SUMÁRIO:
As liquidações oficiosas de IVA, emitidas ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 88 do Código do IVA e assentes em rendimento presumido, não podem subsistir quando o sujeito passivo ilide a presunção em que se fundaram, demonstrando a inexistência de factos tributários no período em causa.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra do Tribunal Singular Dra. Catarina Belim, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 03.10.2022, decide o seguinte:
I. Relatório
1. A... Unipessoal Lda., adiante “Requerente”, com o número de identificação de pessoa coletiva ... e sede na RUA ..., ..., ... ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”).
2. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou “Requerida”.
A) O pedido
3. A Requerente pretende:
(i) a anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico e substituição por outro que decida a anulação das liquidações oficiosas infra;
(ii) a anulação das seguintes liquidações oficiosas de IVA e de juros:
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021 e respetivos juros
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021 e respetivos juros
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021 e respetivos juros
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
B) Posição das partes
4. As liquidações acima resultam de liquidações oficiosas de IVA realizadas aos períodos de 2019 06T a 2020 12 T.
5. A Requerente contesta as liquidações em causa na medida em que:
a. Teve apenas 1 dia de atividade em sede de IVA, de 1 para 2 de janeiro de 2019.
b. Apresentou declaração de cessação de atividade em 08.07.2021 com efeitos a 02.01.20219.
c. Apenas apresentou a declaração periódica de IVA de 2019 03T.
d. A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa a solicitar a anulação das liquidações, na medida em que a liquidação oficiosa foi efetuada com base num erro nos pressupostos de facto: a AT considerou existir atividade em sede de IVA, mas a mesma inexiste em absoluto.
e. As liquidações não se mostram fundamentadas, sobretudo no que tange à forma como a AT apurou o volume de negócios e o montante de imposto a pagar.
6. A Requerida defende as liquidações com base nos seguintes fundamentos:
a. A Requerente não apresentou as declarações periódicas de IVA dos períodos de 2019 06T a 2020 12 T.
b. A declaração de cessação de atividade foi entregue apenas em 08.07.2021 com efeitos ao dia 02.01.2019.
c. As liquidações oficiosas em causa foram emitidas nos termos do artigo 88.º do Código do IVA.
d. A cessação de atividade não acarreta automaticamente a anulação das liquidações oficiosas.
e. Em face do incumprimento declarativo, uma vez feitas as liquidações oficiosas ao tributo é criado o crédito de imposto a favor da AT, relação creditícia esta que incorpora a necessária segurança jurídica às relações entre a AT e os particulares.
C) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 26/07/2022.
A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a designação do coletivo competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.
A árbitra designada aceitou tempestivamente a nomeação.
O tribunal arbitral ficou constituído em 03.10.2022.
A AT apresentou resposta em que aduziu exceções e apresentou o processo administrativo.
Na sequência de despacho arbitral de 23.11.2022, a Requerente pronunciou-se sobre as exceções em 14.12.2022.
Por despacho arbitral de 28.12.2002 foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art. 18ª do RJAT, bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs a tal despacho.
II. PROVA
II.1 Factos provados
a. A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto a atividade de compra e venda de bens imobiliários, CAE 68100.
b. A Requerente apresentou, em 13.03.2021, declaração de início de atividade (IVA e IRC), com efeitos a 01.01.2019.
c. A Requerente ficou enquadrada no regime normal trimestral do IVA.
d. A Requerente entregou a Declaração Periódica do IVA de 2019 03T a “zeros”, i.e. assinalando o campo 05 para inexistência de operações.
e. A Requerente apresentou, em 2019 e 2020, declarações IES sem qualquer reporte a operações relativas a serviços ou bens.
f. A Requerente apresentou, em 08.07.2021, declaração de cessação de atividade para efeitos de IVA, com efeitos a 02.01.2019.
g. A Requerente não cessou atividade para efeitos de IRC.
h. Em 2019 e 2020 a Requerente não tem qualquer resultado no E-fatura como emitente ou adquirente.
i. Em fevereiro de 2020 não constam bens imóveis ou móveis no cadastro da Requerente.
j. Em abril de 2020 foram emitidas as liquidações oficiosas de IVA e juros:
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021 e respetivos juros
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021 e respetivos juros
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021 e respetivos juros
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
− Liquidação n.º 2021 ... de 2021
k. A Requerente apresentou, em fevereiro de 2022, pedido de revisão oficiosa contra as liquidações oficiosas referidas em j., indeferido por despacho de 09.02.2022.
l. A Requerente interpôs, a 14.03.2022, recurso hierárquico contra o indeferimento de revisão oficiosa, tendo este recurso sido indeferido por despacho de 28.03.2022, notificado por carta registada expedida, pelos CTT, a 23.04.2022 (RH...PT).
m. A Requerente apresentou o PPA contra o indeferimento do recurso hierárquico e liquidações oficiosas respetivas a 25.07.2022.
