Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 504/2022-T
Data da decisão: 2023-04-20  IRC  
Valor do pedido: € 569.107,20
Tema: IRC e IVA - gastos dedutíveis (art. 23.º, nº 1 e 4, do CIRC); direito à dedução (art. 19, 20 e 36.º, n.º 5.º do CIVA); prevalência da justiça sobre a especialização; tributação autónoma (art. 88.º, n.º 1, do CIRC).
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Sumário:

1. Não há qualquer ilegalidade se a AT não ouvir testemunha indicada na audição prévia, desde que fundamente, em concreto, essa decisão.

2. São fiscalmente dedutíveis (em IRC e IVA) os gastos incorridos para obter ou garantir os rendimentos, ainda que associados a operações societárias onde se assumem elevados riscos, pouco razoáveis ou improdutivos (os proveitos ficarem aquém do desejável).

3. São fiscalmente dedutíveis (em IRC e IVA), por correta documentação, as faturas com dizeres genéricos, se, perante a prova produzida, se demonstra o cumprimento dos requisitos substantivos da operação: por força do princípio da dedução, em IVA, e do rendimento real, em sede de IRC.

4. O princípio material da Justiça prevalece sobre o princípio formal da especialização de exercícios – na ponderação dos dados concretos do caso: situações de final de ano, impossibilidade de correção atual da situação (por ultrapassagem de prazos) e não haver intenção nem vantagem de transferir resultados entre exercícios.

5. O art. 88.º, n.º 1, do CIRC só se aplica a “despesas” – e nunca a correção de saldos entre sócios, por contrapartida de resultados transitados, como forma de reposição da verdade das relações entre a sociedade e o seu sócio.

 

 

Decisão arbitral

 

Os árbitros Prof. Doutor Rui Duarte Morais (Presidente), Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares (relator) e Dr. Fernando José da Costa Matos, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral coletivo, constituído em 8/11/2022, acordam no seguinte:

 

I - Relatório

A..., LDA., com o número único de matrícula e de identificação fiscal..., com sede na Rua..., n.º ..., ..., ...-... Caldas da Rainha (doravante “A...” ou “Requerente”), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade dos seguintes atos tributários de IRC e IVA (tudo no montante global de € 569.107,20):

a) Liquidação adicional de IRC n.º 2022..., das liquidações de juros n.º 2022 ... e n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., referentes ao exercício de 2018, no montante total de € 390.067,70, sendo apenas contestado o valor de € 354.494,81;

b) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., referentes ao período 2018/01, onde não se apurou qualquer valor a pagar;

c) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., bem como da liquidação de juros n.º 2022... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/02, no montante total de € 30.897,20;

d) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/03, onde não se apurou qualquer valor a pagar;

e) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/04, no montante total de € 28.603,91;

f) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/05, no montante total de € 11.804,30;

g) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., referentes ao período 2018/06, onde não se apurou qualquer valor a pagar;

h) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022 ..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., referentes ao período 2018/07, no montante total de € 25.640,92;

i) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., referentes ao período 2018/08, no montante total de € 6.729,24;

j) liquidação de IVA n.º 2022... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/09, no montante total de € 42.160,98;

k) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/10, no montante total de € 1.299,82;

l) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022 ..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., referentes ao período 2018/11, no montante total de € 30.696,70;

m) liquidação de IVA n.º 2022 ... e respetiva demonstração acerto de contas n.º 2022 ..., bem como da liquidação de juros n.º 2022 ... e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2022..., referentes ao período 2018/12, no montante total de € 36.779,32.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.

O tribunal arbitral foi constituído em 8/11/2022. A AT efetuou resposta, por impugnação.

Em 26/1/2023, efetuou-se a reunião do art. 18.º do RJAT, seguida de inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente. As partes apresentaram alegações, em que reproduziram, no essencial, as posições apresentadas nas suas peças anteriores.

 

II – Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 A cumulação de pedidos é legal, porque verificados os respetivos requisitos.

O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III - Posições das partes

Atentas as correções constantes do relatório inspetivo [RIT] (e liquidações adicionais consequentes), temos que a Requerente não contestou, nesta arbitragem, as seguintes situações: a) correções referentes aos pontos III.1.B.3 do RIT (deslocações, estadas e transportes); b) III.1.B.4 do RIT (ajudas de custo no estrangeiro e reembolso de ajudas de custo no estrangeiro) e; c) III.1.C.1 do RIT (tributação autónoma dos encargos com ajudas de custo).

A Requerente impugna e contesta as demais correções do RIT, em sede de IRC e IVA – e estriba as suas pretensões nos três seguintes temas essenciais (e a seguir desenvolvidos):

  1. Preterição de formalidade essencial, por desconsideração da testemunha arrolada em sede do procedimento inspetivo;
  2. Existir um conjunto de gastos que a Requerente considera fiscalmente dedutíveis (nos termos do artigo 18.º, 23, n.º 1 e n.º 4 do CIRC), (i) por prevalência da justiça sobre o princípio formal da especialização de exercícios; (ii) por entender que se verifica correta documentação e (iii) correlação com os proveitos e, por consequência, também com direito de dedução de IVA (artigo 19.º, 20.º e 36.º, do CIVA);
  3. Entende ainda que não é devida qualquer tributação autónoma, em IRC, relativa à correção do saldo devedor relativo a um fornecedor /sócio.

A AT refuta estes argumentos – como se sumariará de seguida e se desenvolverá mais à frente, na decisão de cada uma destas matérias:

 

  1. Preterição de formalidade essencial, por não audição da testemunha arrolada em sede do procedimento inspetivo.

Como já referido, a A... imputa ilegalidade das liquidações de imposto porquanto, no procedimento, a AT não ouviu a testemunha por si arrolada na audição prévia, cujo depoimento considerou ser de utilidade para a correta e legal circunscrição do ato tributário.

A AT contesta, em síntese, com base na sua liberdade de conformação do procedimento; não ter de satisfazer tudo aquilo que o contribuinte solicita; ter fundamentado adequadamente os motivos porque decidiu não ouvir a testemunha.

 

b) Gastos fiscalmente não dedutíveis nos termos do art. 23.º, n.º 1, do CIRC.

A AT entende que os gastos em questão não se assumem como gastos fiscais – porque não foram incorridos ou suportados para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a imposto. E fá-lo com base, em síntese, em certos dados aparentemente objetivos: (i) não ser compreensível a Requerente contratar serviços de concorrentes (e trabalhadores destes), quando possui um quadro próprio, estável, de técnicos; (ii) os seus proveitos, no ano em causa, serem menores do que os gastos com pessoal; (iii) em 2018 e 2017 ter tido elevados prejuízos.

A A... advoga (e junta prova) que estes gastos têm feição e natureza totalmente empresarial – foram contraídos no interesse económico da Requerente, apesar de todas as circunstâncias alegadamente estranhas apontadas no RIT.

 

c) Gastos fiscalmente não dedutíveis, nos termos do art. 23.º n.º 4, do CIRC.

A AT advoga, em súmula, que certos gastos suportados pela A... não estão devidamente documentados: apesar da existência da fatura, os dizeres ínsitos (na descrição do serviço) são vagos e genéricos, pelo que não cumpririam os ditames do art. 23.º, n.º 4, do CIRC – e por isso não seriam fiscalmente dedutíveis aos rendimentos de 2018.

O contribuinte defende a tese contrária: a correta documentação das faturas, com base nas circunstâncias contratuais concretas, na análise dos documentos e na prova adicional que juntou (testemunha e demais documentos).

