Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 159/2022-T
Data da decisão: 2023-03-22  IMT  
Valor do pedido: € 37.425,58
Tema: IMT - Partilha de bens comuns do casal
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SUMÁRIO:

A partilha por divórcio de uma quota que é bem comum do casal, não constitui um ato de transmissão ou cessão de quotas, para efeitos de aplicação da alínea d), n.º 2 do artigo 2.º do CIMT.

***

Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 24-05-2022, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.

1. RELATÓRIO

A..., contribuinte fiscal número..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Maia (doravante, abreviadamente designado de “Requerente), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação das liquidações de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”) n.º ..., emitida em 21-12-2021, no valor de € 11.640,14 e nº...., emitida em 21-12-2021, no valor de €25.785,44.

O Requerente peticiona a anulação dos referidos atos de liquidação de IMT, peticionando também a restituição dos montantes pagos, acrescido de juros legais.

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 14-03-2022 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 14-03-2022.

Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral, com árbitro singular, a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal. 

Em 04-05-2022 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. 

Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 24-05-2022.

A Requerida, através de despacho arbitral proferido em 25-05-2022, foi notificada para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.

Em 29-06-2022, a Requerida, apresentou a sua Resposta, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição dos pedidos.

Por despacho de 04-07-2022, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas, tendo também sido determinada a notificação da AT para remeter ao tribunal arbitral, cópia do processo administrativo.

Em 03-08-2022, o Requerente apresentou alegações escritas, nas quais reiterou a posição anteriormente assumida na petição inicial.

A AT não apresentou alegações escritas, nem procedeu à junção do processo administrativo (doravante, “PA”) aos autos.

Por despachos de 21-11-2022 e de 20-01-2023, foi determinada, nos termos do disposto na norma do artigo 21º-2 do RJAT, a prorrogação, pelo período de dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral nestes autos.

 

2. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou suscitadas questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

 

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. MATÉRIA DE FACTO

3. 1.1. Factos provados

Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

A)   O Requerente, em 01-03-2014, casou com B..., sob o regime da comunhão de adquiridos. 

B)   A sociedade C..., Unipessoal, Lda., com o NIPC..., foi constituída no ano de 2016, com o capital social de 5.000,00 €, composto por uma única quota no valor nominal de 5.000,00 €, titulada em nome do Requerente [cf. certidão do registo comercial da sociedade, com o código de acesso n.º...].

C)   A sociedade D..., Lda., com o NIPC..., foi constituída no ano de 2017, com o capital social de 5.000,00 €, composto por duas quotas, uma quota no valor nominal de 4.950,00 €, titulada em nome do Requerente e uma quota no valor nominal de 50,00 €, titulada em nome de A... [cf. certidão do registo comercial da sociedade, com o código de acesso n.º...].

D)   Em 10-09-2021, o casamento do Requerente foi dissolvido, por divórcio por mútuo consentimento, que correu os seus termos na Conservatória do Registo Civil do Porto, no âmbito do processo n.º.../2021.

E)    Por escritura pública de “Divisão de Coisa e Partilha Subsequente ao Divórcio”, outorgada em 29-10-2021, o Requerente e a sua ex-cônjuge procederam à partilha do património comum e ainda, à divisão de coisa comum de três bens imóveis adquiridos em compropriedade antes da data da celebração do casamento [cf. documento n.º 3 junto à P.I.[1]].

F)    O património comum do casal compreendia, entre outros bens [cf. documento n.º 3 junto à P.I.]:

i.               Uma quota titulada em nome do Requerente, no valor nominal de € 5.000,00, no capital social da sociedade comercial "C..., Unipessoal, Lda.", com o NIPC...;

ii.             Uma quota titulada em nome do Requerente, no valor nominal de € 4.950,00, no capital social da sociedade comercial " D..., Lda.", com o NIPC....

