Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 776/2022-T
Data da decisão: 2023-06-15  IRC  
Valor do pedido: € 5.862.090,54
Tema: IRC – Diretiva Juros e Royalties – beneficiário efetivo. Pedido de aplicação, em alternativa à da Diretiva, de Convenções sobre Dupla Tributação.
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SUMÁRIO:

- A dispensa de retenção na fonte relativamente ao pagamento de juros decorrente da isenção prevista nos nº 12 e seguintes do art. 14º do CIRC, os quais transpõem o constante da Diretiva Juros e Royalties, implica a prova da qualidade de beneficiário efetivo do destinatário.

- Não reveste tal qualidade uma sociedade, sedeada noutro estado-membro, sem atividade económica efetiva, inserida numa cadeia de sociedades também aí sedeadas, através da qual se logra a transferência da maior parte do valor dos juros em causa para um território terceiro com aproveitamento das vantagens fiscais decorrentes, primeiro, do Direito da União e, depois, da CDT celebrada entre este território e aquele estado.

- A aplicação, em alternativa à Diretiva, de Convenções sobre Dupla Tributação depende de iniciativa do interessado, mormente do substituto, junto da administração fiscal e da verificação dos pressupostos previstos em tais tratados, incluindo o seu uso não abusivo.

- A responsabilidade originária do substituto, sendo proporcional atentas as circunstâncias do caso concreto, não ofende princípios constitucionais e a CEDH no relativo ao respeito pela propriedade privada e à certeza e segurança jurídicas.

- O insucesso no cumprimento de um ónus da prova, quando este se mostre razoável, não é causa desculpante do cumprimento da obrigação de pagamento de juros compensatórios.

 

DECISÃO ARBITRAL

A – …, UNIPESSOAL, LDA., NIPC …, com sede na Rua …, n.º …, Piso …, …-… …, veio nos termos legais, pedir a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O pedido

A Requerente peticiona a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2022 …, no montante de Euros 5.084.026,65. Pede ainda a anulação das liquidações de juros compensatórios nº 2022 … e nº 2022 …, nos montantes de EUR 405.997,57 e de EUR 372.066,32, e a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios e das custas arbitrais.

 

Para tal invoca os seguintes vícios de ilegalidade:

  1. violação do regime de isenção de juros pagos a entidades sedeadas noutro estado-membro, previsto no artigo 14.º, n.º 12 e ss do CIRC, na medida em que considera verificados os respetivos pressupostos de aplicação (em concreto, no nº 13, alínea d), de tal artigo);
  2. violação dos princípios da certeza, segurança jurídica, da proporcionalidade e da tutela da propriedade privada, decorrentes dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP, e, bem assim, do direito de propriedade privada, garantido pelo artigo 1.º do Protocolo Adicional à CEDH;
  3. violação do artigo 11.º, nº 1 e nº 2, da CDT Portugal/Hong Kong;
  4. violação do artigo 11.º, nº 1 e nº 2, da CDT Portugal/Reino Unido.

 

B) O litígio

A Requerida, em ação inspetiva, considerou que os juros pagos pela Requerente se encontravam sujeitos a tributação em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, por não estarem verificadas as condições para a isenção prevista no artigo 14.º, números 12, 13, alínea d), e 15, alínea a), do CIRC.

Fundamentou tal decisão no entendimento de que a documentação apresentada pela Requerente, em sede de procedimento inspetivo, não permite dar por provada a qualidade de beneficiário efetivo da destinatária de tais pagamentos, uma vez que não seria possível verificar se a sociedade em causa auferiu tais rendimentos por conta própria e não na qualidade de intermediária, seja como representante, gestor fiduciário ou signatário autorizado de terceiros.

Por tal razão considerou, também, não ser aplicável o disposto na CDT Portugal - Reino Unido.

A Requerida recusou também a aplicação da CDT Portugal - Hong Kong por considerar não ter sido feita prova que as sociedades aí fiscalmente domiciliadas (sócias indiretas da Requerente, como adiante se especificará) tenham sido as beneficiárias efetivas de tais pagamentos.

 

A Requerente discorda destes entendimentos, alegando factos tendentes a demonstrar que a sociedade a quem foram pagos tais juros deve ser considerada beneficiária efetiva de tais pagamentos ou, assim não se entendendo, que devem como tal ser consideradas as sociedades sedeadas em Hong Kong. Sustenta ainda, subsidiariamente, a aplicabilidade das convenções celebradas por Portugal com o Reino Unido e com Hong Kong.

 

C) Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 16-12-2022.

Os árbitros que constituem este Tribunal foram designados, nos termos legais, pelo CAAD, aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não foram objeto de impugnação.

 O tribunal arbitral ficou constituído em 20-02-2023.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

As testemunhas foram ouvidas em sessão de 04-05-2023, conforme conta da respetiva ata, tendo sido gravados os seus depoimentos.

As partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as suas posições.

 

D) Saneamento

O processo não enferma de nulidades ou de irregularidades.

Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

II – PROVA

II.1 – Facto provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. À data, a totalidade do capital social da Requerente era detido pela sociedade UK B… (a seguir designada por UK3), com sede no Reino Unido e sem estabelecimento estável em Portugal.
  2. À data, a totalidade do capital social da Uk3 era detido pela sociedade UK C… (a seguir designada por UK2), com sede no Reino Unido.
  3. À data, a totalidade do capital da UK2 era detido pela sociedade UK D… (a seguir designada por UK1), com sede no Reino Unido.
  4. À data, o capital social da UK1 era detido, em partes iguais, por duas sociedades com domicílio fiscal em Hong Kong, a E... Limited e a F... Limited (a seguir designadas por sociedades de Hong Kong).
  5. As ultimate parents destas sociedades são sociedades (abreviadamente designadas por G... e H...) cotadas na Bolsa de Hong Kong.
  6. Em 18 de Novembro de 2015, a Requerente adquiriu a totalidade do capital social da I... – Desenvolvimento e Projetos, S.A., cuja atividade essencial consiste na produção de energia eólica.
  7. Com vista a reunir os meios financeiros necessários à aquisição da I..., a 17 de Novembro de 2015, a Requerente celebrou – na qualidade de mutuária – um contrato de financiamento com a sua sócia única, a UK3, no montante de EUR 250.000.000,00.
  8. No referido contrato ficou acordado o vencimento de juros, com periodicidade semestral, a uma taxa anual de 8%.
  9. Tal como previsto em tal contrato, venceram-se os seguintes juros:

- em maio de 2017, 9.917.808,22;

- em novembro de 2017, 10.232.543;

- em maio de 2018, 9.945.578,08;

- em novembro de 2018, 10.390.528,52.

  1. Relativamente aos juros vencidos em maio de 2017, ainda não se encontrando à data cumprido o prazo mínimo de detenção da participação social imposto pelo artigo 14.º, n.º 13, alínea b), subalínea iii), do CIRC, a Requerente efetuou retenção na fonte de IRC à taxa de 10%, prevista no artigo 11.º da CDT Portugal/Reino Unido;
  2. A UK3 entregou documentos emitidos pelas autoridades fiscais do Reino Unido, atestando a sua residência fiscal nesse país, bem como a sua sujeição a imposto sobre o rendimento neste país.
  3. A Requerente passou a enquadrar os juros pagos no regime previsto na Diretiva Juros e Royalties e no artigo 14.º, números 12 a 15, do CIRC, pelo que, relativamente aos juros vencidos em novembro de 2017 e em maio e dezembro de 2018, não efetuou qualquer liquidação de IRC por retenção na fonte.
  4. A AT efetuou uma ação de inspeção tributária à Requerente, tendo por objeto o IRC relativo a 2018, a qual incidiu sobre o enquadramento dos juros pagos pela Requerente à sua sócia única durante esse período, do que resultou uma liquidação adicional de imposto no valor de EUR 5.084.026,65.
  5. A cadeia de participações a montante das sociedades de Hong Kong é extremamente complexa, envolvendo, para além de outras sociedades sedeadas em Hong Kong, nomeadamente as referidas em e), entidades com diferentes naturezas jurídicas sedeadas em paraísos fiscais, como sejam as Ilhas Virgem Britânicas, Cayman, Bermudas e Panamá.
  6. Em 17 de Novembro de 2015, a E... Limited  celebrou com a UK 1 um contrato de mútuo no montante de 125.000.000 euros, o qual vencia juros á taxa de 8%, a serem pagos cada seis meses.
  7.  Na mesma data, a F... Limited celebrou com a UK 1 um contrato de mútuo no montante de 125.000.000 euros, o qual vencia juros á taxa de 8%, a serem pagos cada seis meses.
  8. Tais montantes foram utilizados pela UK1 para financiar a UK2, através de aumentos de capital (equity) de € 328.500.000 (1 € de capital social e € 328.499.999 de share premium)
  9. A UK2 fez o mesmo relativamente à UK, dotando-a de mais capitais próprios, no mesmo valor de € 328.500.000 (1 € de capital social e € 328.499.999 de share premium).
  10.  O financiamento recebido pela UKR3 permitiu a esta dotar a sua subsidiária portuguesa A... (a Requerente) com mais capitais próprios (€ 7.850.250), prestações suplementares (€ 70.650.000) e os suprimentos ora em causa (€ 250.000.000)
  11. As sociedades UK1, UK2 e UK3 não possuem instalações, próprias ou arrendadas, utilizando, para as reuniões das suas administrações, um espaço cedido por uma sociedade participada por sócios indiretos da UK1.
  12. As sociedades UK1, Uk2, e Uk3 não possuem pessoal próprio, subcontratando a execução de todas as tarefas necessárias, que são de natureza administrativa, nomeadamente as inerentes ao cumprimento de obrigações legais.
  13. Os administradores das sociedades UK3, UK2 e UK1, nomeadamente a testemunha J..., repartem a sua atividade por outras sociedades.
  14.  A sociedade UK1 não realizou outros investimentos que não titular a participação na UK2.
  15. A sociedade UK2 não realizou outros investimentos que não titular a participação na UK3.
  16. A sociedade UK3 apenas realizou um investimento, a aquisição das participações na I..., referida em f), muito embora tenha analisado diversas outras possibilidades de investimento.
  17. A criação de três sociedades no Reino Unido, com idêntico objeto, correspondeu à intenção das ultimate parents das sócias da UK1 de terem diferentes subholdings para titular os diferentes investimentos que tencionavam vir a realizar na Europa.
  18. As sociedades sócias das sociedades de Hong Kong exercem atividade empresarial no Reino Unido através de outras sociedades, nomeadamente a K… Gas Networks Limited.
  19. O cumprimento pela UK1 das suas obrigações, nomeadamente pagamento de juros, decorrentes dos contratos de mútuo celebrado com as suas sócias, às sociedades de Hong Kong, dependia totalmente de a I... gerar rendimentos que lhe permitissem cumprir com as obrigações decorrentes do contrato de mútuo celebrado com a Uk3; que esta, assim financiada, redistribuísse, no necessário, dividendos à Uk2; que esta procedesse de igual modo relativamente à Uk1.
  20. Por a I... não ter gerado rendimentos suficientes no período de 2016, o share premium da UK3 foi reduzido em € 29.085.000, criando, deste modo, disponibilidades suficientes para esta sociedade distribuir dividendos à UKR2, no valor de € 28.050.000 (sem esta operação, o resultado líquido do período, de 18,007 milhões de euros, não teria sido suficiente para permitir o dividendo que foi pago).
  21.  A Requerente procedeu ao pagamento dos montantes liquidados adicionalmente.

