Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 537/2022-T
Data da decisão: 2023-03-17  IRC  
Valor do pedido: € 76.033,12
Tema: IRC - gastos de financiamento líquidos; utilização da “folga” originada em exercício anterior.
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SUMÁRIO:

Relativamente à dedução de gastos de financiamento líquidos, a “folga” originada em exercício anterior (correspondente à diferença entre os gastos deduzidos e o limite da dedução possível, quando este seja de calcular por referência ao EBITDA desse exercício), apenas é utilizável em exercício(s) em que o limite máximo da dedução seja de determinar por referência ao respetivo EBITDA (al. b) do nº 1 do art. 67º do CIRC) e não quando o limite aplicável seja o valor fixo previsto na al. a) da mesma norma.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., SGPS, SA, NIPC ..., com sede na ..., n.º ... – ..., ... – ... Lisboa, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I - RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

A Requerente pede a declaração da ilegalidade da liquidação adicional de IRC n.º 2020 ..., relativa a 2016, da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., relativa a 2017, das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.º 2020... e n.º 2020..., e da liquidação de juros de mora n.º 2020... .

 Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada.

Pede o reembolso do montante que considera indevidamente pago, € 76.033,12, e a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios

Subsidiariamente, pede ainda a anulação das liquidações relativas a juros compensatórios e a juros moratórios.

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  1. O litígio

 

Relativamente à questão principal, a da liquidação de IRC referente a 2016, está em causa a não-aceitação pela Requerida do valor relativo a gastos de financiamento líquidos, considerados pela Requerente, na autoliquidação, como fiscalmente dedutíveis.

A Requerente entende, em suma, que:

- a AT fez uma aplicação retroativa do disposto no nº n.º 13 do artigo 67.º do Código do IRC;

-que existe fundamentação a posteriori, legalmente inadmissível;

- tal liquidação de imposto viola os princípios de confiança e boa fé;

- era legal a utilização, em 2016, da “folga” que tinha disponível, gerada em exercício anterior.

 

As liquidações de IRC relativas a 2017, por serem mera decorrência das correções efetuadas relativamente a 2016, resultariam, também, ilegais.

 

A Requerida sustenta a legalidade das liquidações em causa com argumentos que adiante se analisarão.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 19/04/2022.

Os árbitros foram designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, não tendo tais nomeações suscitado oposição.

 O tribunal arbitral ficou constituído em 21/11/2022.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

 

Por despacho arbitral de 15/02/2022, foi decidido prescindir da realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT, bem como da produção de alegações. Tal despacho não suscitou oposição.

 

III – PROVA

 

III.1 - Factos provados:

 