G)   A sociedade “ C..., Unipessoal, Lda.", em 21-12-2021, era proprietária dos seguintes (nove) imóveis [cf. Cópia da liquidação impugnada, junta à P.I.]:

i.               Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-..., da União de freguesias de ... e -..., concelho de Matosinhos;

ii.             Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-S, da União de freguesias de ... e -  ..., concelho de Matosinhos;

iii.            Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-A, da freguesia de ..., concelho do Porto; 

iv.            Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-C, da freguesia de ..., concelho do Porto; 

v.              Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-L, da freguesia de ..., concelho do Porto; 

vi.            Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-O, da freguesia de ..., concelho do Porto; 

vii.          Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-Q, da freguesia de ..., concelho do Porto;

viii.         Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-V, da freguesia de ..., concelho do Porto; 

ix.            Prédio inscrito na matriz sob o artigo U-...-Y, da freguesia de ..., concelho do Porto.

H)   A sociedade “D..., Lda.", em 21-12-2021, era proprietária do prédio inscrito na matriz sob o artigo U-..., da união de freguesias de ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto [cf. Cópia da liquidação impugnada, junta à P.I.].

I)     Da escritura de divisão de coisa comum e partilha subsequente ao divórcio, identificada em E), resultaram, entre outras, as seguintes adjudicações [cf. documento n.º 3 junto à P.I.]:

i.               Adjudicação à ex-cônjuge do Requerente, em pagamento da sua quota parte em cada um dos imóveis, da totalidade dos três bens imóveis que ambos detinham em compropriedade, no valor atribuído de 373.164,79 €; 

ii.             Adjudicação ao Requerente, em pagamento da sua meação nos bens comuns, da totalidade da quota titulada em seu nome, no valor nominal de € 5.000,00, no capital social da sociedade comercial "C..., Unipessoal, Lda. e da totalidade da quota titulada em seu nome no valor nominal de € 4.950,00, no capital social da sociedade comercial "D..., Lda.", correspondente, respetivamente, às verbas 6 e 8 do ativo a partilhar.

J)     O valor global dos bens do ativo a partilhar era de 2.339.164,80 €, cabendo a cada um dos ex-cônjuges a título de meação, o valor de 1.169.582,40 € [cf. documento n.º 3 junto à P.I.].

K)   Ao Requerente foram adjudicadas e ficaram a pertencer-lhe por inteiro, para além das quotas das sociedades antes identificadas em I/ii), os bens identificados nas verbas 5, 7, 9, 10, 11, 12 e 15 do ativo a partilhar, no valor global de 1.356.164,80 €, levando a mais do que lhe cabe em pagamento da sua meação no ativo, a quantia de 186.582,40 € [cf. documento n.º 3 junto à P.I.].

L)    À ex-cônjuge do Requerente, foram adjudicadas e ficaram a pertencer-lhe por inteiro, os bens identificados nas verbas 1, 2, 3, 4, 13 e 14 do ativo a partilhar, no valor global de 983.000,00 €, levando a menos do que lhe cabe em pagamento da sua meação, a quantia de 186.582,40 €, que teria direito a receber do Requerente, a título de tornas [cf. documento n.º 3 junto à P.I.].

M)  O Requerente e a sua ex-cônjuge, na mencionada escritura de partilha, declararam que “na sequência da aludida divisão de coisa comum, a outorgante B..., teria de pagar ao segundo outorgante A..., a quota parte deste no ativo dos bens a dividir, no montante de CENTO E OITENTA E SEIS MIL QUINHENTOS E OITENTA E DOIS EUROS E QUARENTA CÊNTIMOS; débito este que se extingue na sua totalidade por compensação com o seu crédito de tornas na partilha subsequente ao seu divórcio, em igual montante de CENTO E OITENTA E SEIS MIL QUINHENTOS E OITENTA E DOIS EUROS E QUARENTA CÊNTIMOS, que o aludido A..., teria de lhe pagar na sequência da mesma; QUE DESTE MODO DÃO POR CONCLUÍDA ESTA DIVISÃO DE BEM COMUM E PARTILHA SUBSEQUENTE AO SEU DIVÓRCIO, CONSIDERANDO-SE INTEIRA E RECIPROCAMENTE PAGOS, NADA MAIS TENDO A RECLAMAR OU EXIGIR NA SEQUÊNCIA DAS MESMAS” [cf. documento n.º 3 junto à P.I.].