 

Estes factos constam de documentação junto aos autos e não foram objeto de controvérsia direta (as partes divergem apenas quanto ao seu “significado”).

A audição das testemunhas, arroladas pela Requerente, foi, em vários aspetos, muito esclarecedora pois estas relataram, com verdade, a realidade do grupo UK L…, que bem conhecem, e confirmaram os movimentos financeiros (pagamentos de juros e distribuições de dividendos) em causa.

 

III.2 - Factos não provados

 

Não se considerou provada a seguinte alegação da Requerente: os juros pagos pela Requerente à UK B… foram sujeitos a tributação no Reino Unido na esfera desta sociedade, independentemente do regime de tributação de grupos aplicável ao UK L… GROUP.

A Requerente juntou, para prova de tal alegação, o relatório e contas da UK3 relativo a 2018 (doc. 29 anexo ao requerimento inicial) – um documento particular, não estando certificada a sua apresentação a uma qualquer entidade pública –, no qual figura um valor sob o título  tax on profit on ordinary activities, não tendo sido produzida mais prova.

Ora, o que incumbia provar, como adiante se explicitará, é que os juros pagos pela Requerente tinham efetivamente sido sujeitos a tributação no Reino Unido, na esfera da UK3. O que, necessariamente, deveria ser feito através de documento autêntico, emitido pela competente autoridade fiscal do Reino Unido.

Indo além da força probatória do meio de prova, temos que do documento junto pela Requerente apenas se poderia concluir que a UK3 terá pago imposto, no Reino Unido, pelos lucros das suas ordinary activities, nada permitindo concluir que juros recebidos de uma subsidiária integram tal base de tributação.

 

IV - O DIREITO

 

  1. O beneficiário efetivo

 Cumpre, em primeiro lugar, decidir se a sociedade UK3 (ou a UK2 ou a UK1, pois que tal diferenciação resulta fiscalmente irrelevante por serem as duas primeiras sociedades em situação de domínio total pela última e estarem todas sedeadas no Reino Unido) deve ser considerada beneficiária efetiva dos juros pagos pela Requerente.

Esta apreciação tem de ser feita à luz do Direito da UE, uma vez que a divergência entre as partes se situa na qualificação como beneficiária efetiva da UK3 para efeitos da aplicação da Diretiva 2003/49/CE do Conselho, de 3 de junho de 2003 (Diretiva Juros e Royalties), melhor, das normas do CIRC que procedem à transposição de tal Diretiva.

Nos termos do art. 1º, nº 1, de tal Diretiva, os pagamentos de juros ou royalties gerados num Estado-Membro estão isentos de todos os impostos incidentes sobre esses pagamentos no Estado em questão, quer mediante retenção na fonte quer mediante liquidação, desde que o beneficiário efetivo dos juros ou royalties seja uma sociedade de outro Estado-Membro ou um estabelecimento permanente situado noutro Estado-Membro de uma sociedade de um Estado-Membro.

Nos termos do nº 4 do mesmo artigo, uma sociedade de um Estado-Membro só será considerada como beneficiário efetivo de juros ou royalties se receber esses pagamentos por conta própria e não como intermediário, tal como representante, administrador fiduciário ou signatário autorizado de terceiros.

Esta diretiva foi transposta pelo nº 12 e seguintes do art. 14º do CIRC. Não sendo questionada a fidelidade de tal transposição, considera-se dispensável a transcrição de tais normas nacionais.

O conceito de beneficiário efetivo é, pois, na medida em que esteja em causa a invocação de normas nacionais com origem no Direito da União, um conceito a ser interpretado segundo os ditames do TJUE. O que é o caso, pois: (i) foi ao abrigo das referidas disposições do CIRC que a Requerente não procedeu a retenção na fonte relativamente aos pagamentos dos juros em causa; (ii) foi com base em tais normas que a Requerida fundamentou a liquidação adicional.

O TJUE já teve oportunidade de se pronunciar sobre vários casos concretos em que se colocava a questão de saber se o titular do direito a juros devia ou não ser considerado beneficiário efetivo, nomeadamente no acórdão proferido nos processos apensos C-115/16, C-118/16, C-119/16 e C-299/16, de 26 de fevereiro de 2019, os vulgarmente designados Danish Cases.

 

Em tal acórdão, o TJUE decidiu “fornecer indícios aos órgãos jurisdicionais nacionais a fim de os guiar na apreciação dos casos concretos que devem apreciar”.