 

d) Especialização de exercícios (art. 18.º do CIRC)

A AT não aceita a dedução de certos gastos, invocando as regras da imputação temporal dos proveitos e gastos (do art. 18.º do CIRC), porque foram contabilizados em 2018, mas dizem respeito a 2017. A A... reconhece o erro, mas advoga a prevalência do princípio material da justiça sobre o princípio formal da especialização dos exercícios, na esteira da jurisprudência dos tribunais superiores e atendendo às concretas circunstâncias do caso concreto (situações de final de ano; que agora já não se consegue repor a justiça, porque o ano de 2017 está encerrado; não existir intenção de obter vantagens fiscais).

 

  1. Correção do saldo devedor a um fornecedor / sócio e tributação autónoma (art. 88.º do CIRC)

A Autoridade Tributária aplicou a taxa de tributação autónoma agravada de 60% ao valor de uma redução, numa rúbrica de dívidas a fornecedor (a uma sociedade sua sócia) de € 529.075,10, por entender que se trata de uma despesa não documentada, perfazendo um adicional de tributação autónoma de € 317.445,06.

A A... contesta esta situação, invocando, em síntese, que não se trata de uma despesa, mas de acerto de saldos, e que o art. 88.º do CIRC só se aplica a despesas – e não é isso o que se verifica no caso dos autos.

 

  1. Direito à dedução do IVA nos gastos a que a AT aplicou o art. 23.º, n.º 1 e 4, do CIRC

Esta situação é consequente da aplicação do art. 23.º, n.º 1 e 4, do CIRC: se, como advoga a AT, os gastos não são dedutíveis em IRC, por não correlação com os rendimentos e deficiente documentação (das faturas) – então também o IVA suportado não seria dedutível, nos termos do art. 19.º, 20.º e 36.º, n.º 5, do CIVA. Ao invés, como defende a Requerente, se os gastos são dedutíveis e documentados em IRC, então o IVA neles contido também será dedutível, em sede desse imposto.

 

IV. Matéria de facto

IV.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

a) A A... dedica-se à atividade de desenvolvimento e comercialização de produtos, serviços informáticos e de tecnologias de informação.

b) Em 2018, o capital social da A... era detido por B... SA [B...] (80%) e por C... (20%)

c) Em 2018, a A... apresenta os seguintes indicadores:

- o valor dos rendimentos (+-1,2M€) foi inferior aos do custo de pessoal, constituído por 64 pessoas (+-1,5M€);

- um elevado valor de fornecimentos e serviços externos (FSE), na casa dos 850 mil euros;

- um prejuízo contabilístico de +-1,2M€;

- grande parte dos fornecimentos e serviços externos (FSE) correspondem a contratações de pessoas a empresas concorrentes;

- teve, pois, gastos com pessoal de valor muito elevado – diretos e por subcontratação.

- o critério contabilístico de inscrição dos FSE entre subcontratos e trabalhos especializados não é claro e inequívoco.

  1. Em 2017, a Requerente teve elevados prejuízos fiscais (superiores a 900 mil euros).
  2. Os gastos mais significativos reportam-se à criação e desenvolvimento de duas aplicações informáticas: “my ...” e “A... service suit”.
  3. A Requerente tem dois tipos de atividade: a) presta serviços de informática e tecnologias de informação customizados a vários clientes, entre os quais o “My...”, para o grupo D...; b) criação e manutenção do software “A... service suit”, cujos clientes são, entre outros, a E... e a F... .
  4. O “A... service suit” é uma aplicação informática de apoio à gestão e coordenação dos contadores de eletricidade e gás –apoio às equipas no terreno.
  5. Os investimentos no desenvolvimento desta aplicação foram efetuados sobretudo em 2018.
  6. Sem tais investimentos, a Requerente perderia importantes clientes (F..., o mais emblemático);
  7. O desenvolvimento desta aplicação permitiu obter, nos anos posteriores, rendimentos superiores ao investimento, quer com esses clientes, quer com outros, entretanto angariados.
  8. O “my ...” é uma aplicação customizada (feita de raiz) para todos os hospitais..., visando a gestão interna e facilitar as relações com os clientes.
  9. A A... aceitou riscos elevados aquando da celebração deste contrato: assumiu preços fechados com base em projeções de horas de trabalho que se vieram a revelar muito superiores às estimadas, sem possibilidade contratual de revisão de preços.
  10. O erro de estimativa esteve sobretudo na circunstância da enorme complexidade (muito superior à estimada) da migração dos dados anteriores relativos aos médicos e serviços prestados.
  11. Para a A... poder honrar esse contrato, de uma equipa inicial de 5 pessoas, acabaram por trabalhar cerca de 20 pessoas nesse projeto.
  12. Perante o enorme volume de trabalho (no “My ...” e “A... service suit”), a A... teve de recorrer a FSE de empresas suas concorrentes, porque os seus colaboradores eram insuficientes para o correto e atempado cumprimento dos contratos celebrados e concretização dos projetos em curso – e é muito difícil contratar imediatamente engenheiros informáticos no mercado.
  13. Os trabalhadores contratados, via FSE, foram-no por possuírem determinada competência técnica e especialização, não tendo sido alocados a 100% a um só projeto, mas sim onde o seu know-how específico fosse mais importante: por exemplo, alguém que foi contratado por dominar a linguagem JAWA foi, depois, semanalmente, alocado ao planeamento operacional em que nesse momento fosse mais produtivo.
  14. A A... nunca elaborou folhas de horas de trabalho por cada projeto, seja dos trabalhadores próprios, seja dos contratados, via FSE.
  15. Os FSE – subcontratos, reportam-se a contratação de mão de obra adicional, via fornecedores, empresas concorrentes, estando em causa as seguintes situações:

Fornecedor

Valor

Contrato escrito

G..., SA

61.315,00€

Sim

H..., SA

251.783,21€

Sim

I... Lda

321.363,07€

Sim

TOTAL

634.461,28€

 

  1. Os contratos escritos identificam o tipo de trabalho e os serviços em causa – numa relação normal e usual entre cliente e fornecedor (doc. 21 a 24, juntos com o requerimento inicial).
  2. As faturas emitidas por G..., SA indicam apenas: “serviços prestados”, com identificação da pessoa que o presta e n.º de dias e data do serviço
  3. As faturas emitidas pela I... e H... indicam apenas: “serviços prestados”, com identificação da pessoa que o presta e a data do serviço.
  4. Os FSE – trabalhos especializados – reportam-se a situações variadas com os vários fornecedores, estando em causa as seguintes situações:

Fornecedor

Valor

Contrato escrito

I..., Lda

77.721,00€

Sim

H..., SA

15.860,00€

Sim

J...

71.615,63€

Não aplicável

K...