N)   Em 21-12-2021, o Requerente fez a participação da escritura de partilha junto da AT, através da apresentação das Declarações Modelo 1 de IMT com os n.ºs 2021/... e 2021/... [cf. cópia das liquidações impugnadas, juntas à P.I.].

O)   Em 21-12-2021, a AT emitiu as seguintes liquidações, objeto de pronúncia arbitral [cf. cópia das liquidações impugnadas, juntas à P.I.]:

                        i.         Liquidação de IMT com o nº...., emitida em 21-12-2021, com data limite de pagamento a 22-12-2022, no valor de € 11.640,14;

                      ii.         Liquidação de IMT com o n.º ..., emitida em 21-12-2021, com data-limite de pagamento a 22-12-2022, no valor de € 25.785,44.

P)    Consta das referidas liquidações que estas tiveram por base o facto tributário “20 – Aquisição/Cessão de partes sociais nas sociedades que possuam bens imóveis” [cf. cópia das liquidações impugnadas, juntas à P.I.].

Q)   Da liquidação de IMT com o nº...., consta no campo destinado a observações [cf. cópia da liquidação impugnada, junta à P.I.]:

“Partilha de quotas da sociedade comercial com o NIPC..., por dissolução do casamento em que um dos sócios era detentor de 100% do capital social, no estado civil de casado, sob o regime da comunhão de adquiridos, pelo que cada um dos cônjuges era detentor de 50% e passa a deter a outra parte da quota representativa de 50%, ficando por este ato a deter 100% do capital social. “

R)   Da liquidação de IMT com o nº...., consta no campo destinado a observações [cf. cópia da liquidação impugnada, junta à P.I.]:

“Partilha de quotas da sociedade comercial com o NIPC ..., por dissolução do casamento em que um dos sócios era detentor de 99% do capital social, no estado civil de casado, sob o regime da comunhão de adquiridos, pelo que cada um dos cônjuges era detentor de 49,50% e passa a deter a outra parte da quota representativa de 49,50%, ficando por este ato a deter 99% do capital social. “

S)    A AT fundamentou os aludidos atos tributários de liquidação na alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º do CIMT, considerando que do ato constante no documento de divisão de coisa comum e partilha, resultaram transmissões a título oneroso, do direito de propriedade, sobre os bens imóveis de que as sociedades comerciais C..., Unipessoal Lda. e D... Lda. são proprietárias, passando por esta via o ora Requerente a ser o único proprietário de tais quotas, excedendo assim a percentagem de 75% de propriedade das ditas sociedades [cf. cópia das liquidações impugnadas, juntas à P.I.].

T)    O Requerente, em 21-12-2021, procedeu ao pagamento das liquidações de IMT aqui impugnadas, melhor identificadas em O) [cf. documentos n.ºs. 1 e 2 juntos à P.I.].

U)   Em 11-03-2022, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]. 

 

3.1.2. Factos considerados não provados

Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.

 

3.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente os documentos juntos pelo Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.

Finalmente, importa sublinhar que a questão essencial a decidir é de direito e assenta na prova documental junta aos autos pelo Requerente, não contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3.2. MATÉRIA DE DIREITO

3.2.1 Objeto do litígio

A questão que constitui o thema decidendum e que importa decidir respeita à apreciação da legalidade das liquidações de IMT sindicadas nos presentes autos, provenientes da partilha por divórcio de quotas em sociedades comerciais detentoras de bens imóveis, em que por via dessa partilha um dos cônjuges fica titular de mais de 75% do capital social, havendo que verificar se no caso em apreço nos encontramos perante uma transmissão de quotas, sujeita a IMT, por via da aplicação da alínea d) do n.º 2 no artigo 2.º do Código do IMT (CIMT), como defende a AT ou se, pelo contrário, deve ser entendido que não ocorreu qualquer transmissão sujeita a tributação em sede de IMT, como sustenta o Requerente.