Transcrevemos, por diretamente aplicável, os seguintes excertos de tal de tal acórdão:

128 - Assim, constitui um indício da existência de uma montagem destinada a beneficiar indevidamente da isenção prevista no artigo 1º, nº 1, da Diretiva 2003/49, o facto de os referidos juros serem transferidos, na totalidade ou quase na totalidade e num prazo muito curto após serem recebidos, pela sociedade que os recebeu para entidades que não preenchem os requisitos de aplicação da Diretiva 2003/49, seja porque essas entidades não estão estabelecidas em nenhum Estado‑Membro, (…) [sublinhado nosso].

 

 

 

131 - A circunstância de uma sociedade agir como sociedade interposta pode ser demonstrada quanto tiver como única atividade a cobrança dos juros e a sua transmissão ao beneficiário efetivo ou a outras sociedades interpostas. A este respeito, a inexistência de atividade económica efetiva deve, à luz das especificidades que caracterizam a atividade económica em questão, ser deduzida de uma análise do conjunto dos elementos pertinentes relativos, nomeadamente, à gestão da sociedade, ao seu balanço contabilístico, à estrutura dos seus custos e às despesas realmente efetuadas, ao pessoal que emprega, bem como às instalações e ao equipamento de que dispõe.

 

Aplicando estes ensinamentos, que vinculam os tribunais nacionais dos EM, temos que, relativamente à sociedade UK3, formalmente a beneficiária dos juros pagos pela Requerente, há que concluir que se carateriza pela inexistência de atividade económica efetiva.

Como dado por provado, esta sociedade não possuía quaisquer estruturas próprias, ainda que mínimas (instalações, equipamento, pessoal), não realizou quaisquer negócios inerentes ao seu objeto, limitou-se a receber os juros pagos pela Requerente e a distribuí-los, sob a forma de dividendos, na sua totalidade ou quase totalidade, à sua sócia UK2.

O mesmo se diga, mutatis mutandis, relativamente às sociedades UK2 e UK3, sendo que a atividade desta última foi, no essencial, pagar juros às suas sócias, as sociedades de Hong Kong.

A realidade afigura-se clara: os dividendos distribuídos, em Portugal, pela I... à Requerente foram, pelo menos na sua maior parte, por esta transmitidos à UK3, sob a forma de pagamento de juros, sem haver lugar a retenção na fonte por aplicação da Diretiva Juros e Royalties. Esta repassou o essencial de tais valores à UK 2, a título de dividendos, também sem haver lugar a imposto, por força da Diretiva mães-filhas. O mesmo fez esta sociedade relativamente à UK1. Esta, por sua vez, transmitiu tais valores às sociedades suas sócias, fiscalmente domiciliadas em Hong Kong, a título de pagamento de juros, sem também aqui haver lugar a retenção na fonte atento o disposto na CDT Reino Unido-Hong Kong[1].

Não existindo quaisquer razões económicas válidas para a interposição das sociedades sedeadas no Reino Unido, há que concluir que este esquema se consubstanciou numa economia fiscal não desejada pela letra e pelo espírito da Diretiva Juros e Royalties e, consequentemente, pelo disposto nos nº 12 e seguintes do art. 14º do CIRC, invocados pela Requerente como fundamento da liquidação adicional.

Há, pois, por concluir por uma situação de abuso de tal Diretiva.

Analisemos agora a contra-argumentação da Requerente para verificar se é suscetível de infirmar esta conclusão.

 

Temos, em primeiro lugar, o facto, atestado pela competente autoridade tributária do Reino Unido, de a UK3 aí ser fiscalmente residente e tributada a tal título pelo seu rendimento. Entendemos que tal não é decisivo para a resolução da causa.

A questão do beneficiário efetivo, à luz do Direito da União, coloca-se precisamente quando o destinatário do pagamento de juros é residente noutro estado-membro e aí tributado nessa qualidade.

A competência para apreciar se estão verificados os condicionalismos necessários ao preenchimento de tal conceito cabe ao estado-membro interessados, o qual será por regra o estado da fonte uma vez que é ele que vê diminuída a sua receita fiscal não havendo lugar, legitimamente, a retenção na fonte. 

Nesse sentido o disposto no art. 98º, nº 2, do CIRC, que onera o substituto com o ónus de obter do substituído a “prova” da sua qualidade de beneficiário efetivo do pagamento.

A Requerente deixou alegado, quer no procedimento inspetivo, quer no seu pedido de pronúncia arbitral, que a estrutura de cadeia de participações associada à A... teve em consideração essencialmente aspectos de gestão, conhecimento do setor, celeridade da justiça em caso de litígio, proximidade ao mercado financeiro, entre outros aspetos, e não como objetivo principal ou como um dos objetivos principais que a mesma estrutura pudesse beneficiar da redução (isenção) da taxa de retenção na fonte relativamente aos juros obtidos em território português, por parte da UK B... Limited. E que a seleção do Reino Unido teve essencialmente por base, por um lado, a decisão de investimento na Europa no setor das energias renováveis e, por outro, a presença que os investidores já tinham neste país. Assim, em termos históricos, cabe referir que o Reino Unido […] sempre foi um país especialmente desenvolvido no setor de atividade em que os grupos G... e H... operam – infraestrutura e energia. […] Dito isto, o Reino Unido tem sido, desde há muitos anos, um país europeu de referência para investimentos nos setores de atividade onde a G... e a H… atuam[2], por disciplina de raciocínio.

 

Por disciplina de raciocínio, aceitemos a correspondência à verdade de tais afirmações. Só que, neste processo, nunca foi questionada a liberdade do grupo multinacional, de origem asiática, em que se insere a Requerente, escolher um qualquer país da UE, nomeadamente o Reino Unido, para, a partir daí (a partir de sociedades-filhas ou outras entidades aí sedeadas) desenvolver os seus investimentos no continente europeu.

