Sumário:
I - A legalidade dos actos de liquidação de IMI pode ser apreciada em processo de impugnação judicial com base em vícios imputáveis aos actos de fixação do valor patrimonial tributário, não obstante o disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código do IMI;
II - Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula consagrada no artigo 38.º do Código do IMI, por existirem regras específicas previstas no artigo 45.º do mesmo Código.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Hélder Faustino, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 13 de Dezembro de 2022, acorda no seguinte:
I. Relatório
A... S.A., doravante designado por “Requerente”, pessoa colectiva n.º ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo por objecto a apreciação da ilegalidade da presunção do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, formado a 2 de Agosto de 2022, e, consequentemente, dos actos tributários de liquidação de Imposto Municipal sobre os Imóveis (“IMI”) n.º 2020 ..., n.º 2020... e n.º 2020..., com referência ao ano de 2020, no montante global de € 20.757,70.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 26 de Setembro de 2022, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 13 de Dezembro de 2022.
Em 11 de Janeiro de 2023, a Requerida apresentou Resposta, com defesa por por excepção e por impugnação.
Por despacho arbitral de 19 de Janeiro de 2023, o Tribunal Arbitral concedeu ao Requerente prazo para se pronunciar sobre a excepção invocada pela Requerida, tendo sido dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, bem assim, a apresentação de alegações escritas. O Tribunal Arbitral designou a data de prolação da decisão arbitral e o Requerente foi advertido da necessidade de pagamento da taxa subsequente.
Em 27 de Janeiro de 2023, o Requerente apresentou Resposta à excepção invocada pela Requerida.
Posição do Requerente
Defende o Requerente que os coeficientes de afectação (estabelecido no artigo 41.º do Código do IMI), de localização (definido no artigo 42.º do Código do IMI), de qualidade e conforto (regulado no artigo 43.º do Código do IMI) e de vetustez (consagrado no artigo 44.º do Código do IMI) não eram aplicáveis aos “terrenos para construção”, não fazendo parte da fórmula de cálculo consagrada no n.º 1 do artigo 45.º do Código do IMI na redacção vigente à data dos factos tributários relevantes para efeitos dos actos tributários de liquidação de IMI em apreço.
Donde, os valores patrimoniais tributários dos “terrenos para construção” detidos pelo Requerente no ano 2020 ainda consideravam a aplicação (errónea, conforme defende o Requerente) dos coeficientes de localização, de afectação e / ou de qualidade e conforto, existindo um erro flagrante nos pressupostos de facto e de direito quanto à determinação dos valores patrimoniais tributários dos mesmos, erro este da responsabilidade exclusiva da Requerida, e que teve repercussões prejudiciais para o Requerente quanto ao IMI devido (e pago) no ano em apreço.
Consequentemente, qualquer erro nos pressupostos de facto e / ou de direito do qual resulte um erróneo cálculo dos valores patrimoniais tributários dos imóveis sobre os quais incide o acto tributário de liquidação de IMI e que, consequentemente, faz com que seja determinado um montante de imposto, superior ou inferior ao legalmente devido nos termos das normas do Código de IMI aplicáveis, constitui um vício que impõe a anulabilidade desse mesmo acto tributário.
Pelo que, não deveria o Requerente ter sido adstrito ao pagamento dos montantes de IMI liquidados em excesso, enfermando, assim, os actos tributários de liquidação deste imposto em crise, numa manifesta ilegalidade, por resultarem da evidente interpretação e aplicação erróneas do Direito aplicável, devendo os mesmos ser parcialmente anulados.
Defende, ainda, o Requerente que a aplicação do artigo 38.º do Código do IMI – em concreto, a aplicação dos coeficientes de avaliação ali previstos – na determinação do valor patrimonial tributário dos “terrenos para construção” sempre será manifestamente contrária ao princípio da legalidade tributária (cf. a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa).
Assim, a determinação do valor patrimonial tributário dos “terrenos para construção” deverá ser efectuada (exclusivamente) com base no regime consagrado no artigo 45.º do Código do IMI (à data dos factos tributários).
Pelo que, a interpretação do artigo 45.º do Código do IMI, no sentido de que os coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do Código do IMI devem ser atendidos no apuramento do valor patrimonial tributário deste tipo de prédios – por analogia ou outra técnica de interpretação –, sempre atentará contra o princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, ínsito na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
A título subsidiário, pretende, ainda, o Requerente que seja desaplicado, no caso concreto, a norma pretensamente extraída do artigo 45.º do Código do IMI, na redacção vigente à data da verificação do facto tributário, no sentido de que os coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do mesmo diploma deveriam ter aplicação na determinação do valor patrimonial tributário de terrenos para construção, por manifesta inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, e, consequentemente, seja declarada a ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IMI em apreço, porque assentes em normas inconstitucionais, sendo os mesmos prontamente anulados, com todas as consequências legais.
Posição da Requerida
Segundo a Requerida, mesmo que se considere ser aplicável à presente matéria atenta a especificidade do acto que fixa o valor patrimonial tributário o artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), o prazo para autorização da revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço, não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos “três anos posteriores ao do acto tributário”, previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT. Por isso, tendo em conta a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa e a data da respectiva avaliação dos terrenos para construção, ocorrida aos mais de 5 anos conclui-se necessariamente que o pedido de revisão oficiosa é intempestivo.