 

3.2.2 - Posição das partes

O Requerente defende para fundamentar a sua posição e o pedido que deduz, em síntese, que:

a)     No caso concreto, e por via da partilha efetuada não houve transmissão (quer a título oneroso, quer a título gratuito) do direito de propriedade sobre os bens imóveis em causa, uma vez que a aplicação da norma do artigo 2º, nº 2, alínea d) do CIMT pressupõe que ocorra uma aquisição de quotas nas sociedades em questão, e tal não aconteceu, porque as quotas já eram tituladas em seu nome; que mesmo que assim não se entenda,

b)    Não existiu uma transmissão, a título oneroso, do direito de propriedade sobre os bens imóveis em causa, uma vez que no caso em apreço, materialmente não houve lugar ao pagamento de tornas; ainda, mesmo que se entenda que houve transmissões do direito de propriedade e que essas transmissões foram onerosas, 

c)     A AT deveria ter aplicado o regime de exclusão de incidência previsto no n.º 6 do artigo 2.º do CIMT.

A AT, por seu turno para sustentar a sua posição, defende em síntese, que:

a)     O Requerente, no estado civil de casado, sob o regime de comunhão de adquiridos, era detentor de 100% e 99% do capital social, respetivamente, das sociedades C..., Unipessoal, Lda. e da sociedade comercial D... Lda..

b)    Por via da escritura de partilha outorgada a 29-10-2021, a ex-cônjuge do Requerente cedeu-lhe, as quotas, a que teve direito, por via do divórcio, correspondentes a 50% e 49,50% do capital social de cada uma das referidas sociedades, passando o Requerente, com esta transmissão, a deter 100% e 99% do capital social das sociedades em causa.

c)     O que deu origem às liquidações de IMT aqui impugnadas, não foi a partilha em si, mas apenas e só a referida transmissão de 50% e 49,50%, respetivamente, das quotas das sociedades, para o Requerente.

d)    A aquisição de 50% e 49,50%, respetivamente, das quotas das sociedades “C..., Unipessoal, Lda." e "D..., Lda.”, pelo Requerente à sua ex-esposa, através de escritura pública outorgada a 29-10-2021, configura uma transmissão de quotas de sociedades por quotas que possuem bens imóveis, em que um dos sócios ficou a dispor de, pelo menos 75% do capital social, sujeita a IMT, nos termos do previsto na alínea d) do n.º 2 no artigo 2.º do CIMT.

 

3.2.3. Apreciação da questão

O artigo 1.º, nº 1 do CIMT, estabelece as regras de incidência geral do IMT, estatuindo que “O imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) incide sobre as transmissões previstas nos artigos seguintes, qualquer que seja o título por que se operem”. 

Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 1 do CIMT, estabelece as regras de incidência objetiva e territorial do IMT, estatuindo que: “O IMT incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional”. 

Para além da sujeição a IMT das transmissões onerosas de direitos de propriedade (ou figuras parcelares deste direito), prevista no n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, o legislador tipificou nos subsequentes nºs. 2 e 3 do mesmo artigo, outras situações que justificam a tributação em sede deste imposto, configurando todas elas situações que integram o conceito de “transmissão de bens imóveis” e que têm como requisito subjacente a onerosidade da transmissão.

No que ao caso dos autos interessa, importa olhar para a norma da alínea d) n.º 2 do artigo 2.º do Código do IMT que dispõe que, para efeitos do n.º 1, integram, ainda, o conceito de transmissão de bens imóveis: 

A aquisição de partes sociais ou de quotas nas sociedades em nome coletivo, em comandita simples, por quotas ou anónimas, quando cumulativamente:

i)               O valor do ativo da sociedade resulte, direta ou indiretamente, em mais de 50 % por bens imóveis situados em território nacional, atendendo ao valor de balanço ou, se superior, ao valor patrimonial tributário;

ii)             Tais imóveis não se encontrem diretamente afetos a uma atividade de natureza agrícola, industrial ou comercial, excluindo a compra e venda de imóveis;

iii)           Por aquela aquisição, por amortização ou quaisquer outros factos, algum dos sócios fique a dispor de, pelo menos, 75 % do capital social, ou o número de sócios se reduza a dois casados ou unidos de facto, devendo em qualquer dos casos as partes sociais ou quotas próprias detidas pela sociedade ser proporcionalmente imputadas aos sócios na proporção da respetiva participação no capital social.”