O que está em causa não é a intenção subjacente à criação do grupo de sociedades constituído pela UK1, UK2 e UK3 mas sim a realidade desse grupo. Ora, como provado, essas sociedades não desenvolveram quaisquer outras atividades de investimento que não a aquisição da I... (através da Requerente, sociedade totalmente dominada pela UK3), não possuindo sequer estruturas próprias capazes de permitir uma gestão ativa de quaisquer investimentos.

            Ou seja, este argumentário é, objetivamente, irrelevante para a decisão da questão em apreço. Não estão em causa “intenções” mas sim “factos” que permitam concluir que a UK3 (ou a UK2 ou a UK1) deve ser considerada beneficiária efetiva dos pagamentos de juros feitos pela Requerente. Prova que não foi lograda.

Sustenta ainda a Requerente que ainda que as condições contratuais sejam semelhantes, não há qualquer ligação entre as condições de reembolso do empréstimo concedido pela sociedade UK B… à Requerente e as condições de reembolso do empréstimo concedido pelos accionistas directos da sociedade UK D… – i.e. as sociedades E… LIMITED e F... LIMITED.

É certo que não existe qualquer relação formal entre estes contratos de mútuo, que estes não surgem, formalmente, como sendo back-to-back.

Mas dos factos provados resulta a íntima ligação entre o financiamento (mútuos) feito pelas sociedades de Hong Kong à UK1, o financiamento concedido pela UK3 à Requerente e a aquisição por esta do capital da I...: o elemento temporal[3], os valores em casa (250.000.000 de euros), a taxa de juro (8%) .

O que permite concluir que os mútuos feitos pelas sociedades de Kong Kong à UK1 se destinavam a permitir à UK3 conceder à Requerente um mútuo no montante necessário à aquisição por esta do capital de I..., como esta, aliás, deixou afirmado na petição inicial.

Assim sendo, não se vislumbram razões económicas válidas para a já descrita cadeia de operações, para a intermediação das sociedades residentes no Reino Unido. Mas vislumbram-se razões de significativa economia fiscal, nomeadamente em Portugal, já descritas.

Também não pode ser acolhida a argumentação da Requerente no sentido da liberdade de decisão das sociedades UK3 e UK2 nomeadamente quanto a procederem ou não à distribuição de dividendos. O argumento é meramente formal, reconduzindo-se à diferente personalidade jurídica de cada uma destas sociedades e, consequentemente, à competência dos seus órgãos sociais. Mas se olharmos não à forma, mas à substância, fácil é concluir que sendo a Requerente e as sociedades do Reino Unido totalmente dominadas, direta ou indiretamente, pelas mutuantes da UK1 (as sociedades de Hong Kong), estas tinham todo o interesse – e o poder necessário – para determinar as decisões das assembleias gerais daquelas outras sociedades em ordem a procederem no necessário para que obtivessem o pagamento dos juros (e o reembolso do capital) dado de mútuo à UK1.

Aliás, a prova testemunhal foi muito clara: se esta cadeia de pagamento distribuição de dividendos + pagamento de juros + distribuições de dividendos (por duas sociedades intermédias) não funcionasse, a UK1 não poderia cumprir as suas obrigações decorrentes do contrato de mútuo celebrado com os investidores (as sociedades de Hong Kong). O único risco – como foi expressamente afirmado – era o de a I... não se mostrar suficientemente rentável.

Exemplo bem ilustrativo do facto das decisões da UK3 serem tomadas em função dos interesses das sociedades de Hong Kong é o facto, dado por provado, da redução do capital da UK3 no necessário para esta, em 2016, poder distribuir à UK2 o montante de dividendos que, através da “cadeia” já descrita, permitisse à UK1 honrar o pagamento dos juros devidos às sociedades de Hong Kong vencidos nesse ano.

Há pois que concluir que a Requerente não fez a prova, que lhe competia, de ser a sua sócia UK3 a beneficiária efetiva dos juros por ela pagos. Mais, todos os elementos factuais colhidos apontam em sentido contrário.

 

 

  1. A aplicabilidade da CDT Portugal Reino-Unido

A Requerente pretende, em suma, que, considerando-se não ser aplicável a Diretiva Juros e Royalties (as normas do IRC que a transpõem), seria de aplicar o disposto na CDT Portugal Reino Unido, do que resultaria a tributação dos juros em causa, no nosso país, a uma taxa de 10%.

Começaremos por notar que, sendo este um processo de impugnação de um concreto ato tributário, os poderes de cognição do tribunal estão limitados à apreciação da sua legalidade, a ser feita (apenas) à luz da fundamentação, factual e de direito, de tal ato. Ora, a fundamentação invocada pela AT, no RIT, para proceder à liquidação adicional consistiu no negar da aplicabilidade das normas do CIRC que transpõem o constante da Diretiva Juros e Royalties, as mesmas normas invocadas pela Requerente para não proceder a retenção na fonte. E, como já concluído, tal fundamentação – e a consequente liquidação adicional – não padece de ilegalidade.

