DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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No dia 23 de junho de 2022, a sociedade A..., LDA, com o número de identificação de pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-... BAGUIM, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade parcial dos atos de liquidação de Imposto sobre veículos (ISV), relativos ao período de 13/07/2021 a 25/11/2021, no valor total de € 17.750,82 (dezassete mil, setecentos e cinquenta euros e oitenta e dois cêntimos), que aqui se identificam:
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Para fundamentar o seu pedido a Requerente, alega, em síntese, a ilegalidade do artigo 11.º do Código do Imposto sobre os Veículos (CISV), norma que sustenta a liquidação, por violação do artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (UE), pelo que requer a correção da liquidação do ISV, na parte do imposto que incide sobre a componente ambiental, devendo ser restituído o montante de € 1.563,29, acrescido dos juros indemnizatórios.
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No dia 23-06-2021, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 11-08-2021, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 31-08-2022.
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Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
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Notificada para a Resposta, a Requerida alega que a liquidação de ISV, ao aplicar o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional em vigor e com o direito comunitário; por outro lado, constituindo a instância arbitral um contencioso de mera anulação, não lhe compete pronunciar-se sobre a restituição de valores/montantes por conta dessa anulação; acrescenta ainda que o pedido de juros indemnizatórios só deverá contar-se, com exceção da liquidação de ISV constante da DAV n.º 2021/..., de 25/11/2021, passado um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa o que ocorreu em 04-04-2022, nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, al. c) da LGT.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir decisão.
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
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Foram apresentadas na Alfândega do Freixieiro, por transmissão eletrónica de dados, as Declarações Aduaneira de Veículos (DAV) relativas a 15 viaturas supra identificadas, relativas ao período de 13/07/2021 a 25/11/2021, e que constam do Processo Administrativo junto ao processo, e cujos conteúdos se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
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O cálculo do ISV foi feito, nos termos descritos no campo R das DAV’s apresentadas.
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A Requerente procedeu ao respetivo pagamento.
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A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa relativa à liquidação de ISV dos DAV supra identificados, pedido indeferido por despacho do diretor da Alfândega do Freixieiro em 28-04-2022.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
B. DO DIREITO
Da violação do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
A Requerente solicita a anulação parcial da liquidação e reembolso do imposto pago em excesso, com fundamento na violação do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Ora, o artigo estabelece que “Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.”
Acrescenta ainda que nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções.”
Analisemos, por isso, o regime legal para aferir da eventual violação do princípio da não discriminação ínsito no artigo 110.º do TFUE, nomeadamente no que concerne à componente ambiental, expressamente alegada pela Requerente a título subsidiário.
A questão da conformidade com o direito comunitário das normas nacionais relativas à tributação de veículos usados “importados” de outro Estado Membro já foi objeto de apreciação no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Na vigência do revogado imposto automóvel, o Tribunal considerou que “A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.” (Ac. de 09-03-1995, proc. C-345/03, Nunes Tadeu).
No mesmo sentido, em 2001, o TJUE declarou que “A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional” (Ac. de 22-02-2001, proc. C-393/98, Gomes Valente).
Relativamente aos critérios, incluindo a componente ambiental, o Tribunal de Justiça da UE considerou também que: “No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objetivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.
Contudo, o imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados‑Membros do que os produtos nacionais similares.”
(Ac. de 05-10-2006, processos pensos C-290/05 e C-33/05, Akos Nadasdi).
Sobre o sistema nacional de tributação automóvel, nomeadamente a norma do artigo 11.º do CISV, na redação em vigor até à alteração introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, o Tribunal de Justiça decidiu:
“26 Para efeitos da aplicação do artigo 110.° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida).
27 No caso em apreço, o artigo 11.°, n.° 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.
28 Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.
29 Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.° 78).
30 Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.
31 Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.° TFUE”. Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que “1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE.”(Ac. de 16-06-2016, proc. C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa).
Em consequência, pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, foi alterada a redação do citado artigo 11.º, passando considerar-se a desvalorização do veículo a que a mesma se refere mas tão-somente quanto à componente cilindrada, ficando agora, de todo, excluída qualquer redução no tocante à componente ambiental.
Deste modo, é claro que a tributação automóvel pode assentar em critérios objetivos, como sejam o tipo de motor, a cilindrada e, inclusivamente, uma classificação assente em considerações ambientais. Porém, quando aplicados a veículos usados importados de outros Estados-Membros, o montante de imposto cobrado não pode exceder o montante que se contém no valor residual de veículos usados similares já registados no Estado-Membro de importação. É, pois, constante a orientação do Tribunal de Justiça, no que concerne à interpretação daquele artigo 110.º quando referido a tributação automóvel: um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados‑Membros do que os produtos nacionais similares.