 

Analisando a norma em questão, impõe-se desde logo concluir que nas situações aí previstas, para que exista sujeição a imposto, é necessário que ocorra uma transmissão de participações sociais ou de quotas numa sociedade emnome coletivo, em comandita simples, por quotas ou anónimas.

No caso em apreço, a AT sustenta que existiu uma transmissão de quotas, afirmando que por via da escritura de partilha “a ex-cônjuge esposa cede ao seu ex-marido, ora Requerente, as quotas, a que teve direito, por via do divórcio, correspondentes a 50% e 49,50% do capital social de cada uma das sociedades”.

Vejamos se assim é.

Em face da matéria de facto tida como provada (cf. Pontos A), B) e C) dos factos provados), é seguro afirmar que as quotas em questão, desde a constituição das duas sociedades, estavam tituladas em nome do Requerente e foram adquiridas na constância do casamento do Requerente, celebrado no regime de comunhão de adquiridos, tratando-se por isso de um bem que integra o património comum do casal, nos termos do disposto no artigo 1724º, nº. 1 do Código Civil.

A caracterização jurídica do património comum do casal é feita por RITA LOBO XAVIER nos termos que seguidamente se transcrevem, na parte aqui considerada relevante[2]:

“Em primeiro lugar, quero lembrar que, no ordenamento jurídico português, “partilha”, em rigor, designa a forma de pôr fim a situações de comunhão, hereditária ou conjugal. O divórcio dissolve o casamento, fazendo cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, sendo a partilha a forma de divisão do património, sempre que o regime de bens foi um regime de comunhão. No entanto, os problemas de que vou tratar não se colocam apenas nos regimes de comunhão, como se verá. Não irei apenas referir-me a situações de partilha do património comum, mas a questões a que, em termos mais amplos e na falta de melhor palavra, poderei denominar por liquidação do regime de bens. Em segundo lugar, queria sublinhar o conceito de património em sentido jurídico, na sua noção mais elementar e clássica, em que é caracterizado por três notas: 1) conjunto de relações jurídicas (ativas e passivas), 2) suscetíveis de avaliação pecuniária, 3) ligadas entre si por um elemento unificador (por exemplo, a identidade do sujeito titular ou a afetação a um fim). Quando o regime de bens do casamento é um regime de comunhão, à massa de bens comuns reconhece-se a natureza jurídica de património autónomo – embora sem total autonomia – separado e coletivo. Tendencialmente, é frequente que estas três qualificações sejam referidas como sobrepostas e quase idênticas, no entanto, as perspetivas de abordagem que supõem são diferentes. Muito resumidamente, direi que a perspetiva da autonomia é a da responsabilidade por dívidas. Reconhece-se que o património comum é autónomo, em atenção à sua especial afetação, na medida em que a sua finalidade é responder pelas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges (n.º 1, do artigo 1695.º). No entanto, não pode afirmar-se a sua completa autonomia, uma vez que não é apenas o património comum que responde por essas dívidas, mas, na subsidiária e solidariamente os bens próprios de cada um dos cônjuges. A perspetiva da separação tem em conta a independência da massa de bens comuns no contexto das massas de bens próprios dos cônjuges e por referência a cada um deles como titular de um património pessoal. O património comum é um património separado, na medida em que é uma massa de bens independente das massas de bens constituídas pelos bens próprios de cada um dos cônjuges, sendo cada um deles titular dos seus bens próprios e do direito a metade do património comum (meação). A perspetiva do património coletivo considera a situação de contitularidade. Os bens comuns constituem um património coletivo na medida em que cada um dos cônjuges é contitular de um direito sobre a massa dos bens comuns, como um todo, não sendo contitular de um direito sobre cada uma das coisas nela integradas. Cada um dos cônjuges é titular do direito a metade do mesmo (direito de meação), direito de que não podem dispor antes da dissolução do casamento, da separação de pessoas e bens ou da separação judicial de bens.” (o sublinhado é nosso).

De acordo com Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[3], "os bens comuns constituem uma massa patrimonial que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela".

Na vigência da sociedade conjugal os cônjuges são simultaneamente titulares de um único direito sobre a quota social que integra um bem comum, e em vista da partilha cada um dos cônjuges participa por metade no ativo e no passivo da comunhão (artigo 1730º, nº. 1, do Código Civil.).