Temos as maiores dúvidas sobre se, em processo de impugnação (quer nos tribunais arbitrais, quer nos estaduais), não constituiria excesso de pronúncia condenar a administração a proceder a outra liquidação, com base numa “alternativa jurídica”, qual seria a subsunção do caso ao disposto na CDT Portugal Reino Unido. Na realidade, não estaria em causa a anulação parcial da liquidação impugnada (concluir-se que a taxa aplicável seria de 10% e não de 25%) porquanto a aplicação daquela taxa (a resultante da CDT), implicaria uma qualificação diferente dos factos (o seu enquadramento na hipótese de outra norma), que não aquela em que se fundamenta a liquidação posta em crise, ou seja, implicaria outra, substancialmente diferente, liquidação.

Mas cremos não ser necessário¸ no caso, tomar posição definitiva sobre esta questão.

 

No âmbito do direito substantivo, temos, uma primeira questão: a CDT Portugal-Reino Unido, por se tratar de uma convenção muito antiga, de 1968, não prevê expressamente, o seu artº 11º, ser condição de aplicação do aí disposto o titular do direito ao pagamento dos juros ser seu beneficiário efetivo. Diferentemente do que acontece na generalidade das demais CDT’s celebradas por Portugal e do que, há muito, é preconizado pelo MOCDE e seus Comentários.

A melhor doutrina entende que a “cláusula” do beneficiário efetivo está implícita em todas as convenções, baseadas nos diferentes modelos da OCDE, mesmo naquelas, mais antigas, em que tal expressão não conta do teor literal da norma (no caso, do art. 11º da CDT Portugal – Reino Unido). Para tal são invocados dois argumentos:

– que só se pode considerar que existem rendimentos “pagos a um residente do outro Estado” quando este é o seu beneficiário efetivo, quando deles pode dispor livremente e no seu interesse próprio.

– que sempre foi princípio geral subjacente à elaboração do MOCDE, nas suas diferentes versões, e à celebração de convenções neles baseadas, a proibição do abuso, a proibição do uso impróprio das convenções.

E uma das formas mais típicas de abuso das convenções, desde há muito evidenciada e qualificada como tal, é o treaty shopping, a interposição de sociedades intermediárias sem substância económica (conduit companies), num determinado país ou território, de forma a aproveitar, ilegitimamente, da rede de convenções por este celebradas.

A tal prática se reconduz a situação dos autos: a interposição das sociedades sedeadas no Reino Unido permitiu aos investidores (as sociedades de Hong Kong ou, talvez melhor, às pessoas físicas que, a final, as detêm) aproveitar, primeiro , da CDT Portugal-Reino Unido (redução do imposto sobre os juros, retido na fonte) e, depois, do disposta na CDT Reino Unido-Hong Kong (isenção de imposto sobre os juros  na fonte).

Tal bastaria para este tribunal arbitral concluir pela inaplicabilidade do disposto no art. 11º da CDT Portugal-Reino Unido no caso concreto.

Porém, nem tal se mostra necessário.

Dispõe o nº 2 de tal norma: No entanto, esses juros podem ser tributados no Estado Contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado; mas, quando o residente do outro Estado Contratante está nele sujeito a imposto por esses juros, o imposto assim estabelecido no Estado primeiramente mencionado não excederá 10 por cento do montante dos juros.

A limitação do imposto devido no estado da fonte (Portugal) está pois, expressamente, condicionada ao pagamento de imposto desses rendimentos (juros) no estado de residência (Reino Unido).

Está em causa o pagamento de imposto relativo a estes concretos juros e não apenas a sujeição a imposto sobre o rendimento. Embora a palavra portuguesa sujeição seja equívoca, a versão inglesa da norma não deixa dúvida, pois aí é utilizada a palavra subject, com o significado indicado, e não a palavra liable.

Ora, como acima consta em II.2 (factos não provados), a Requerente não fez prova que tenha incidido imposto, no Reino Unido (e respetivo montante) sobre os juros em causa recebidos pela UK3. Esta prova sempre seria essencial para, considerando-se ultrapassáveis os “obstáculos” legais antes referidos – o que não é o entendimento deste tribunal arbitral –, este pedido da Requerente obter procedência.

Pelo que, também aqui, improcede o peticionado.

 

  1. A aplicabilidade da CDT Portugal – Hong Kong

.

Subsidiariamente, entende a Requerente que ainda que não se conclua que a UK B… é o beneficiário efetivo dos referidos juros, e que é oponível à Requerente a desconsideração dos efeitos fiscais resultantes do artigo 14.º, n.º 13, alínea d), e n.º 15, alínea a), do CIRC, será aplicável o disposto no artigo 11.º, n.os 1 e 2, da Convenção entre a República Portuguesa e Hong Kong para Evitar a Dupla Tributação.

 

Começa-se por dar por reproduzido, no aplicável, o que atrás ficou dito relativamente aos poderes de cognição de um tribunal em processo de impugnação de atos tributários.

Indo ao fundo da questão, temos que a Requerida, na fundamentação da liquidação, nunca afirmou que o beneficiário efetivo dos juros pagos pela Requerente eram as sociedades de Hong Kong. Pelo contrário, a AT deixou clara a sua opinião de que tais sociedades, bem como outras a montante destas, seriam meras intermediárias (também elas seriam conduit companies) relativamente aos beneficiários efetivos de toda uma complexa estrutura de planeamento fiscal internacional que, em larga medida, identificou.

O certo é que a AT nunca identificou quem considerou ser o beneficiário efetivo, não estando obrigada a o fazer.

