SUMÁRIO:
I – Não é possível invocar, na impugnação judicial deduzida contra o ato de liquidação, vícios inerentes ao ato de fixação do valor patrimonial do imóvel que lhe serviu de base tributável.
II – Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“CIMI”), não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
1. A..., S.A., com sede na ..., ..., ...-... Lisboa, titular do número de identificação fiscal ..., na qualidade de sociedade liquidatária e representante fiscal da liquidação do Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado B..., com o número de identificação fiscal ..., dissolvido e liquidado, por escritura pública datada de 22/12/2021, apresentou pedido de constituição de tribunal e de pronúncia arbitral na sequência da formação do ato de indeferimento tácito da revisão oficiosa apresentada a 30/11/2021 e, mediatamente, com vista à anulação parcial dos atos de liquidação de IMI de 2016, 2017, 2018 e 2019 e de AIMI 2018, 2019 e 2020, por entender que utilizam uma forma de cálculo ilegal no que respeita aos “terrenos para construção”, no montante global de 44 058,38 euros; bem como a restituição do referido montante e, por último, a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.
2. No dia 05/09/2022 ficou constituído o Tribunal Arbitral.
3. Cumprindo a estatuição do artigo 17.º, números 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”) foi a Requerida, em 06/09/2022, notificada para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
4. A Requerida apresentou, em 10/10/2022, a sua resposta, na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
5. Tendo em conta a interposição de períodos de férias judiciais, foi proferido despacho, em 01/03/2023, no qual se prorrogou, por dois meses, o prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.
6. O Tribunal Arbitral, por despacho de 21/03/2023, dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinou a notificação das partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas.
7. As partes apresentaram alegações finais escritas, no dia 12/04/2023, mantendo as posições iniciais.
POSIÇÃO DAS PARTES
8. A Requerente alega que o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa é ilegal, bem como, mediatamente, as liquidações de IMI de 2016, 2017, 2018, 2019 e de AIMI de 2018, 2019 e 2020, relativamente aos “terrenos para construção”, uma vez que há aplicação das taxas de IMI e de AIMI sobre um base tributária apurada em clara violação das regras legais aplicáveis (utilização do coeficiente de localização, como fator multiplicador autónomo do valor patrimonial tributário de todos os terrenos para construção identificados no documento junto sob o n.º 5); utilização do coeficiente de afetação como fator multiplicador do valor patrimonial tributário do terreno para construção com o artigo matricial U-... e aplicação da majoração de 25% sobre o valor base dos prédios edificados – resultando de um valor de 603,00 euros, ao invés de 482,50 euros, relativamente a todos os terrenos para construção identificados no documento junto sob o n.º 5.
Peticiona, por último, a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso da quantia paga que estima ter sido entregue em excesso e no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido, até à data do processamento do reembolso, porquanto entende que existiu “erro imputável aos serviços” de que resultou o pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
9. A Requerida apresenta uma defesa com os seguintes fundamentos:
-
Inadmissibilidade de revisão oficiosa de valores patrimoniais
O artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) não admite a revisão oficiosa deste tipo de atos, pois não são atos tributários ou atos de apuramento da matéria tributável.
A consideração da existência de erro consubstanciar-se-ia na fixação, à data, de um valor patrimonial tributário diferente daquele que constava na matriz predial, circunstância que colocaria em causa a validade dos efeitos jurídicos de diferentes e variados atos que, para distintos efeitos, assumem como referencial o referido valor patrimonial tributário de um imóvel constante da matriz predial.
O estado de coisas descrito no parágrafo anterior contenderia com o princípio da certeza e segurança jurídica.
Ainda que assim não se entendesse, o fundamento da injustiça grave ou notória do artigo 78.º, n.º 4, da LGT não é invocável, quando a liquidação de IMI tenha sido efetuada de acordo com o artigo 113.º, n.º 1, do CIMI – decisão arbitral n.º 667/2021-T.
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Tempestividade do pedido de revisão oficiosa
Ainda que se admitisse a possibilidade de apresentação de revisão oficiosa, o prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, mas, pelo contrário, é o de “[t]rês anos posteriores ao do ato tributário”.
