Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 419/2022-T
Data da decisão: 2023-03-28  IRS  
Valor do pedido: € 36.070,16
Tema: IRS - mais- valias provenientes da alienação de partes sociais e outros valores mobiliários - indícios fundados de divergência entre o valor real da transmissão e o valor declarado- ónus de prova.
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Sumário:

1-A faculdade de a Administração Tributária (AT)  proceder à determinação do valor real  da transmissão de partes sociais  e outros valores mobiliários nos termos da Secção VII do Capítulo II  do CIRS  quando possa haver  divergência com o valor declarado  não depende da prova de simulação do montante da contraprestação, bastando-lhe a invocação  de indícios fundados dessa divergência.

2-Para efeitos do nº 1 do art. 52º do CIRS, por valor real da transmissão a comparar com o valor declarado, em caso de entidades em relações especiais, deve ser considerado o preço que teria sido contratado, aceite ou praticado entre entidades  independentes, não fossem essas relações especiais.

3- São suficientes, em princípio,  para fundamentar a aplicação dessa norma  a existência dessas relações especiais  e a contraprestação da alienação  de participações sociais  ser manifestamente inferior ao valor dos ativos transmitidos, apurado com base no último balanço, corrigido  pelo EBIDTA.

DECISÃO ARBITRAL

                                                          

I – Relatório

 

  1. Requerentes

A..., nº de  identificação fiscal...,  doravante designado de Primeiro Requerente , e B...,  nº de identificação fiscal ..., doravante designada de segunda Requerente, casados em regime de comunhão de adquiridos , residentes do  Rua  ... nº ..., ..., ... ..., freguesia ..., concelho de Leiria.

 

 

  1. Requerida

Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

 

Tramitação e constituição do Tribunal Arbitral

 

3.1. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 13/7/22 e aceite no mesmo dia, nos termos regulamentares aplicáveis, tendo os Requerentes optado pela não designação de árbitro.

 

3.2. A 20/7/2022, o pedido seria  notificado aos  Requerentes.

 

3.2.A 25/ 7/2022, a Requerida indicou como  seus  representantes processuais  os juristas C... e D... .

 

3.3. Despacho de 2/9/2022 do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou árbitro singular no presente processo arbitral  o jurista António de Barros Lima Guerreiro.

 

3.4 A 20/9/2022; o Presidente do CAAD, nos termos do nº 7 do art. 11º do RJAT, comunicaria às partes a constituição do Tribunal Arbitral;

 

3.5. A 23/9/2022,o Tribunal Arbitral, nos termos do art. 17º do RJAT, notificaria a diretora-geral  da AT para apresentar Resposta no prazo de 30 dias, se entender necessário, requerer prova adicional, se entender necessário, requerer prova adicional e, dentro desse prazo, remeter o processo administrativo (PA);

 

3.6. A 26/10/2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, na qual referiria que, tendo a Requerente oferecido para demonstrar os factos em  que se baseia a sua pretensão, uma testemunha, não referiu na PI os pontos concretos sobre os quais esta devesse depor,  e fez juntar aos autos o processo administrativo (PA);

 

3.7- A  27/10/2022, o CAAD notificaria a Requerente da Resposta da AT e da junção do PA.

 

3.8. A 8/11/2022, o Tribunal Arbitral notificaria as partes para enviarem em “word” as peças apresentadas.

 

3.9. Esse despacho seria notificado às partes a 9/11/2022.

 

3.10- A 10/11/2022, a Requerida satisfaria o pedido.

 

3.11.A 27/2/2023 , o Tribunal Arbitral notificaria a Requerente para, no prazo de 10 dias,  indicar com precisão os factos enumerados na  PI sobre os quais testemunha dever depor a fim de se poder aferir do seu interesse para o conhecimento da causa.

 

3.12-  A 2/3/2023, o Tribunal Arbitral insistiria junto da Requerente para que  cumprisse a solicitação  referida a 3.8.

 

3.13- A 3/3/2023,  a Requerente indicaria os nº s 51,54, 56,59 e 68  a 76 da PI para objeto do depoimento da testemunha apresentada, cuja atividade profissional, morada e identificação fiscal continuaria a não indicar.

 

3.14. Indicaria também a pretensão de essa testemunha, residente no concelho de Leiria, ser ouvida pelo CAAD via WEBEX, a partir do seu domicílio profissional, nesse concelho.

 

3.15. A 6/3/2023, o Tribunal Arbitral decidiu não ouvir a testemunha indicada, com fundamento na não invocação pelos Requerentes de qualquer relação com os factos objeto do pedido de pronúncia arbitral da qual pudesse resultar o interesse do seu depoimento e os nºs da PI indicados na PI  se reportarem ao mero enquadramento jurídico- tributário de fatos   não  objeto de qualquer divergência relevante entre as partes, incidindo apenas esta sobre o direito aplicável. tendo marcado a data da decisão para até 30/4/2022.

 

3.16- Também nesse dia, a Requerida manifestaria a sua oposição  à diligência pretendida  pela Requerente nos seguintes termos:

 

 “Em articulação com o Centro de Arbitragem Administrativa, foi estabelecido um protocolo que permite a prestação de depoimento por meios de comunicação à distância através da plataforma Cisco Webex Meetings.

