Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 395/2022-T
Data da decisão: 2023-03-30  Selo  
Valor do pedido: € 3.766,00
Tema: Imposto do Selo – Doação – Valor Tributável de Participações Sociais – Arts. 15.º, n.os 1 e 2 e 31.º do Código do Imposto do Selo.
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SUMÁRIO:

O balanço a que se referem os n.os 1 e 2 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, para efeitos de cálculo do valor de transmissões gratuitas de quotas sociais, é o último balanço reportado ao exercício fiscal anterior ao da transmissão.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A árbitra Marisa Almeida Araújo, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 5 de setembro de 2022, decide:

 

I.              Relatório

 

A..., NIF..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., Lisboa e B..., NIF..., residente na Rua..., n.º ..., ... Dto., Barreiro, (adiante apenas “Requerentes”) vieram em coligação ativa, ao abrigo do artigo 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer a constituição de tribunal arbitral.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”).

 

Os Requerentes peticionam ao Tribunal que declare ilegal, com as devidas consequências legais, os atos de liquidação de Imposto de Selo n.º ... e ..., ambos de 12/10/2021, com o consequente pedido de condenação na devolução do imposto indevidamente pago, no valor de € 3.765,16, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios; peticionam ainda que seja a Requerida condenada a liquidar o Imposto de Selo ou a substituir ou a corrigir as Liquidações impugnadas em conformidade o valor da sociedade no montante de € 180.000,00 considerando o imposto já liquidado de € 3.654,00 pelos Impugnantes.

 

Para o efeito, os Requentes alegam sumariamente que,

 

Foram beneficiários, cada um e na mesma data, de uma doação de 10% do capital social da sociedade C... LDA.

Alegam que eram funcionários da aludida sociedade e, com o falecimento da sócia fundadora, os herdeiros – marido e filhos – decidiram fazer a aludida doação aos Requerentes.

Antes da aludida liberalidade alegam que foi deliberado e aprovada uma distribuição de resultados transitados no valor de € 250.000,00 em relação ao qual foi liquidado e pago o devido IRS. Atenta a distribuição os capitais próprios da sociedade foram alterados para menos o que alterou, também, o valor da sociedade e, na sua perspetiva, também o Imposto de Selo devido, o que, segundo os Requerentes, tal facto não foi tido em conta pela AT.

Depois da liberalidade os Requerentes apresentaram a declaração para efeitos de Imposto de Selo junta da AT tendo a Requerida notificado do valor atribuído à sociedade para efeitos de audição prévia. 

Os Requerentes exerceram o direito de audição e foram posteriormente notificados de uma primeira liquidação que foi objeto de reclamação – sem resposta até à data.

Posteriormente foram os Requerentes notificados das novas liquidações, com valor que entendem correto – 697,42 cada um -, e cujo pagamento realizaram.

De seguida os Requerentes receberam novas notificações, cada uma no valor de € 675,37 – que pagaram.

Não obstante voltaram a ser notificados de novas liquidações, cada um, mas desta vez no valor de € 2.701,48 que, apesar de não concordarem, procederam ao pagamento.

Na perspetiva dos Requerentes, tendo em conta que como eram 3 donatários (os aludidos herdeiros da sócia fundadores) o valor a pagar seria de 10% sobre o valor máximo de € 18.027,53 para cada doação, ou seja, € 1.827,53 para cada um dos Requerentes.

Mas, nesta altura, os Requerentes alegam que já pagaram um total de € 7.419,16.

Esta posição dos Requerentes resulta do facto de os mesmos entenderem que a totalidade do capital social foi transmitido para os donatários aquando da morte da sócia fundadora a 25 de abril de 2020 e a 11 de maio do mesmo ano aqueles procederam à distribuição de lucros transitados.

A doação ocorreu em 21 de setembro de 2020 sendo que o valor real da sociedade, como alegam, é diferente na data da abertura da herança e na data da doação, tendo em conta aquela distribuição. Alegam que, na data da abertura da herança o valor da sociedade era de € 440.379,73 e nada data da doação de € 180.275,18 (tendo em conta a retirada dos € 250.000,00).

Desta forma entendem os Requerentes que sendo o valor das quotas e partes sociais determinado pelo balanço resultante das correções feitas, qualquer interpretação distinta, redunda na duplicação de tributação da mesma realidade e na violação do princípio da capacidade contributiva.

Para além disso, invocam os Requerente a violação do dever de fundamentação.

Consideram, por isso, os Requerentes que as liquidações são ilegais e devem, por isso, ser anuladas, com as devidas consequências, incluindo o pagamento de juros indemnizatórios.

 

*

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 28 de junho de 2022 tendo sido aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD a 30 de junho de 2022 e seguiu a sua normal tramitação. 