Normalmente, enquadram a comunhão conjugal todos os bens cuja aquisição resulta da ação comungada de ambos os cônjuges, como sucede com o trabalho de cada um deles e com os bens adquiridos a título oneroso na constância do matrimónio[4]. É a existência de bens comuns que constitui a nota fundamental do regime de comunhão de adquiridos.  Bens comuns que estão especialmente afetados aos encargos da sociedade conjugal e que constituem um património autónomo, sujeito a regime especial[5]. Comunhão que se mantém enquanto persistir a sociedade conjugal, a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos (artigo 1695º, nº. 1 do Código Civil).

Esta estrutura leva a doutrina a qualificar os bens comuns dos cônjuges como propriedade coletiva, propriedade de mão comum, cujos sujeitos são ambos os cônjuges, numa comunhão una, indivisível e sem quotas[6]. E o direito à meação de que cada um dos cônjuges é titular só é determinável após a dissolução da sociedade conjugal ou da comunhão entre os cônjuges. 

Esta é a tese maioritariamente acolhida na doutrina e na jurisprudência, que qualifica a comunhão conjugal como uma propriedade coletiva, que pertence em comum aos cônjuges, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. 

Feito este enquadramento, analisemos então o caso em concreto.

No caso em apreço, resultou provado que o Requerente era titular das quotas em questão desde a data de constituição das duas sociedades, e que estas são inquestionavelmente um bem comum dos cônjuges.

Aqui chegados, debrucemo-nos sobre os termos da partilha e os seus efeitos sobre as quotas das mencionadas sociedades. 

Temos por seguro afirmar, que a partilha ocorrida se destinou a pôr fim à situação de indivisão das quotas das sociedades, que constituíam bem comum dos cônjuges.

Por via daquela partilha, e ao contrário do sustentado pela AT, não se cederam ou transmitiram quotas constituídas sobre os bens, mas antes se adjudicaram bens para preencher a quota por direito de meação de cada um dos cônjuges.

Também ao contrário do sustentado pela AT, na partilha em causa individualizou-se a propriedade dos bens comuns, não se adicionando quotas de propriedade àquela que o adquirente já possuía naqueles bens.

Entendemos assim que no caso sub judice, a partilha das quotas das mencionadas sociedades, não consubstancia uma cessão ou transmissão daquelas quotas a favor do Requerente. 

Neste mesmo sentido, entendeu o Acórdão do STJ, de 16/03/1999, in processo nº 6487/97, ao referir que a partilha em vida da quota não necessita do consentimento da sociedade ”por não ser um acto de transmissão, mas um negócio de natureza declarativa, com efeitos modificativos no objecto do direito.”

Afigurasse-nos assim que a partilha não é um negócio translativo. Por ela não se transmite um direito, apenas se faz a conversão da quota ideal do cônjuge sobre parte determinada da comunhão. A escritura de partilha não é um título aquisitivo, mas apenas declarativo de um direito[7]

Aliás, é este também o entendimento da doutrina, que julgamos ser dominante, que atribui à partilha efeito ou natureza meramente declarativa, não se constituindo, por ela, qualquer direito novo na esfera do adjudicatário dos bens. 

Em face do antes enunciado é forçoso concluir que, no caso em apreço e por via da escritura de partilha outorgada em 29-10-2021, não ocorreu uma transmissão ou cessão de quotas a favor do Requerente. 

O Requerente, antes da partilha (mais concretamente desde a data da constituição das sociedades) era já titular das quotas em questão. Tais quotas constituíam bem comum seu e da sua ex-cônjuge, sendo que com a partilha apenas se fez a conversão da quota ideal que o Requerente detinha na comunhão daqueles bens, não se operando por via da partilha qualquer transmissão daquelas quotas para o Requerente.

A partilha ocorrida não configura deste modo uma transmissão de quotas de sociedades por quotas que possuem bens imóveis, em que um dos sócios ficou a dispor de, pelo menos 75% do capital social, pelo que não há lugar à aplicação do disposto na alínea d) do n.º 2 no artigo 2.º do CIMT, não estando o ato de partilha sujeito a IMT, como foi considerado pela AT.