Defende, ainda, a Requerida que é comumente aceite que a letra da lei – artigo 78.º da LGT – não abrange os actos de avaliação patrimonial, que não são actos tributários, previstos no n.º 1, nem são actos de apuramento da matéria tributável previstos no n.º 4 daquela norma. Nem se verifica qualquer erro no acto de liquidação, o qual em cumprimento da lei foi calculado com base no valor patrimonial tributário constante na matriz predial. Não estando legalmente prevista a dedução de pedido de revisão oficiosa dos actos de avaliação de valores patrimoniais tributários, a pretensão do Requerente carece de fundamento legal.
Entende a Requerida que o acto que fixou o valor patrimonial tributário em vigor no período de tributação em apreço está consolidado na ordem jurídica, tendo a força de caso julgado.
E que os vícios do acto que definiu o valor patrimonial tributário não são susceptíveis de ser impugnados no acto de liquidação que seja praticado com base no mesmo, pois têm a força jurídica de caso julgado. Constitui jurisprudência assente, quer dos Tribunais judiciais quer dos Tribunais arbitrais, o entendimento que o acto de avaliação do valor patrimonial tributável é um acto destacável, autonomamente impugnável. Mais, os actos de fixação do valor patrimonial tributável não são actos de liquidação. São actos autónomos e individualizados com eficácia jurídica própria e directamente sindicáveis.
Reforça que, mesmo que assim não se entendesse, o pedido de revisão oficiosa sempre seria intempestivo face aos prazos previstos no artigo 78.º da LGT.
E que, apenas são passíveis de anulação os actos de fixação dos valores patrimoniais tributários que contrariam o recente e reiterado entendimento jurisprudencial sobre a fórmula de cálculo dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, nos casos em que não tenham decorrido cinco anos desde a respetiva emissão. Ou seja, por força do artigo 168.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), que as avaliações, em que foram considerados os coeficientes de localização e afectação na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, efectuadas há mais de cinco anos já não podem ser objecto de anulação administrativa por determinação legal.
Sobre a alegada violação do princípio constitucional da igualdade tributária, entende a Requerida que o que importa referir nesta sede não é a violação do princípio da igualdade tributária, mas sim a constitucionalidade do regime da consolidação dos actos administrativos tributários por falta da sua impugnação atempada. Sendo inatacável o acto que fixe o valor patrimonial tributário, a lei veda a possibilidade de se tornear a falta de impugnação contenciosa tempestiva reabrindo a usa impugnabilidade no sentido de vir a obter por esta via os efeitos típicos da impugnação que não foi efectuada no devido tempo.
Acrescenta que o pedido formulado pelo Requerente, como atrás ficou demonstrado, não está fundamentado na lei. E que o Tribunal Arbitral está obrigado a julgar de acordo com o direito constituído, estando impedido de julgar o processo de acordo com critérios da equidade. Concluindo que a pretensão arbitral do Requerente não está sustentada nem na lei nem no direito constituído, devendo ser julgada improcedente.
Mais, por estar a Requerida vinculada ao princípio da legalidade previsto na Constituição da República, artigo 266.º e concretizado no na LGT, artigo 55.º e CPA, artigo 3.º não pode deixar de dar integral cumprimento aos normativos que o legislador ordinário criou em vigor no ordenamento jurídico, conforme se verificou no caso em apreço.
Pelo que se impugna por infundado todo o aduzido no pedido de pronúncia arbitral que contrarie todo o exposto devendo decidir-se a final que os actos impugnados não padecem dos vícios que lhe foram assacados nem de nenhuns outros.
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Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à apreciação da legalidade dos actos tributários de IMI, referentes ao ano de 2020 e correspondentes juros indemnizatórios (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e foram suscitadas as excepções de intempestividade do pedido de revisão oficiosa, de falta de enquadramento legal do pedido de revisão oficiosa dos actos de avaliação de valores patrimoniais tributários, de inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do valor patrimonial tributário e por consolidação na ordem jurídica (tendo força de caso julgado) do acto de fixação desse valor, e ainda por impossibilidade legal de a Requerida determinar a anulação administrativa dos actos quando tenham já decorrido mais de cinco anos sobre a sua emissão, questões essas que serão analisadas abaixo.
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Fundamentação de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
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O Requerente é proprietário de diversos prédios, incluindo terrenos para construção.
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O Requerente foi notificado dos actos tributários de liquidação de IMI com as notas de cobrança n.º 2020..., n.º 2020... e n.º 2020 ..., referentes ao ano 2020.
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O Requerente procedeu ao pagamento, integral e atempado, das respectivas liquidações de IMI.
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As liquidações de IMI em apreço tiveram por base, para efeitos de determinação do valor tributável e do correspondente montante de IMI a pagar pelo Requerente, os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, valores estes que estavam fixados segundo a fórmula adoptada à data pela Requerida, a qual considerava a aplicação de coeficientes de afectação, localização e de qualidade e conforto (cf. cadernetas prediais urbanas juntas ao P.P.A.).
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Na sequência da jurisprudência constante do STA quanto à errónea aplicação dos coeficientes de afectação, localização e de qualidade e conforto na determinação dos valores patrimoniais de terrenos para construção, a Requerida veio corrigir o cálculo e a fixação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, deixando de aplicar tais coeficientes.