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou a árbitra do Tribunal Arbitral Singular, aqui signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. 

As partes, notificadas dessa designação em 16 de agosto de 2022, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD. 

 

O Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 5 de setembro de 2022.

 

Em 13 de outubro de 2022, a Requerida apresentou Resposta e juntou aos autos o processo administrativo a 3 de novembro de 2022. 

A Requerida defende-se por impugnação pugna pela improcedência do pedido.

 

A Requerida invoca, sumariamente, que,

Em 25/04/2020, G..., a sócia fundadora da sociedade “C..., L.DA" faleceu e deixou, como herdeiros, D..., seu marido e os seus dois filhos, E... e F... .

Os seus herdeiros decidiram, em 11/05/2020, por deliberação tomada em Assembleia Geral Extraordinária da dita empresa, proceder à distribuição, entre si na qualidade de sócios herdeiros, de resultados transitados, no valor de €250.000,00. 

Em 21-09-2020, os referidos herdeiros decidiram fazer uma doação de 10% do capital social da sociedade comercial “C...” a cada um dos Requerentes A... e B..., funcionários da empresa. 

A doação de quotas foi comunicada à AT com a apresentação de três participações de Imposto de Selo, com os n.ºs ..., ... e..., correspondentes a cada um dos doadores, designada e respetivamente a D..., E... e F... . 

Os Requerentes foram seguidamente notificados, por ofícios expedidos pelo Serviço de Finanças de Lisboa ..., em 12/02/2021, do projeto de avaliação das referidas participações sociais, através dos quais veio a AT a atribuir o valor de € 40.522,21 a cada uma das quotas, objeto da doação em apreço. 

Os Requerentes exerceram o direito de audição, tendo a AT mantido o valor atribuído à participação no projeto de avaliação e, consequentemente, foram emitidos os atos tributários ora postos em crise. Houve lugar à regularização por parte dos Requerentes das indicadas liquidações, procedendo aos respetivos pagamentos.

            Entende a Requerida que a Direção de Finanças determina o valor tributário de cada uma das quotas objeto da doação, em função do último balanço de encerramento de contas do exercício económico anterior à transmissão, em conformidade com o procedimento estabelecido no artigo 31.º do CIS.

Segundo a posição que assume, a correção mencionada no artigo 15.º, n.º 2, do CIS, abrange tão somente a correção dos elementos ativo e passivo do balanço com fundamento na violação das normas contabilísticas aplicáveis, não habilitando a AT a realizar correções extra-contabilísticas com fundamento na subestimação dos elementos ativos ou sobrestimação dos elementos passivos que constam do balanço, ou seja, tem como fundamento a verificação da conformidade do balanço com as normas contabilísticas aplicáveis. 

A relevância do valor contabilístico apenas é afastada, nos termos do artigo 31.º, n.º 2 do CIS, em casos atinentes a imóveis.

Deste modo, no caso em apreço, segundo a Requerida, o CIS determina que o valor das participações sociais que não sejam ações “se calcula pelo último balanço” – vd. Artigo 15.º, n.º 2 do CIS – correspondendo ao valor que resultar do balanço devidamente organizado de acordo com as normas contabilísticas legais, sendo este o valor legalmente considerado.

Alega a Requerida que, antes da doação, em 11/05/2020, por deliberação tomada em Assembleia Geral Extraordinária da sociedade comercial, foi decidida a distribuição de resultados transitados aos sócios, no montante de €250.000,00; e foi junto o Balanço em 30/09/2020, que, reflete a situação da sociedade em momento prévio à doação das quotas, a verdade é que a posição financeira foi extraída após a transmissão das quotas com as inúmeras variantes que podem ocorrer, ou seja, a posição financeira vai ter sempre em conta o momento anterior, porque as demonstrações financeiras pressupõem continuidade, contudo pode ter ocorrido variantes, por exemplo, no dia 30/09/2020.

Conclui, assim, a AT que sendo o Balanço do ano de 2019, referente a 31/12/2019, no caso, o último balanço de encerramento de contas aprovado em data anterior à transmissão gratuita (21/09/2020), os valores determinados nos procedimentos de avaliação de quotas e que serviram de base às liquidações em apreço, cumprem as regras legais, i.e., o estatuído no art.º 15.º, n.º 2 conjugado com art.º 31.º ambos do CIS.

Entende, ainda a AT, que nem os princípios da capacidade contributiva efetiva e da tributação pelo rendimento real se encontram violados, nem está omitido qualquer cumprimento do dever de fundamentação.

 

*

                         

Por despacho de 14 de novembro de 2022 foi agendada reunião a que alude o art. 18.º do RJAT para inquirição de testemunhas que se realizou a 14 de dezembro de 2022 conforme ata da reunião junta aos autos, tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas pelos Requerentes –D... e F... . 