Contudo, importa salientar, no que à prova testemunhal concerne, o protocolo estabelecido entre o CAAD e a Autoridade Tributária e Aduaneira, admite a inquirição da(s) testemunha(s) / depoimento de parte por videoconferência nas instalações do CAAD em Lisboa ou no Porto, assistidas por um colaborador do CAAD, de modo a que seja garantida a fiabilidade dos depoimentos. Sendo esta a regra a valer.

O protocolo firmado não abrange a inquirição de testemunhas/depoimento de parte em outro local que não, como se disse, as instalações do CAAD, pelo que, não será de admitir a inquirição da testemunha nos moldes determinados pelo tribunal, mesmo utilizando a plataforma Cisco Webex Meetings”

 

3.17. Acresce, seguindo  ainda a Requerida , que essa audição no local de trabalho , a ser admitida, não garante a fiabilidade do depoimento, uma vez a testemunha em tais circunstâncias poder ser instruída por terceiros.

 

4- Pedido

 

Os Requerentes pretendem  a anulação da liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS )  nº  2022..., do período de tributação de 2018, no montante de € 35.588,01, mais juros compensatórios   tudo num valor total de € 36.070,16 , resultante da determinação oficiosa efetuada pela AT   do valor da  venda à E..., Ldª, número de  pessoa  coletiva ..., sediada à ... nº ... ... Concelho de Leiria doravante designada de E..., de 4.463  ações  nominativas detidas  pelos Requerentes  na sociedade F..., SA, número de identificação de pessoa coletiva ..., sediada à Rua ..., ..., ..., concelho de Loures ,doravante designada  por F..., invocando para esse efeito,  nos termos dos nº 1 e 2, alínea b) , do art. 52º, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares(CIRS), indícios  fundados de o valor real da transmissão ser superior  ao declarado de € 5.000,00 em € 77.611,39.

 

5.a) Posição da Requerente.

 

Segundo os Requerentes, caberia á administração fiscal demonstrar a divergência entre o valor real e o valor declarado da transmissão,  que originou a liquidação, através da prova  da simulação do preço.

 

Ora, o  valor real  da transmissão no caso concreto poderia ser conhecido sem especial dificuldade pela administração fiscal  através do exame da contabilidade  da sociedade compradora   e da própria documentação de suporte, ao qual , no entanto,  não procedeu no âmbito do procedimento inspetivo que originou a liquidação impugnada .

 

Tal  elementos  de suporte não foram também solicitados aos  Requerentes nessa ação inspetiva, ainda que, se fosse o caso,  com recurso ao regime especial de acesso às operações e documentos bancários regulado no art. 63º- B da LGT.

 

Citam também os Requerentes , em benefício da sua posição, a seguinte pronúncia de André Salgados Matos, in “Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares Anotado”, Lisboa , 1999, pgs. 323, de acordo com a qual  “O nº 1 do art. 50º do CIRS exige que a DGCI  considere  fundadamente que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão. Ou seja, não  basta que o valor declarado seja inverosímil , improvável ou pouco usual , tem de existir prova que não é o valor real . E também,, salvo nos casos do nº 2, de existir prova  de qual  é o valor real”  A esse art. 50º corresponde o atual   art. 52º  desse Código”.

 

Também de acordo com esse autor, a determinação oficiosa do valor da transmissão depende  da prévia prova, em momento anterior do procedimento inspetivo,  da simulação  do preço traduzida  na divergência entre a  a declaração negocial e a vontade real dos declarante, com o intuito de ludibriar a Fazenda Nacional  que, no presente caso, a administração fiscal não teria logrado alcançar, já que se teria limitado a confrontar o valor declarado de transmissão com o valor das partes sociais  vendidas registado no balanço da vendedora,  sem mais  diligências investigatórias.

 

Juntaria também a Requerida a Decisão Arbitral nº 812/2019- T,  na qual decalca essencialmente a sua argumentação que sustentaria  , estribando-se no  autor citado,  o referido nº 1 do art. 52º do CIRS obrigar a administração fiscal, mesmo que o valor de alienação dos valores mobiliários  declarado fosse  “inverosímil, improvável ou pouco usual “ a provar a simulação do preço, ainda que neste último  caso não tivesse de provar o valor real   da transmissão,  já que este é sempre  determinado nos termos do nº 2 dessa norma legal.

 

Acresceria ainda  que, mesmo que a existência de divergência se encontrasse  provada  nos termos do nº 1 do art. 52º do CIRS e fosse aplicável o nº 2 dessa norma legal, , o mero recurso ao "último balanço" para se afirmar o "preço real da venda", teria sempre  que ser explicado, designadamente em relação ao método que foi utilizado para avaliar a sociedade e, consequentemente, determinar o valor das ações. Segundo  Ana Maria Rodrigues in “Avaliação de Empresas e Métodos de Avaliação”, apresentação feita no Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados em 3 de junho de 2011 e consultável na internet , "Como a contabilidade se baseia num conjunto de critérios de mensuração/valorimetria que não são, no essencial, o valor de mercado, o balanço contabilístico não pode ser usado como base para determinar o valor de troca do capital próprio”

 

Por outro lado, através da Ordem de Serviço nº 2019..., cuja autoria a Requerente não identificou, teria sido aberto procedimento inspetivo dirigido  aos contribuintes G... e H... relativo às mais- valias mobiliárias auferidas no exercício de 2017 relativas à do mesmo número de ações nominativas  pelo mesmo preço relativas a participações sociais detidas na F..., que não terminou com quaisquer  correções desfavoráveis ao contribuinte, relativas a  rendimentos da categoria G do IRS, pelo que a manutenção da presente liquidação traduzir-se-ia em um tratamento desigual de contribuintes colocados nas mesmas circunstâncias.