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Em 1 de Abril de 2022, o Requerente apresentou revisão dos actos tributários de liquidação de IMI em apreço com vista à aplicação dos valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, segundo a fórmula legalmente estabelecida no artigo 45.º do Código do IMI na sua redacção vigente à data dos factos tributários das liquidações de IMI – i.e. desconsiderando a aplicação dos coeficientes de localização, de afectação e / ou qualidade e conforto –, ao qual a Requerida não deu resposta.
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Em 23 de Setembro de 2022, o Requerente apresentou pedido de constituição do tribunal arbitral onde requer a anulação parcial dos actos tributários de liquidação de IMI em apreço e a correspondente restituição do imposto indevidamente pago, num montante de € 20.757,70.
2. Motivação da Decisão da Matéria de Facto e Factos não Provados
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal Arbitral que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção do árbitro fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos.
Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
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Do Direito
Da excepções invocadas pela Requerida
Como referido, foram suscitadas excepções de intempestividade do pedido de revisão oficiosa, de falta de enquadramento legal do pedido de revisão oficiosa dos actos de avaliação de valores patrimoniais tributários, de inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do valor patrimonial tributário e por consolidação na ordem jurídica (tendo força de caso julgado) do acto de fixação desse valor, e ainda por impossibilidade legal de a Requerida determinar a anulação administrativa dos actos quando tenham já decorrido mais de cinco anos sobre a sua emissão.
Vejamos.
A Requerida invoca que mesmo que se considere ser aplicável à presente matéria atenta a especificidade do acto que fixa o valor patrimonial tributário, o artigo 78.º da LGT, o prazo para autorização da revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço, não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos “três anos posteriores ao do acto tributário”, previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, pelo que tendo em conta a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa e a data da respetiva avaliação dos terrenos para construção, conclui que o pedido de revisão oficiosa é intempestivo.
No procedimento tributário, para além das impugnações administrativas típicas da reclamação graciosa e do recurso contencioso, pode haver ainda lugar a revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da AT, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
Por outro lado, entende a jurisprudência, com base no disposto na LGT, artigo 78.º, n.º 7, que a revisão oficiosa do acto tributário pode ser efectuada igualmente a pedido do sujeito passivo no prazo de quatro anos contados da liquidação quando houver erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito, independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação (cf., entre outros, os Acórdãos do STA, de 14 de Março de 2012, Processo n.º 01007/11, e de 8 de Março de 2017, Processo n.º 01019/14, e, na doutrina, Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 227-228; Serena Cabrita Neto / Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 605 e Leonardo Marques dos Santos, “A revisão do acto tributário, as garantias dos contribuintes e a fiscalidade internacional”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal, Vol. II, p. 14 e ss.).
Sendo admissível, por conseguinte, a revisão oficiosa dos atos tributários de liquidação por iniciativa do sujeito passivo com fundamento em erro nos pressupostos de facto ou de direito, e, em relação aos actos de liquidação de IMI, com base em errónea quantificação do valor patrimonial tributário, não há nenhum motivo para afastar a impugnabilidade dos actos de liquidação do imposto quando tenham sido objeto de pedido de revisão oficiosa que foi tácita ou expressamente indeferido.
Nesse sentido se pronunciou a decisão arbitral proferida no Processo n.º 500/2020-T, onde se refere que, “[s]endo o pedido de revisão oficiosa meio próprio para se obter a revisão de uma liquidação, mesmo quando inquinada por vicio de quantificação da matéria coletável que lhe serve de base, é meio próprio para conhecer tais questões o recurso judicial ou arbitral interposto no seguimento do silêncio administrativo quanto a tal pedido”.
Da factualidade assente, resulta sem sombra de dúvida que as liquidações de IMI em apreço tiveram por base, para efeitos de determinação do valor tributável e do correspondente montante de IMI a pagar pelo Requerente, os valores patrimoniais tributários dos terrenos para construção, valores estes que estavam fixados segundo a fórmula erroneamente adoptada à data pela AT, a qual considerava a aplicação de coeficientes de localização, de afectação e / ou de qualidade e conforto.
Recorde-se, ainda, que o pedido de revisão oficiosa em apreço foi submetido dentro do prazo legal de quatro anos consagrado no artigo 78.º da LGT – em 1 de Abril de 2022, sendo, consequentemente, tempestivo.
A Requerida invoca a falta de enquadramento legal de revisão oficiosa dos actos de avaliação de valores patrimoniais tributários, defendendo que é comumente aceite que a letra da lei – artigo 78.º da LGT – não abrange os actos de avaliação patrimonial, que não são actos tributários, previstos no n.º 1, nem são actos de apuramento da matéria tributável previstos no n.º 4 daquela norma.
Ora, conforme resulta de jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 31 de Outubro de 2019 – Processo n.º 2765/12.8BELRS: “A errada fixação do VPT, em 2003, pode ser arguida através do pedido de revisão oficiosa das liquidações, nos termos conjugados dos artigos 78.º da LGT e 115.º do CIMI, ainda que o contribuinte não tenha reagido atempadamente contra essa fixação.”.
Ou seja, independentemente da natureza destacável dos actos de avaliação de valores patrimoniais, a verdade é que as liquidações podem sempre ser colocadas em causa por via dos meios de defesa ao dispor no procedimento tributário.
Na senda do referido Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, a verdade é que deixando o sujeito passivo precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do valor patrimonial tributário fixado. Defender o contrário, é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da AT, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir.