8.500,00€

Não aplicável

L… gmbh e M… Ltd

1.848,94€; 4.560,00€ e 87,99€

Não

N..., Lda

6.300,00€

Sim

TOTAL

186.493,36€

 

  1. Em relação a I... e H..., não se explica o racional de distinção contabilística entre gastos por subcontratação e trabalhos especializados (conta 621 (FSE - subcontratos) e conta 622 (FSE - trabalhos especializados)), sendo que os documentos de suporte têm os mesmos descritivos, acima indicados (factos 16);
  2. A “B... service” (hoje designada por J..., Lda) era arrendatária de um espaço em Lisboa, composto por 4 andares;
  3. A Requerente, porque precisava de um espaço em Lisboa, ocupou 1 dos 4 pisos do prédio, por acordo com a J..., Lda.;
  4. Suportando 25% da renda + 25% das despesas de gestão corrente do locado + 10% da “taxa de serviço”, o que corresponde à remuneração do arrendatário, pela sublocação:
  5. A respetiva faturação menciona “refaturação de custos de suporte”, sendo acompanhada de um mapa justificativo das quantificações.
  6. A fatura emitida pela sociedade K... menciona “projeto constituição B... digital”;
  7.  A emissão de tal fatura resultou do facto de uma sociedade de advogados (O... Sociedade de Advogados) ter realizado um estudo visando a reestruturação do grupo no qual a Requerente se insere, a qual passaria, entre outras, pela transformação da Requerente em “B... digital”; esse serviço foi faturado a outra empresa do grupo, K..., a qual, depois, repartiu em parte sobre a Requerente, na medida da sua utilidade;
  8. ) Por motivos de gestão, essa reestruturação não foi avante.
  9. A descrição das faturas emitida pela N...: apenas mencionam “trabalho efetuado por encomenda de P...”;
  10. P... é um funcionário da Requerente que tem como função, entre outras, o contratar serviços de terceiros, especializados em informática, para suprir carências da Requerente;
  11.  A N... é uma empresa que presta serviços informáticos (concorrente da A...).
  12. L... GMBH e M... LTD: a) estas sociedades, residentes, respetivamente, na Austrália e no Reino Unido, são titulares de plataformas on line; b) prestaram, à Requerente, serviços on line, de gestão de software e de gestão de recursos humanos, relativos a projetos em que A... estava envolvida; c) foram contratados on line (só com interação eletrónica), apenas existindo um contacto, que é um email.
  13. Em relação à I... e à N..., serviços efetuados em dezembro de 2017, no valor total de 41.600,00€, apenas foram faturados e incluídos no cálculo da matéria coletável do IRC da Requerente de 2018.
  14. Em anos anteriores a 2018, por razões que não ficaram apuradas, houve empolamento contabilístico dos rendimentos da Requerente, (“proveitos de comissão europeia”) no valor de 1.650.607,07€” e de custos, no montante de 540.240,00€ - o que perfaz um saldo de 1.110.367,07€.
  15. Estes registos são materialmente falsos, pois não traduzem a realidade.
  16. Para camuflar e tentar justificar contabilisticamente esta situação, foi utilizada a conta da sócia e fornecedora B... .
  17. Em 2018, a Requerente foi confrontada com esta incorreção, no decurso de uma auditoria feita à contabilidade da B..., em resultado da conciliação de créditos e débitos entre ela e tal sociedade, efetuada por Revisor Oficial de Contas – Dr. R... .
  18. Em 2017, acertou-se parte desta divergência; em 2018, a Requerente fez uma reversão complementar, corrigindo o saldo perante a B... em 529.075,10€, por contrapartida de resultados transitados.
  19. Com estas operações, repôs-se o valor correto da dívida da Requerente perante a B... .
  20. O valor de 529.075,10€ não foi considerado um gasto e/ou despesa dedutível ao IRC.
  21. A AT promoveu uma inspeção tributária ao exercício de 2018 da A..., em IRC e IVA, que deu lugar a várias correções e às liquidações ora impugnadas.
  22. Durante tal inspeção, no exercício da audição prévia, a A... solicitou que a AT ouvisse Q..., porque entendia que o seu depoimento seria esclarecedor para a descoberta da verdade material.
  23. A AT emitiu o relatório final sem o ouvir, fundamentando expressamente tal decisão: preferência pela prova documental; não considerar tal audição indispensável (considerou que nada traria de novo ao procedimento), pois o que estava em causa não era a atividade da requente ou funcionamento dos seus projetos, mas sim a justificação dos gastos, face aos rendimentos declarados.

 

IV.2. Factos não provados

Não há factos não provados com relevância para a decisão.

 

IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Os factos provados, os tidos por essenciais para a boa decisão, constam, em parte, de documentos aceites pelas partes: faturas, contratos, os valores quantitativos relativos à atividade da Requerente em 2017 e 2018 – despesas com pessoal e fornecimentos e serviços externos. Aliás, a divergência entre as partes nunca se situou ao nível quantitativo dos valores dos gastos e despesas.

Noutra parte significativa, temos factos aceites pelas partes, por acordo: que os fornecedores em causa eram também concorrentes; que as despesas registadas em 2018 dizem respeito ao ano de 2017; que o acerto de saldos de 529.075,10€ se fez por contrapartida de resultados transitados.

O Tribunal valorou os depoimentos das testemunhas.

A testemunha Q... mostrou conhecimento profundo sobre o negócio e atividade da A..., depondo com isenção, apesar da sua relação profissional com esta sociedade. Explicou detalhadamente o tema dos produtos (aplicações informáticas) “A... service suit” e “my ...”: a circunstância de o investimento no seu desenvolvimento ter sido feito, essencialmente, num ano, 2018, e os rendimentos daí resultantes só terem ocorrido nos anos seguintes; o acréscimo inesperado dos gastos com a implementação do “my...”, sem o contrato permitir a revisão de preços; que a empresa quis honrar os seus compromissos, para manter a reputação no mercado, pelo que teve de contratar mão de obra de concorrentes, via FSE, porque o seu quadro de pessoal era insuficiente para concluir o trabalho no tempo aprazado; não existirem profissionais informáticos suficientes no mercado, e por isso, não tiveram outra alterativa, senão a contratação de serviços de terceiros, mesmo que concorrentes.

Explicou, também, que na atividade da Requerente é normal que os gastos sejam muito elevados no ano em que se desenvolve um produto informático ou uma aplicação, mas que, depois, essas ferramentas permitem, como permitiram, um aumento de vendas a eles associados, com ganhos e rentabilidade a médio prazo, o que aconteceu com o produto A... service suit.

Explicou, ainda, que ao nível da generalidade das empresas informáticas, existe uma certa informalidade documental, pois, afinal de contas, a informática, é uma ferramenta também para diminuir e simplificar procedimentos e burocracias. Assim, é frequente a contratação de outras empresas informáticas apenas por on line, para a prestação de serviços que têm também a mesma natureza e existir interação apenas eletrónica (como com a L... e M...).

 

A testemunha R..., Revisor Oficial de Contas, prestou um depoimento muito preciso (usando linguagem muito técnica) e isento, quer pela inexistência de relações com a Requerente, quer em razão do seu ofício.

Explicou que, no quadro de uma auditoria à sócia da Requerente ((B...) efetuou, como é normal, a conciliação de saldos, pois nas relações comerciais entre as empresas, se uma é credora da outra, isso tem de estar espelhado na contabilidade de ambas (numa como crédito e noutra como débito), pelos mesmos valores, e tendo por base os mesmos elementos de suporte e financeiros; verificou que tal não ocorreu entre a A... e sua sócia maioritária (B...). Comprovou que a A..., em anos anteriores, utilizou um esquema de incremento artificial de proveitos, via conta “comissão europeia” – para mostrar uma robustez que não tinha – e que, para camuflar essa situação, triangulou com relações de crédito/débito, com a sócia / fornecedora B..., – “tudo movimentos fraudulentos, de valores superiores a 1 milhão de euros” (a expressão é da testemunha).