 

A tributação em causa violaria igualmente os princípios constitucionais da igualdade, generalidade, capacidade contributiva e justiça material.

 

Finalmente, a Requerente solicita o pagamento de juros indemnizatórios  nos termos do nº 1 do art. 43º da LGT e o pagamento de custas de parte e procuradoria condignas.

 

5.b) Posição da Requerida.

Refere a Requerida, em primeiro lugar , à pretensão dos Requerentes opor-se  a doutrina  do acórdão do TCA Norte, no proc. 00357/18.7BEVIS, de 20/05/2020, de acordo com o qual, citando,  “V - A norma do n.º 1 do art.º 52.º do CIRS basta-se com a demonstração de que pode existir  divergência entre os valores declarado e real”

 

Para esse jurisprudência, o facto de as ações terem um valor muito superior ao valor nominal constituiria   fundamento suficiente para  a AT considerar  o valor real poder  não corresponder ao valor declarado e,  assim,   corrigir  o valor de realização das mas- valias  ao abrigo do art.º 52.º do CIRS.

 

Neste mesmo sentido, citaria também a Requerida a declaração de voto de vencido exarada por um dos árbitros que participou na elaboração da decisão proferida no âmbito do processo n.º 812/2019 – T do  CAAD  invocado pelos Requerentes em abono da sua pretensão, de acordo com a qual , para poder aplicar o art.  52º do CIRS, basta à AT  invocar  fundadamente a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, não exigindo a lei que tenha de  provar   que  o valor declarado da transmissão não é o seu valor real.

 

Assim, seria  suficiente para a aplicação do art. 52º uma possível divergência entre o valor real e o valor declarado da transmissão e não uma divergência efetiva.

 

A interpretação ab-rogante desse art. 52º carece de qualquer suporte legal e esvaziaria essa norma de qualquer alcance efetivo, uma vez que a presunção consagrada no seu n 1 deixaria de ter qualquer campo de aplicação. 

 

Refere finalmente a Requerida que,  nas correções que originaram a liquidação impugnada,  a inspeção tributária não se baseou apenas no balanço  da F..., como resulta da seguinte passagem do Relatório de Inspeção Tributária (RIT):

 

“(…) importa referir que o art.º 52.º n.º 1 do CIRS não define como pode ou deve ser fundamentada a existência de divergências”(…)

“Conforme se pode verificar no ponto III.1.1.1.4.2, a convicção da AT da existência de divergência entre o valor declarado e o valor real de transmissão, não foi apenas fundamentada com base no balanço. Foi efetuada, entre outros aspetos, uma análise patrimonial da sociedade e uma análise do valor de mercado da sociedade. Foi ainda apurado um facto muito relevante, a existência de relações especiais entre a sociedade adquirente das ações e o sujeito passivo. (…)

-Os factos constantes do ponto III.1.1.1.4.2 permitem à AT e, no nosso entendimento, a qualquer entidade que analise os mesmos de forma independente, concluir que o valor real de transmissão não terá sido o declarado;

- Como já foi referido, a AT não tem de apurar o valor real de transmissão para que fundamente as referidas dúvidas;

- Com o devido respeito pelas decisões anexadas pelo sujeito passivo, as mesmas são aplicáveis aos casos concretos;

- A AT não se limitou a analisar o balanço da sociedade. Fez uma análise económica e financeira da sociedade e fundamentou devidamente as dúvidas existentes, conforme exige o art.º 52.º n.º 1”

 

 

6-a)Factos Provados

 

1-A 26/12/2018, o Primeiro Requerente vendeu à  E... pelo valor de € 5.000, 00 4.463  ações nominativas representativas  de 1,785 % do capital social de € 250.000,00 da F..., titulado por 250.000 ações,  adquiridas a 31/5/2003, tendo o valor declarado por ação sido de € 1,12, ligeiramente superior ao seu valor nominal de € 1,00.

2- A sociedade compradora seria representada no ato de venda, entre outros, pelo primeiro Requerente, que, á data, integrava também os seus órgãos sociais, como sócio- gerente.

3-O preço da venda seria , de acordo com a cláusula 3ª do  contrato aquisitivo, pago em uma única prestação através de transferência para a conta bancária IBAN PT ... .

4- Como evidenciam as declarações modelo 4 em poder da administração fiscal,   apresentadas nos termos do nº 1 do art. 138º do  Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares(CIRS),  os outros sócios- gerentes da compradora, incluindo aqueles que igualmente a representaram no ato da compra,   venderam a esta igual quantidade de ações, ao mesmo preço 

5- Para controlo das mais  - valias declaradas pelos Requerentes no Quadro 9 do Anexo G da Declaração modelo 3 de IRS, com base no valor da transmissão deduzido do valor de aquisição,  a Ordem de Serviço 012020..., de 15/3/2020, determinaria a realização de um procedimento inspetivo interno e parcial aos Requerentes, que iniciaria a 13/8/2021 e terminaria a 23/2/2022, tendo as suas conclusões sido sancionadas por despacho de 31/3/2022, da autoria do Chefe de Equipa dos Serviços de Inspeção de Finanças da Direção de Finanças do distrito de Leiria por delegação do diretor distrital.