Assim, no plano do Direito, o artigo 115.º do Código do IMI constitui uma válvula de escape para tais situações, devendo o respectivo mecanismo ser desencadeado pela AT, por sua iniciativa ou a impulso do interessado. Ora, uma das hipóteses contempladas neste normativo é a eliminação de erros de que resulte uma colecta de montante superior ao devido [cf. alínea c) do n.º 1].
Em suma, não pode proceder a excepção invocada pela Requerida, uma vez que restringir ou eliminar essa impugnabilidade constituiria, uma agressão manifesta ao princípio da tutela jurisdicional efectiva que consta do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, e na senda da jurisprudência mencionada acima, em regra, os actos da AT, com excepção dos actos viciados de nulidade, consolidam-se juridicamente se não forem impugnados nos prazos estabelecidos na lei. Todavia, mesmo fora das situações de nulidade, o legislador tributário, ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos sujeitos passivos, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria AT reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.
É o que sucede com o artigo 78.º da LGT, que prevê a possibilidade de revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro. O artigo 78.º da LGT consagra um verdadeiro direito do sujeito passivo, permitindo-lhe exigir da AT que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei.
Sendo certo que, da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela AT, ainda que sob impulso inicial do sujeito passivo, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços. O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um valor patrimonial tributário em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.
A Requerida invoca a inimpugnabilidade dos actos de liquidação decorrente de se ter consolidado na ordem jurídica o acto de fixação do valor patrimonial tributário, por considerar que está em causa a apreciação de actos administrativos em matéria tributária que não comportam a apreciação da legalidade do ato de liquidação (artigo 97.º, n.º 2, do CPPT).
Neste contexto, refere-se que existindo jurisprudência, que, invocando o princípio da impugnação unitária, considera que dos actos de fixação dos valores patrimoniais cabe impugnação contenciosa autónoma, pelo que, na falta de oportuna reacção jurisdicional, a fixação do valor patrimonial consolida-se na ordem jurídica e qualquer erro ou vício de que enferme não pode ser conhecido na impugnação deduzida contra o posterior acto de liquidação (cf. Acórdão do TCA Sul, de 27 de Abril de 2010, Processo n.º 03586/09).
No entanto, este entendimento jurisprudencial não tem correspondência com o conceito do acto destacável impugnável, nem interpreta adequadamente o princípio da impugnação unitária.
Tradicionalmente são designados como actos destacáveis aqueles que, ainda que não ponham termo ao procedimento ou a um seu incidente autónomo, produzem efeitos jurídicos externos e se tornam, como tal, directamente impugnáveis.
Note-se, no entanto, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), em conformidade com o também estabelecido no CPA, artigo 148.º, alargou o conceito de acto contenciosamente impugnável, colocando o acento tónico na eficácia externa do acto, isto é, na virtualidade de o acto produzir efeitos jurídicos no âmbito das relações entre a Administração e os particulares, independentemente de poder tratar-se de mero cato procedimental. Com efeito, o segmento inicial do CPTA, artigo 51.º, n.º 1 abre caminho à possibilidade de impugnação contenciosa de actos procedimentais, e não apenas de actos que ponham termo ao procedimento ou a uma fase autónoma desse procedimento, e aboliu, desse modo, o requisito de definitividade horizontal.
E, por outro lado, o n.º 3 desse artigo 51.º, confere um carácter de facultatividade à impugnação de actos procedimentais, não impedindo que o interessado possa impugnar o acto final, com base nos vícios que afetem o acto intermédio, excluindo apenas os casos em que o acto em causa tenha determinado a exclusão do interessado no procedimento (hipótese em que o acto praticado no decurso do procedimento representa já decisão final relativamente ao interessado excluído), bem como os demais casos em que a lei imponha especialmente o ónus de impugnação tempestiva de actos procedimentais (e.g., no âmbito do processo disciplinar, a impugnação de irregularidades processuais que se considerem supridas em caso de falta de reclamação até à decisão final – artigo 203.º, n.º 2, da Lei Geral do Trabalho na Função Pública) (cf., neste preciso sentido, Carlos Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, págs. 123-124).
Ora, o propósito do CPTA, artigo 51.º, n.º 3 é, pois, o de impedir que a maior abertura no plano da impugnabilidade de actos procedimentais que resulta dos n.º 1 e n.º 2 acarrete um agravamento da posição processual dos interessados: por isso se consagra a regra de que, quando o interessado não tenha impugnado um acto interlocutório susceptível de produzir efeitos lesivos na sua esfera jurídica, não fica precludida a faculdade de dirigir a impugnação contra o acto final do procedimento (cf. Mário Aroso de Almeida / Carlos Fernandes Cadilha Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Coimbra, pág. 374).
Por outro lado, quando o CPTA, artigo 51.º, n.º 3, parte final ressalva as “ilegalidades que digam respeito […] a ato que lei especial submeta a um ónus de impugnação autónoma”, pretende abranger os casos em que a lei avulsa que regule o procedimento específico em causa imponha especialmente o ónus da impugnação contenciosa de um certo acto procedimental, de modo a que as ilegalidades em que ele incorra não possam ser invocadas na reacção jurisdicional que venha a ser dirigida contra a decisão final do procedimento, não bastando, por isso, a mera menção, em lei especial, de que certo acto procedimental é passível de impugnação administrativa.
Nesse mesmo sentido deve ser interpretado o princípio da impugnação unitária a que se refere o CPPT, artigo 54.º, pelo qual “[s]alvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida”.