Em 2/2019, a testemunha fez um relatório de auditoria, na ótica da B..., a detalhar e justificar esta situação, do qual consta o seguinte (junto aos autos, na sequência da inquirição da testemunha, sob autorização do tribunal):

“A conciliação de saldos, entre os exercícios de 2013 a 2017, com a detentora maioritária do capital – B..., permitiu-nos identificar uma diferença global de 1.581.290 euros. A diferença identificada que necessita de ajustamento nas contas da A... decorre de um movimento credor de “limpeza de contas” de 2016 (624.481) e diferença entre o saldo inicial de 2017 e o saldo final de 2016 (566.835). Propomos o reforço da conta corrente da B... por contrapartida de Resultados Transitados”.

Em contraditório, no prazo de vista, a Requerida impugnou a veracidade do documento e sua autoria, por não estar sequer assinado e datado. Alegou, inclusive, que não seria um relatório de Revisor Oficial de Contas, nem um extrato contendo conclusões de auditoria.

A Requerente pronunciou-se de seguida, juntando declaração do Dr. R... em que atesta, sob compromisso de honra, que o mesmo corresponde à verdade e que foi emitido como anexo ao Balanço Ajustado e à Demonstração de Resultados Ajustada e respetivas conclusões, elaborado em 07.02.2019, na sequência da auditoria às contas de 2017 da sociedade B..., S.A., à data detentora do capital da A... (agora Requerente).

Perante isto, o Tribunal aceita a veracidade do documento e a utilidade da informação nele contida para a resolução de uma das questões a decidir nos presentes autos, ou seja, a necessidade de correção de registos contabilísticos relativos a relações inexistentes e fraudulentas contabilizadas perante o sócio, mas que não correspondiam à verdade. E a forma como foi feita, por conta de resultados transitados – sobre o que existe acordo, entre as partes – sem inscrição como gasto ou despesa.

 

V. Matéria de direito

V.1 Introdução e sequência: as questões dos autos

As questões dos autos são as seguintes:

a) Alegada preterição de formalidade essencial: por desconsideração de testemunha arrolada em sede de processo inspetivo.

b) Saber se certas despesas (relativas a fornecimentos e serviços externos – subcontratos e trabalhos especializados) estão ou não em correlação com o rendimento tributável (relação com a obtenção ou garantia de rendimentos sujeitos a IRC), devendo ser ou não desconsideradas na determinação do lucro fiscal, nos termos do art. 23.º, n.º 1, do CIRC.

c) Saber se certas faturas emitidas por fornecedores preenchem ou não os requisitos de documentação dos gastos, nos termos do art. 23.º, n.º 4, al. d), do CIRC.

d)  Se, em 2018, se podem deduzir ao IRC certas despesas que dizem respeito ao exercício de 2017 (despesas com os fornecedores I..., Lda. e N..., Lda), nos termos e por interpretação do art. 18.º do CIRC.

e) Saber se a redução do valor registado na contabilidade de uma dívida a um fornecedor (e sócio) implica ou não a uma tributação autónoma, para efeitos do IRC, nos termos do art. 88.º, n.º 1, al. a), do CIRC.

f) Saber se, em IVA relativo aos gastos desconsiderados em sede do art. 23.º, n.º 1 e 4, do IRC (questão b) e c) supra), se verifica ou não o direito à dedução do imposto suportado nos inputs, nos termos e na interpretação do art. 19.º, 20.º e 36.º, n.º 5, do CIVA.

Cada uma destas questões, será tratada e decidida seguidamente.

 

V.2. Alegada preterição de formalidade essencial: não audição de testemunha arrolada em sede de processo inspetivo

Como indicado nos factos provados, na audição prévia (antes do relatório final e liquidações de imposto), a A... solicitou que a Requerida ouvisse uma testemunha, por entender que esta poderia auxiliar a inspeção na descoberta da verdade, sobretudo na matéria dos gastos alegadamente sem relação causal com a obtenção ou garantia de rendimentos; o relatório de inspeção tributária recusou tal audição, com motivação clara a expressa: preferência pela prova documental; ser dispensável tal depoimento, por não estar em causa a atividade ou funcionamento dos projetos, mas sim a justificação dos gastos, face aos rendimentos declarados.

A Requerente advoga a existência de um vício de procedimento, por preterição de formalidade essencial, por a AT, circunscrita totalmente a critérios de legalidade e justiça, ter recusado liminarmente a recolha de prova que seria útil para a verdade e influenciaria, seguramente, o ato tributário.

A Requerida sustenta, em síntese, que na descoberta da verdade material não tem de satisfazer todos os pedidos do contribuinte, podendo recusá-los, desde que expresse concretamente os fundamentos para tal – o que fez no caso concreto.

O tribunal arbitral decide no sentido da inexistência de qualquer violação de lei ou vício de procedimento: não existiu qualquer violação da audição prévia, inquisitório ou preterição de formalidade essencial. Os argumentos são os seguintes.

a) A Autoridade Tributária move-se, em exclusivo, por critérios de legalidade e justiça, no sentido da descoberta da verdade material, ainda que desfavorável aos interesses patrimoniais e financeiros do Estado;

b) O contribuinte tem o direito de participar no procedimento – oferecendo provas e argumentos para que a AT prossiga a sua atividade inspetiva: inclusive, com a solicitação, na audição prévia, de que a AT ouça determinada pessoa, por o seu depoimento poder influir na decisão do processo, no sentido do apuramento da verdade material.

c) A AT não está, porém, obrigada a efetuar tal inquirição – mas não o fazendo, tem de fundamentar concretamente os motivos dessa não audição, inscrevendo-os no relatório de inspeção tributária, sob pena, se o não fizer, de vício do procedimento e violação de lei.

d) É este o sentido do Ac. do Tribunal Central Administrativo do Norte (proc. n.º 00768/10.6BEPNF, de 30/03/2017), que acompanhamos: “V - Se, fundamentadamente, a Administração Tributária não realiza as diligências de prova, por entender não serem indispensáveis à descoberta da verdade material, não incorre em qualquer ilegalidade por violação do direito de audição. VI - Tendo o procedimento tributário como objetivo a descoberta da verdade material, a Administração Tributária, que dirige o procedimento, e com vista a essa descoberta, tem o dever de apurar todos os factos, independentemente de os mesmos serem ou não desfavoráveis ao sujeito passivo e do requerimento deste nesse sentido. VII - A recusa pela Administração Tributária de praticar diligências Requeridas pelo contribuinte ou a não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, consubstancia um vício procedimental, que é fundamento de ilegalidade do acto tributário ou em matéria tributária e suscetível de determinar a sua anulação. VIII - Isto não significa, porém, que a Administração Tributária esteja obrigada a realizar todas as diligências Requeridas pelo contribuinte, pois aquela não está condicionada na condução do procedimento às pretensões dos contribuintes.»

e) Na realidade, aceitando que procedimento inspetivo vigora um princípio do contraditório moderado, tal não põe em causa as garantias dos contribuintes, pois que poderão sempre exercer plenamente tal direito posteriormente, nomeadamente em sede de processo judicial. E, mesmo aqui, o tribunal pode indeferir a audição de uma testemunha quando disponha de elementos suficientes para poder concluir pela irrelevância do depoimento, nomeadamente – como seria o caso – por os factos sobre que versaria não serem relevantes para a boa decisão da causa.

Improcede, por isso, o vício de procedimento e violação de lei apontado pela Requerente.

