Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD), Prof. Doutor Diogo Feio e Dr. António de Barros Lima Guerreiro, designados pela Requerente e pela Requerida, respectivamente, para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 20-12-2022, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., SP, RL, pessoa coletiva n.º ... com sede na ... n.º ..., ..., ...-... Lisboa (adiante abreviadamente designada por “A...”), em coligação com B..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, (adiante abreviadamente designada “B...”) e, bem assim, com os fundos de capital de risco geridos por aquela entidade:
C..., contribuinte n.º..., D..., contribuinte n.º..., E...– FCR, contribuinte n.º ..., F...– FCR, contribuinte n.º..., G...– FCR, contribuinte n.º ... (adiante conjuntamente designados por “FUNDOS DE CAPITAL DE RISCO” ou simplesmente “FUNDOS”),
todos conjuntamente referidos como “Requerentes”, vieram, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral, tendo em vista a anulação de actos de autoliquidação de IVA praticados pela A... em facturas que se reflectiram nas declarações periódicas de IVA n.ºs de IVA n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e n.º ..., bem como do indeferimento tácito da reclamação graciosa que delas apresentou.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 10-08-2022.
Os signatários comunicaram a aceitação do exercício das funções no prazo aplicável.
Em 30-11-2022, as Partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1 alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 20-12-2022.
A AT apresentou Resposta, em que suscitou excepções de ineptidão da petição inicial e caducidade do direito de acção e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Em 22-02-2023, as Requerentes apresentaram resposta às excepções e requereram a junção de documentos.
Em 23-02-2023, realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que a Autoridade Tributária e Aduaneira poderia pronunciar-se, até 06-03-2022, sobre os documentos juntos pelas Requerentes e que as Partes poderiam apresentar alegações até 16-03-2023.
A Autoridade Tributária e Aduaneira pronunciou-se sobre os documentos referidos.
Posteriormente, as Partes apresentaram alegações.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não há nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos;
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A B... é uma sociedade de capital de risco regularmente constituída ao abrigo do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado (Documento n.º 22 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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A Requerente gere diversos fundos de investimento, entre os quais os fundos de capital de risco C..., contribuinte n.º..., D..., FUNDO DE CAPITAL DE RISCO, contribuinte n.º..., E...– FCR, contribuinte n.º ..., F... – FCR, contribuinte n.º..., e G...– FCR (documentos n.ºs 23 a 26 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
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O objectivo central destes organismos de investimento colectivo é agregar o investimento dos seus participantes e potenciar a sua rentabilização através do investimento (reunido) em activos com as caraterísticas determinadas na política de investimento definidas em cada um dos seus Regulamentos de Gestão, que constam dos documentos n.ºs 23 a 26, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos;
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Os Regulamentos de Gestão dos FUNDOS determinam que compete à B... administrar aqueles organismos de investimento coletivo, praticando, em geral, todos os atos e operações convenientes à sua boa administração (documentos n.ºs 23 a 26);
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Para cumprir as suas obrigações, a B... recorre a serviços de terceiros, designadamente serviços jurídicos (depoimento da testemunha H...);
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Entre 2019 e 2021, os FUNDOS adquiriram à A... serviços jurídicos, relativamente aos quais foram emitidas por esta as facturas que constam dos documentos n.ºs 28 a 56 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, pelos quais foi autoliquidado IVA à taxa de 23%, no valor global de € 39.170,64;
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Nos períodos de 2019 a 2021 os serviços jurídicos foram prestados aos FUNDOS pela A... (depoimento da testemunha H... e facturas que constam dos documento n.ºs 28 a 56);
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Os serviços jurídicos prestados pela A... basearam-se, quanto ao C..., na proposta que consta do documento n.º 1 junto com a resposta às excepções, cujo teor se dá como reproduzido;
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Entre os serviços prestados incluem-se serviços de execução do regulamento dos fundos de capital de risco, preparação, criação e constituição dos fundos, colaboração na organização de assembleias de participantes e temas fiscais específicos do regime dos FUNDOS, inclusivamente relacionados com o Imposto do Selo relativo aos serviços prestados pela B... (depoimento da testemunha H...);
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A factura n.º FACC.2019.00649, que consta do documento n.º 53 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, reporta-se a serviços prestados respeitantes à constituição do Fundo D...;
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Na sequência da emissão das facturas, a A... apresentou as declarações periódicas com os seguintes números, que constam dos documentos 4 a 21 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos:
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Em 10-01-2022, a A... e a B... deduziram a reclamação graciosa que consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A reclamação graciosa não foi decidida até 08-08-2022, data em que as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
2.2.1. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no depoimento da testemunha H... .