Segundo esta disposição, como actos interlocutórios autonomamente impugnáveis devem entender-se os “imediatamente lesivos”, ou seja, os actos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, a condicionam irremediavelmente, de tal modo que o acto interlocutório, se não for impugnado, consolida-se na ordem jurídica, e a decisão final do procedimento não pode ser impugnada com base em vícios atinentes a esse mesmo acto. E também aqueles relativamente aos quais exista lei expressa que, independentemente da imediata lesividade dos actos, preveja a impugnação contenciosa autónoma.
Revertendo à situação do caso concreto, justifica-se a referência, na parte que mais interessa considerar, às disposições do Código do IMI, artigos 76.º e 77.º, que são do seguinte teor:
“Artigo 76.º
Segunda avaliação de prédios urbanos
1 - Quando o sujeito passivo, a câmara municipal ou o chefe de finanças não concordarem com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos, podem, respetivamente, requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado.
[…]
Artigo 77.º
Impugnação
1 - Do resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial, nos termos definidos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
2 - A impugnação referida no número anterior pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial tributário do prédio.
3 - A iniciativa da impugnação a que se refere o n.º 1 cabe ao sujeito passivo, à câmara municipal ou à junta de freguesia, quando esta última seja beneficiária da receita.”
Ora, a remissão para o artigo o CPPT, que consta do Código do IMI, artigo 77.º, n.º 1, deve entender-se como feita para o artigo 97.º desse Código, que enumera as situações em que há lugar à impugnação judicial, no âmbito do processo judicial tributário, e entre as quais se conta a “impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais”, a que se refere o artigo 97.º, n.º 1, alínea f), desse Código.
O que resulta da interpretação conjugada do Código do IMI, artigos 76.º, n.º 1 e 77.º, n.º 1, é que do resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial e, por outro lado, a segunda avaliação de prédios urbanos, em que se incluem os terrenos para construção, pode ser requerida pelo sujeito passivo ou pela câmara municipal ou promovida pelo chefe de finanças, quando não concordarem com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos.
A segunda avaliação corresponde a uma forma de impugnação administrativa da avaliação direta, mas a lei não impõe ao sujeito passivo a utilização prévia desse meio de tutela administrativa como condição de acesso à via contenciosa, limitando-se a facultar ao interessado o direito a requerer uma segunda avaliação.
Importa fazer notar, a este propósito, que o CPA veio clarificar a distinção entre reclamações e recursos necessários e facultativos, dizendo que as reclamações e os recurso administrativos são necessários e facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos (artigo 185.º, n.º 1), e consagrando explicitamente a regra de que “as reclamações e os recursos têm caráter facultativo, salvo se a lei os denominar como necessários” (artigo 185.º, n.º 2), o que significa que apenas poderão ser consideradas impugnações administrativas necessárias aquelas que sejam expressamente qualificadas como tal por disposição legal.
Ora, não impondo a lei a obrigatoriedade de o sujeito passivo requerer uma segunda avaliação, nem podendo considerar-se essa segunda avaliação como uma impugnação administrativa necessária, não pode interpretar-se a norma do Código do IMI, artigo 77.º, n.º 1 como estabelecendo um ónus de impugnação judicial do acto fixação do valor patrimonial tributário que tenha resultado da segunda avaliação. Ou seja, uma vez que o Código do IMI, artigo 76.º, n.º 1 confere ao pedido de uma segunda avaliação um carácter meramente facultativo, o interessado não tinha de requerer essa segunda avaliação, não lhe sendo exigível, ao abrigo do subsequente artigo 77.º, que impugnasse judicialmente o resultado de uma segunda avaliação que não estava sequer vinculado a requerer.
Como é de concluir, o Código do IMI, artigo 77.º, n.º 1 ao dispor que do “resultado das segundas avaliações cabe impugnação judicial”, não pode ser interpretado como implicando um ónus processual de impugnação do ato de fixação do valor patrimonial tributário, o que apenas poderia suceder se o pedido de segunda avaliação, a que se refere o Código do IMI, artigo 76.º, n.º 1 tivesse sido previsto como uma forma de impugnação administrativa necessária destinada a permitir o ulterior acesso à via contenciosa.
Ora, o aludido artigo 76.º, n.º 1, limita-se a conferir ao interessado a faculdade de requerer uma segunda avaliação e, na situação do caso, não houve sequer uma segunda avaliação, por não ter sido requerida pelo interessado, nem promovida pelo Chefe de Finanças, pelo que não pode ser imposto ao sujeito passivo o ónus de impugnar judicialmente a fixação do valor patrimonial tributário que tenha resultado de uma segunda avaliação que nem sequer teve lugar.
Ainda no sentido de que a legalidade do acto de fixação do valor patrimonial tributário, apesar de ser um acto destacável, susceptível de impugnação autónoma, pode ser apreciada em processo de impugnação de liquidação que o tenha assumido como matéria colectável, se revelam as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.º 395/2021-T e n.º 672/2021-T, bem como o Acórdão do TCA Sul, de 31 de Outubro de 2019 (Processo n.º 2765/12), em cujo sumário se explicita que “a errada fixação do VPT, em 2003, pode ser arguida através do pedido de revisão oficiosa das liquidações, nos termos conjugados dos artigos 78.º da LGT e 115.º do CIMI, ainda que o contribuinte não tenha reagido atempadamente contra essa fixação”.