6- Nesse  procedimento inspetivo, os Requerentes foram notificados para o exercício do direito de audição a  31/1/2022, que exerceram a 24/2/2022.

7- Essa ação inspetiva determinaria uma correção ao rendimento líquido da categoria G inicialmente declarado  de – 489,67 no valor de € 78.108,06, com a consequente fixação do rendimento líquido dessa categoria em  € 77.611,39, com o fundamento de o preço de venda declarado ser inferior ao valor de balanço das partes sociais vendidas  apurado no  final do exercício anterior ao da venda, de € 83.101,06, ao qual, por terem decorrido mais de 24 meses entre as datas de aquisição e alienação,  deveria ser deduzido o valor  de aquisição atualizado em função da aplicação do coeficiente  de desvalorização monetária  de 1,23 % para € 5.89,67

8- Em consequência, o rendimento coletável  global do agregado familiar dos Requerentes,  inicialmente apurado  de € 14.495,00 seria acrescido para €  122.556,39.

9- A 31/12/2017, o capital próprio inscrito no balanço da E... era de € 4.654.640,22, apurado segundo uma avaliação por uma ótica de mercado (EBITDA,  resultado antes de impostos + amortizações e depreciações do exercício + provisões e perdas por imparidades do exercício ), mais de 18 vezes o valor nominal das ações.

10- O EBITDA de 2017  teria sido de € 1.857969,60),  conforme a  Informação Empresarial Simplificada (IES)  da responsabilidade do contabilista certificado  da E..., correspondente     a um valor por ação de € 18,62 e a  uma margem operacional aproximada de 12 %.

11-Caso as ações tivessem tido avaliadas de acordo com a fórmula prevista no art. 15º do Código do Imposto de Selo(CIS), o valor por ação seria   superior, € 67,16.

12- O Relatório de Inspeção Tributária(RIT), notificado aos Requerentes a 5/4/2022,  consideraria para efeitos da instauração do competente procedimento contra-ordenacional preenchidos os pressupostos da infração tributária negligente a que se referem o nº  2 do art. 24º e o nº 1 do art. 119º do Regime Geral das Infrações  Tributárias (RGIT).

 

6.b)-Fundamentação da matéria de facto provada  e Factos não Provados.

 

Os factos foram considerados provados a partir  dos documentos juntos ao processo pelos Requerentes e do PA.

Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.

Não foi ouvida a testemunha apresentada pelos Requerentes, não apenas em virtude da inviabilidade da sua audição no local de trabalho, via WEBEX, como pretenderam, como por não haver qualquer controvérsia sobre os factos invocados pela Requerente, que incide apenas  sobre o seu enquadramento jurídico- tributário.

 

7- Fundamentação de direito.

 

Dispõe o art. 52º do CIRS, na redação em vigor  no período a que se reportam os factos objeto do presente pedido de pronúncia arbitral:

 

“ 1- Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.


2 - Se a divergência referida no nº anterior  recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:


a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;


b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.


3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço”.

 

Assim, a aplicação dessa norma  implica  a possibilidade  de divergência entre o valor real e o valor declarado com base em critérios objetivos,  pressuposto de aplicação do método indireto previsto no art. 52º no nº 1  e ,uma vez verificado  esse pressuposto, a determinação do valor  da transmissão, de acordo com os critérios referidos no nº 2.

 

Tais momentos distintos de aplicação do art. 52º devem ser refletidos na fundamentação da decisão das correções a efetuar pela inspeção tributária, sob pena de tal fundamentação poder ser considerada deficiente ou incompleta.

 

No presente processo arbitral, está em causa, em primeiro lugar,  a legalidade  da aplicação desse nº 1 do art. 52º no primeiro desses momentos.

 

Para os Requerentes, a administração fiscal estaria obrigada a comprovar uma efetiva divergência entre o valor de realização  e o valor declarado da transmissão.

 

Para a Requerida, basta à administração fiscal  comprovar a possibilidade, revelada por indício ou indícios fundados ,  de  divergência entre o valor real e o valor declarado da transmissão ,  pressuposto de aplicação do método indireto referido nessa norma legal.

 

Sustentam os Requerentes  que, ainda que o valor declarado fosse inverosímil , improvável ou pouco usual, a administração fiscal continuaria a ter de provar o valor declarado não ser o valor  real. Citam, como se referiu, além da Decisão Arbitral nº 812/2019-T, André Salgado Matos, in “Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares Anotado”, Lisboa , 1999, pgs. 323.

 

Refere, com efeito,  a Decisão Arbitral  812/2019- T, referindo-se expressamente ao texto citado de André Salgado Matos:” Adere-se a esta interpretação da norma do artigo 52.º do Código do IRS. A saber: sempre que a questão nele tratada (divergência de valores) se suscite em matéria de valor de realização, numa operação suscetível de gerar mais-valias, a primeira questão a resolver é a que coloca o n.º 1, isto é, fundamentar que existe, ou indiciar fundadamente que existe, uma não coincidência entre o valor declarado e o valor real da alienação. Dando-se por assente a divergência[1], passa-se, então, à segunda fase do procedimento de determinação do valor de realização nos termos e com os métodos que forem considerados apropriados, exceto se se tratar de situações que se integrem nas hipóteses previstas nos n.ºs 2 e 3, das quais, e só nesta segunda fase do procedimento, resultará um valor de realização presumido, caso se não tenha chegado ao valor real de alienação, nos termos do n.º 1”. Não é suficiente , assim, para essa Decisão Arbitral a mera possibilidade de existência de uma divergência entre o valor real e o valor declarado da transmissão, sendo necessária a prova, ainda que indiciária , da simulação.