Ora, se as avaliações foram concretizadas há mais de cinco anos, conclui-se que o pedido de revisão oficiosa apresentado em 30/11/2021 sempre seria intempestivo.
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Consolidação do ato tributário que determinou o valor patrimonial tributário
Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial tributário obtido pela primeira avaliação, requerendo uma 2.ª avaliação, o mesmo consolidou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.
A errónea qualificação e quantificação do valor patrimonial tributário, apenas pode ser conhecida em sede de impugnação da 2.ª avaliação e não na posterior liquidação consequente.
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Impugnabilidade dos atos de liquidação com fundamentos em vícios próprios do ato de fixação do valor patrimonial tributário
Os vícios da fixação do valor patrimonial tributário não são sindicáveis na análise da legalidade do ato de liquidação, porquanto os mesmos, sendo destacáveis e antecedentes destes, já se consolidaram na ordem jurídica, não sendo admissível a apreciação da correção do valor patrimonial tributário em sede de impugnação do ato de liquidação.
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Condições em que podem ser anulados os atos de avaliação de “terrenos para construção” que tenham considerado os coeficientes supra descritos
Somente são passíveis de anulação os atos de fixação do valor patrimonial tributário que contrariem o recente entendimento jurisprudencial, nos casos em que não tenham decorrido cinco anos desde a respetiva prática
Encontra-se assim, no caso concreto, precludido o prazo para anulação administrativa dos atos que fixaram o valor patrimonial tributário dos prédios.
-
Juros indemnizatórios
Não pode ser assacado qualquer erro aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira que tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pois não estava na disponibilidade da Requerida decidir de modo diferente, por estar sujeita ao princípio da legalidade.
SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir os pedidos, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
QUESTÕES A DECIDIR
Nesta sequência, tendo em atenção as pretensões e posições da Requerente e da Requerida, constantes das suas peças processuais acima descritas, são as seguintes as questões que o Tribunal Arbitral deve apreciar [sem prejuízo de a solução dada a certa questão poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras questões – cfr. artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT]:
-
Se o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado a 30/11/2021 é ilegal e, mediatamente, decidir se as liquidações de IMI e de AIMI (na parte respeitante aos terrenos para construção) dever-se-ão manter na ordem jurídica. Importa determinar se: deixando um contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário de um prédio, poderá, ainda assim, arguir a ilegalidade das liquidações de IMI e de AIMI que lhe sejam subsequentes, com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do referido valor patrimonial tributário que serviu de base às liquidações;
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Se a Requerente tem direito ao reembolso de 44 058,38 euros, montante que estima ter sido pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde o pagamento indevido até ao efetivo e integral pagamento.
II – FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
1. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados
1.1. A Requerente é a representante fiscal da liquidação do Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado B..., com o número de identificação fiscal..., dissolvido e liquidado, por escritura pública datada de 22/12/2021.
(Documento n.º 3 junto pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral)
1.2. A Requerente era, nomeadamente, proprietária em 31/12/2016; 31/12/2017, 31/12/2018; 31/12/2019 e 01/01/2018, 01/01/2019 e 01/01/2020 dos seguintes: “terrenos para construção”:
Artigo
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Freguesia
|
Valor patrimonial tributário
|
Data de avaliação do prédio
|
...
|
...
|
1 328 200,00 euros
|
06/01/2015
|
...
|
...
|
992 440,00 euros
|
13/11/2015
|
...
|
...
|
2 537 354,20 euros
|
24/12/2014
|
(Documentos 1 a 5 juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral)
1.3. O prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... (sob o número...) foi alienado durante o ano de 2019.
(Facto aceite pela Requerente e Requerida)
1.4. As liquidações de IMI, referentes a 31/12/2016, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U - ...
|
1 328 200,00 euros
|
4 303,37 euros
|
U - ...
|
992 440,00 euros
|
3 215,51 euros
|
U - ...
|
2 537 354,20 euros
|
8 221,03 euros
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.5. As liquidações de IMI, referentes a 31/12/2017, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U - ...
|
1 338 161,50 euros
|
4 335,64 euros
|
U - ...
|
992 440,00 euros
|
3 215,51 euros
|
U - ...
|
2 537 354,20 euros
|
8 221,03 euros
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.6. As liquidações de IMI, referentes a 31/12/2018, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U - ...