Concluindo-se pela impugnabilidade dos actos de liquidação de IMI com fundamento em errónea quantificação do valor patrimonial tributário, fica igualmente excluída a excepção de insidincabilidade dos actos de liquidação por vícios próprios do acto de fixação do valor patrimonial tributário, que é também invocada pela Requerida.
A Requerida alega, ainda, a propósito do regime da anulação administrativa, que, por efeito do CPA, artigo 168.º, os actos administrativos podem ser objecto de anulação administrativa no prazo máximo de cinco anos a contar da respetiva emissão, para concluir que, encontrando-se já precludido o prazo para anulação administrativa do acto que fixa o valor patrimonial tributário, este acto encontra-se sanado e produz efeitos jurídicos, nomeadamente para efeitos de cálculo de IMI.
Contudo, o novo CPA passou a distinguir entre revogação e anulação administrativa, fazendo corresponder cada uma destas figuras às duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e de revogação anulatória. A anulação administrativa prevista no actual CPA, ainda que com diferentes condicionalismos, não é, por conseguinte, mais do que o antigo instituto da revogação do acto administrativo por iniciativa da AT, ou a pedido do interessado, mediante a interposição reclamação graciosa ou recurso administrativo, a que se referiam os artigos 138.º e seguintes do CPA de 1991.
O decurso do prazo para a AT proceder à anulação administrativa de um acto administrativo não sana os vícios de que o acto possa padecer, mas implica apenas que os seus efeitos se tornam definitivos, adquirindo a força jurídica de caso decidido ou caso resolvido. Significa isto que o acto administrativo, enquanto decisão de uma autoridade administrativa, define o direito do caso concreto de forma estável (cf. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 2.º edição, Coimbra, pág. 163).
O caso decidido, no entanto, apenas releva na relação entre a AT e o particular, e não impede que o interessado lance mão dos meios processuais de impugnação contenciosa contra o acto administrativo, ainda que a AT não possa já anulá-lo administrativamente.
A anulação administrativa, quando ocorra, apenas tem como consequência que o particular deixa de ter interesse processual em impugnar o acto judicialmente. E caso a anulação administrativa se verifique na pendência de um processo de impugnação judicial, haverá lugar à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. Assim se compreende que o mesmo CPA, artigo 168.º n.º 3, declare que “[Q]uando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”.
A consolidação na ordem jurídica do acto administrativo anulável só opera, por conseguinte, quando tenha decorrido o prazo legalmente previsto para o interessado deduzir o competente meio processual de impugnação, na medida em que só pelo decurso desse prazo é o acto se torna inimpugnável jurisdicionalmente.
Qualquer outra solução implicaria a confusão entre a actividade administrativa com a função jurisdicional e contrariando flagrantemente o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
Uma vez que a anulação administrativa é um acto administrativo que se desenrola no âmbito de procedimento administrativo, e cuja prática se encontra na exclusiva disponibilidade da AT, é claro que as vicissitudes quanto à possibilidade de o acto ser anulado ainda no âmbito do procedimento, não interfere em nada com o direito processual dos interessados recorreram a uma instância jurisdicional.
E, assim, não só os vícios do acto de fixação valor patrimonial tributário se não encontram sanados com o caso decidido, como também o sujeito passivo não está impedido de impugnar jurisdicionalmente os actos de liquidação de IMI, com fundamento na errónea quantificação do valor patrimonial tributário.
Face a tudo o que anteriormente se expôs, improcedem as excepções invocadas pela Requerida.
Por outro lado, não tem cabimento a invocação pela Requerida do princípio da proibição legal do julgamento segundo a equidade.
Porquanto,
Os actos de liquidação de IMI são impugnáveis por vícios imputáveis ao acto de fixação do valor patrimonial tributário, e o Tribunal Arbitral limitar-se-á a apreciar estritamente as questões de legalidade segundo o direito constituído.
A questão que está em debate nos presentes autos consiste em saber se na determinação do valor patrimonial tributário de um terreno para construção, devem ser tomados em consideração os coeficientes de afectação, de localização e de qualidade e conforto, a que se refere o artigo 38.º do Código do IMI.
O Requerente defende o entendimento de que a avaliação de terrenos para construção em causa se rege exclusivamente pelo disposto no artigo 45.º Código do IMI, na redacção da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, não havendo qualquer norma de remissão para as regras gerais do artigo 38.º, concluindo assim que os actos de liquidação de IMI incorrem em erro nos pressupostos de facto e de direito quanto à determinação dos valores patrimoniais tributários.
Quanto à matéria de fundo, a Requerida considera que os serviços acolheram já o entendimento jurisprudencial segundo o qual, na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI e não qualquer outra, mas por força do regime estabelecido no CPA não era já possível, pelo decurso do prazo de cinco anos, proceder à anulação administrativa dos actos de fixação do valor patrimonial tributário, que se consolidaram na ordem jurídica, pelo que se não verifica qualquer ilegalidade dos actos impugnados, nem qualquer erro por parte dos serviços.
Ora, a jurisprudência consolidada do STA aponta no sentido de que na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45.º do Código do IMI, que constitui a norma específica que regula essa matéria, pelo que não há lugar à consideração dos diversos coeficientes a que se refere o artigo 38.º do Código do IMI.
E não há qualquer motivo para alterar essa orientação.
Tal como resulta do artigo 1.º do Código do IMI, o IMI incide sobre o valor patrimonial tributário dos prédios rústicos e urbanos situados no território português, definindo os artigos subsequentes, para efeitos do imposto, os conceitos de prédio, de prédios rústicos, de prédios urbanos e de prédios mistos (artigos 2.º a 5.º).