 

A mesma posição, de que ainda que o valor declarado seja inverosímil , improvável ou pouco usual, a administração fiscal continuaria a ter de provar o valor declarado não ser o valor  real. seria acolhida sem qualquer reserva  pela Decisões  Arbitrais n ºs  735/2020- T , 5/2022-T e 144/2022- T.

 

Esta posição não é aceitável, já que ignora o teor literal do nº 1 do art. 52º: “ Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de….”.

 

Pressupõe, por outro lado, que o legislador do art. 52º do CIRS não soube de todo exprimir o seu  pensamento.

 

Nos termos do nº 3 do art. 9º do Código Civil(CC), na fixação do sentido e alcance da lei , o intérprete presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Ora, a interpretação  a que os Requerentes procedem do  nº 1 do art. 52º do CIRS resulta em que, na mesma norma, o legislador consagrou um princípio geral, o da determinação oficiosa do rendimento coletável  em caso de indícios fundados   de  o valor declarado corresponder ao  valor das mais- valias realizadas  e a sua total ab-rogação.

 

 Com efeito, segundo a doutrina e jurisprudência em que os Requerentes se apoiam, a administração fiscal apenas poderia determinar o valor real das mais- valias realizadas  em caso de prova da simulação, o que, além de desafiar a letra da norma, em especial o sentido e alcance da expressão “possa existir”[2]  não é razoável.

 

No mesmo impulso legislativo, o Governo teria criado uma presunção e eliminado toda e qualquer possibilidade de essa presunção se aplicar, já que a administração fiscal teria sempre de demonstrar previamente o facto presumido. Essa norma não passaria, assim, de um tão vazio como inútil exercício de estilo.

 

À luz dessa perspetiva , o referido art. 52º não teria qualquer interesse , por redundante.

 

A quando da aprovação da redação inicial desse art.,  pelo art. 1º do DL nº 442-A/88, de 30/11,  já era, aliás, entendimento predominante do STA, desde então  inalterado, que, se os elementos existentes no processo mostrassem uma dúvida irredutível quanto à existência ou não existência do ato tributário deve a liquidação ser anulada( Acórdão do STA de 16/1/80, in Apêndice ao Diário da República de 312/10/84, aliás desenvolvidamente comentado por Saldanha Sanches in, “ O ónus da prova no processo tributário”, Cadernos Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa , 1987, pgs. 126 e sgs.).

 

Tal entendimento seria expressamente  acolhido no art. 121º do então Código de Processo Tributário(CPT, aprovado pelo art. 1º do DL nº 154/91, de 23/4) e corresponde, ainda que com as adaptações impostas pela natureza da matéria, à regra geral sobre o ónus de prova do n º 1 do art. 342º do Código Civil(CC).

 

Tal princípio consta agora,  do nº 1 do art. 74º da LGT, de acordo com o qual a prova dos factos constitutivos dos  direitos da administração tributária recai sobre esta.

 

Esse nº 1 do art. 74º da LGT não prejudica, no entanto,   , nos termos da parte final do nº 1 do art. 1º da LGT , a legislação especial em que se inclui o nº 1 do art. 52º do CIRS.

 

Assim, ou a regra do nº 1 do art. 52º do CIRS visa a inversão do ónus de prova, no sentido da sua transferência da administração fiscal para o contribuinte de IRS, ou essa intervenção legislativa é desnecessária e, no limite,   absurda.

 

É de referir, aliás,  a inexistência de qualquer unanimidade na jurisprudência do CAAD sobre a interpretação  invocada pelas Requerentes, já que esta seria  contrariada ainda que, num caso ou noutro com fundamentos não coincidentes, pelas Decisões Arbitrais nºs 323/2020-T, 463/2021-T, 156/2021-T, 744/2021-T e 411/2022- T.

 

Acórdão da 1ª Secção do STA de 22/6/2022, 0121/14.BELRA, de acordo com o qual ,  a I). nos termos do nº 1 do art. 52º do CIRS, a administração fiscal tem o ónus de fundamentar a  divergências entre o valor declarado e o valor real da transmissão, mas não essas divergências., a II- cumprindo esse ónus, fica legitimada para corrigir o valor da transmissão  aplicando o critério legal único , previsto no nº 2 do art. 52º do CIRS e a III-  a administração fiscal não cumpre esse ónus se, para fundamentar a divergência de valores, se limita a contrapor ao valor declarado na transmissão, aquele que resulta do último balanço.   

 

Na prática , segundo esse Acórdão,  entendimento  oposto  conduziria  a que a administração fiscal  estivesse sempre legitimada a corrigir a corrigir o valor da transmissão da quota uma vez verificada  a divergência de valores, com o valor resultante do último balanço, recaindo sobre o sujeito passivo o ónus da prova do valor real.