A testemunha é directora financeira da B... desde 2019 e aparentou depor com intenção (isenção?) e com conhecimento dos factos dados como provados com base no seu depoimento.
2.2.2. Não se provou que todos os serviços jurídicos a que se referem as facturas referidas nos autos estejam relacionados com a gestão dos fundos.
Relativamente à factura n.º FACC.2019.00649, que consta do documento n.º 53 junto com o pedido de pronúncia arbitral, relativa a honorários por serviços prestados respeitantes à constituição do Fundo D..., deve considerar-se provada, como base em acordo das Partes, o seu «nexo com a específica gestão dos fundos» (o que é aceite pela Autoridade Tributária e Aduaneira no artigo 12.º da sua Resposta).
Quanto à factura n.º FACC.2019.00711, que consta do documento n.º 28 junto com o pedido de pronúncia arbitral, inclui serviços prestados ao FUNDO C..., relativos a alteração o Regulamento de Gestão e Assembleia Geral, que têm aquele nexo (como também aceita a Autoridade Tributária e Aduaneira, no artigo 12.º da Resposta), mas não se prova que os serviços de «assessoria corrente» se reportem à gestão daquele fundo.
A testemunha referiu não saber todos os serviços jurídicos prestados pela A... e no documento n.º 1 junto com a resposta às excepções, faz-se referência que a avença se reporta a «assessoria em todos os temas jurídicos correntes, nomeadamente fiscais e regulatórios», o que não permite concluir que abranja apenas assuntos relacionados com a administração e gestão do fundo C... (único dos FUNDOS referidos nos autos a que se reporta o documento).
Por outro lado, não foi apresentado qualquer documento comprovativo dos concretos serviços prestados no âmbito da avença, quer dos referidos nas facturas emitidas relativamente a serviços não abrangidos por aquela.
Nomeadamente, trata-se de serviços que incluem necessariamente a produção de documentos, pelo que não se pode considerar provada a sua natureza apenas com base em prova testemunhal.
Como pertinentemente diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, na sua Resposta, «os projectos, due diligences, reclamações e demais serviços jurídicos, certamente que, todos eles, sem excepção, terão dado origem à produção de documentos que, nesta sede, poderiam ter sido oferecidos como prova documental e, de forma ainda mais flagrante, o mesmo se dirá, para as “despesas documentadas”». Mas, apesar de confrontadas com esta posição da Autoridade Tributária e Aduaneira, as Requerentes não apresentaram essa documentação, com excepção de um email em que se divisa um acordo quanto aos termos da avença.
Neste contexto, o Tribunal Arbitral ficou com a convicção que entre os serviços prestados pela A... se incluirão serviços relacionados com a administração e gestão dos FUNDOS, o que se afigura credível, à luz das regras da experiência que devem ser aplicadas na apreciação dos factos [artigo 16.º, alínea e], do RJAT], pois é normal que essa actividade careça de informação e serviços jurídicos. Mas não se considera provado que todos os serviços jurídicos a que se referem as facturas emitidas pela A... se reportem a serviços desses tipos.