O Código do IMI, artigo 6.º, por seu turno, estabelece as espécies de prédios urbanos, estatuindo o seguinte:
“1 - Os prédios urbanos dividem-se em:
a) Habitacionais;
b) Comerciais, industriais ou para serviços;
c) Terrenos para construção;
d) Outros.
2 - Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.
3 - Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, excetuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afetos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos.
4 - Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da exceção do n.º 3.”
No que se refere às operações de avaliação, a lei distingue entre os prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços, cujos parâmetros se encontram consignados nos artigos 38.º a 44.º, e os terrenos para construção e os prédios da espécie “outros”, cujo valor patrimonial tributário é determinado, respetivamente, nos termos dos artigos 45.º e 46.º.
Aquele artigo 38.º, sob a epígrafe “Determinação do valor tributário”, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:
“1 - A determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da seguinte expressão:
Vt = Vc x A x Ca x Clx Cq x Cv
em que:
Vt = valor patrimonial tributário;
Vc = valor base dos prédios edificados;
A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação;
Ca = coeficiente de afetação;
Cl = coeficiente de localização
Cq = coeficiente de qualidade e conforto;
Cv = coeficiente de vetustez.
(…).”
Por sua vez, os preceitos que regulam a fixação do valor patrimonial dos terrenos para construção e prédios urbanos da espécie “outros”, na redação vigente à data dos factos, estatuem do seguinte modo:
“Artigo 45.º
Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção
1 - O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.
2 - O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.
3 - Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º
4 - O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º.
(…).
Artigo 46.º
Valor patrimonial tributário dos prédios da espécie «Outros»”
No caso de edifícios, o valor patrimonial tributário é determinado nos termos do artigo 38.º, com as adaptações necessárias. No caso de não ser possível utilizar as regras do artigo 38.º, o perito deve utilizar o método do custo adicionado do valor do terreno. No caso de terrenos, o seu valor unitário corresponde ao que resulta da aplicação do coeficiente de 0,005, referido no n.º 4 do artigo 40.º, ao produto do valor base dos prédios edificados pelo coeficiente de localização. O valor patrimonial tributário dos prédios urbanos em ruínas é determinado como se de terreno para construção se tratasse, de acordo com deliberação da câmara municipal.
Neste contexto, o legislador, ao definir os critérios de determinação do valor tributário por referência aos prédios urbanos classificados como «habitacionais», «comerciais, industriais ou para serviços», «terrenos para construção» e «outros», está precisamente a remeter para essa tipologia de prédios de acordo com a própria caracterização que o Código lhe atribui nos termos do Código do IMI, artigo 6.º, n.º 1, alíneas a) a d) do n.º 1.
Estando em causa um terreno para construção, o valor patrimonial tributário tem por base os critérios definidos naquele artigo 45.º, que remete para o valor da área de implantação do edifício a construir acrescido do valor do terreno adjacente à implantação. Além de que a norma define os termos em que se calcula o valor da área de implantação do edifício a construir (n.º 2 e n.º 3) e o valor da área adjacente à construção (n.º 4), cujo somatório permite fixar o valor patrimonial do terreno para construção.
O valor da área de implantação varia numa percentagem entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas e que é fixada tendo em consideração as características mencionadas no n.º 3 do artigo 42.º, isto é, características relativas a acessibilidades, proximidade de equipamentos sociais e localização em zonas de elevado valor de mercado imobiliário. Por sua vez, o valor da área adjacente à construção é calculado mediante a remissão para o artigo 40.º, n.º 4, que estipula a fórmula de cálculo da área de terreno livre dos prédios edificados.
Determinando a lei os termos em que se calcula o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor da área adjacente à construção, cujo somatório permite fixar o valor patrimonial do terreno para construção, são esses os específicos critérios a que haverá de atender-se para efeitos de avaliação. Ao estabelecer que o valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas, a lei não manda aplicar o coeficiente de localização definido no artigo 42.º para prédios urbanos destinados a comércio, indústria ou serviços, pretendendo explicitar apenas que, para efeitos de avaliação dos terrenos de construção, deve ser considerado um valor percentual entre esses dois limites, ponderado em função das características atinentes à localização do terreno. Ao utilizar a fórmula de cálculo da área de terreno livre dos prédios edificados, para a determinação do valor da área adjacente à construção, o legislador não pretende equiparar os terrenos de construção aos prédios edificados, mas unicamente aplicar um mecanismo de cálculo que se encontra previsto numa outra disposição do mesmo diploma legal.
Como é bem de ver, a referências feitas no artigo 45.º ao regime específico do n.º 3 do artigo 42.º e do n.º 4 do artigo 40.º não representam uma remissão em bloco para os critérios de avaliação aplicáveis aos prédios edificados, mas apenas a integração no regime próprio de avaliação dos terrenos para construção, por efeito de um expediente de remissão intrasistemática, de certos factores que são também considerados na avaliação de outros prédios urbanos.
De resto, não deixa de ser significativo, no quadro de uma interpretação sistemática da lei, que o mencionado artigo 45.º não contenha disposição similar à prevista no artigo 46.º, que para a determinação do valor patrimonial tributário dos prédios da espécie «outros», manda aplicar, com as adaptações necessárias, no caso de edifícios, os critérios definidos no artigo 38.º. No caso dos terrenos para construção, não só não é efectuada essa remissão genérica para o disposto nesse preceito, como também se estipulam critérios próprios para o cálculo do valor patrimonial tributário dos prédios.