II.2 Factos não provados
a. Não foi provado que a Requerente entregou as Declarações Periódicas do IVA dos períodos 2019 06T a 2020 12T.
II.3 Fundamentação da decisão da matéria de facto
7. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
8. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
9. Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, com base nos elementos documentais aí indicados.
III. SANEAMENTO
10. O Tribunal encontra-se regularmente constituído. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades.
III.1 Exceções
Incompetência material do Tribunal Arbitral – apreciação da legalidade do ato de liquidação
11. Há que conhecer da exceção aduzida pela Requerida: o tribunal é materialmente incompetente para conhecer do indeferimento do pedido de revisão oficiosa porquanto este não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação, mas antes e apenas, da existência (ou não) do erro imputável aos serviços (atacável via impugnação judicial administrativa e não por via arbitral tributária)
12. No entender da Requerida, conforme Resposta;
“Ora, não tendo aqui como ali, no Pedido de Revisão Oficiosa, apreciado a legalidade dos actos de liquidação, mas antes e apenas, da eventual existência de erro imputável aos serviços, se impõe a mesma conclusão, ou seja, de que: “Conclui-se, assim, que este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral, por se estar perante impugnação de actos que não apreciaram a legalidade de actos de autoliquidação. Pelo exposto, verifica-se a excepção da incompetência material, que é obstáculo a apreciação do mérito da causa e justifica a absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira da instância [artigos 16.º, n.º 1, do CPPT e 278.º, n.º 1, alínea a), do CPC, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT].”
13. Contrapõe a Requerente, na sua pronúncia quanto às exceções, que:
“(…) não obstante a AT afirme não ter apreciado a legalidade dos atos de liquidação - por, segundo alega, se ter limitado a concluir pelo indeferimento do pedido de revisão do acto tributário, por falta de pressupostos legais do pedido - a verdade é que tal não corresponde à verdade.
A informação que serviu suporte à decisão do pedido de revisão oficiosa formulada pela requerente pronunciou-se expressamente sobre a conformidade das liquidações oficiosas (…)”
14. Compulsados os autos, este Tribunal entende que assiste razão à Requerente.
15. A AT, na resposta ao pedido de revisão oficiosa (doc. 3 do PPA) indica que:
“Pressupõem as referidas liquidações a falta de cumprimento do dever declarativo por parte do sujeito passivo e consubstanciam a aplicação do regime legal em vigor face às circunstâncias de facto verificadas in casu, conforme art.º 88.º do CIVA.”
“Ao efetuar as liquidações em crise, a atuação da AT pautou-se pelo efetivo cumprimento da legalidade, na falta de cumprimento por parte do requerente da entrega das declarações declarativas a que se encontrava registado.
“Ao vir alegar que as liquidações não são devidas, face à cessação de atividade, cumpre informar que o regime de cessação de atividade não acarreta per si, automaticamente a anulação das liquidações oficiosas.”
“Muito pelo contrario. Em face da falta de cumprimento declarativo, e uma vez feitas as liquidações oficiosas do tributo, é criado o correspetivo crédito de imposto a favor da AT, relação creditícia esta, que incorpora a necessária segurança jurídica às relações entre a AT e os particulares aquando da ultrapassagem do prazo para regularizarem as mesmas.”
“Face à indisponibilidade dos créditos tributários, a AT não pode discricionariamente alterar a relação jurídica tributária e, assim, dispor livre e autonomamente dos seus créditos, o que decorre do princípio da legalidade, conforme n.º 2 do art.º 266 da CRP e que impõe aos órgãos da AT que atuem no sentido da obtenção das prestações devidas nos termos da lei fiscal.”
16. Em sede de recurso hierárquico, a AT indica ainda (doc. 1 do PPA), que:
“(…) as LO resultaram da violação do dever de colaboração pelo requerente (n.º 4 do art.º 59.º da LGT), nomeadamente em virtude do incumprimento das obrigações declarativas previstas na lei, como sejam a cessação de atividade (no prazo de 30 dias a contar da data de cessação, conforme dispõe o art.º 33.º do CIVA), ou, não cessando a atividade, a de entrega/submissão das DP de IVA nos termos do art.º 41.º do mesmo Código, o que não aconteceu.”
17. Resulta de toda a fundamentação do ato de indeferimento da revisão oficiosa e do ato de indeferimento do recurso hierárquico que, ao contrário do que invoca, a Requerida apreciou a legalidade das liquidações, tanto mais que invoca, nos seus fundamentos, o princípio da legalidade, conforme n.º 2 do art.º 266 da CRP.
