depoimento da única testemunha inquirida, sem que para tal o Probatório indique os documentos juntos aos autos donde essa realidade resulte evidente.

 

Afetando naturalmente a facto provado no número seguinte:

“12.18. Pelo contrário, as operações associadas à utilização dos bens locados pressupõem uma maior intervenção humana e assumem um carácter mais personalizado, requerendo um maior dispêndio de recursos (incluindo indiferenciados).”

 

Já relativamente ao ponto 12.23 do Probatório, referente às operações de utilização dos bens locados, a lista de tarefas desempenhadas abrange algumas relativamente às quais a Requerente procede à cobrança de comissões, naturalmente sujeitas a IVA, e que não devem relevar para os efeitos pretendidos, no sentido de engrandecer a dimensão da atividade de locação dos bens em detrimento da atividade financeira.

 

As nossas dificuldades continuam, com todo o respeito, no sentido de não se alcançar com base em que documentos ou que testemunhos, até porque tal não vem referido a seguir a cada alínea do Probatório, como é habitual, é que o Tribunal deu como provado, por exemplo, o seguinte:

“12.24. No ano de 2019, as operações realizadas pela Requerente associadas à utilização dos bens locados foram preponderantes em relação às operações associadas ao financiamento propriamente dito, pelo que os recursos indiferenciados (i.e., consumos de eletricidade, água, papel, material informático, telecomunicações, etc.) foram predominantemente consumidos com as tarefas associadas à utilização do bem.”

 

Tal constitui apenas uma réplica das alegações da Requerente, mas admitimos, respeitosamente, que faltam elementos de prova para que o Tribunal se permita tal conclusão, mais parecendo uma opinião, nem em lado algum se consegue determinar como se alcança tal predominância e que a mesma é suficiente para justificar uma dedução de 14% em detrimento de uma de 10% e porque não já agora de uma de 15%...

 

Ou seja, no contexto deste processo, e em nossa opinião, a Requerente não conseguiu provar aquilo que o TJUE manda que se faça nestas circunstâncias.

 

O reconhecimento de que as instituições de crédito não têm direito a beneficiar de uma taxa de dedução e IVA superior, levou a que tal atividade fosse expurgada do âmbito dessas instituições, autonomizando-se em veículos que as passaram a desenvolver em exclusivo, como acaba por reconhecer, e bem, este Tribunal ao admitir:

“12.10. As caraterísticas específicas da actividade bancária tornam inviável a aplicação de uma contabilidade analítica que permita à Requerente quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos de utilização mista afectos à actividade de locação financeira e, concomitantemente, às suas diversas operações.”

 

Contra grandes males, grandes remédios.

 

Se é inviável, não se utiliza.

 

Queremos ainda referir que justificando a factualidade dada como provada o Tribunal invoca:

“14. A matéria de facto, para além da que se encontra aceite entre as partes, foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção sobre a mesma foi formada com base em prova documental, i.e., na documentação junta pela Requerente, bem como pela junção do processo administrativo, efectuada pela Requerida, e ainda pela prova testemunhal realizada em audiência de julgamento. Efectivamente, a testemunha D... aparentou depor com isenção e com conhecimento directo dos factos.”

 

Ora, a análise dos documentos jutos aos autos dá conta de que, para além de todas aqueles que vão deste os comprovativos da liquidação do imposto, terminado nos comprovativos do pagamento do mesmo, tudo o resto são documentos que dão conta da evolução processual antes da entrega do PPA, com exceção do Doc.º nº. 3, que constitui um manual interno referente à celebração de contratos de leasing, que na minha modesta opinião nada prova.

 

Já assim tinha acontecido antes em sede de Reclamação graciosa.

 

Ou seja, o Banco Requerente entende que nada tem que provar.

 

Documentos contabilísticos: zero.

 

Contudo, o presente Tribunal dá como provados múltiplos factos que, obviamente, mas com todo o respeito, não podem resultar da inexistente prova documental.

 

Não podendo, por isso, assistir razão à Requerente nas suas pretensões.