Por outro lado, uma interpretação do artigo 45.º com base na similitude de situação entre os terrenos para construção e os edifícios construídos não tem o mínimo apoio na letra da lei e não é sequer admissível o recurso à analogia, não só porque não existe nenhuma lacuna normativa que seja suscetível de integração analógica, como também porque a integração por meio de analogia é proibida no tocante a matérias abrangidas pela reserva de lei parlamentar (artigo 11.º, n.º 4, da LGT).
No sentido exposto aponta ainda a jurisprudência do STA, que tem vindo a considerar não serem aplicáveis, na avaliação de terrenos para construção, os coeficientes de afectação e de qualidade e conforto, com base no entendimento de esses factores apenas podem ser aferidos em relação a prédios já edificados (cf. Acórdãos do STA, de 11 de Novembro de 2009, Processo n.º 0765/09, de 20 de Abril de 2016, Processo n.º 0824/15, e de 16 de Maio de 2018, Processo n.º 0986/16). Como também tem afastado o coeficiente de localização, na medida em que se entende que esse factor se encontra já contemplado na percentagem estabelecida no n.º 2 do artigo 45.º (cf. Acórdãos do STA, de 5 de Abril de 2017, Processo n.º 01107/16, e de 28 de Junho de 2017, Processo n.º 0897/16).
Importa, por fim, referir que este entendimento jurisprudencial foi sufragado pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, em recurso por oposição de julgados, através do Acórdão de 21 de Setembro de 2016, no Processo n.º 01083/13.
Nestes termos, a fixação do valor patrimonial tributário de terreno para construção com base na aplicação de coeficientes de afectação, de localização e de qualidade e conforto, mostra-se ser ilegal por violação do artigo 45.º do Código do IMI.
Acresce que, como se deixou já esclarecido, a circunstância de a Requerida não poder proceder à anulação administrativa, pelo decurso do prazo previsto no CPA, não sana os vícios do acto de fixação valor patrimonial tributário, nem impede o sujeito passivo de impugnar jurisdicionalmente os actos de liquidação de IMI, com fundamento na ilegalidade desses actos.
Resta referir que não tem cabimento, no âmbito de um processo jurisdicional, a invocação do princípio da subordinação da AT à lei. Esse é um princípio da actividade administrativa, como tal consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e que se analisa em duas dimensões fundamentais: o princípio da prevalência da lei e o princípio da precedência de lei. O princípio da legalidade, assim entendido, corresponde a um princípio da juridicidade da AT, significando que são as regras e os princípios da ordem jurídica que constituem fundamento e pressuposto da atividade administrativa.
Deduzida uma impugnação judicial do acto administrativo é à instância jurisdicional que cabe dizer o direito aplicável ao caso concreto, nada obstando que possa anular o acto impugnado por errada interpretação do direito.
Assim se compreendendo que, nos termos do disposto na LGT, artigo 68.º-A, n.º 4, da LGT, a Requerida deva rever as orientações genéricas constantes de circulares e regulamentos atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores.
Face à solução a que se chega, no plano do direito infraconstitucional, fica prejudicado o conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada pelo Requerente e, bem assim, o pedido subsidiariamente formulado.
Dos juros indemnizatórios
O Requerente pede ainda a condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Requerida, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado na LGT, o artigo 100.º, aplicável por força do disposto no RJAT, artigo 29.º, n.º 1, alínea a).
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.
Ainda nos termos do RJAT, artigo 24.º, n.º 5 “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na LGT e CPPT”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas.
Nos casos de pedido de revisão oficiosa, em face do disposto na LGT, artigo 43.º, n.º 3, alínea c), apenas são devidos juros indemnizatórios depois de decorrido um ano após a iniciativa do sujeito passivo, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada, constituindo esse o entendimento jurisprudencial corrente (cf., entre outros, os Acórdãos do STA, de 18 de Janeiro de 2017, Processo n.º 0890/16, e de 10 de Maio de 2017, Processo n.º 01159/14).
No caso, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 1 de Abril de 2022, pelo que não são devidos juros indemnizatórios, a menos que a nota de crédito venha a ser processada apenas após um ano contado da apresentação do pedido de revisão.
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Decisão
Em face do exposto, acorda deste Tribunal Arbitral em:
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Julgar improcedentes as excepções de intempestividade do pedido de revisão oficiosa, de falta de enquadramento legal do pedido de revisão oficiosa dos actos de avaliação de valores patrimoniais tributários, de inimpugnabilidade dos actos de liquidação com fundamento em vícios próprios do acto de fixação do valor patrimonial tributário e por consolidação na ordem jurídica do acto de fixação desse valor, e ainda por impossibilidade legal de a Requerida determinar a anulação administrativa dos actos quando tenham já decorrido mais de cinco anos sobre a sua emissão;
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Julgar procedente o pedido arbitral, e anular parcialmente as liquidações de IMI respeitantes ao ano de 2020, no montante global de € 20.757,70, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa contra eles deduzido;
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Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago;
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Indeferir o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, a menos que a nota de crédito seja processada após um ano contado da apresentação do pedido de revisão.
VI. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 20.757,70, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VII. Custas
Custas no montante de € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2023
O árbitro,
Hélder Faustino
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.