 

V.3 A correlação de despesas (fornecimentos e serviços externos – subcontratos e trabalhos especializados) com a obtenção ou garantia de rendimentos sujeitos a IRC (art. 23.º, n.º 1, do CIRC)

O art. 23.º, n.º 1, do CIRC, dispõe: “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

Este artigo intima, simplesmente, a existência de uma relação de causalidade económica entre as componentes negativas e positivas do rendimento: que os gastos incorridos pelo sujeito passivo tenham uma alocação económica com a atividade do contribuinte. Dito de outro ângulo: só não assumirão a natureza de gastos fiscais – os gastos inscritos na contabilidade, mas cujo interesse ou propósito não seja uma alocação empresarial da entidade que os contrai, mas apenas o de satisfazer um interesse de terceiro: seja uma sociedade do grupo, ou um sócio ou administrador…

Donde, são fiscalmente dedutíveis todos os gastos que tenham uma motivação empresarial – ainda que possam ser considerados excessivos, pouco razoáveis, muito arriscados (alocados a negócio de elevado risco), ou improdutivos (os proveitos ficaram aquém do desejável). Aliás, a AT não pode sindicar a bondade empresarial dessas opções económicas do sujeito (recusando a dedução desses gastos, pretensamente ancorada no art. 23.º do CIRC). O art. 23.º do CIRC permite tão só recusar a natureza de gasto fiscal aos não reconduzíveis a interesse societário, mas apenas aos interesses pessoais de sócios ou de terceiros (Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, 2019, p. 114 e 115).

No caso dos autos, a inspeção tributária detetou um conjunto de situações, com aparência externa de inexistência de interesse societário: elevada contratação de serviços externos de informática, habitualmente de concorrentes, quando a A... tem um quadro de pessoal técnico com mais de 60 quadros – e, sobretudo, quando, nesse ano (2018) e no anterior, o volume de negócio foi até inferior aos gastos totais com o pessoal, próprio e subcontratado – tendo a empresa nesses anos elevados prejuízos.

A fundamentação dos atos impugnados identifica, em concreto, as situações dos fornecedores G..., SA, H..., SA, I... Lda, K..., J..., L... gmbh e M... Ltd  e N..., Lda (factos provados 13 e 17).

A Requerente provou a efetiva alocação empresarial de todos estes gastos. Contextualizou-os na sua atividade concreta, com auxílio de prova documental e testemunhal. Em 2018 (e 2017) a A... investiu no desenvolvimento do produto “A... service suit”, sendo que o investimento (gastos) se concentrou nesses anos, mas os proveitos surgiram sobretudo nos anos seguintes, quando o serviço estava “em cruzeiro” e foi vendido aos clientes, com rentabilidade consolidada. E que, dada a escassez de informáticos no mercado, só lhe restou a opção de contratar os serviços de empresas concorrentes, subcontratações e trabalhos especializados, sob pena, se assim não fosse, de não conseguir realizar o projeto com qualidade e a tempo. O mesmo sucedeu com a aplicação “my...”: tendo negociado um contrato com preço fechado, o trabalho de construção dessa aplicação foi muito superior ao estimado, tendo necessidade de recorrer a terceiros, para o prestar a tempo e com qualidade. E tomou a opção de gestão de honrar os compromissos com o cliente, em lugar de quebrar o contrato.

Em suma: a) os gastos em causa têm total alocação empresarial b) poder-se-á considerar que a A... assumiu riscos excessivos (contrato sem possibilidade de revisão de preços) ou que honrou contratos que poderia incumprir (numa opção de gestão) ou que deveria ter cobrado mais nos contratos que celebrou, ou que deveria ter contratado mais funcionários em lugar de recorrer a serviços externos – mas tudo isso são opções de gestão, livres e legítimas por parte da empresa, que o art. 23.º do CIRC não pode sindicar: não se pode retirar a natureza de gastos fiscais e despesas contraídas pela empresa, no seu total interesse, mas tendo por base opções de gestão tidas por imprudentes ou censuráveis.

Mais três notas adicionais:

a) no processo não se alega a repartição destes gastos de investimento (na construção e desenvolvimento de aplicações informáticas) por vários anos – e, por isso, o Tribunal não se tem de pronunciar sobre o tema;

b) a AT alega, também, que a A... não tem uma alocação dos serviços contratados por projeto – tipo uma folha de horas, por trabalhador ou prestador de serviços, por projeto; e que sem isso, não se prova afetação empresarial dos gastos. Mas, não é assim: funciona a liberdade de prova – e a A... provou, por documentos (contratos) e testemunhas, que os serviços em causa tiveram afetação e destino empresarial, na prossecução da sua atividade. E isso basta para preencher os requisitos do art. 23.º do CIRC;

c) a AT alega a falta de compreensão entre a alocação contabilística dos gastos: serem trabalho especializados ou subcontratos. Mas isso é irrelevante para a natureza fiscal dos mesmos: o art. 23.º do CIRC aceita a natureza fiscal dos gastos inscritos na contabilidade, independentemente da concreta subconta da sua inserção contabilística.

Vejamos agora mais em concreto: a G..., SA, H..., SA, I... Lda e a N..., Lda. forneceram serviços de técnicos informáticos especializados, no interesse da A..., necessários para a prestação dos serviços aos seus clientes – no “A... service suit” e “my ...”. A documentação reforça a prova da natureza empresarial dessas despesas: os contratos escritos descrevem os serviços contratados (e demais características fulcrais), numa formalização que, não sendo obrigatória, faz prova da alocação empresarial desses serviços contratados pela A... .

Os gastos relativos a J..., Lda. são também fiscalmente dedutíveis: como provado pela testemunha, trata-se da imputação do valor da renda (e despesas de gestão do locado e taxa de serviço) do espaço ocupado pela A..., na zona da Expo, em Lisboa de que a “B... service” (hoje designado por J..., Lda) era a arrendatária de 4 andares. Tendo cedido um piso à A..., para o exercício da sua atividade (tipo sublocação), esta teve, por conseguinte, de suportar uma parte (25%) das rendas + 25% das despesas de gestão corrente do locado + 10% de “taxa de serviço”, o que correspondeu à remuneração do arrendatário, pela sublocação. Esse gasto, tem, pois, uma total afetação empresarial, sendo assim totalmente dedutível nos termos do art. 23.º, n.º 1, do CIRC.

Os gastos relativos a K... são também fiscalmente dedutíveis: correspondem à parte imputável à A... de um serviço prestado por sociedade de advogados tendentes à reestruturação do grupo S... (no qual se incluía a A...), que, por motivos de gestão, não foi depois implementado. Provado que está a afetação empresarial do gasto, o mesmo é dedutível, ainda que não se tenha implementado a reestruturação: o serviço jurídico foi prestado; a A... é responsável por parte desse gasto, que tem assim uma total alocação empresarial.

Note-se que, em relação à J... e à K..., os atos tributários fundamentam-se apenas na invocação do art. 23.º do CIRC, e não também com base no art. 63.º do CIRC, ou seja, num alegado fracionamento do preço total, fora de relações de mercado, suportando a A... uma parte do gasto comum, superior ou inferior, ao que seria praticado na ausência de relações especiais. Ora, estando este tema fora do objeto do processo, não tem o Tribunal de sobre ele se pronunciar – se a imputação à A... cumpre com os valores de mercado face ao serviço que lhe foi prestado pelo arrendatário e pela sociedade de advogados.