 

Esse Acórdão  é  passível das mesmas  críticas que, a nosso ver, suscitam  as Decisões  Arbitrais n ºs  735/2020- T , 5/2022-T e 144/2022- T.

 

Tal Acórdão contém, aliás,  uma acutilante  Declaração de Voto , na linha da efetuada na Decisão Arbitral nº 862- 2019-T,  e da posição tomada pelo representante do  Ministério Público nesse processo , que  se passa a reproduzir:

“É hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.9, do C.Civil; artº.11, da LGT; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e  Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. Edição , 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pág.181 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Diireito Fiscal, II, Cadernos de  C.T.Fiscal, nº.174, 1996, pág.363 e sgs. .).

E recorde-se que o intérprete e aplicador da lei deve resumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, como também que soube  exprimir o seu pensamento em termos adequados. Pelo que, na exegese da norma não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de  correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Portanto, o limite da interpretação encontra-se na letra ou no texto da norma, o qual condiciona todos os vetores de  interpretação reconhecidos pela doutrina, como sejam os elementos histórico, sistemático ou teleológico (cfr. nºs 2 e 3 do  artº.9º do C.Civil).

O nº.1 do preceito sob exegese prevê expressamente "Quando a Direcção-Geral dos Impostos considere fundadamente que possa existir” Ora, este trecho da norma, de forma ma alguma pode levar a que o intérprete conclua que a Fazenda Pública, para fundamentar a existência de valores no que se refere à determinação do valor  da alienação de  quota social não cotada em  bolsa, não possa utilizar como indício o valor resultante do último balanço, critério este  consagrado pelo legislador nas alínea b)   e c)  do mesmo normativo.

Levando em consideração esta  perspetiva interpretativa da norma, dado que, no caso concreto, as quotas sociais foram alienadas pelo seu valor nominal, tal situação consubstancia fundamento válido para a A. Fiscal invocar  a existência da transmissão, assim fazendo funcionar o nº.1 do preceito. Pelo que, contrariamente ao deliberado, por maioria, no presente acórdão, a Fazenda Pública cumpriu o ónus que sobre si impendia de fundamentar  a divergência de valores. Por outras palavras, a A. Fiscal pode fundar a prova da divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, na diferença de valores entreo nominal e o resultante do último balanço, nada na lei (cfr.artº.52, do C.I.R.S., na versão em vigor em   2007) impedindo a utilização de tal espécie de indício.

Cumprido o disposto no nº 1 do artº.52 do CIRS, passava a onerar os impugnantes/recorrentes a produção de prova de que a cessão de  quotas, pelo respetivo valor nominal, corresponde ao preço efetivamente praticado na transação, sem prejuízo da aplicação da presunção prevista no nº.3 do preceito, factualidade que aqueles não lograram produzir.

Com estes pressupostos, pugnava pelo não provimento do recurso e a  manutenção da sentença recorrida, com as legais consequências”.

É ser  doutrina do Acórdão de 22/6/2022, ainda que  o valor declarado for inverosímil , improvável ou pouco usual,  a administração fiscal dever provar a divergência entre o valor real e valor declarado.

Também é verdade, no entanto,  que tal doutrina não tem qualquer apoio na letra da lei.

Seria deste modo derrogado  por via jurisprudencial, dada a ausência da indispensável  efetividade,  do método indireto autónomo  do nº 1 do art. 52º do CIRS, dada a impossibilidade em que seria colocada a  administração fiscal de fundamentar adequadamente os seus pressupostos da sua aplicação.

A divergência entre o valor de balanço das participações sociais, para mais corrigido pelo EBITDA , como  aconteceu  na situação sobre a qual incidiu esse Acórdão do STA, sem que este tivesse sido sensível a esse facto,  .é, por natureza ,  um indício fundado, embora não seja uma prova, de que o valor realizado da transmissão  foi superior ao declarado, que obviamente o contribuinte pode pôr em causa, no procedimento inspetivo, no momento do exercício do direito de audição ou em reclamação graciosa ou impugnação judicial, como aliás admite a jurisprudência maioritária do CAAD( ver, por todas a Decisão Arbitral n 156/2021).

De outro modo , seria por natureza ilegítimo o recurso a presunções naturais, entendidas estas como toda  a ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, em resultado da livre apreciação da prova, para fundamentar a decisão de aplicação de métodos indiretos. 

Tal posição coloca  indiretamente em causa a própria  possibilidade de aplicação de tais métodos: no limite,  esta só seria possível se se demonstrasse previamente o valor declarado ser inferior ao valor de realização, o que é justamente o propósito da tributação por métodos diretos-  

Essa visão das garantias dos contribuintes é anacrónica, não tendo qualquer eco nos modernos sistemas fiscais que não têm qualquer relutância em  servir-se de presunções,, sempre que necessário. Tal recurso a presunções naturais, adotado a nosso ver, no nº 1 do art. 52º do CIRS, é, com efeito, a única forma de respeitar a coerência do sistema de tributação das mais- valias mobiliárias e o próprio princípio da igualdade.

É certo que. segundo esse Acórdão de 22/6/2022, entendimento oposto conduziria a  que a administração fiscal  estivesse sempre legitimada a corrigir a corrigir o valor da transmissão da quota uma vez verificada  a divergência de valores, com o valor resultante do último balanço, recaindo sobre o sujeito passivo o ónus da prova do valor real.