18. Estando em causa um pedido de apreciação de atos que confirmam a liquidação de tributos com fundamento na sua legalidade, este tribunal arbitral é competente para a declaração de ilegalidade de tais atos nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
19. Pelo que resulta indeferida a exceção invocada pela AT.
Incompetência material do Tribunal Arbitral – substituição do recurso hierárquico por outro que decida a anulação das liquidações oficiosas
20. O âmbito de competência material dos tribunais constitui matéria de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, cumprindo, por isso, antes de tudo o mais, proceder à sua apreciação (cfr. artigos 16.º do CPPT, 13.º do CPTA e 96.º e 98.º do CPC, subsidiariamente aplicáveis por remissão, respetivamente, das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
21. Os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD decidem segundo o direito constituído (artigo 2.º, n.º 2, do RJAT), estando a sua atividade limitada à declaração da ilegalidade de atos dos tipos referidos no artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma, não tendo competência para substituir atos tributários.
22. No pedido efetuado, a Requerente pretende:
(i) a anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico e substituição por outro que decida a anulação das liquidações oficiosas.
23. Já aqui foi decidido que este tribunal é competente para conhecer da legalidade das liquidações oficiosas e da decisão que as confirma, a decisão de indeferimento do recurso hierárquico.
24. Já quanto ao pedido relativo à substituição do recurso hierárquico por outro que decida a anulação das liquidações oficiosas, tendo em conta a limitação da atividade arbitral à declaração de ilegalidade de atos tributários, este tribunal é incompetente para conhecer deste pedido, sem prejuízo de, caso venha a ser declarada a ilegalidade das liquidações oficiosas, ser dever da AT, em sede de execução de julgado, reestabelecer a situação que existiria caso a ilegalidade não se tivesse verificado.
Da Intempestividade (Caducidade do Direito de Ação)
25. A Requerida invoca a intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado, por inexistência de erro imputável aos serviços e por, aquando da sua apresentação, há muito ter sido ultrapassado o prazo de revisão previsto na 1ª parte, do nº 1, do artigo 78º, da LGT, com a consequente caducidade do direito de ação, por se encontrar igualmente ultrapassado o prazo de 90 dias, contados após o termo do prazo de pagamento do imposto, para apresentação do pedido arbitral.
26. A Requerente, ao invés, considera ser tempestivo o pedido de revisão, apresentado no prazo de 4 anos previsto na 2ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, por estar verificada a ocorrência de erro imputável aos serviços, no caso, um erro de pressupostos de facto, quanto à existência de atividade da Requerente para efeitos de IVA nos períodos em causa.
27. Compulsados os autos entende este Tribunal que assiste razão à Requerente.
28. No caso concreto, resulta do teor do Código do IVA que as liquidações oficiosas de IVA assentam em rendimento presumido, sendo presunções ilidíveis (neste sentido também a jurisprudência do TCAS no Acórdão 1565/07.1BELSB de 14.01.2021).
29. Neste sentido, o artigo 88.º n.º 4 do Código do IVA elenca uma série de situações em que as liquidações oficiosas de IVA ficam sem efeito quando se venha a concluir que não têm aderência à realidade:
“Artigo 88.º
Liquidação oficiosa do imposto pelos serviços centrais
(…)
“4 - A liquidação referida no n.º 1 fica sem efeito nos seguintes casos:
a) Se o sujeito passivo, dentro do prazo referido no n.º 2, apresentar a declaração em falta, sem prejuízo da penalidade que ao caso couber;
b) Se a liquidação vier a ser corrigida com base nos elementos recolhidos em procedimento de inspecção tributária ou outros ao dispor dos serviços. (Redacção dada pelo artigo 119.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro);
c) Se for declarada a cessação oficiosa referida no n.º 2 do artigo 34.º e a liquidação disser respeito ao período decorrido desde o momento em que a cessação deveria ter ocorrido. (Aditada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro).
30. Uma das situações elencadas na lei é precisamente – alínea b) - os elementos recolhidos em procedimento de inspeção tributária ou outros ao dispor de serviços indicarem que é devida a correção das liquidações, o que será o caso quando se conclua pela inexistência de atividade, prestação de serviços ou transmissões de bens.
31. Resulta assim da própria letra da lei que, em caso de erro sobre os pressupostos de facto, a AT deve corrigir as liquidações efetuadas.
32. Nesta medida, e com tal fundamento, poderia a Requerente apresentar o pedido de revisão no prazo de quatro anos após as liquidações, o que fez, na medida em que o pedido de revisão foi apresentado em fevereiro de 2022 quanto a atos de liquidação de IVA de abril de 2021.