Os gastos relativos a L... gmbh e M... Ltd são também fiscalmente dedutíveis. Apesar de não haver prova documental destes contratos, a testemunha explicou devidamente esses contratos e a razão da inexistência de formalismos. A A... recorreu aos serviços dessas empresas, no exercício da sua atividade empresarial: esses fornecedores são plataformas on line, residentes, respetivamente, na Austrália e no Reino Unido; prestaram serviços on line, relativos a software e gestão de recursos humanos da A... (L...gmbh) e à gestão de projetos em que  A... estava envolvida (M... Ltd).

Mais: a lei, como regra, não obriga a que a celebração de um contrato revista a forma escrita. No giro comercial, muitos contratos são celebrados oralmente. Por maioria de razão o podem ser através de plataformas informáticas.

 

V.4. Da documentação de gastos (art. 23.º, n.º 4, do CIRC)

Como indicado nos factos provados, estamos em presença de situações em que, não obstante a existência de fatura, a AT recusa a dedução fiscal do gasto, por entender que a documentação é insuficiente: que os dizeres das faturas não preenchem os requisitos mínimos para permitir a dedução dessas despesas, na interpretação que efetua do art. 23.º, n.º 4, do CIRC.

O art. 23.º, n.º 3 e 6 do CIRC dispõem que a aceitação fiscal dos gastos exige uma correta documentação, que, nas situações dos casos dos autos, corresponde a faturas.

O art. 24.º, n.º 4, do CIRC debruça-se sobre o standard (requisitos formais) da fatura – e dispõe: “4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos: a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário; b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional; c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados; d) Valor da contraprestação, designadamente o preço; e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados. 

A AT entende que faturas de emitidas por alguns fornecedores (G..., I... IT, Lda., H..., J..., e N..., Lda e L... Gmbh e M... Ltd) teriam dizeres insuficientes, por serem demasiado genéricas (“serviços prestados”), por conterem indicações que não permitem aferir do que se trata efetivamente (“serviços contratados por P...”) ou porque não indicam o prestador efetivo e o projeto a que se reporta.

Resumindo: cada pagamento está suportado por fatura que se relaciona com um serviço prestado. A AT aceita que o serviço foi prestado e aceita igualmente que o foi pelo preço indicado nas faturas. A correção fiscal sustenta-se, apenas, na deficiente descrição dos serviços prestados nos dizeres das faturas – e com base nisso, a AT recusa a dedução fiscal, nos termos do art. 23.º, n.º 4, do CIRC.

Precisemos o tema: não se trata de falta de documentação (não emissão de faturas), mas que as mesmas são muito enxutas e imprecisas no seu descritivo: “serviços prestados”, sem identificar o tipo de serviços e sem documentos de apoio que os relacionem diretamente com um projeto ou centro de proveitos da Requerente.

O tribunal advoga uma solução harmonizada e uniforme para esta questão, em sede de IRC e IVA: (i) porque a falta (rectius, insuficiência) da fatura pode originar a não dedução fiscal das despesas em IRC e a não dedução do IVA (art. 19.º n.º 2., al. a) e art. 36.º, n.º 5, do CIVA); (ii) por um princípio de unidade e coerências interpretativa do direito fiscal; (iii) e as preocupações subjacentes à documentação das operações económicas serem homólogas para os dois impostos: em impostos de massas, ter-se a informação, controlo e motivação da diminuição dos impostos (IRC e IVA) decorrente de fornecimentos de terceiros.

Em sede de IVA, esta exata questão (requisitos mínimos do descritivo das faturas) foi tratada e decidida pelo Ac. TJUE C-516/14, de 15/9, que contém duas relevantes conclusões, totalmente aplicáveis ao caso dos autos:

 

“[…] [as] faturas que só contenham a menção «serviços jurídicos prestados desde determinada data até ao presente» […], não respeitam, em princípio, as exigências previstas no n.° 6 deste artigo [artigo 226.° da Diretiva 2006/112/CE] e que faturas que só contenham a menção «serviços jurídicos prestados até ao presente» não respeitam, em princípio, as exigências previstas no referido n.° 6 nem as exigências previstas no n.° 7 do mesmo artigo, o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

O artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.os 6 e 7, desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos.

Ou seja:

a) as faturas em causa nos presentes autos não cumprem as exigências legais da legislação do IVA, em face dos seus sucintos e lacónicos descritivos – nem do IRC, como se sustenta naquela leitura uniformizada;

b) mas a consequência não é a imediata não aceitação da dedução do IVA nelas contido – nem a não aceitação da dedução em sede de IRC, como sustentado numa leitura uniformizada;

c) tem de se aceitar a dedução do IVA – consequência do direito à dedução, base da neutralidade do imposto – se, perante as provas dos autos, se consegue verificar o cumprimento dos requisitos substantivos desse exercício. 

O Tribunal deve também aceitar a dedução no IRC – consequência do direito à tributação do rendimento real – se, perante as provas dos autos, consegue verificar o cumprimento dos requisitos substantivos desse exercício de dedução dos gastos ao rendimento, como manifestação e concretização do rendimento real.

E isso está provado nos presentes autos: ocorreram os fornecimentos e serviços externos – de empresas terceiras contratadas pela Requerente para lhe prestarem serviços; estão vertidos em contratos escritos (as principais); têm razão de ser – a Requerente viu-se confrontada com necessidade de informáticos, para além da capacidade dos seus colaboradores; ou seja, esses serviços foram contratados pela empresa Requerente, para lhe prestarem serviços, que necessitavam para o exercício da sua atividade. A má ou imprevidente gestão não retira o direito à dedução sobre inputs reais e efetivos.

Esta linha de orientação serve também para a resolução do tema, em sede de IRC: verifica-se a documentação das despesas, nos casos em que as faturas, embora com deficiências formais ao nível do seu descritivo (devia ser mais extenso), se consegue ainda assim – como nos casos dos autos – aferir os gastos em causa e a sua relação com a atividade e interesse da Requerente.

Ou seja: a documentação não é um requisito ad substantiam, no sentido de que qualquer defeito na fatura leva imediatamente à não dedução desse gasto; mas tem de ser analisado em concreto, sob o tipo de erro e suas consequências, moldada sobre a prova sobre a efetividade e interesse empresarial das despesas.

Nestes termos, anula-se a liquidação de IRC, neste segmento – por errada apreensão dos factos e errónea interpretação do art. 23.º, n.º 4, do CIRC.

 

V.5 Gastos dedutíveis e especialização de exercícios

Por erro, em 2018, a Requerente contabilizou (e deduziu ao IRC) certas despesas que dizem respeito ao exercício de 2017 (com os fornecedores I..., Lda. e N..., Lda). Trata-se, pois, da inscrição, em 2018, de gastos relativos a 2017, por serviços prestados nesse ano (2017); acresce que a Requerente teve prejuízos fiscais em 2017 e 2018; e esses serviços foram essencialmente prestados em dezembro de 2017.

O Tribunal decide esta questão na senda da jurisprudência dos tribunais superiores, concluindo pela anulação da liquidação, nesse segmento, por prevalência dos princípios materiais (justiça) sobre princípios técnicos ou formais (especialização dos exercícios).

Este entendimento consta de várias decisões judiciais: Acórdão STA de 25/6/2008, proc. 0291/08; Ac. TCA Sul de 25/11/2021, proc. 410/04.4BELSB; Sentença do CAAD, nos processos 874/2019-T; 327/2019-T; 588/2015-T e 431/2020-T.