A Requerida informou previamente que não participaria na aludida reunião.

 

Nessa data foi concedido prazo para alegações e fixou-se, como data provável para a prolação da decisão, o dia 6 de março de 2023 tendo posteriormente este prazo sido prorrogado.

 

Os Requerentes apresentaram as suas alegações a 15 de dezembro de 2022 onde, no essencial, mantiveram a posição assumida e a 20 de dezembro de 2022 os Requerentes apresentaram requerimento dando referência à decisão proferida no Acórdão do TC N.º 750/2022.

 

II.            Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

Tendo em conta a idêntica situação factual e respetivo enquadramento jurídico de cada uma das relações jurídicas dos Requerentes, nada obsta à coligação dos mesmos nos presentes autos conforme preceituado nos arts. 9.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária e 44.º, n.º 1, al. e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (ex vi art. 29.º do RJAT).

 

Não há nulidades para conhecer.

 

Desta forma, inexiste qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III.          Fundamentação

 

III.I. Matéria de facto

 

A.   Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

1.     Em 25/04/2020, G..., sócia fundadora da sociedade C..., Lda. faleceu e deixou, como herdeiros, D..., seu marido e os seus dois filhos, E... e F... .

2.     Do Balanço da C..., Lda. de 31/12/2019 resulta o seguinte:

3.     A 11 de maio de 2020 reuniu a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade C..., Lda. Com a seguinte ordem de trabalhos:

 

4.     Conforme Ata n.º 17, entre o mais, na qualidade de sócios herdeiros decidiu-se proceder à distribuição de resultados transitados no valor de € 250.000,00, tendo, quanto a isto, sido aprovado o seguinte:

5.     Em 21/09/2020 os herdeiros referidos no ponto 1. procederam, por escritura pública, à partilha hereditária com divisão de quotas, doação e unificação. 

6.     Os referidos herdeiros, na escritura aludida no ponto anterior, na qualidade de Primeiros Outorgantes, doaram 10% do capital social da C..., Lda., a cada um dos Requerentes, funcionários, nessa data, da sociedade.

7.     Para efeitos da doação os aqui Requerentes foram partes da aludida escritura, na qualidade de Segundos Outorgantes, da qual consta que:

 

8.     A doação foi comunicada à AT com a apresentação de três participações de Imposto de Selo, com os n.os ..., ... e ... correspondente, cada uma aos doadores D..., E... e F... .

9.     Foi apresentado Balanço de 30/09/2020 do qual consta o seguinte:

 

10.  Os Requerente foram notificados por ofícios expedidos em 12/02/2021 do projeto de avaliação das referidas participações sociais, tendo a AT atribuído o valor de € 40.522,21 a cada uma das quotas objeto das liberalidades aos Requerentes.

11.  Os Requerentes exerceram direito de audição a 26/02/2021.

12.  A AT manteve o valor atribuído a cada uma das quotas.

13.  Os Requerentes procederam ao pagamento das liquidações, embora tenham apresentado Reclamação Graciosa.

14.  O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 28 de junho de 2022.

 

B.    Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

 

C.   Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto

 

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes e nos documentos juntos, mormente o processo administrativo.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Nos presentes autos, o tribunal formou também a sua convicção tendo em conta, também, a prova testemunhal que corroborou o que resulta do suporte documental que se encontra junto aos autos. 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, bem como a prova testemunhal, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados que não se apresentam controvertidos.

 

 

III.II Matéria de Direito (fundamentação)

 

São as seguintes as questões em apreço nos presentes autos:

1.     Os atos em causa omitem o dever de fundamentação?

2.     Para determinar o valor das quotas doadas para efeitos do Imposto do Selo atende-se ao “último Balanço” – reportando-se este último ao balanço financeiro do exercício fiscal a 31 de dezembro de 2019 – ou poderá haver lugar a correção através de balanço intercalar?

3.     Caso se entenda que se deve atender ao “último Balanço” – reportando-se este último ao balanço financeiro do exercício fiscal a 31 de dezembro de 2019 – verifica-se uma violação dos princípios da tributação pelo rendimento real e capacidade contributiva efetiva, bem como o princípio da proporcionalidade?

 

Cumpre decidir,

 

1.     Em relação à alegada omissão do dever de fundamentação 

 

A fundamentação é uma exigência dos atos tributários, sendo uma imposição legal (conforme decorre do artigo 77.º da LGT).

O artigo 77.º, n.º 1 da LGT refere, assim, que: 

A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”.