2.2.3. Não se provou que tenha sido contratada com a A... a transferência para esta ou delegação nesta de funções no âmbito da gestão dos FUNDOS. A testemunha H... afirmou não ser do seu conhecimento que tal tenha sucedido e não foi apresentada qualquer prova nesse sentido.
2.2.4. Não se provou que as facturas referidas nos autos tenham sido rectificadas, designadamente quanto ao IVA nelas incluído.
Na verdade, a Autoridade Tributária e Aduaneira afirma que que as facturas não foram corrigidas (artigo 55.º da Resposta) e não foi sequer alegado que tenha havido qualquer correcção das facturas nem foi apresentada qualquer prova de que isso tivesse sucedido.
3. Excepções
3.1. Excepção de ineptidão da petição inicial
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a ineptidão da petição inicial, que tem potencialidade para implicar a nulidade de todo o processo [artigos 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT e 186.º, n.º 1, do CPC, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT].
No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira entende que ocorre ineptidão, à face da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, por entender que, no pedido de pronúncia arbitral, «a Requerente apesar de referir que pretende a anulação das liquidações decorrentes das Declarações Periódicas de Imposto que identificou, não identifica quais sejam essas liquidações, cuja anulação requer».
As Requerentes responderam dizendo, em suma, que não impugna actos liquidação, mas sim os de autoliquidação consubstanciados nas declarações periódicas que identificam.
Nos termos do artigo 186.º do CPC, a ineptidão da petição inicial pode ocorrer quando
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
A Autoridade Tributária e Aduaneira não indica em qual destas situações entende enquadrar-se a falta de indicação de liquidações que refere, mas apenas se afigura potencialmente aplicável, a alínea a), pois é a única que se reporta a «faltas».
O pedido que as Requerentes formulam é de «DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE E CONSEQUENTE ANULAÇÃO DOS ATOS DE AUTOLIQUIDAÇÃO DE IVA ACIMA IDENTIFICADOS E DA (PRESUMIDA) DECISÃO DE INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA QUE OS MANTEVE NA ORDEM JURÍDICA».
Ao contrário do que diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, em nenhum ponto do pedido de pronúncia arbitral as Requerentes fazem referência à «anulação das liquidações decorrentes das Declarações Periódicas de Imposto».
Por outro lado, resulta dos artigos 14.º a 18.º do pedido de pronúncia arbitral que as Requerentes autoliquidaram IVA nas facturas que indicam no artigo 14.º e incluíram os valores dessas autoliquidações nas respectivas declarações periódicas referentes aos períodos de Novembro de 2019 a Junho de 2021 e pretendem anulação desses actos de autoliquidação, que são os contidos em cada uma das facturas, de que as declarações periódicas serão actos consequentes.
Assim, apesar da formulação do pedido não ser absolutamente clara, não falta o pedido e ele é inteligível, pelo que não ocorre a invocada ineptidão.
Para além disso, constata-se que a Autoridade Tributária e Aduaneira se apercebeu que as ilegalidades que são fundamento do pedido se reportam às autoliquidações efectuadas nas facturas, como se vê pelo artigo 53.º da Resposta em que refere:
«Se a Requerente entende que o não deveria ter liquidado IVA nas facturas, ou seja, que liquidou indevidamente IVA nas facturas, então, deveria proceder à correcção das facturas (sempre e quando esteja em tempo para o fazer) e, nos termos previstos no art.º 78.º do CIVA, regularizado a seu favor o imposto, uma vez que cumprido o procedimento para tal ali previsto».
Por isso, verificando-se que Autoridade Tributária e Aduaneira interpretou bem o pedido de pronúncia arbitral, a arguição de ineptidão não poderia ser julgada procedente, por força do disposto no artigo 186.º, n.º 3, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Pelo exposto, improcede a arguição de ineptidão da petição inicial.