33. Assim sendo, tendo a Requerente apresentado o pedido de pronúncia arbitral a 25.07.2022, dentro do prazo de noventa dias após a notificação da decisão que indeferiu o recurso hierárquico que sustentou a legalidade das liquidações – notificação esta efetuada a 26.04.2022, 3º dia posterior a contar do registo com data de 23.04.2022 (RH...PT), foi a presente ação apresentada tempestivamente, improcedendo a suscitada exceção de caducidade do direito de ação.
IV. O DIREITO
IV.1 Ordem de conhecimento de vícios
34. De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, «na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação» e deverá dar-se prioridade aos «vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos».
35. No caso em apreço, afigura-se que o vício de ilegalidade quanto ao erro sobre os pressupostos de facto, deverá ser apreciado prioritariamente, pois este vício tem potencialidade para assegurar eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente.
IV.2 Ilegalidade das liquidações oficiosas por erro sobre os pressupostos de facto
36. A pretensão da Requerente é a de que devem ser anuladas as liquidações aqui em causa, na medida em que a liquidação oficiosa foi efetuada com base num erro nos pressupostos de facto: a AT considerou existir atividade em sede de IVA, mas a mesma inexiste em absoluto.
37. Para a Requerida, a Requerente não apresentou as declarações periódicas de IVA dos períodos de 2019 06T a 2020 12 T e a declaração de cessação de atividade foi entregue apenas em 08.07.2021 com efeitos ao dia 02.01.2019 pelo que: (i) as liquidações oficiosas em causa foram emitidas nos termos do artigo 88.º do Código do IVA, (ii) a cessação de atividade não acarreta automaticamente a anulação das liquidações oficiosas e (iii) em face do incumprimento declarativo, uma vez feitas as liquidações oficiosas ao tributo é criado o crédito de imposto a favor da AT, relação creditícia esta que incorpora a necessária segurança jurídica às relações entre a AT e os particulares.
38. O tribunal entende que assiste razão à Requerente.
39. Como já aqui detalhado na apreciação da exceção de intempestividade por caducidade da ação, o Código do IVA elenca uma série de situações em que as liquidações oficiosas de IVA ficam sem efeito quando se venha a concluir que não têm aderência à realidade.
40. Neste sentido, decorre da própria letra da alínea b) do n.º 4 do artigo 88.º do Código do IVA que as liquidações devem ficar sem efeito e ser corrigidas caso os elementos recolhidos em procedimento de inspeção tributária ou outros ao dispor de serviços indicarem que é devida a correção das liquidações.
41. A jurisprudência dos tribunais superiores é muito clara nesta matéria, dispondo que as liquidações oficiosas de IVA, assentes em rendimento presumido, não podem subsistir quando o contribuinte ilide a presunção em que se fundaram, demonstrando a inexistência de factos, ou atos tributários relevantes (vide TCAS, Acórdão 1565/07.1BELSB de 14.01.2021, Acórdão 476/11.0BELRS de 08.07.2021 e Acórdão 476/11.0BEL 51/13.5BEALM de 28.10.2021).
42. Tendo a Requerente provado, por prova documental – IES 2019 e 2020, verificação da ausência de movimentos input e output no E-fatura e cessação de atividade retroativa a 02.01.2019, a inexistência (total) de atividade e de operações tributáveis nos anos de 2019 e 2020, e não tendo tal comprovação sido contestada pela Requerida (qualificando, como tal, como facto incontroverso), a Requerente cumpriu o ónus da prova que lhe competia para ilidir a presunção de existência de rendimento nesse período.
43. Em conclusão, tendo a Requerente provado inexistir qualquer atividade, factos ou operações tributáveis em 2019 e 2020, inexiste, igualmente, a obrigação de liquidação e entrega de IVA no período em causa, devendo as liquidações oficiosas controvertidas ser anuladas por inexistência de facto tributário.
A Requerida contrapõe que o IVA apenas pode ser deduzido quando é devido, invocando para o efeito a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia nos acórdãos C‑35/05 e C‑564/15.
IV.3 Questões de conhecimento prejudicado
Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por vício que assegura eficaz e estável tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil o conhecimento dos restantes vícios imputados à liquidação impugnada (nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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V. DECISÃO ARBITRAL
Nestes termos, este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:
a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de indeferimento do recurso hierárquico RHQ 2022 ...;
b) Julgar procedente, por erro nos pressupostos de facto e de direito, o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e respetivos juros controvertidas de 2019 e 2020, no montante total de € 3.796,31, as quais deverão, em consequência, ser anuladas.
Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
VALOR: € 3.796,31
CUSTAS
Fixa-se ao processo o valor de taxa de arbitragem de € 612, os termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
28 de março de 2023
A árbitra,
Catarina Belim