 

Por sua vez, o n.º 2 prevê que,

A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

 

Tal necessidade de fundamentação decorria já do próprio art. 268.º, n.º 3, da CRP, na redação introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/89 (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pág.936 e seg.; Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa dos Atos Administrativos, 1990, pág.53 e seg.).

 

A fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:

a)         Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;

b)        Contemporaneidade: deve ser contemporânea da prática do ato, não podendo haver fundamentações diferidas;

c)         Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;

d)        Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e de motivação (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).

 

A fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória. Tal obrigatoriedade não pode ser entendida de uma forma abstrata e/ou absoluta, ou seja, a fundamentação exigível a um ato tributário concreto, deve ser aquela que funcionalmente é necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio. 

Esta será a pedra de toque do cumprimento do dever de fundamentação: quanto, perante um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, o ato tributário se apresente, sob um ponto de vista de razoabilidade, como um produto do puro arbítrio da Administração, por não serem discerníveis os motivos de facto e/ou de direito em que assenta, o ato padecerá de falta de fundamentação.

Tem sido entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que determinado ato (no caso ato administrativo-tributário) se encontra devidamente fundamentado sempre que é possível, através do mesmo, descobrir qual o percurso cognitivo utilizado pelo seu autor para chegar à decisão final (cf. ac. S.T.J.26/4/95, C.J.-S.T.J., 1995, II, pág.57 e seg.; A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª. edição, 1985, pág.687 e seg.; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1984, V, pág.139 e seg.). Quer dizer, utilizando a linguagem de diversos acórdãos do S.T.A. (cf. por todos, ac.S.T.A-1ª.Secção, 6/2/90, A.D., nº.351, pág.339 e seg.) o ato administrativo só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do ato. 

 

Por outras palavras, os fundamentos do ato devem ser claros, por forma a colher-se com perfeição o sentido das razões que determinaram a prática do ato, os fundamentos da decisão devem ser congruentes, isto é, que sejam premissas que conduzam inevitavelmente à decisão que funcione como conclusão lógica e necessária da motivação aduzida.

Em conclusão, a fundamentação deve ser suficiente, no sentido de que não fiquem por dizer razões que expliquem convenientemente a decisão final (cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I Almedina, 1991, pág.477 e seg.; Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001, pág. 352 e seg.; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4.ª Edição, 2012, pág.675 e seg.; ac. TCA Sul-2.ª Secção, 2/12/2008, proc.2606/08; ac. TCA Sul-2.ª Secção, 10/11/2009, proc. 3510/09; ac.T.C.A.Sul-2.ª Secção, 29/3/2011, proc. 4489/11).

 

Perante isto, cumpre analisar o caso concreto.

            Tendo em conta a análise dos documentos juntos aos autos e factos dados como provados que resultam, entre o mais, da própria posição dos Requerentes resulta claro que não existe qualquer omissão do dever de fundamentação.

            Os Requerentes compreendem o enquadramento factual e subsunção jurídica percorridos pela AT e, em relação ao qual tomam posição efetiva. Não resulta, de facto, indiciada qualquer omissão, seja no todo ou em parte, do percurso cognitivo a que a AT recorreu e que, tendo em conta a posição assumida pelos Requerentes, não resulta que estes tenham qualquer dúvida quanto a esse percurso – seja de facto, seja jurídico.

            

Face ao exposto, improcede, desta forma, a pretensão dos Requerentes quanto a esta matéria.

 

 

2.     Em relação à segunda questão que cumpre apreciar, importa decidir sobre se a determinação do valor das quotas doadas para efeitos do Imposto do Selo se deve atender ao “último Balanço” – reportando-se este último ao balanço financeiro do exercício fiscal a 31 de dezembro de 2019 – ou poderá haver lugar a correção através de balanço intercalar?

 

No caso em concreto o dissenso entre as partes consiste em determinar o valor das participações sociais doadas aos Requerentes

 

Nos termos do preceituado no n.º 1 do art. 15.º do Código do Imposto do Selo

 

O valor das quotas ou partes em sociedades que não sejam por ações e o dos estabelecimentos comerciais, industriais ou agrícolas com contabilidade organizada determina-se pelo último balanço, ou pelo valor atribuído em partilha ou liquidação dessas sociedades, salvo se, não continuando as sociedades com o herdeiro, legatário ou donatário do sócio falecido ou doador, o valor das quotas ou partes tiver sido fixado no contrato social.”

 

            Acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito que:

 

Se o último balanço referido no número anterior precisar de ser corrigido, o valor do estabelecimento ou das quotas e partes sociais determinar-se-á pelo balanço resultante das correções feitas.”