Por seu lado, a Requerente nunca, nomeadamente no decurso do processo inspetivo, veio identificar as sociedades de Hong Kong como beneficiárias efetivas de tais pagamentos, autoliquidando (ou pedindo a liquidação) do imposto que, nesse caso, seria devido.

Ou seja, o que se pede agora a este tribunal arbitral é que proferia uma decisão com base numa mera hipótese, sobre a qual nenhuma alegação e, em especial, nenhuma prova foi produzida: a de as sociedades de Hong Kong serem as beneficiárias efetivas de tais pagamentos.

Os tribunais, obviamente, não decidem com base em hipóteses, pelo que este pedido da Requerente necessariamente improcede.

 

  1. Violação de princípios constitucionais

 

Afirma a Requerente: sem conceder, não pode ser oponível à Requerente, enquanto substituta tributária, a desconsideração dos efeitos fiscais resultantes da aplicação do disposto no artigo 14.º, n.º 13, alínea d), e n.º 15, alínea a), do CIRC, sob pena de violação dos princípios da certeza e segurança jurídicas e da proporcionalidade e, bem assim, da violação do direito à propriedade privada garantido pelo artigo 1.º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“CEDH”);

e

 Todavia, se é certo que a limitação ínsita no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, resulta inaplicável à obrigação de imposto stricu sensu, o mesmo não sucede relativamente a obrigações fiscais acessórias – como sucede com a obrigação de retenção na fonte que a Administração Tributária entende impender sobre a Requerente –, não se reconduzindo tais obrigações acessórias já a um limite imanente a direitos, liberdades e garantias, mas apenas a um dever de cooperação, determinado legalmente.

 

Começamos por referir a nossa discordância relativamente à segunda afirmação: a substituição fiscal, mormente a substituição fiscal total, não constitui uma obrigação acessória no quadro do cumprimento das obrigações fiscais. Como é bem sabido, na substituição fiscal total o substituto assume a qualidade de único sujeito passivo, não se estabelecendo qualquer relação jurídico-tributária entre o estado e o contribuinte (o substituto).

Ultrapassando esta divergência, irrelevante, temos que o essencial da argumentação da Requerente se reconduz ao facto de ter sido ela a suportar o imposto liquidado adicionalmente, cujo valor não reteve na fonte, não deduziu nos pagamentos efetuados ao substituído, a UK3.

A mesma questão foi já várias vezes apreciada pelo STA e outros tribunais superiores, a propósito da aplicação da CGAA. O entendimento desses tribunais é totalmente transponível para este caso concreto, desde logo por estar aqui em causa a aplicação de uma norma antiabuso específica (a “cláusula do beneficiário efetivo”).

Citamos, do acórdão do STA no proc. nº 01869/13. de 12-05-2021[4]: a interpretação jurídica que, à luz dos princípios da praticabilidade e da razoabilidade, assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na sua redacção prévia à alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019[5], é a que sustenta que quando a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção e na sua substituição por uma operação cuja regulação legal imporia a prática de um acto de retenção na fonte a título definitivo (e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário), é aquele que se vem a qualificar como substituto (à luz da aplicação da CGAA) quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele e seja possível concluir, no âmbito do procedimento do artigo 63.º do CPPT, que ele tinha a obrigação legal de conhecer a operação jurídica alternativa que se vem a qualificar como legalmente devida por efeito da desconsideração da operação realizada (da construção adoptada).

Adaptando ao caso, temos que a responsabilidade da Requerente existe porquanto ela tinha a obrigação legal de reunir elementos capazes de provar a qualidade de beneficiária efetiva da UK3 relativamente aos juros pagos, o que não logrou fazer, inclusivamente no decurso deste processo.

Em segundo lugar, temos que sendo, ao tempo, a UK3 a sócia única da Requerente e enquanto substituída, direta interessada na prova de sua condição de beneficiária efetiva, nenhuma dificuldade a Requerente pode, razoavelmente, ser apresentada para obstar a que tivesse obtido tal prova quando procedeu aos pagamentos[6].

Em terceiro lugar, existindo uma relação de domínio total entre a substituída/ contribuinte (a UK3) e a substituta (a Requerente) é algo artificiosa a distinção entre os patrimónios de cada uma delas: o património da Requerente “integra” o património da sua sócia única pelo que saber se quem pagou o imposto liquidado adicionalmente foi aquela (como antecedeu) ou a segunda, enquanto “titular” dos rendimentos em causa resulta, economicamente, relativamente indiferente[7].

Não vemos como possa ser questionada a substituição tributária total à luz dos princípios da certeza e segurança jurídica: a lei é absolutamente clara no sentido de que, na substituição fiscal total, a responsabilidade pela liquidação e pagamento do imposto cabe exclusivamente ao substituto.

A “dúvida” relativa à qualidade de beneficiário efetivo da destinatária dos pagamentos é uma questão de prova de factos, à qual, obviamente, não se referem tais princípios constitucionais, pois que relativos à segurança jurídica, isto é, à segurança da previsão da norma e segurança no relativo ao processo da sua aplicação.

Finalmente, temos que o “direito à propriedade” não é um direito absoluto. Aliás, não existirão direitos absolutamente protegidos pela Constituição. Um direito com proteção constitucional tem, muitas vezes, que ser compatibilizado com outros “direitos”, com a mesma dignidade constitucional. No caso, princípios constitucionais como sejam a igualdade na tributação, o que supõe a existência de instrumentos legais a formas de elisão fiscal, nomeadamente as que acontecem a nível internacional. Só existiria inconstitucionalidade se a ablação da propriedade da Requerente, por força do pagamento do imposto liquidado, fosse desproporcionada relativamente às razões justificativas de tal obrigação. O que, como atrás se explicitou, manifestamente não acontece no caso concreto. Ou seja, a pretensa “restrição” ao direito da propriedade da Requerente não só é justificada, como é uma mera “restrição”, ou seja, não põe em causa a essência do seu direito de propriedade.