Dada a relevância, transcreve-se parte da Sentença do CAAD no proc. 334/2018-T:

“O princípio da periodização económica ou da especialização dos exercícios está positivado no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC e traduz-se na regra de que devem ser considerados como ganhos ou perdas de determinado exercício os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse exercício digam respeito, sendo irrelevante o exercício em que elas se materializam. No n.º 2 daquele mesmo artigo 18.º prevê-se uma exceção para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data do encerramento das contas de determinado exercício, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas. O princípio da especialização dos exercícios deriva da periodização dos resultados que é imposta por necessidades de gestão e de informação, sendo «caracterizado pela cisão da vida da empresa em intervalos temporais e pela imputação dada a um deles das componentes, positivas e negativas, que tornem possível determinar o resultado que lhe corresponde», impondo essa especialização «a realização de inventário de fim de exercício, dela decorrendo a necessidade de imputar a cada exercício todos os proveitos e custos que lhe são inerentes e só esses» ; desta forma, «a periodização anual do imposto implica que tanto os rendimentos como os gastos (e as variações patrimoniais fiscalmente relevantes) sejam imputados a cada período de tributação. Esta imputação resulta essencialmente da aplicação das normas contabilísticas, justamente porque o nosso legislador entendeu que as regras de periodização aí previstas oferecem um sistema coerente, fiável e eficaz também para efeitos fiscais.» (…) A importância e razão de ser do princípio da periodização económica resultam evidentes se se tiver presente que «a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo a, designadamente: a) Diferir no tempo os lucros; b) Fracionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objetivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas; c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efetivar deduções mais avultadas (v. g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).» Efetivamente, existem, «em abstrato, dois tipos de erros fiscais ligados à imputação temporal das componentes positivas e negativas do rédito ao exercício competente: a omissão ou esquecimento (erro voluntário ou involuntário): conhece-se a regra, que é indisputável, mas por algum motivo (ilegítimo ou justificado) não se regista o proveito ou o custo no ano devido; a álea ou abertura interpretativa: errónea inscrição temporal dum proveito ou um custo, efetuada, todavia, com base numa interpretação plausível da regra fiscal (geral ou específica) da especialização dos exercícios, regra essa que possui um conteúdo aplicativo equívoco (ou não concludente) diante do caso concreto.» É, pois, vedado aos contribuintes definirem como bem entenderem ou segundo critérios de oportunidade ou, ainda, em conformidade com a sua estratégia comercial ou de gestão, o timing para declararem os proveitos e os custos decorrentes da sua atividade comercial ou industrial, porquanto lhes são legalmente impostos limites e regras para o efeito, designadamente no sentido de os obrigar a imputar esses proveitos e custos ao exercício a que digam respeito. Assim, todos os custos e proveitos que sejam reconhecidos em determinada data devem ser registados no exercício a que correspondem de modo a que se produza uma imagem fidedigna da posição da empresa para esse período; ou seja, devem ser imputados «ao exercício os encargos que emergem de operações nele realizadas, ainda que nele não suportadas, do mesmo modo que se devem imputar a um exercício os proveitos resultantes de operações nele feitas mesmo que arrecadados noutro» (acórdão do STA, proferido em 02/04/2008, no processo n.º 0807/07, disponível em www.dgsi.pt).

E continua: Porém, os Tribunais registam duas teses antagónicas em torno do princípio da especialização de exercícios. A esse propósito, assinala o mesmo acórdão do CAAD que vimos acompanhando: “a) a corrente primitiva, de cariz formal e legalista, não admite quaisquer violações do princípio da especialização de exercícios; b) a tese actual, de cariz material, aceita a violação formal do princípio da especialização, desde que essas inscrições erróneas não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Esta corrente jurisprudencial [a tese primitiva] não pactua com a violação da regra legal da especialização de exercícios. Não aceita a inscrição duma rubrica (positiva ou negativa) do rendimento, em exercício diverso do que lhe compete. Fica-se pelo mero enunciado do princípio. Sobrevaloriza-o face à ponderação doutros fatores de justiça material, como a interferência em exercício alheio ao objeto do processo ou ao atendimento de razões desculpabilizantes (atuação de boa-fé, sustentada numa interpretação plausível dum comando complexo). A Jurisprudência consente, atualmente, a violação formal do princípio da especialização de exercícios, desde que não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Aceita a inscrição dum custo ou proveito em exercício diverso do que lhe competia, por intervenção de razões desculpabilizantes (atuação de boa-fé, sustentada numa interpretação séria e plausível dum comando complexo, assente em interpretações abertas e dúbias da sua estatuição). A tese atual (…) rompe com o facilitismo do formalismo legalista. Procura a solução material e justa. Faz prevalecer um princípio estrutural (capacidade contributiva) sobre uma regra operacional (especialização de exercícios). O seu ponto de partida é irrepreensível: se a sociedade incorreu num verdadeiro custo, esse decaimento tem de modelar, obrigatoriamente, o rédito fiscal. A convenção formal da especialização não tem o condão de impedir o efeito material, nem de torná-lo excessivamente oneroso ou complexo. O mesmo se passa, mutatis mutandis, com os proveitos. Contribuem uma só vez para o lucro (…)»  Com efeito, constitui jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser temperada com a invocação do princípio da justiça – nomeadamente, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado –, o qual funcionará então como uma válvula de escape. Neste sentido, ficou lapidarmente consignado o seguinte no acórdão proferido em 19/11/2008, no processo n.º 0325/08 (disponível em www.dgsi.pt): «O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. Embora estes princípios constitucionais tenham um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, a sua relevância não se esgota nos actos praticados no exercício desses poderes discricionários. Na verdade, por um lado, o texto do art. 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade. Por outro lado, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, como impõe o princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (art. 9.º, n.º 1, do CC). Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário. Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP, que impõe à Administração a observância do princípio da legalidade (…), como a sua segunda parte em que se prevêem os outros princípios e que generalizadamente impõem os modelos de actuação de toda a actividade administrativa, como também é uma norma legal a que, em determinada situação específica, prevê uma determinada actuação da Administração, designadamente, no caso em apreço, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios (art. 18.º, n.º 1, do CIRC). Por isso, para definir a legalidade a que a Administração está vinculada, terão de se ter em conta todas essas normas e fazer uma ponderação e escolha entre elas caso a sua aplicação global, abstractamente compatível, se demonstre inviável em determinada situação concreta. Assim, (…), do referido art. 18.º, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua atividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes. Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição. Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio. Neste mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul da seguinte forma: «I - O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado. II - Tal princípio sofre as excepções, previstas na lei, quais sejam: nos casos em que haja imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento das componentes positivas ou negativas e das obras de carácter plurianual (artigos 18.º, n.ºs 2 e 5 e 19.º do CIRC); nas situações em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte e quando esse erro não resultar de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar as transferências de resultados entre exercícios.»