 

            Para além disso, nos termos do preceituado no art. 31.º do mesmo Diploma:

 

 

“1 - Fazendo parte da herança ou da doação estabelecimento comercial, industrial ou agrícola ou outro estabelecimento com contabilidade organizada, bem como quotas e partes em sociedades que não sejam por ações cujo valor de liquidação não esteja fixado no pacto social, ou ainda quando façam parte da herança ou da doação ações cujo valor tenha de ser determinado por aplicação da fórmula constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º, o chefe de finanças remeterá à direção de finanças o duplicado do extrato do balanço, havendo-o, e demais elementos apresentados ou de que dispuser, a fim de se proceder à determinação do seu valor.

2 - Os imóveis são considerados no ativo do balanço pelo valor patrimonial tributário.”

 

            Conforme resulta da factualidade dada como provada, e não sendo uma questão controvertida, a determinação do valor das participações sociais  doadas aos Requerentes teve como fundamento o capital próprio da sociedade de acordo com o Balanço de 31 de dezembro de 2019 e não de acordo com  o Balanço, intercalar, de 30 de setembro de 2020. Este último com data posterior à Assembleia Geral de 11 de maio de 2020, e da cessão gratuita das quotas aos aqui Requerente de 21 de setembro de 2020.

            De facto, o que afasta as partes no caso concreto é que a AT entende que o valor tributável das quotas é determinado pelo “último Balanço” (in casu, o Balanço de 21/12/2019), conforme resulta do n.º 1 do art. 15.º do CIS, entendendo, por seu turno os Requerentes que esse balanço deve ser corrigido e, portanto, deve ser considerado o balanço intercalar posterior à doação. 

            

            Tendo em conta os factos, a verdade é que a AT determinou o valor tributável para cada uma das quotas em função do Balanço de 31 de dezembro, anterior à transmissão, e em conformidade com o art. 31.º do CIS, conjugado com o n.º 2 do art. 15.º do mesmo Diploma. 

            Nesta questão concordamos com a posição da AT. É este o balanço de encerramento de contas, data anterior à transmissão gratuita em apreço nos autos, devidamente organizado de acordo com as normas contabilísticas legais e aprovado do qual se pode extrair o valor legalmente considerado que resulta o valor da sociedade e, portanto, do valor tributável nos termos legais referidos.

            Já o balanço de setembro de 2020, posterior à aludida transmissão, não demonstra a situação da sociedade no momento anterior à doação. O único balanço que é capaz de ter essa projeção e permitir uma efetiva avaliação da situação da sociedade antes da doação é, de facto, o Balanço de 31 de dezembro. O que seja posterior à doação consubstancia produção documental que não permite determinar – ainda que se entendesse que poderia ser de usar esse balanço intercalar – o “valor” da sociedade para efeitos da tributação das liberalidades em apreço nos autos.

            Para além disso, e aqui também seguindo o caminho interpretativo da AT, não se pode entender o preceituado no n.º 2 do art. 15.º do CIS como um meio de realizar correções extra-contabilísticas em relação ao que consta do balanço de encerramento de contas devidamente aprovado.

            

Com efeito,

            A AT determinou o valor tributável das quotas transmitidas a título gratuito aos aqui Requerentes tendo com conta o “último Balanço” (de 31/12/2019), correspondendo este balanço de encerramento de contas do exercício económico anterior à aludida transmissão. Tudo em observância do disposto nos n.os 1 e 2 do art. 15.º do CIS.

 

            Improcede, desta forma, a pretensão dos Requerentes quanto a esta matéria.

            

 

3.     Quanto à terceira questão a decidir, tendo em conta a posição assumida na questão anterior, a consideração do “último Balanço” para determinar o valor da quota a transmitir na doação não viola os princípios da tributação pelo rendimento real e capacidade contributiva efetiva, bem como o princípio da proporcionalidade?

 

Suscitam os Requerentes que a interpretação do art. 15.º, n.os 1 e 2 do CIS que tem em consideração o “último Balanço” viola os princípios da tributação pelo rendimento real e capacidade contributiva efetiva, bem como o princípio da proporcionalidade.

            Os Requerente aludem, para sustentar a sua posição, ao recente acórdão n.º 750/2022 do Tribunal Constitucional.

            De facto, o TC julgou inconstitucional o segmento normativo constante da variável f, integrada na fórmula prevista na alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do Código do Imposto do Selo, em que o fator de capitalização f = 100/0,05 (ou f = 2000), por aplicação da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial da União Europeia, em vigor na data em que ocorreu a transmissão, por violação do princípio da proporcionalidade, enquanto proibição de excesso.