Não se vê, no entanto, que essa legitimação cause qualquer escândalo. Chocante seria a impossibilidade pura e simples de utilização do método indireto do art. 52º do CIRS, como se essa norma não integrasse o atual sistema de tributação das mais- valias-

Esse argumento apenas seria atendível , assim.,  caso a presunção do nº 2 do art.  não pudesse ser  ilidida por prova direta realizada pelo sujeito passivo, de acordo com a regra geral patenteada no artº  73.º da LGT.

 

Com efeito, , ainda que o resultado obtido através de processos objetivos de mensuração do valor do ativo seja fidedigno (e a menos que solidamente justificado por outros valores constitucionais), por princípio tem de ser possível ao sujeito passivo demonstrar que o ganho efetivo incorporado no seu património foi inferior ao que a Lei presuma, sob pena de rutura com o princípio da capacidade contributiva, que necessariamente reclama por uma ligação consistente entre os parâmetros da tributação e a situação objetiva do contribuinte, como admitiria a propósito da tributação das mais- valias imobiliárias, os  Acórdão nºs  211/2017  e 488/2021 do Tribunal Constitucional. O Acórdão nº 100/2022 do Tribunal Constitucional admitiria a aplicação desse princípio ao método indireto regulado no art. 51º do CIRS, cuja aplicação está em causa nos presentes autos. Tal possibilidade, reconhecida pela totalidade das Decisões Arbitrais citadas, é expressamente admitida a II) do Acórdão do STA de 22/6/2022, mas, mesmo assim , este consideraria o facto de o valor declarado ser manifestamente inferior ao valor do  balanço não ser suficiente para fundamentar a aplicação do método indireto do n 1 do art. 51º, do CIRS.

 

Tal jurisprudência, um Acórdão votado favoravelmente por dois conselheiros do STA, no entanto, ainda está muito longe de  ser considerada consolidada, devendo prevalecer, em minha opinião, a jurisprudência maioritária, ainda que não unânime, do CAAD.   

                         

Resulta, aliás.  dos autos que  a administração fiscal , para fundamentar a aplicação do referido método indireto, não se limitou a contrapor ao valor declarado o  valor de balanço, como vem evidenciado a II.1.1.1.1.4.2. do RIT, mas antes fundamentou adequadamente as correções realizadas à luz do critério adotado nas Decisões Arbitrais nº s nºs 323/2020-T, 463/2021-T, 156/2021-T, 744/2021-T e 411/2022- T, com vista ao apuramento do valor de mercado das ações nominativas transmitidas. 

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É sabido,  com efeito, , como chama a atenção a Decisão Arbitral nº 156/2021- T, que o balanço e a demonstração de resultados são  os documentos de síntese que melhor refletem a situação da empresa e a formação de lucros, proporcionando informação sobre a empresa, sem prejuízo, no entanto, dos aperfeiçoamentos introduzidos a essa informação através da aplicação do método EBITDA.

 

Segundo os Requerentes, invocando, como se referiu, Ana Maria Rodrigues. a correção promovida pela administração fiscal devia ter sido efetuada pelo valor de balanço excluído de várias componentes económico- financeiras.

 

É facto, no entanto, que, com respeito do entendimento seguido por essa autora, a correção impugnada, tendo sido efetuada com base no valor do balanço, não foi efetuada com base exclusivamente no valor do balanço.

 

Com efeito,  ao tomar  por base não  apenas o balanço contabilístico, mas o  EBITDA  que reflete a capacidade da empresa gerar riqueza em exercícios futuros, a inspeção tributária visou apurar o valor de mercado das respetivas participações sociais, uma vez , através do EBITDA, poder abstrair de elementos económicos e financeiros com expressão na contabilidade mas que, em princípio, não influenciam o valor normal dos bens.

 

Assim, carece manifestamente de pertinência a oposição das conclusões do referido trabalho de Ana Maria Rodrigues às conclusões do RIT.

 

Não se vislumbra nenhuma razão válida, à luz da letra e do espírito da lei,  para que o valor do balanço quando manifestamente  superior, 5, 20 8 20 vezes mais,  ao valor nominal das ações não  possa  diretamente desencadear a  aplicação do método indireto regulado no art. 52º do CIRS,  com a consequente inversão do ónus de prova que, de outro modo, caberia à administração fiscal,  embora mantendo sempre o contribuinte a possibilidade de demonstrar o valor real da transmissão, a quando do direito de audição ou em sede de reclamação graciosa ou impugnação judicial do ato tributário.

 

Ainda , no entanto, que a doutrina do controverso Acórdão de 22/6/2022 fosse integralmente aplicada ao presente processo arbitral, não haveria fundamento para anulação do ato impugnado.

 

Seria inválido apenas o primeiro argumento invocado no RIT, mas não o segundo argumento, bastante  por si só para fundamentar a liquidação impugnada: as óbvias relações especiais entre o Primeiro Requerente e a sociedade compradora, da qual é um dos sócios gerentes com outros nas mesmas condições.

 

Segundo o Facto Provado nº 4, aliás, os outros sócios- gerentes da compradora, incluindo aqueles que igualmente a representaram no ato da compra,   venderam a esta igual quantidade de ações, ao mesmo preço. 