 

Passemos agora a uma breve análise da identificada Declaração de Voto proferida no âmbito do Proc. nº. 259/2022-T, em que se refere que a questão que importa decidir naqueles autos é a seguinte:

“Discute-se em particular se, na locação financeira de veículos automóveis, no cômputo do coeficiente de imputação dos custos comuns a atividades sujeitas, isentas ou fora do campo de incidência do imposto, com base no qual é determinado o direito à dedução, quando o sujeito passivo não aplique critérios objetivos de repartição desses custos, pode o sujeito passivo, ao aplicar a percentagem de dedução regulada no nº 4 do art. 23º do CIVA, incluir no numerador e no denominador da fração através da qual é apurada o montante anual das rendas auferidas ou antes tal montante deve ser expurgado da parte destinada à amortização do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado, como a administração fiscal sustentaria no nº 9 do Ofício- Circulado nº 30.108, de 30/1/2009.”

 

Mais à frente, na análise de uma questão que também se coloca, quanto a saber se o nº. 2 do art.º 23º. do CIVA constituiria o direito atribuído aos Estados membros pelo nº. 2 do art.º 174 da Diretiva IVA de limitarem a dedução do imposto, conclui, com suporte no Acórdão do STA nº. 0485/17 de 15/04/2017, que assim seria, contrariando a tese da Requerente que não reconheceria a tal disposição do Código essa virtualidade.

 

A Declaração que vimos seguindo em comentário às conclusões do Acórdão tirado no Proc. 259/2022-T, que sendo admissível à Administração fiscal determinar um critério para cálculo do “pro rata”, como é aceite pela diversa jurisprudência citada “…caberia então à impugnante demonstrar que a utilização de bens e serviços de utilização mista seria determinada predominantemente pela disponibilização dos veículos,…”, o que não aconteceu no caso daquele processo (tal não foi levado ao probatório), nem, em nosso opinião, aconteceu neste.

 

Refere-se nesta Declaração de Voto, que num dos reenvios para o TJUE se colocava a seguinte questão:

«Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?»

 

Ao que o TJUE respondeu do seguinte modo:

“A alínea c) do terceiro parágrafo do nº 5 do art. 17º da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17/5/77, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.” (sublinhado nosso)

 

Daqui se conclui, como faz este Árbitro, que:

“Assim, os Estados Membros podem excluir do âmbito do “pro-rata”, com o consequente expurgo do numerador e denominador da fração pela qual se concretiza o seu apuramento, parte da renda relativa à amortização do capital.”

 

Cita o Autor da Declaração de Voto jurisprudência comunitária que salvaguarda o poder dever do Estado de limitar a utilização livre de qualquer “pro rata” indicado pelo sujeito passivo. A saber:

“37-Por conseguinte, os Estados-Membros devem exercer o seu poder de apreciação de modo a assegurar que a dedução só será efetuada para a parte do IVA que é proporcional ao montante referente às operações que conferem direito a dedução. Devem, pois, zelar para que o cálculo do pro rata entre atividades económicas e atividades não económicas reflita objetivamente a parte de imputação real das despesas a montante a cada uma destas duas atividades. (Acórdão C-437/06 do TJUE)

 

Quaisquer dúvidas seriam dissipadas por outro Acórdão do TJUE, o C-153/17. Assim, de acordo com as suas respetivas Conclusões:

“O art. 168º. e a alínea c) do nº 2 do art. 173º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 /5/2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (Acórdão do TJUE C-153/17)

 

Tal permite ao autor retirar daqui a seguinte conclusão:

“Assim, nos casos em que não seja possível ao sujeito passivo a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, este não só pode como deve considerar no numerador e no denominador da fração, de apuramento do “pro-rata” da dedução, o montante anual das rendas auferidas, expurgado da parte destinada à amortização do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado.”

 

Se assim não fosse, a última decisão citada aponta para um “empolamento artificial do direito à dedução.”

 

E mais se refere que a amortização do capital investido não constitui a remuneração da concessão de crédito, sendo que:

“Assim, no apuramento do “pro-rata”, a parcela dos juros que reflete a amortização do capital é um elemento da contrapartida recebida pela entrega dos bens e não a contraprestação de uma operação de financiamento.” (Acórdão do TJUE C- 281/91)

 

Este mesmo árbitro defende que apenas no contexto do incumprimento das disposições comunitárias se poderia admitir a “…inclusão no numerador e denominador da fração que serve de base ao apuramento do “pro-rata” da amortização do capital investido.”