            No caso concreto que se apreciou foi o cálculo do valor de ações não cotadas nos termos previstos no artigo 15.º, n.º 3, do Código do Imposto de Selo (CIS). O Tribunal “[…] a quo veio recusar a aplicação da norma constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do Código do Imposto do Selo (CIS), na redação vigente à data dos factos, por reputar que o uso da fórmula aí prevista, neste caso, «põe a descoberto a efetiva violação do princípio da igualdade no que se refere à transmissão de participações sociais economicamente equiparáveis, designadamente das ações com cotação oficial face às ações não cotadas», convocando, como fundamento do juízo de inconstitucionalidade, o parâmetro constitucional consagrado no artigo 13.º da Constituição e o princípio da capacidade contributiva.

            No caso concerto, sumariamente, foi feita uma análise ao “[…] efetivo impacto da referida variável f, que corresponde ao fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo BCE às suas principais operações de refinanciamento em vigor na data em que ocorra a transmissão, recorrendo aos elementos probatórios constantes dos autos.  Com efeito, no caso em apreço, tendo sido aplicada a mesma metodologia de avaliação fiscal do lote de ações em causa, de acordo com a redação do artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do CIS, vigente antes e após a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, a distorção gerada pela simples alteração dessa variável – expressamente reconhecida pelo legislador – é elucidativa.”

            Constatando que, no caso em concreto, “[…] as duas avaliações efetuadas pela Administração Tributária, este lote de ações sofreu uma “desvalorização” de € 25.024.877,08 para € 472.389,70, por simples alteração do referido fator de capitalização, que deixou, por força da alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, de ser f = 2000 para ser f = 25, considerando o acréscimo do spread de 4% (f = 100/4,00), uma vez que a “taxa de refinanciamento” do BCE, em 2016, se encontrava fixada em 0,00% (v. https://www.bportugal.pt/page/taxas-de-juro-oficiais-doeurosistema-pol-mon). Ou, dito de modo mais preciso, foi justamente a alteração da variável f que conduziu à diminuição do valor de Va (valor de cada ação) de € 3.621,55 para € 68,36. Com efeito, de acordo com os dados apurados nas respetivas avaliações, resultantes do apuramento da situação líquida corrigida da sociedade participada, o seu valor patrimonial ou de capitais próprios (representado pela variável S), em 31 de dezembro de 2015, era de € 2.167.016,59, sendo, por isso, superior ao valor apurado na primeira avaliação, reportada a 31 de dezembro de 2014, que se cifrava em € 1.834.244,71, e o valor da variável R (dos resultados líquidos obtidos nos dois últimos exercícios), apesar de ter um ligeiro decréscimo, de € 324.104,82 para € 318.853,70, não teria a virtualidade de produzir uma alteração significativa do valor das ações avaliadas. 

9. Constatando que a mínima alteração (de centésimas) da taxa de juro de referência aplicada pelo BCE às operações de refinanciamento «implica gigantescas alterações no valor de cada ação não cotada», a decisão recorrida recusou, como antes se referiu, a aplicação da fórmula constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, como critério válido para a determinação do valor tributável das ações não cotadas para efeitos de Imposto do Selo, com fundamento na violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva. No seu percurso decisório, o tribunal a quo fez apelo aos seguintes argumentos: A solução preconizada pelo legislador para o cálculo do fator de capitalização (na redação vigente que vigorou até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2016) afigura-se desajustada à realidade, por não ter antecipado a vulnerabilidade da taxa de juros de referência do BCE que contribui para o seu apuramento (e muito menos a possibilidade de esta taxa se cifrar em zero); Esta solução legal é suscetível de gerar desigualdades entre a transmissão de participações sociais economicamente equiparáveis, designadamente entre ações com cotação oficial e ações não cotadas – cf. nºs. 1, 2 e 3, do artigo 15.º, do CIS. A aplicação da fórmula prevista para a determinação do fator de capitalização das 6.910 ações não cotadas, com base numa taxa de juro de 0,05%, é de tal modo desajustada e exagerada, que o valor tributável de cada ação apurado (€ 3.621,55) passou a ser cerca de 724 vezes superior ao respetivo valor nominal (€ 5,00), o que, num simples juízo de senso comum, permite concluir que o valor tributável determinado pela ATA não corresponde minimamente ao valor real presumido de cada ação, contrariando, assim, o espírito da lei ou a ratio subjacente a essa disposição legal.