|
1 338 161,50 euros
|
4 335,64 euros
|
U - ...
|
1 007 326,60 euros
|
3 263,74 euros
|
U - ...
|
2 537 354,20 euros
|
8 221,03 euros
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.7. As liquidações de IMI, referentes a 31/12/2019, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U - ...
|
1 338 161,50 euros
|
4 335,64 euros
|
U - ...
|
1 007 326,60 euros
|
3 263,74 euros
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.8. As liquidações de AIMI, referentes a 01/01/2018, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U - ...
|
1 338 161,50 euros
|
|
U - ...
|
992 440,00 euros
|
19 471,83 euros
|
U - ...
|
2 537 354,20 euros
|
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.9. As liquidações de AIMI, referentes a 01/01/2019, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U -...
|
1 338 161,50 euros
|
|
U - ...
|
1 007 326,60 euros
|
19 531,38 euros
|
U - ...
|
2 537 354,20 euros
|
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.10. As liquidações de AIMI, referentes a 01/01/2020, foram as seguintes:
Artigo Matricial
|
Valor Patrimonial Tributário
|
Valor da Liquidação
|
U -...
|
1 338 161,50 euros
|
|
U - ...
|
1 007 326,60 euros
|
9 381,96 euros
|
(Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cadernetas prediais remetidas pela Requerente em 17/03/2023)
1.11 A Requerente apresentou, a 30/11/2021, um pedido de revisão oficiosa dos seguintes atos de liquidação:
Imposto
|
Ano
|
Notas de cobrança a que correspondem a respetiva liquidação anual
|
IMI
|
2016
|
...; ...; e ...
|
IMI
|
2017
|
...; ...; e ...
|
IMI
|
2018
|
...; ...; e ...
|
IMI
|
2019
|
...; ...; e ...
|
AIMI
|
2018
|
...
|
AIMI
|
2019
|
...
|
AIMI
|
2020
|
...
|
(Documento junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral sob o n.º 2)
1.12. O fundamento do pedido de revisão oficiosa encontra-se no facto de a Requerente entender que as referidas liquidações, relativamente aos terrenos para construção, assentam em valor patrimonial tributário ilegal e, por isso, devem ser expurgadas da ordem jurídica.
(Documento junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral sob o n.º 1)
1.13. A Requerente procedeu ao pagamento das liquidações de IMI e de AIMI supra identificadas.
(Documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral sob os números 6 a 12)
1.14. A Requerente não foi notificada, até 28/06/2022, de qualquer decisão do pedido de revisão oficiosa apresentado no dia 30/11/2021.
(Facto aceite pela Requerente e Requerida)
1.15. A Requerente apresentou em 28/06/2022 o pedido de pronúncia arbitral.
(Sistema informático do CAAD)
2. Factos que não se consideram provados
Não existem factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.
3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada
Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos (documentos juntos pela Requerente, nos termos supra expostos).
MATÉRIA DE DIREITO
O instituto da revisão oficiosa dos atos tributários constitui um instrumento de reforço das garantias de defesa dos contribuintes e de robustecimento dos meios de tutela das respetivas posições substantivas, sem contender com o princípio da segurança jurídica, na medida em que a sua utilização é circunscrita a um quadro temporal de quatro ou três anos, caso se aplique o n.º 1 ou o n.º 4 do artigo 78.º da LGT.
A Requerente advoga que, ainda que tenha deixado precludir a garantia subjacente à sindicância do valor patrimonial tributário poderá arguir a ilegalidade das liquidações com base na errónea determinação dos valores patrimoniais tributários relativos aos “terrenos para construção”.
A resposta à questão não foi pacífica por parte da jurisprudência, pois, se por um lado, uma corrente defendeu não ser possível invocar na impugnação judicial deduzida contra o ato de liquidação, vícios inerentes ao ato de fixação do valor patrimonial tributário do imóvel, por outro, a segunda admitia a revisão oficiosa dos atos tributários de liquidação por iniciativa do contribuinte, por erro nos pressupostos de facto e de direito, com base em errónea quantificação do valor patrimonial tributário.