3.2. Caducidade do direito de acção
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que ocorre a caducidade do direito de acção pelas seguintes razões, em suma:
– a Requerente apresentou a Reclamação Graciosa, cujo indeferimento tácito ora impugna, a 10-01-2022;
– não apresenta as liquidações que constituem o objecto mediato dos presentes autos, apenas juntado as Declarações periódicas de imposto;
– as Declarações Periódicas de imposto em questão (de periodicidade mensal), têm início no período novembro de 2019, apresentada em janeiro de 2020;
– não faz prova a Requerente de que a Reclamação Graciosa cuja anulação requer, haja sido apresentada (a 10-01-2022), dentro dos 120 dias subsequentes ao termo do prazo para o pagamento voluntário das liquidações impugnadas;
As Requerentes defendem em suma, que não impugnam liquidações, mas sim autoliquidações e que o prazo para apresentar reclamação graciosa é de dois anos e não 120 dias.
Como referem as Requerentes o objecto do pedido de anulação são as autoliquidações de IVA e não quaisquer liquidações.
Por isso, o prazo para apresentar reclamação graciosa é de dois anos após a apresentação da declaração, nos termos do artigo 131.º, n.º 1, do CPPT.
A declaração mais antiga foi apresentada em 09-01-2020 (documento n.º 2) e a reclamação graciosa foi apresentada em 10-01-2022.
O dia 09-01-2022, em que se completaram dois anos a contar da apresentação da declaração, foi um Domingo, pelo que, por força do disposto no artigo 20.º, n.º 1, do CPPT, o termo do prazo para apresentar reclamação graciosa se transferiu para o primeiro dia útil seguinte, que é o dia 10-01-2022.
Assim, tem de se concluir que a reclamação graciosa foi apresentada tempestivamente em relação à autoliquidação mais antiga e, consequentemente, também o foi em relação às outras autoliquidações mais recentes.
Por outro lado, sendo a reclamação graciosa apresentada em 10-01-2022, a presunção de indeferimento tácito formou-se em 10-05-2022, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT.
O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 08-08-2022, pelo que a apresentação ocorreu dentro do prazo de 90 dias a contar do indeferimento tácito, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, com remissão para a alínea d), do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.
Pelo exposto, improcede a excepção de caducidade do direito de acção.
4. Matéria de direito
A A... emitiu facturas relativas a serviços jurídicos prestados aos FUNDOS representados pela B..., com autoliquidação de IVA à taxa normal, tendo apresentado as respectivas declarações periódicas que reflectiram os valores autoliquidados.
Posteriormente, a A... e a B... (esta em representação dos FUNDOS referidos) apresentaram uma reclamação graciosa das autoliquidações defendendo, em suma, que deveria ter sido aplicada a isenção prevista no artigo 9.º, n.º 27), alínea g) do CIVA, que prevê isenção de IVA para «a administração ou gestão de fundos de investimento», «por se tratar de serviços de gestão de fundos de investimento externalizados, i.e., serviços de gestão que - muito embora sejam prestados por terceiros e não diretamente pela sociedade gestora - formam um conjunto autónomo e têm um nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatárias para a gestão da carteira e/ou a gestão dos FUNDOS».
A reclamação graciosa não foi decidida no prazo legal, na sequência do que as Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral, em que defendem que as autoliquidações devem ser anuladas por não aplicação daquela isenção.