Não se verifica, assim, violação dos princípios constitucionais invocados pela Requerente.

 

  1. Liquidação de juros compensatórios

A Requerente peticiona, autonomamente, a anulação das liquidações de juros compensatórios.

Para tal afirma: Ora, no caso em apreço, a Requerente agiu sem culpa, porquanto nenhuma dúvida restará que a sua interpretação das normas supra citadas é legítima, plausível e de boa-fé, não se verificando assim a existência de qualquer negligência ou dolo, mas uma mera divergência interpretativa em relação à Administração Tributária quanto à aplicação do disposto no artigo 14.º, n.os 13, alínea d), e 15, alínea a), do CIRC, com a qual a Requerente foi surpreendida.

Salvo o devido respeito, não está em causa neste processo a interpretação de normas, nomeadamente as referidas pela Requerente, mas sim uma questão de facto: a prova de factos que permitissem concluir que a sociedade UK3 foi a beneficiária efetiva dos juros pagos pela Requerente.

Está em causa uma questão de ónus da prova, que a Requerente não conseguiu lograr. Um ónus de prova que, no caso, atentas à relação de domínio total pela UK3 (a quem cabia fornecer os meios de prova necessários à comprovação da sua alegada qualidade de beneficiário efetivo) e à Requerente (a quem competia apresentar tais meios de prova), não pode ser havido como exigência de uma “prova diabólica”.

Ora, que saibamos, o inêxito no cumprimento do ónus da prova nunca foi havido – nem nos parece razoável que, em princípio, o possa ser – como causa desculpante da exclusão do dever de indemnizar o estado pelo retardamento na liquidação do imposto, ou seja, de exclusão da obrigação do pagamento de juros compensatórios. Retardamento indiscutivelmente causado pela Requerente que não procedeu à liquidação do imposto, a ser cobrado por retenção na fonte, a que estava obrigada.

Improcede, pois, este pedido.

Improcedendo todos os pedidos principais, improcedem necessariamente os deles dependentes, como sejam os relativos a juros indemnizatórios e à distribuição dos encargos arbitrais.

 

V- DECISÃO ARBITRAL

Pelo exposto, o tribunal arbitral decide pela total improcedência dos pedidos formulados pela Requerente.

 

Valor: Fixa-se o valor do processo em euros 5 862 090,54.

O valor de um processo de impugnação inclui a totalidade das liquidações impugnadas, incluindo as relativas a juros compensatórios, os quais, nos termos do art. 35º, nº 8, da LGT, integram a dívida de imposto cuja anulação se pretende (neste sentido, Jorge de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário, vol. II, 2011, vol. II, pág. 72) e não apenas o valor da liquidação de imposto, tal como indicado pela Requerente. Acresce que esta deduziu pedido autónomo relativamente às liquidações de juros compensatórios.

 

Custas arbitrais, no montante de euros 73.440,00, a cargo da Requerente, por ter sido total o seu decaimento.

 

15 de junho de 2023

 

 

Os árbitros

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

Luís Janeiro

 

 

 

Amândio Silva

 



[1] A qual atribui a exclusividade do direito à tributação ao país/território da residência (Hong Kong) se o beneficiário efetivo do pagamento dos juros for uma sociedade cotada em bolsa, como é o caso das sociedades ultimate parents das sociedades de Hong Kong.

[2] A G… e a H… são sociedades a montante das sociedades de Hong Kong, que, através destas e  com intermediação das sociedades sedeadas no Reino Unido e da Requerente, formaram uma joint venture, para adquirir a I…. Surgem identificadas pela Requerente como sendo as ultimate parents.

[3] A aquisição da I… pela Requerente aconteceu em 18 de novembro de 2015. O mútuo celebrado entre a ela e a UK3 é datado do dia anterior, tal como os mútuos celebrados pela UK1 com as suas sócias, as sociedades de Hong Kong.

[4] Confirmada pelo acórdão do STA proferido a 12-01-2022 no proc. n.º 02507/15.

[5] Este ponto é relevante: o acórdão em questão apreciou factos ocorridos num tempo em que a lei não especificava – como hoje faz – o condicionalismo determinante da responsabilidade do substituto total nos casos de aplicação da CGAA. Tal qual acontece relativamente à cláusula do beneficiário efetivo, em que também não há lei expressa quanto a este ponto.

[6] E era “até ao termo do prazo para o pagamento do imposto” que incumbia à Requerente obter da UK3 elementos comprovativos da sua qualidade de beneficiária efetiva dos pagamentos – cfr. al. a) do nº 2 do art. 98º do CIRC, na redação então vigente.

[7] Ao que não obsta o facto de esta relação de domínio total já não existir ao tempo da liquidação. Primeiro, porque os factos geradores da obrigação de imposto são apreciados com referência ao momento em que ocorreram; segundo, porque, nos casos de alienação de partes significativas de capital social o adquirente tem o ónus (que, normalmente é exercido, especialmente em negócios desta monta) de prevenir, contratualmente, a ocorrência de “contingências fiscais” decorrente de factos anteriores à venda.