O Supremo Tribunal Administrativo uniformizou, do seguinte modo, a jurisprudência[1] relativamente à questão suprarreferida:
Vigora no contencioso tributário o princípio da impugnação unitária segundo o qual só há lugar a impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que tem assento legal nos artigos 66.º da LGT e 54.º do CPPT. O primeiro dispositivo legal estabelece que os contribuintes e demais interessados podem, no decurso do procedimento, reclamar de quaisquer atos ou omissões da administração tributária (n.º 1), mas a reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 2). O segundo, com a epígrafe “impugnação unitária”, estabelece que “Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
O princípio da impugnação unitária tem, assim, duas exceções, admitindo a lei adjetiva tributária a impugnação imediata dos atos interlocutórios (i) “quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte”, e (ii) quando “exista disposição expressa em sentido diferente”, ou seja, quando exista lei que admita expressamente a impugnação imediata do ato interlocutório.
Ora, a avaliação direta é um dos casos em que o legislador afastou o princípio da impugnação unitária e admitiu a impugnação imediata do ato de avaliação. Estabelece o artigo 86.º, n.º 1 da LGT que a avaliação direta é suscetível nos termos da lei de impugnação contenciosa direta. O que significa que se essa avaliação se inserir num procedimento de liquidação, o ato de avaliação é diretamente impugnável. A impugnabilidade fica, no entanto, dependente do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão (n.º 2 do artigo 86.º da LGT).
No que respeita em particular aos atos de fixação de valores patrimoniais rege o artigo 134.º do CPPT, em consonância com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 86.º da LGT, que admite a sua impugnação com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1), não tendo a impugnação efeito suspensivo, e só podendo ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação (n.º 7).
Particularizando ainda mais, e centrando-nos no caso sub judice, o procedimento de determinação do valor patrimonial tributário (ato de fixação de valores patrimoniais – artigo 37.º a 46.º, e 71.º a 77.º, do Código do IMI) é uma espécie de procedimento de avaliação direta, prevendo o Código do IMI um expediente especial de reação contra as ilegalidades da avaliação.
Assim, quando o sujeito passivo não concorda com o resultado da avaliação (primeira avaliação) pode requerer uma segunda avaliação, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI. E do resultado desta segunda avaliação cabe impugnação judicial, tal como o prevê o artigo 77.º do mesmo Código.
O disposto nestes dois artigos 76.º e 77.º do Código do IMI devem ser interpretados em conjugação com o disposto no referido artigo 134.º do CPPT, que prevê, como atrás referimos, a impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais, e no seu n.º 7 condiciona a impugnabilidade ao esgotamento dos meios graciosos (“7- A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”), que por sua vez está em consonância com o artigo 86.º, n.º 2, da LGT, que determina, como também já se referiu, que os atos de avaliação direta só são contenciosamente impugnáveis quando estiverem esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão. Esta necessidade de esgotamento dos meios graciosos como condição de impugnação do valor fixado através de avaliação direta, reiterada nas diferentes disposições legais, evidencia que a segunda avaliação não é, para efeitos de impugnação, uma mera faculdade.
Tendo em conta o que fica dito duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável – admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio.
E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.
Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt).
Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial.
De qualquer forma, quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada.
O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10).
Aliás, como refere Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 472) “Neste caso da avaliação directa da matéria tributável, resulta claramente do n.º 4 do at.º 86.º da LGT, embora a contrario, que a invocação das ilegalidades de actos de avaliação direta só pode sem efetuada em impugnação autónoma. Na verdade, tratando este art. 86.º da LGT da impugnação de actos de avaliação directa e de avaliação indireta da matéria tributável, o facto de se prever no seu n.º 4, apenas para os atos de avaliação indireta, a possibilidade de invocação das respetivas ilegalidades na impugnação do ato de liquidação, revela com clareza uma intenção legislativa de que só nesses casos de avaliação indireta tal é possível, pois, se assim não fosse, decerto se faria referência cumulativa à generalidade de atos de avaliação da matéria tributável.”
Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior.
A segurança jurídica subjacente à uniformização de jurisprudência garante aos cidadãos, através da previsibilidade das soluções jurídicas emergentes da pronúncia, a certeza na aplicação do direito. Impõe-se, por isso, aplicar, ao caso sub iudice, os fundamentos jurídicos do referido acórdão.