Na jurisprudência tributária do CAAD, também constatamos o mesmo sentido decisório, entre outros, nos acórdãos proferidos em 24/11/2014, no processo n.º 367/2014-T, em 22/01/2016, no processo n.º 262/2015-T, em 29/04/2016, no processo n.º 588/2015-T, em 15/12/2017, no processo n.º 244/2017-T e em 24/10/2017, no processo n.º 233/2017-T (disponíveis em www.caad.org.pt/tributário/decisoes), respigando-se aqui o seguinte segmento deste último aresto: «(…) Questão da prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios. O princípio da justiça (…) é imposto à globalidade da actividade da Administração Tributária pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração Tributária ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando delas decorra um resultado manifestamente injusto. A aplicação do princípio da justiça será de sobrepor ao princípio da especialização dos exercícios nos casos em que do incumprimento não tenha resultado prejuízo para o erário público e aquele não tenha sido concretizado intencionalmente com o objectivo de obter vantagens fiscais. O Supremo Tribunal Administrativo tem adoptado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), (…), desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios». A própria Administração Tributária há muito reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial: “Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras: a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando: está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção; o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código; o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal. b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.” (…) Nos casos em que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido que deva prevalecer o princípio da justiça sobre a legalidade estrita relativa ao princípio da especialização dos exercícios são situações em que da não observância desse princípio não advém qualquer prejuízo para o erário público, nomeadamente situações em que o sujeito passivo não obteve vantagens ou até foi prejudicado pelo erro que praticou na aplicação do princípio da especialização dos exercícios. Em situações desse tipo, não se pode justificar que seja infligida ao contribuinte uma maior oneração fiscal, em nome de um respeito fetichista e acrítico pela observância da legalidade e à margem de qualquer perspectiva de prossecução do interesse público, que é o dever primacial a observar pela Administração Pública, como decorre do n.º 1 do artigo 266.º da CRP.»”

 

No presente caso:

Temos erros de final de ano – serviços prestado em dezembro de 2017 e faturado em 2018, com essa indicação; em ambos os exercícios se registaram elevados prejuízos fiscais. E com a ação inspetiva (2022), o contribuinte toma consciência da violação da especialização – passou-lhe o tema à época; não há complexidade na interpretação e aplicação da regra da especialização; além disso, atualmente já se esgotaram os meios graciosos de reposição da especialização (retirar o custo de 2018 e colocá-lo em 2017); e não há qualquer transferência de resultados entre exercícios, já que em ambos houve prejuízos fiscais – e por isso não há qualquer poupança ou vantagem fiscal (tirando a vantagem acessória, que não se valoriza, de ganho de um ano no reporte dos prejuízos).

Por estes motivos, anula-se a liquidação adicional de IRC, neste segmento, com a aceitação da violação formal da especialização de exercícios, por primazia e em obediência aos princípios da justiça e da capacidade contributiva.

 

V.6 Correção do registo da dívida a um sócio e tributação autónoma (art. 88.º, n.º 1, do CIRC)

Como ficou provado, em 2018, a A... corrigiu o saldo devedor para com a sócia / fornecedora B... em 529.075,10€ por contrapartida de “resultados transitados” (e não de gastos ou despesas dedutíveis em IRC) – repondo, com isso, o valor correto da dívida da Requerente perante a B... .

A AT mobiliza o instituto da tributação autónoma do art. 88.º do CIRC para justificar a liquidação adicional: “1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 % [60%, havendo prejuízos fiscais, como no caso – cfr. n.º 14], sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.” 

O pressuposto deste artigo é estarmos em presença de despesas (ou gastos) não documentados: rúbricas negativas do rendimento, inscritas na demonstração de resultados, e que não tenham a mínima documentação ou justificação – e não se saiba quem é o titular do proveito correlativo, o qual, com toda a certeza, não o levou sequer a tributação. Daí o racional desta tributação autónoma. Se não é possível tributar o rendimento positivo (por desconhecimento do titular do rendimento, porque não documentado), então a forma prática de almejar esse resultado é obter o valor do imposto, no seio do contribuinte pagador, que registou o gasto, via tributação autónoma; funcionado, este instituo, também, como um dissuasor desta prática, atenta a sobre tributação do contribuinte, por desconsideração fiscal do gasto e tributação autónoma.

No caso dos autos, não pode haver qualquer tributação autónoma, por um elemento literal e um argumento teleológico.

Elemento literal: a lei fala de despesas não documentadas. E no caso dos autos não existem quaisquer despesas ou gastos. Não são assim registados em termos contabilísticos e fiscais. Temos antes uma correção de saldos, para reposição da verdade, via rúbrica do Balanço de resultados transitados que não originou qualquer despesa contabilística e fiscal (mas uma variação patrimonial, sem efeitos fiscais).

Ora, não se pode chegar a um resultado interpretativo que não tenha o mínimo de apoio na letra da lei; devendo-se escolher a solução que tem maior ressonância com a letra da lei: a tributação autónoma só se aplica a despesas e nunca a correção de saldos, via resultados transitados – em que, por definição, não existe qualquer despesa contabilística e fiscal.

Elemento teleológico: com a tributação autónoma em causa visa-se obter a receita, apesar do desconhecimento da identidade de quem obteve o proveito (que, por isso, não a tributará, com toda a probabilidade). O sistema reconhece a confidencialidade do titular, mas não abdica da receita, via tributação do agente pagador, de forma autónoma. Nada disso ocorre na situação dos autos: os titulares são conhecidos; os movimentos contabilísticos são claros – enão existe qualquer movimento de proveito/despesa mas de acerto de saldos.

Por conseguinte, anula-se a liquidação adicional de IRC, neste segmento.

 

V.7. Dedução do IVA em relação aos gastos desconsiderados em sede do art. 23.º, n.º 1 e 4, do IRC (ponto 3.3 e 3.4 supra)

Se, em sede de IRC, se considerou que os gastos são fiscalmente dedutíveis, porque assumem natureza estritamente profissional (ponto V.3) e estão devidamente documentados (ponto V.4), então em sede de IVA – terão as mesmas consequências, a saber:

a) Existência de direito à dedução do IVA em relação aos gastos referidos no ponto V.3 supra: são totalmente empresariais, com absoluta destinação aos interesses societários da Requerente – e assim sendo, preenchem-se os requisitos do art. 19.º e 20.º do CIVA. Se um gasto é empresarial, o IVA nele contido é dedutível, segundo as regras legais e o princípio da neutralidade do imposto.

b) do mesmo modo, os gastos estão devidamente documentados, no sentido da aceitação da dedução do IVA neles contido, nos termos e na esteira do decidido no Acórdão do TJUE C-516/14, de 15/9 – e devidamente explicado e escalpelizado no ponto V.4 desta sentença, para onde se remete e a seguir se sintetiza.

Apesar das faturas em causa não preencherem as exigências legais e formais da legislação do IVA, em face dos seus sucintos e lacónicos descritivos, a consequência não é a imediata não aceitação da dedução do IVA nelas contido; aceita-se a dedução do IVA – consequência do direito à dedução e neutralidade do imposto – porque perante as provas dos autos, se consegue comprovar a verificação do cumprimento dos requisitos substantivos da dedução do IVA. E é isso o que se provou nos presentes autos: ocorreram os fornecimentos e serviços externos – de empresas terceiras contratadas pela Requerente para lhe prestarem serviços – tal e como identificadas nas faturas, ainda que incompletas formalmente.

Assim, anulam-se na totalidade as liquidações do IVA, nas partes contestadas pela Requerente.

 

 DECISÃO

De harmonia com todo o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente a presente ação arbitral, em todos os temas contestados pela Requerente,
  2. com a consequente anulação da liquidação adicional de IRC de 2018 e liquidações de IVA de 2018 (de janeiro a dezembro), todas devidamente identificadas no capítulo 1 desta Sentença (relatório) 

 

 Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 569.107,20.

 

Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8.568,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

Notifique-se

Porto, 20 de Abril de 2023

 

Os Árbitros
 

 

Rui Duarte Morais (Presidente)

 

 

Tomás Cantista Tavares (relator)

 

 

 

 

Fernando José da Costa Matos

 

 

 

 

 

 

(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)