 

O TC conclui que “ […] o princípio da proibição do excesso tem uma dimensão axiológica inequívoca, impedindo o sacrifício desproporcionado do que seja valioso. Ora, no caso em apreço, o comportamento estadual – consubstanciado na imposição da tributação sindicada nos autos – atinge um desvalor ostensivo e manifesto. Com efeito, é inegável que o critério normativo legalmente previsto para a avaliação deste lote de 6.910 ações, assente na aplicação da variável f da fórmula de cálculo constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, como fator de capitalização dos resultados líquidos da sociedade comercial em causa, em que f = a 2000, conduzindo a um valor final de avaliação em que “Va” = € 25.024.877,08, é notoriamente (frontalmente) iníquo e excessivo. Retomando os valores resultantes do apuramento efetuado pela Administração Tributária na avaliação reportada a 31 de dezembro de 2014, num juízo de normalidade das coisas e perante a nossa realidade económica, não é de todo equacionável que um lote de 6.910 ações de uma sociedade com o capital social de € 225.000,00, dividido em 45.000 ações, que tem um valor substancial de € 1.834.244,71 e resultados líquidos, nos dois últimos exercícios, de € 324.104,82, atinja o valor de € 25.024.877,08 (note-se que, se estivesse em causa a avaliação da global da sociedade – das 45.000 ações – tal corresponderia, com base no mesmo critério, a um valor aproximado de € 162.661.700,5). Recorde-se aliás, como anteriormente se deixou exposto, que este lote de ações foi avaliado novamente, em 21 de dezembro de 2016, com base na mesma fórmula de cálculo, mas já com a redação que foi dada à norma legal em apreço pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, em que o fator de capitalização dos resultados líquidos foi calculado com base na taxa de juro de refinanciamento do BCE, acrescida de um spread de 4%, do qual resultou f = 25. De acordo com essa avaliação, foi atribuído a este lote de 6.910 ações o valor de € 472.389,70. Ou seja, estas ações teriam sofrido uma desvalorização, diga-se meramente artificial, por força da introdução (pelo próprio legislador) de um mecanismo destinado à correção da distorção gerada pelo facto de a taxa de refinanciamento do BCE se encontrar em valores (anormalmente) baixos.   Fica, assim, patente que a aplicação do segmento normativo sindicado conduziu a um resultado de avaliação do valor de “Va” – e, consequente, liquidação em sede de Imposto do Selo – que padece de erro manifesto. Perante o exposto, é forçoso concluir que o segmento normativo constante da variável f, integrada na fórmula prevista na alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, em que o fator de capitalização f = 100/0,05 (ou f = 2000), por aplicação da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial da União Europeia, em vigor na data em que ocorreu a transmissão, viola o princípio da proporcionalidade, enquanto proibição de excesso.”

 

Tendo com conta a situação factual e preceito legal em análise na douta decisão do TC haverá que concluir que a mesma não versa sobre a matéria em apreço nos presentes autos.

 

Analisando os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, como se extrai desta decisão do TC:

A respeito dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, afirmou-se no Acórdão n.º 590/15:

«O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, pág. 155). Como pressuposto e critério de tributação, o princípio da capacidade contributiva “de um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” (CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 157).

Assim o tem afirmado o Tribunal Constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.º 84/2003:

«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (…) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). (…) Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (…)».

Este Tribunal tem, todavia, salientado que o princípio da capacidade contributiva não dispensa o concurso de outros princípios constitucionais. Como se referiu no Acórdão n.º 711/2006, «é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal». E prossegue: «Averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das circunstâncias e fatores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores jurídicos, em sede de controlo da constitucionalidade, como um princípio negativo (…) - como proibição do arbítrio».

Em suma, na síntese do Acórdão n.º 695/2014, “o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional”.

  O princípio da igualdade tributária é um corolário do princípio da igualdade perante a lei, consagrado no artigo 13.º da Constituição. Ora, tal princípio não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado, nem constitui função deste princípio garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais, coerentes ou correspondem à melhor solução possível. Neste sentido, pode ainda trazer-se à colação a posição firmada no Acórdão n.º 546/2011:

«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de  sistemas  legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003  – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada  razão.  É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por  desrazoabilidade,  as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e  desrazoavlmente  diverso, no sentido acima exposto – de posições  jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis

 

Por seu turno, quanto a uma eventual ofensa do princípio da tributação pelo rendimento real e, também, da proporcionalidade, por se considerar excessivo o valor apurado, refere o TC no mesmo acórdão que “no domínio da chamada «constituição fiscal», por força dos princípios formais e materiais que conformam o conceito constitucional de imposto e das garantias que são conferidas aos contribuintes, o exercício, por parte do Estado, do poder de tributar não pode ser concebido como uma afetação ou restrição de direitos fundamentais (cf. Acórdãos nºs. 846/2014 e 362/2016). O pagamento do imposto surge como um dever fundamental do contribuinte, orientado para a satisfação das necessidades públicas, e não como afetação de um direito, desde que respeitados os limites que decorrem do artigo 103.º da Constituição.