No caso concreto, se a Requerente não impugnou tempestivamente os atos de avaliação, não pode arguir agora a ilegalidade das liquidações com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável. Estando consolidado na ordem jurídica o valor patrimonial tributário dos prédios relativamente aos quais foram emitidas as liquidações de IMI e de AIMI, não pode o sujeito passivo vir impugnar aquela liquidação com fundamentos que se relacionam com a avaliação e posterior fixação do valor patrimonial tributário. Esse valor, por não ter sido impugnado diretamente, não pode ser novamente analisado em sede de impugnação do ato de liquidação – que era o que a Requerente pretendia neste caso, tendo, para o efeito, recorrido ao pedido de revisão oficiosa e, agora, à impugnação do seu indeferimento, bem como dos atos de liquidação objeto do referido pedido.
Paralelamente, a Requerente, em alegações, defende que: “[a] verdade é que diferente da questão da impugnabilidade dos atos de liquidação de IMI e AIMI com fundamento em ilegalidade, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é a da possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, que é um afloramento do dever de revogação de atos ilegais, que emerge do princípio a legalidade da atuação da Administração Tributária…”. Ou seja, o segmento do pedido com fonte em “injustiça grave ou notória”, no seu juízo, não é afetado pelo acórdão de uniformização de jurisprudência suprarreferido.
Sucede, no entanto, que, se por um lado ficou uniformizada a jurisprudência no sentido de: deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do CIMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável; por outro lado, a revisão oficiosa com fonte na “injustiça grave ou notória” exige a inexistência de conduta negligente do contribuinte – artigo 78.º, n.º 4, da LGT.
Ora, tendo a Requerente sido notificado do ato de avaliação dos prédios e nada fez, os referidos atos consolidaram-se (as liquidações baseiam-se nos valores patrimoniais tributários determinados a 06/01/2015, 13/11/2015 e 24/12/2014, sendo que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 30/11/2021). Assim, a revisão por injustiça “grave ou notória” não é admissível.
Destaca-se que, em abono da fundamentação que aqui se utiliza, na decisão arbitral n.º 652/2021-T [decisão recorrida (e mantida) no âmbito do suprarreferido acórdão de uniformização de jurisprudência] escreveu-se que:
Daqui decorre, com cristalina evidência, que só dentro do condicionalismo previsto nos citados nºs 4 e 5 se poderia equacionar a possibilidade legal de revisão oficiosa.
Pois bem, no caso sub juditio, os valores das matrizes que serviram de base às liquidações sob impugnação, estavam fixados desde 2007 e foi apenas em 25-5-2021 que o requerente formulou o seu pedido de revisão oficiosa dessas liquidações ora impugnadas alegando a errónea aplicação dos coeficientes de localização, de afetação e qualidade e conforto no cálculo do VPT dos terrenos para construção.
Ou seja, no momento em que é apresentado o pedido de revisão oficiosa, estava transcorrido o prazo para que pudesse eventualmente ser autorizada pela AT a revisão dos atos de fixação de valores patrimoniais.
Assim é que, por intempestividade desse pedido e independentemente dos fundamentos, estava afastada a possibilidade de revisão oficiosa dos VPT’s.
Improcede, deste modo, a pretensão de anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, mediatamente, das liquidações de IMI e de AIMI – nos segmentos impugnados – identificadas de 1.4 a 1.10 da matéria assente; o pedido de reembolso e o de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.
III – DECISÃO
Termos em que se decide:
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Julgar improcedente o pedido de anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, mediatamente, de declaração de ilegalidade parcial das liquidações de IMI e de AIMI neste identificadas.
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Julgar improcedente o pedido de reembolso da quantia de 44 058,38 euros (IMI e de AIMI), bem como o de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios;
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Condenar a Requerente no pagamento integral das custas arbitrais.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 44 058,38 euros (montante que a Requerente considerou ter sido indevidamente pago), nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
CUSTAS
Custas a suportar pela Requerente, no montante de 2142 euros, cfr. artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 13 de abril de 2023
O árbitro,
Francisco Nicolau Domingos
[1] Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do processo n.º 0102/22.2BALSB, de 23 de fevereiro de 2023.