4.1. Posições das Partes
As Requerentes defendem o seguinte, em suma:
– os Regulamentos de Gestão dos FUNDOS DE INVESTIMENTO determinam que compete à B... administrar aqueles organismos de investimento coletivo, praticando, em geral, todos os atos e operações convenientes à sua boa administração;
– para prestar esses serviços de administração a B... tem de recorrer a serviços jurídicos especializados, que forma adquiridos à A...;
– os Organismos de Investimento Coletivo e, em particular, dos Fundos de Capital de Risco não se regem, em nenhuma área do Direito, pela legislação geral, mas sempre por legislação especial, particularmente complexa;
– a A... não está a aplicar conhecimentos e meios gerais, que pudessem ser utilizados em benefício de outras entidades – está a prestar um conjunto de serviços específicos (determinados pelos regimes especiais), que só podem ser aproveitados pelos FUNDOS DE INVESTIMENTO;
– os serviços prestados pela A... são especificamente preparados e são essenciais para a gestão adequada dos FUNDOS e das suas carteiras de ativos e para as decisões económicas e jurídicas subjacentes a essa gestão;
– o artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, e o artigo 9.º, 27), alínea g), do Código do IVA isentam de imposto as operações de gestão de fundos de investimento;
– o TJUE entende que, por força do princípio da neutralidade, o investimento indireto (feito pelos investidores através dos organismos de investimento coletivo) não deve ser tributado de forma diferente do investimento direto (feito diretamente pelos investidores nos ativos);
– a isenção abrange tanto os serviços prestados aos Fundos pelas sociedades que se dedicam diretamente à sua gestão (como é o caso dos serviços prestados pela B... aos FUNDOS), como aos serviços externalizados, prestados por terceiros contratados para cumprirem parte das obrigações de gestão dos fundos de investimento (como é o caso dos serviços prestados pela A...);
– todos os serviços de gestão e administração da carteira dos fundos de investimento e todos os serviços de gestão e administração dos próprios fundos — em especial os que estão cobertos por obrigações legais e/ou contratuais - são operações isentas;
– os serviços prestados por um gestor terceiro devem formar um conjunto distinto, apreciado de modo global, que tenha por efeito preencher as funções específicas e essenciais da gestão de fundos comuns de investimento”;
– a isenção de IVA aplicável à gestão de fundos de investimento pode aplicar-se a serviços externalizados por uma sociedade gestora a uma entidade terceira desde que os serviços prestados pela entidade terceira formem uma parte distinta e sejam específicos e essenciais para a gestão dos fundos de investimento”;
– a isenção abrange as tarefas fiscais que consistem em assegurar que os rendimentos dos fundos obtidos pelos participantes são tributados de acordo com a lei nacional” (Processo C-58/20);
– os serviços que cumprem funções específicas e essenciais da gestão dos fundos de investimento não são apenas os serviços de escolha e aquisição/transmissão de ativos, ”mas também as prestações de administração e de contabilidade, como o cálculo do montante dos rendimentos e do preço das unidades de participação ou ações do fundo, as avaliações de ativos, a contabilidade, a elaboração de declarações para a distribuição dos rendimentos, a prestação de informações e o fornecimento de documentação para os efeitos de prestação periódica de contas, de declarações de impostos, de estatística e de IVA, bem como a elaboração de previsões de rendimentos”;
– para serem serviços isentos de IVA, os serviços externalizados não têm de ser os serviços financeiros a que se refere o artigo 57.° do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, o Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado, nem muito menos ter de ser subcontratados de acordo com o regime formal previsto nessa norma (como se julga claro, a forma é irrelevante para a qualificação);
– o que importa, em qualquer caso, é que os serviços tenham um nexo intrínseco com as funções legal ou contratualmente obrigatórias para a gestão da carteira e/ou a gestão dos fundos de investimento (cf. parágrafo 58 do Acórdão proferido no Caso K);
– para além de serem essenciais à gestão dos FUNDOS e da sua carteira de ativos, os serviços jurídicos prestados pela A... aqui em causa são prestações específicas, destinadas especialmente a essa gestão;