A desconformidade do direito nacional, na sua atual redação, com a norma comunitária conduziu já ao início de procedimento de infração. Conforme comunicado de 24-01-2019, a Comissão Europeia deu início a ação judicial contra o Estado Português “por este Estado-Membro não ter em conta a componente ambiental do imposto de matrícula aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros para fins de depreciação. A Comissão considera que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE, na medida em que os veículos usados importados de outros Estados-Membros são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado português, uma vez que a sua depreciação não é plenamente tida em conta. Se Portugal não atuar no prazo de dois meses, a Comissão poderá enviar um parecer fundamentado sobre esta matéria às autoridades portuguesas.”
Não o tendo feito, em comunicado de 27 de novembro de 2019, a Comissão refere:
A Comissão decidiu hoje enviar um parecer fundamentado a Portugal por tributar veículos usados importados de outros Estados-Membros mais do que os automóveis usados adquiridos no mercado português. Atualmente, a legislação portuguesa não tem plenamente em conta a depreciação de veículos importados de outros Estados-Membros, pelo que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE. O Tribunal de Justiça Europeu tinha já concluído, em 16 de junho de 2016 (Acórdão C-200/15), que uma versão anterior deste imposto português era contrária ao direito da UE. Se Portugal não atuar no prazo de um mês, a Comissão pode decidir remeter o processo para o Tribunal de Justiça da UE.
Na sequência deste entendimento, a Comissão Europeia deu início, em 23/04/2020, junto do TJUE, a uma ação por incumprimento contra o Estado português - processo n.º C-169/20.
No dia 2 de setembro de 2020, o TJUE veio a proferir decisão no processo C-169/20, tendo concluído que:
“Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”
O artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, (Lei do Orçamento para 2021), veio estabelecer nova redação para o nº 1, do artigo 11º, do CISV, que passou a ter o seguinte teor:
1 -O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados -Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente:
TABELA D
Componente cilindrada
Tempo de uso
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Percentagem de redução
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Até 1 ano..............................
|
10
|
Mais de 1 a 2 anos ............. .
|
20
|
Mais de 2 a 3 anos ...............
|
28
|
Mais de 3 a 4 anos ...............
|
35
|
Mais de 4 a 5 anos ...............
|
43
|
Mais de 5 a 6 anos ...............
|
52
|
Mais de 6 a 7 anos ...............
|
60
|
Mais de 7 a 8 anos ...............
|
65
|
Mais de 8 a 9 anos ...............
|
70
|
Mais de 9 a 10 anos..............
|
75
|
Mais de 10 anos ...................
|
80
|
Componente ambiental
Tempo de uso
|
Percentagem de redução
|
Até 2 anos.............................
|
10
|
Mais de 2 a 4 anos ............... .
|
20
|
Mais de 4 a 6 anos ...............
|
28
|
Mais de 6 a 7 anos ...............
|
35
|
Mais de 7 a 9 anos ...............
|
43
|
Mais de 9 a 10 anos .............
|
52
|
Mais de 10 a 12 anos ...........
|
60
|
Mais de 12 a 13 anos ...........
|
65
|
Mais de 13 a 14 anos............
|
70
|
Mais de 14 a 15 anos ...........
|
75
|
Mais de 15 anos……………
|
80
|
Conforme se explica no douto Parecer do Ministério Público proferido no âmbito do Processo 84/22.OBALSB, do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Recurso de Uniformização de Jurisprudência, interposto pela AT da decisão proferida no processo 607/2021-T do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD):
1.10 Ora, pese embora na redação do no 1 do artigo 11.º do CISV, introduzida pela Lei n.º 75- B/2020, de 31 de dezembro, se tenha incluído uma taxa de desvalorização em função da componente ambiental, que não era prevista na anterior redação, que só previa a desvalorização na componente da cilindrada, essa desvalorização obedece a critérios distintos (num caso atende à “desvalorização comercial do veiculo” e no outro à “vida útil média remanescente do veículo”), o que implica a utilização de taxas de desvalorização distintas, conforme se infere da Tabela D do artigo 11o, o que em nosso entender e salvo melhor opinião dá origem a diferente carga do imposto residual no preço de venda de um veiculo usado com as mesmas caraterísticas, conforme seja proveniente doutro estado membro ou vendido no mercado interno.
1.11 Na verdade, enquanto na venda de um veículo usado já anteriormente registado no território nacional se atende apenas à desvalorização comercial do veículo, em cujo preço de venda está incorporado o valor residual do imposto suportado aquando da 1a matricula (admissão ao consumo), na venda de um veículo usado proveniente de outro estado membro o cálculo do imposto que onera o valor do veículo é feito em função de duas taxas de desvalorização distintas, sendo a relativa à componente ambiental inferior à da componente de cilindrada, o que, em principio, penaliza esta última transação (por implicar uma menor desvalorização do valor do veículo na componente ambiental, o que implica maior matéria tributável).