 

Tais relações especiais, com  enquadramento na alínea c) do nº 4 do art. 63º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) ,por terem lugar uma sociedade e um dos membros do seu órgão de gerência  são suficientes para justificar a aplicação do método indireto do nº 1 do art. 52º do CIRS , como explicaria o Acórdão do TCA Sul  de 20/05/2020 citado pela Requerida. Nesse caso, a divergência entre o valor declarado e o valor das mais- valias realizadas resulta de estas serem  apuradas, dada a intervenção no negócio de um sujeito passivo de IRC, através do método previsto no  nº 1 do art. 63º

 

Com efeito, a sociedade compradora, controlada, em conjunto com as outras pessoais com as quais foi realizada negócio idêntico, estava obrigada a respeitar no negócio realizado o  disposto nesse norma legal, de acordo com a qual , nas operações comerciais, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras,  efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não, a IRC, com a qual esteja em relações especiais, devem ser contratados , aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados , aceites e praticados entre entidades independentes em situações comparáveis.

 

Em caso de relações especiais, o valor da transmissão é sempre o valor do mercado e não a contraprestação fixada pelas partes.

 

Devia, assim, a sociedade compradora  ter adquirido, nos termos da alínea a) do nº 3 daquele art.,  as participações em causa pelo método do preço comparável do mercado e registado  o preço dessa aquisição, assim determinado, na sua contabilidade.

 

Nessa medida, não se vislumbra como os Requerentes  pudessem elidir a presunção, ainda que meramente “júris tantum”, do nº 2 do art. 63º, através da demonstração do pagamento de um preço que a sociedade compradora não podia legalmente ter adotado e que, uma vez  corrigido pela administração fiscal, implicaria necessariamente na esfera dos Requerentes o ajustamento previsto no nº 12 daquele art. 63º., de montante idêntico àquele que foi efetuado nas liquidações impugnadas.

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É certo que não se provou que a administração fiscal tivesse  corrigido  o valor declarado na esfera da sociedade compradora, nos termos do nº 1 do art 63º do CIRC, que de outro modo, não  propiciando uma menos – valia, ainda que  potencial, na esfera desta. Caso assim  tenha acontecido, já não é possível o ajustamento desse nº 12 do art. 63º.

 

O mecanismo do referido  nº 1 do art. 52º do CIRS é, no entanto, distinto do ajustamento previsto no nº 12 do art. 63º do CIRC, podendo ser aplicado independentemente de tal ajustamento.

 

Em  caso de relações especiais, o valor de realização das mais- valias é apurado obrigatoriamente com base no valor de mercado, não sendo elidível a presunção do nº 2 do art. 52º.

 

Essa obrigatoriedade não viola o princípio da capacidade contributiva que, neste caso , deve ser aferida em função do conjunto de entidades em relações especiais e não entidade a entidade relacionada.

 

A alegação do incumprimento de uma obrigação legal, no caso a prevista no nº 1 do art. 63º, que o Primeiro Requerente, sócio gerente da sociedade vendedora e simultaneamente vendedor das ações não pode afastar   a aplicabilidade do método indireto previsto nessa norma do CIRS.

 

´É de notar que, ao contrário do que parece pressupor os Requerentes, pode não ser  suficiente para a elisão da presunção do nº 2 do art. 52º a prova da efetiva realização da transferência bancária para  a conta indicada pelas partes  , no caso , a conta bancária IBAN PT ... . É de referir que tal prova não foi apresentada pelos Requerentes, nem o acesso  a esse elemento, bem a outras movimentações bancárias dos Requerentes, depende do recurso ao mecanismo de derrogatório do sigilo bancário previsto no  art. 63- B da LGT, mas apenas do consentimento do interessado.

 

Tal elisão depende, como se referiu, da adequada justificação da diferença entre o preço declarado e o  valor real da transmissão, que afaste a existência da uma simulação de preço ou demonstre a  inexistência de relações especiais entre a sociedade compradora e o primeiro Requerente, que, no entanto, não foram contestadas pelos autores da ação.   Havendo relações especiais, o valor de realização é sempre o fixado no nº 2 do art. 52º do CIRS: no caso, o valor de mercado apurado com base no balanço. Tal presunção não é definitivamente elidível pelo simples facto de o legislador ter definido imperativamente o valor real da transmissão-

Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

-Manter a liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS )  nº  2022..., do período de tributação de 2018, no valor total de € 36.070,16 , resultante da determinação oficiosa efetuada pela AT do valor da  venda à E... de 4.463  ações  nominativas detidas  pelos Requerentes  na sociedade F... em € 77.611,39.

- Em conformidade, rejeitar  o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI - VALOR

Fixa-se o valor do processo em €  36.070,16 . nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 97º-A do CPPT, aplicável ex vi as alíneas a) e b) do art.º 29º do RJAT e do n.º 2 do art.º 3º do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII – CUSTAS

Fixa-se em €  1.836,00,00 (quarenta e oito mil euros)  o valor das custas, a cargo da Requerente, nos termos dos nºs 1 e 5 do art. 4º  I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa.

 

Lisboa, 28/3/2023

 

O árbitro singular

 

 

(António de Barros Lima Guerreiro)



[1] No sentido, portanto, de provada

[2] Com efeito, ao contrário do que afirma André Salgado Matos, ob. cit., pg. 323., o nº 1 do atual  art. 52º  do  CIRS  não  exige que “a DGCI considere fundadamente que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”.  Basta-lhe que essa divergência  possa existir.