– na hipótese de não considerar claro que, tal como interpretado nos Acórdãos do TJUE acima mencionados, o direito da União Europeia se opõe à não aplicação da isenção de IVA às prestações de serviços feitas pela A... à B... e aos FUNDOS, o Tribunal Arbitral é obrigado a submeter essa questão ao Tribunal de Justiça, reenviando-lhe o processo a título prejudicial;
– a título subsidiário, se se entender que o regime de isenção de IVA não é aplicável às prestações de serviços aqui em causa, então também é forçoso concluir que o regime de tributação [maxime o referido artigo 9.º, 27), alínea g), do Código do IVA] viola o princípio da igualdade em matéria tributária e o princípio da não discriminação disposto nos artigos 5.º e 55.º da Lei Geral Tributária e nos artigos 13.º, n.º 2 e 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e devem ser desaplicados;
– na verdade – sendo absolutamente claro que a isenção visa garantir a neutralidade (a igualdade) entre os vários tipos de investidores – a norma que resulta da interpretação segundo a qual o artigo 9.º, 27), alínea g), do Código do IVA não se aplica às prestações de terceiros essenciais à gestão dos fundos discrimina, sem qualquer justificação, os participantes dos Fundos que (como os FUNDOS DE INVESTIMENTO aqui em apreço) recorrem a serviços especializados de terceiros para assegurar a gestão eficiente dos seus investimentos.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, na Resposta e nas alegações, defende o seguinte, em suma:
– a Requerida não discorda do enquadramento de direito, feito pela Requerente dos factos que alega, antes discordando que a Requerente haja feito prova dos factos que alega;
– não se provaram os específicos serviços a que se reporta cada uma das facturas;
– a Jurisprudência do TJUE referida pela Requerente determina, em suma, é que os serviços que as entidades gestoras de fundos contratem e, que apenas sejam necessários em função das especificidades decorrentes da gestão dos fundos, são isentos;
– entre as Requerentes não foi contratada a transferência ou delegação funções no âmbito da gestão dos fundos;
– sendo a Requerente que alega o direito a uma isenção, nos termos do previsto no art.º 74.º da LGT, lhe pertence o ónus de provar que se encontram reunidos os requisitos para a sua aplicação;
– se a Requerente entende que não deveria ter liquidado IVA nas facturas, ou seja, que liquidou indevidamente IVA nas facturas, então, deveria proceder à correcção das facturas (sempre e quando esteja em tempo para o fazer) e, nos termos previstos no art.º 78.º do CIVA, regularizado a seu favor o imposto, uma vez cumprido o procedimento para tal ali previsto;
– o imposto indevidamente liquidado, nos termos do previsto na al. c) do n.º 1 do art.º 2.º do CIVA e, segundo Jurisprudência e Doutrina abundante e unânime, é devido;
– não tendo sido corrigidas as facturas, o IVA continua a ser devido e consequentemente, não padecem as liquidações em apreço de qualquer das ilegalidades que lhe são imputadas pela(s) Requerente(s), devendo por via disso manterem-se na ordem jurídica.
4.2. Apreciação da questão
O artigo 135.º, n.º 1, alínea g), da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece que os Estados-Membros isentam de IVA as operações «gestão de fundos comuns de investimento, tal como definidos pelos Estados–Membros».
Na linha desta Directiva, a alínea 27) do artigo 9.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) estabelece que estão isentas do imposto «a administração ou gestão de fundos de investimento».
Como dizem as Partes, o TJUE interpretou esta isenção com o alcance de abranger as «prestações de serviços fornecidas por terceiros a sociedades de gestão de fundos comuns de investimento, como tarefas fiscais que consistem em assegurar que os rendimentos do fundo obtidos pelos participantes são tributados de acordo com a lei nacional (...) desde que tenham um nexo intrínseco com a gestão de fundos comuns de investimento e sejam exclusivamente fornecidas para efeitos da gestão desses fundos, independentemente de serem totalmente externalizadas» (n.º 68 do acórdão do TJUE de 17-06-2021, proferido nos processos K-58/20, e DBKAG, C-59/20).
Porém, no caso em apreço, independentemente do enquadramento ou não, parcial ou total, dos serviços prestados ela A... no âmbito da isenção, verifica-se o obstáculo à anulação das autoliquidações que é invocado pela Autoridade Tributária e Aduaneira nos artigos 53.º a 55.º da sua Resposta, sobre o qual a Requerente nada diz nas suas alegações.