 

No uso do seu poder dever acima referenciado os Estados Membros podem usar diversas chaves de repartição, mas tal deixa de ser possível, ou seja… “essa habilitação termina quando a chave de repartição adotada implique distorções significativas da concorrência, que se verificam sempre – e não apenas eventualmente - quando o valor das rendas com base no qual é determinado o direito à dedução não seja expurgada a parcela destinada à amortização do capital. Nesse caso, ou o sujeito passivo opta pela afetação real, ou o montante amortizado é excluído do “pro-rata” da dedução.”

 

Cabe ao titular do direito à dedução o ónus da prova, no sentido de demonstrar o modo e quantum de utilização mista dos bens e serviços dos seus “inputs”, conforme jurisprudência consolidada referenciada nesta Declaração de Voto (pág. 46).

 

Mas, o mais importante, e que com todo respeito não é analisado no presente Acórdão, tem a ver como facto de ser importante apuar como se faz tal prova.

 

E, voltando à mesma Declaração de Voto aí se pode ler:

“Tal afetação objetiva deve resultar da contabilidade, como resulta do nº 1 do art. 44º do CIVA., nos termos do qual a contabilidade deve ser organizada de forma a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto, comportando todos os dados necessários ao preenchimento da declaração periódica, com força probatória nos termos do nº 1 do art, 75º da LGT.”

 

E sobre a contabilidade da Requerente, no presente processo, nada se refere.

 

E entrando na análise do processo de contratação e execução do contrato de leasing, depois de se referir novamente na dita Declaração de Voto, que muitos dos serviços em causa são cobertos por via do débito de diversas comissões, salienta-se que:

“Apenas com a assinatura do auto de receção do veículo, posterior à aprovação do contrato, o veículo é disponibilizado ao locatário, sendo evidente, como sustentaria o acórdão do proc. 75.21.9BALSB que os consumos dessa disponibilização, dada a reduzida intervenção do Locador, são inferiores que os que resultam do financiamento e gestão implicados pela locação financeira.”

 

Decisão contrária àquela que aqui foi proferida, tudo relativamente à mesma atividade.

 

Logo se acrescentando:

“Por outro lado, ao contrário dos consumos incorridos com serviços informáticos, com o processamentos de faturas durante a execução do contrato e com o envio de correio, outros consumos, posteriores à entrega/disponibilização dos bens, como relacionados com a gestão dos seguros, o pagamento de IUC, a gestão das multas, alterações contratuais, processamento das prestações , gestão de sinistros, incluindo o reboque da viatura ou incumprimento definitivo objeto de uma comissões específicas, sobre as quais recai IVA.”

 

Para se concluir:

“No entanto, a Requerente não contabilizou esses consumos de acordo com o método da afetação real, mas inclui-os no “pro- rata” de dedução, sem sujeição ao rateio prévio da alínea a) nº 1 do art. 23º do CIRC e em violação do nº 2 desta norma.”

 

E, por essa razão:

“Face a este quadro, a Requerida não estava obrigada a provar quaisquer distorções significativas da concorrência: elas resultam necessariamente, face à jurisprudência comunitária citada, do método de imputação de custos que adotou.”

 

Tal como no presente processo, no Proc. nº. 259/2002-T apurou-se que os custos comuns em causa foram determinados quer pelo financiamento e gestão dos contratos, quer pela disponibilização dos bens locados, mas naquele como neste:

“Não foi provado que os recursos utilizados pela Requerente foram essencialmente determinados pela disposição de bens foram predominantes, mas apenas que esses custos existiram, o que, nos termos do Acórdão 75.21.9BALSB também sobre idêntica situação de facto, não é suficiente para justificar a pretensão da Requerente.”

 

Aliás, são evidentes as dificuldades sentidas pelo presente Acórdão o sentido da decisão perfilhada:

 

Vejamos dois exemplos:

Não se apurou a dimensão exacta de recursos de utilização mista não considerados no valor das comissões que são utilizados em cada uma das actividades referidas, nem há qualquer fundamento para concluir que sejam proporcionais ao número de pessoas que intervêm em cada uma das fases, designadamente porque, além dos colaboradores afectos em permanência e parcialmente à actividade de leasing.” (pág. 36 e sublinhados nossos).