Porém, como se fez notar naquele aresto, «se a conceção constitucional de tributo» […] é inimiga de qualquer construção que veja similitudes entre estas imposições e as vulgares restrições a direitos, liberdades e garantias, tal como estas últimas são reguladas pelo artigo 18.º da CRP, nem por isso se dispensa, quanto a elas, o requisito ou crivo da proporcionalidade, enquanto expressão de um princípio que, como já se disse, vale em Estado de direito (artigo 2.º) para todo o agir estadual. […].» Ora, sendo certo que, como adverte o Acórdão n.º 285/2020, seja qual for o método de avaliação utilizado, «assiste uma inescapável margem de incerteza: não existe um «valor exato» quando se trata de avaliar uma determinada empresa», a liberdade tipificadora ou conformadora do legislador não pode deixar de ser sujeita a controlo, não podendo o legislador fazer uso de critérios que conduzam a um resultado de avaliação totalmente arbitrário, sem substrato ou aderência à realidade económica, ou eivado de «erro manifesto».

O princípio da proibição do excesso surge, assim, como parâmetro e princípio de controlo da atuação dos poderes públicos. Como se referiu no Acórdão n.º 362/2016, «o princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, pelas suas conotações históricas e devido à sua natureza de “princípio fundamental”, é expressão da ideia de que a garantia da liberdade, igualdade e segurança dos cidadãos se funda na sujeição do poder público a normas jurídicas: um Estado informado pela ideia de Direito não pode, sem negar a sua essência, ser um Estado prepotente, arbitrário ou injusto (cfr. os Acórdãos n.ºs 205/2000 e 491/2002)». Nessa mesma perspetiva, o Acórdão n.º 73/2009 entendeu «o princípio da proporcionalidade [como um] princípio geral de limitação do poder público que pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito, impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado (também o Estado legislador) adequar a sua ação aos fins pretendidos, e não estatuir soluções desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas». Na síntese do Acórdão n.º 387/2012, «o Estado de direito não pode deixar de ser um “Estado proporcional”».

 

No caso em apreço nos presentes autos não se vislumbra qualquer violação de qualquer um dos princípios suscitados pelos Requerentes. Na verdade, não se extrai qualquer comportamento ou interpretação heterogénea ou discriminatória, não se mostrando, por qualquer forma, incongruente ou arbitrária a solução legal e respetiva interpretação que a AT aplicou ao caso.

Sendo de concluir que, como com os fundamentos descritos e que se extrai da própria decisão do TC, que a dimensão normativa objeto de apreciação não colide com o princípio da igualdade fiscal e, por essa via, não atinge o princípio da capacidade contributiva, entendido este, nos termos anteriormente referidos, como um critério de «autovinculação» do legislador.

 

Quanto à eventual ofensa do princípio da tributação real , da proporcionalidade e proibição do excesso, também com a fundamentação a que o TC aludiu e supra se referiu cumpre verificar se, no caso concreto, se perspetiva qualquer violação deste princípio.

Na realidade o que está em causa nos autos é a tributação das quotas tendo em conta o último balanço que corresponde ao balanço de encerramento de contas do exercício económico anterior à transmissão das quotas, nos termos dos n.os 1 e 2 do art. 15.º do CIS. Tudo o mais consubstancia uma produção factual, posterior ao facto jurídico em apreço nos autos.

 

Não se traduzindo, para além disso, num resultado arbitrário ou frontalmente iníquo ou excessivo, que permita concluir pela violação do princípio da proibição do excesso, contendo-se dentro dos limites da liberdade de conformação do legislador. 

 

Improcede, desta forma, a pretensão dos Requerentes quanto a esta matéria.

 

*

 

Conclui, assim, este Tribunal pela legalidade dos atos impugnados.

 

Tendo em conta a posição assumida supra fica prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão.

 

Face ao exposto, devem as liquidações impugnadas ser mantidas na ordem jurídica, por legais.

 

 

Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais

 

Nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do CPC (ex vi 29.º, nº 1, alínea e) do RJAT), deve ser estabelecido que será condenada em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

Neste âmbito, o n.º 2 do referido artigo concretiza a expressão “houver dado causa”, segundo o princípio do decaimento, entendendo que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

 

Nestes termos, tendo em consideração o acima exposto, a responsabilidade em matéria de custas arbitrais deverá ser dos Requerentes. 

 

 

IV.          Decisão

 

Nestes termos, este Tribunal Arbitral Singular decide julgar improcedentes os pedidos de pronúncia arbitral com as legais consequências.

 

 

V.            Valor do processo

 

Tendo em consideração o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1 do CPPT e no artigo 3.º, nº. 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 3.766,00.

 

 

VI.          Custas

 

Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas do Processo Arbitral em € 612,00 a cargo dos Requerentes, de acordo com o artigo 22.º, n.º 4 do RJAT.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa e CAAD, 30 de março de 2023

 

A Árbitra,

 

 

(Marisa Almeida Araújo)