Na verdade, as facturas em que se materializam as autoliquidações incluem menção do IVA e não foram objecto de correcção ou regularização, pelo que o IVA é devido pela A..., independentemente de ser ou não aplicável a isenção, pois, por força do disposto no artigo 203.º da Directiva n.º 2006/112/CE «o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa factura», mesmo que essa menção seja indevida, como acentua a alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA e foi confirmado pelo TJUE no acórdão de 31-01-2013, proferido no processo C-643/11, que se refere que «o imposto sobre o valor acrescentado mencionado numa fatura por uma pessoa é por ela devido, independentemente da existência efetiva de uma operação tributável».
A obrigação consagrada no artigo 203.º da Diretiva visa eliminar o risco de perda de receitas fiscais que pode resultar do direito a dedução (acórdãos do TJUE de 18-06-2009, Stadeco, C-566/07, n.º 28, e de 31-01-2013, LVK - 56 EOOD, processo C-643/11,n.º 36), pelo que deve ser interpretada, em sintonia com o que o TJUE, aquela obrigação «é limitada pela possibilidade, que os Estados-Membros podem consagrar nas suas ordens jurídicas, de se corrigir o imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre estar de boa-fé ou quando, em tempo útil, tiver eliminado completamente o risco de perda de receitas fiscais (v., neste sentido, acórdão Genius, já referido, n.° 18. e acórdãos de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel, C-454/98, Colet., p. I-6973, n.ºs 56 a 61 e 63, e de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o., C-78/02 a C-80/02, Colet., p. I-13295, n.° 50)» (acórdão de 31-01-2013, proferido no processo C-643/11, n.º 37).
É em consonância com este regime da Directiva IVA, de valor superior ao direito ordinário (artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), que tem de ser aplicada a isenção prevista na alínea 27) do artigo 9.º do CIVA.
No caso em apreço, não tendo havido correcções das facturas nem demonstrada a impossibilidade de utilização das facturas para exercício do direito a dedução, não se está perante uma situação em que seja permitida a anulação das autoliquidações, como, aliás, decorre do teor expresso do n.º 3 do artigo 97.º do CIVA, que estabelece que «as liquidações só podem ser anuladas quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura passada ao adquirente nos termos do artigo 37.º».
Não obstante, tal como avançado pela Requerida no artigo 53.º da sua Resposta, «se a Requerente entende que o não deveria ter liquidado IVA nas facturas, ou seja, que liquidou indevidamente IVA nas facturas, então, deveria proceder à correcção das facturas (sempre e quando esteja em tempo para o fazer) e, nos termos previstos no art.º 78.º do CIVA, regularizado a seu favor o imposto, uma vez que cumprido o procedimento para tal ali previsto», o que é pertinente por o prazo para tal ser, no máximo, 4 anos, em conformidade com o previsto no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA e como vem sendo o entendimento do STA: acórdão do STA de 28-6-2017, recurso n.º 01427/14, 03-06-2020, recurso n.º 498/15.2BEM,de 17-06-2020, recurso n.º 443/13.0BEPRT.
Pelo exposto, tem de se concluir que, no actual contexto, as autoliquidações impugnadas não podem ser anuladas, pelo que o pedido de pronúncia arbitral tem necessariamente de improceder.
Consequentemente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões suscitadas pelas Requerentes, em consonância com o preceituado nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
5. Pedidos de reembolso e juros indemnizatórios
Improcedendo o pedido de anulação das autoliquidações, por o imposto ser devido, improcedem necessariamente os pedidos de reembolso e juros indemnizatórios que, neste contexto, pressupõem um pagamento indevido e uma decisão anulatória favorável ao sujeito passivo (artigos 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT).
6. Decisão
Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar improcedentes as excepções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;
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Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 39.170,64, valor indicado pelas Requerentes, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 30-03-2023
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(relator)
(Diogo Feio)
(António de Barros Lima Guerreiro)