 

E, a seguir:

“Para além disso, é convicção do Tribunal Arbitral, embora sem a certeza absoluta que só poderia resultar de uma quantificação exacta, que as actividades anteriores à entrega dos veículos e as consideráveis actividades posteriores derivadas da manutenção dos veículos na posse dos clientes, que só existem nos contratos de locação financeira, foram de maior dimensão e consumiram mais recursos de utilização mista  do que as derivadas do financiamento e gestão dos contratos.” (pág. 37 e sublinhados nossos)

 

Finalmente, não creio que no presente processo estejam em causa questões de inconstitucionalidade das normas aplicadas, já que as Diretivas comunitárias sempre referenciadas dão plena cobertura ao exercício de um poder dever pelos Estados membros, de que resulta a legitimação de diversos normativos do CIVA aqui postos em causa, ao abrigo dos quais a AT procedeu à liquidação do imposto nos presentes autos, independentemente do conteúdo concreto das orientações administrativas sobre a mesma matéria.

 

Daqui também resulta que não se revela necessário, como o faz a presente Decisão, questionar a legalidade da imposição de uma orientação administrativa que a ninguém vincula, a não ser a quem a emitiu.

 

Aliás, é o próprio Acórdão que deixa antever tal raciocínio ao concluir que:

Mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativa nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade,…” (pág. 40 e sublinhado nosso).

 

Mas isso equivaleria a dizer que está a Administração Fiscal proibida de proceder à melhor interpretação das normas fiscais aplicáveis..., ou para tais interpretações, com as quais os restantes intérpretes e aplicadores da lei podem não concordar, teria a administração fiscal de propor ao legislador a sua passagem a forma de lei, para que assim pudesse ser aplicada.

 

Procedimento que se torna de difícil execução, tanto mais que é bem conhecida a quantidade e a natureza das inúmeras interpretações administrativas das normas fiscais….

 

E o presente Acórdão vai tão longe ao ponto de dar cobertura a entendimentos, que, com todo o respeito, vão no sentido de dizer qua a interpretação que a AT faz das nomas fiscais aplicáveis provoca, ao contrário de eliminar, as “distorções significativas na tributação”, quando conceituados autores reconhecem que:

“…. Pode entender-se que o método do pro rata a que chamaríamos normal não apura com suficiente rigor a parcela de imposto dedutível, mas ele é, sem dúvida, melhor do que trabalhar com uma percentagem de dedução que faz flutuar a parcela de imposto dedutível ao longo do tempo sem qualquer relação com diferenças na intensidade do uso dos inputs promíscuos pelo sector de actividade cujas operações conferem direito à dedução.” (Vd. Pág. 44 do presente Acórdão, com sublinhado nosso, que transcreve a obra de JOSÉ XAVIER DE BASTO e ANTÓNIO MARTINS, "A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs «promíscuos» dos operadores de locação financeira: as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de julho de 2014 (Proc. C-183/13)" na Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, ano 10º, nº1, pp. 27-56 (46-47).

 

Ou seja, acabamos a interpretar a lei de acordo com um suposto novo princípio a que poderíamos apelidar de “mal menor”.

 

E o Tribunal acaba por manifestar a sua certeza, apenas com base nesta respeitada opinião doutrinária, de que se dá como provado que as distorções em causa resultam do método imposto pela AT… , sem que disponha de elementos concretos para assim concluir.

 

É uma opinião académica, por mais respeitada que seja, como aliás é o caso, mas não faz fé em juízo, não constituindo meio de prova de hipotéticas distorções da tributação.

 

Aquilo que a final o presente Acórdão entende que acaba por conduzir a uma violação do princípio da igualdade, conduz ao reconhecimento de que as instituições de crédito “fugiram” desta polémica, sabendo da eventual fraqueza dos seus argumentos, e transferirem esta atividade de locação financeira para sociedades por si detidas e a elas dedicadas em exclusivo, acabando com esta promiscuidade fiscal, voltando à nobreza da sua atividade maior: pura concessão de crédito.

 

Razões pelas quais e com todo o respeito, não posso acompanhar o sentido da presente Decisão.

 

Lisboa, 2 de maio de 2023.

 

 

Jorge Carita