Importa ainda acrescentar que, mesmo que se considerasse que por via da partilha ocorreu uma transmissão de quotas a favor do Requerente, na sequência da qual este passou a ser titular de mais de 75 % do capital social das sociedades, esta transmissão só estaria sujeita a IMT, caso, cumulativamente, se verificassem também as demais condições previstas nos pontos i) e ii) da alínea d) do n.º 2 no artigo 2.º do CIMT, i.e. que “O valor do ativo da sociedade resulte, direta ou indiretamente, em mais de 50 % por bens imóveis situados em território nacional, atendendo ao valor de balanço ou, se superior, ao valor patrimonial tributário” e que “Tais imóveis não se encontrem diretamente afetos a uma atividade de natureza agrícola, industrial ou comercial, excluindo a compra e venda de imóveis”. Ora, tal factualidade nunca foi alegada, nem consequentemente resultou provada, sendo que, era sobre a AT que recaía o ónus da prova de tais factos, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º, da LGT, pelo que também por esta via, por falta de verificação dos requisitos previstos nos pontos i) e ii) da alínea d) do n.º 2 no artigo 2.º do CIMT, não haveria lugar à sujeição do ato de partilha a IMT.

Nestes termos, e atento os fundamentos expostos, há que concluir pela ilegalidade das liquidações impugnadas,pelo que se julga procedente o pedido de anulação dos atos tributários sub judice de liquidação de IMT (liquidação de IMT com o n.º..., emitida em 21-12-2021, no valor de € 11.640,14 e liquidação de IMT com o n.º ..., emitida em 21-12-2021, no valor de € 25.785,44), no montante total de € 37.425,58, formulado pelo Requerente.

 

3.2.4. Questões de conhecimento prejudicado

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com este fundamento, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC) o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo Requerente.

 

3.2.5. Do reembolso do imposto pago e do pagamento de juros indemnizatórios

Quanto ao pedido de reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, formulado pelo Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 

No caso em apreço, o erro que afeta as liquidações anuladas é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que o praticou sem o necessário suporte factual e legal.

Assiste assim, direito ao Requerente a ser reembolsado da quantia de € 37.425,58, que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 5, do RJAT) por força do ato anulado e ainda a ser indemnizado do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

4. DECISÃO

Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

1.     Julgar integralmente procedente o pedido formulado pelo Requerente, e em consequência: 

a)             Anular os atos tributários de liquidação do IMT, melhor identificados em O) dos factos provados (liquidação de IMT com o n.º..., emitida em 21-12-2021, no valor de € 11.640,14 e liquidação de IMT com o n.º..., emitida em 21-12-2021, no valor de € 25.785,44), no montante total de € 37.425,58;

b)             Condenar a Requerida no reembolso ao Requerente do imposto pago, no montante de €37.425,58;

c)             Condenar a Requerida no pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de € 37.425,58 por este pago.

2.     Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

5. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 37.425,58 (trinta e sete mil, quatrocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

6. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de março de 2023

O Árbitro

 

(Carla Almeida Cruz)

 



[1] Petição inicial do Requerente.

[2]In III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, Diálogo teórico-prático, 20 e 21 de fevereiro de 2019, Lisboa, em realização conjunta do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados e Centro de Estudos Judiciários, de que se encontra disponível e.book, nomeadamente, em

 https://www.ministeriopublico.pt/pagina/iiijornadas-de-direito-da-familia-e-das-criancas-dialogo-teorico-pratico-e-book. Pp. 37 e ss.

[3] In Curso de Direito da Família, I, Introdução, Direito Matrimonial, 5.ª ed., (com a colaboração de Rui Moura Ramos), Ed. Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 595-600.

[4] Eduardo dos Santos, “Direito de Família”, 1999, pág. 332.

[5] Antunes Varela, “Direito da Família”, I, 5ª ed., pág. 455.

[6] Antunes Varela, ibidem, págs. 456 e 457.

[7] Cf. nesse sentido Ac. STJ de12-09-2013, Revista n.º 1984/06.0TBCLD-C.L1.S1 - 1.ª Secção, Gregório Silva Jesus (Relator).