1.12 Ou seja, no primeiro caso o valor residual do imposto que onera o preço do veículo é formado apenas em função da desvalorização comercial do veículo, enquanto no segundo caso o mesmo é formado em função da desvalorização do veículo e da sua “vida útil remanescente”, o que origina que, em razão da menor taxa de desvalorização deste último critério, uma maior carga tributária no segundo caso.
1.13 E nessa medida o imposto (ISV) assim calculado provoca (continua a provocar) um efeito discriminatório sobre os veículos usados provenientes de outros estados membros da União Europeia, o que, salvo melhor opinião, viola o disposto no artigo 110.º do TFUE.
No mesmo sentido, refere-se nas decisões arbitrais relativas aos processos 372/2021-T, de 28 de março de 2022, e 343/2022-T:
Porém, tendo em consideração o supra exposto e à luz do acórdão citado é apodítico que o artigo 11.º do CISV, na redação conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, continua a ser incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE porquanto no cálculo do imposto considera apenas parcialmente a redução inerente à desvalorização respeitante à componente ambiental e, nessa medida, não eliminou integralmente a discriminação inerente à solução legal anterior.
Deste modo, continuou a legislação nacional a não “ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação” e continuando a não ser idónea a “evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE”.
(…) é, pois, entendimento deste tribunal arbitral que a atual redação não tem em consideração a depreciação real do veículo, quando aplica distintas taxas de redução, conforme se está na componente de cilindrada ou na competente ambiental. Sendo a viatura a mesma, não se justifica a existência de diferentes depreciações, por efeito da imposição de objetivos ambientais, porque dessa forma se gera, uma vez mais, um fator discriminativo, ainda que de menor dimensão, por continuar a exceder o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.”
(…)
“E a situação analisada pelo referido acórdão, ainda à luz da anterior redação do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, não se alterou integralmente com a nova redação, uma vez que não se pode deixar de considerar que não é tomada em consideração em toda a sua amplitude a desvalorização real destes veículos, pelo que não estando garantido que os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, tal implica a violação do artigo 110.º TFUE.
Assim, face ao princípio do primado do Direito da União Europeia, os atos de liquidação em causa, não considerando a redução na vertente relativa à componente ambiental de ISV de modo a que não ultrapasse “o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação” encontram-se feridos de ilegalidade, não podendo deixar de ser parcialmente anulados, no que respeita ao excesso de tributação decorrente daquela ausência de redução, nos termos peticionados pelo Requerente.
Acompanhando, sem reservas, estas decisões, considera este Tribunal que, face ao sentido da decisão proferida no Acórdão do TJUE, de 02/09/2021, no âmbito do Proc. C-169/20, não se suscitam dúvidas quanto a incompatibilidade com o direito comunitário da norma aplicada à liquidação impugnada, concluindo-se pela desnecessidade de reenvio prejudicial.
Nestes termos, julga-se incompatível com o direito comunitário a norma do artigo 11.º do Código do ISV, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional.
No presente caso, as liquidações do ISV sobre viaturas provenientes de outro Estado Membro da União Europeia, efetuadas com observância da norma do artigo 11.º do CISV, ao aplicar taxas de redução distintas à componente cilindrada e à componente ambiental, continua a discriminar o montante do imposto incorporado nestas viaturas face ao valor dos impostos dos veículos automóveis usados semelhantes matriculados no território nacional.
Consequentemente, os atos de liquidação em causa, encontram-se feridos de ilegalidade devendo ser anulados, restringindo-se a ilegalidade apenas àquele excesso de tributação, pelo que o ato de liquidação objeto de impugnação deve ser parcialmente anulado.
Do direito a juros indemnizatórios
A par da anulação dos atos de liquidação, e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, a Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.".
A al. c) do n.º 3 estabelece ainda que são devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
Conforme jurisprudência do STA, os juros indemnizatórios só são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa, e não desde a data do pagamento do imposto (Vide a título exemplificativo o Acórdão do STA, de 27-02-2019, relativo ao Proc. 022/18.5BALSB, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, atendendo a que o pedido de revisão foi apresentado em 04-04-2022, só haverá lugar ao pagamento de juros indemnizatórios a partir de 04-04-2023.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
Julgar procedente o pedido arbitral formulado quanto às liquidações impugnadas e, em consequência, determinar a anulação parcial das liquidações de ISV identificadas no pedido arbitral, ordenando-se o reembolso à Requerente da quantia paga em excesso, no valor de € 1.563,29;
-
Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, a partir de 04-04-2023.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 1.563,29, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifiquem-se as partes, bem como o Ministério Público para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 17.º do RJAT.
Lisboa, 24 de abril de 2023
O Árbitro
(Amândio Silva)