  1. A Requerente foi notificada de uma liquidação adicional de IRC, relativa a 2016, bem como da correspondente liquidação de juros compensatórios, das quais, feito o acerto de contas, resultou um saldo de € 34.880,05.
  2. Foi, ainda, notificada de uma liquidação adicional de IRC, relativa a 2017, bem como da correspondente liquidação adicional de juros compensatórios, das quais, feito o acerto de contas, resultou um saldo de € 41.153,07 euros
  3. A Requerente foi ainda notificada de um documento intitulado Demonstração de Acerto Contas, no qual consta a mesma referência que a da liquidação adicional de IRC relativa a 2017 (Nr. Compensação 2020...), do qual resulta o apuramento de uma dívida relativa a juros moratórios, pelo período compreendido entre 01/07/2011 e 20/08/2018, no montante de 311,44 euros
  4. A Requerente apresentou reclamação graciosa contra tais liquidações, a qual foi expressamente indeferida.
  5. Em 2013, o EBITDA da Requerente, calculado à luz das normas contabilísticas, foi de € 66.804.358,00.
  6. Deduzidos os gastos de financiamento líquidos (“GFL”) suportados nesse período, a Requerente apurou uma “folga” reportável para os exercícios seguintes.
  7.  A Requerente utilizou parcialmente tal “folga” em 2014, 2015, sendo que, em 2016, possuía ainda uma “folga” de € 6.838.594,95.
  8. Em 2016, a Requerente utilizou parcialmente tal folga remanescente e, assim, todos os GFL suportados nesse ano foram considerados fiscalmente dedutíveis, concorrendo para a determinação do lucro tributável.
  9. Em 2016, o EDIBTA da Requerente, calculado à luz do disposto no nº 13 do art. 67º do CIRC, foi negativo.
  10. A AT recusou a dedução do valor dos GFL que excediam o limite de € 1.000.000,00, ou seja, de € 5.518.159,67
  11. Do que decorreu a alteração do prejuízo fiscal do grupo B... de apurado pela Requerente (- € 2.901.446,06) para um lucro tributável em valor de € 2.616.713,61.
  12. Em consequência, a AT procedeu a diversos correções e acertos, nomeadamente quanto à dedução de prejuízos fiscais gerados em anos anteriores e tributações autónomas, que a Requerente, agora, não questiona.
  13. AT entendeu, também, que havendo lucro tributável, deveriam ser também considerados, nesse exercício de 2016, os valores dos PECs ainda não deduzidos, num total de € 145.297,56.
  14. Consequentemente, emitiu também uma liquidação adicional relativa ao ano de 2017, mediante a qual reduziu os PECs que a Requerente havia deduzido, dada a consideração parcial de tais valores relativamente ao ano anterior.
  15. De tal liquidação não consta a exigência de juros moratórios.
  16. A Requerente procedeu ao pagamento da totalidade dos valores liquidados, relativos quer a 2016, quer a 2017.
  17. A propósito da mesma questão (cálculo do EDBITA de 2013), em inspeção tributária feita à sociedade C..., subsidiária da Requerente, a AT professou o entendimento de que a (sua anterior) interpretação que pretenda aplicar o novo n.º 13 do artigo 67.º do Código do IRC introduzido em 2014 ao cálculo do limite em 2013 “é desconforme ao elemento literal da norma e às regras de interpretação da legislação fiscal aplicáveis”.
  18. Relativamente ao exercício de 2015, a AT tinha sustentado, relativamente à Requerente, correção em tudo semelhante à aqui em causa. A respetiva liquidação foi anulada, por despacho da Subdiretora-geral da Área da Gestão Tributária da AT, na pendência de processo arbitral em que se discutia a legalidade de tal liquidação.
  19. Em tal despacho lê-se: Posto todo o que antecede, entendendo-se que para efeitos do cálculo da “folga” a transitar para períodos posteriores nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 67º do CIRC, com referência ao período tributário de 2013, a definição de “resultado antes de depreciações, gastos de financiamento líquidos e impostos” é a que é entendida para efeitos contabilísticos, tal como vem definida na demostração de resultados por natureza constante no SNC, afigura-se ser de proceder o pedido da Requerente de anulação da correção efetuada pelos SIT aqui em análise.
  20. A Requerente deu conhecimento deste despacho ao procedimento de reclamação graciosa das liquidações que ora impugna.

 

Os factos dados por provados resultam da documentação junta aos autos, não tendo sido objeto de qualquer concreta divergência.

 

III.2 -Factos não provados

Não existem factos não provados com relevância para a decisão da causa.

 

 

IV - O DIREITO

IV .1A fundamentação (de direito) da liquidação impugnada (IRC /2016)

Aproveitando o constante da resposta da Requerida:

  1. entendeu a IT que os cálculos (da Requerente) enfermavam de erro, desde logo porquanto o valor do EBITDA a considerar para o período tributário de 2013 não deve comportar as parcelas de rendimento que não concorrem para a formação do resultado tributável, que vieram a ser clarificadas no n.º 13 do artigo 67.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, mas que já estavam, por assim dizer, no espírito do legislador quando conferiu ao mencionado artigo 67.º do CIRC a redação estatuída pela Lei n.º 66-B/2012 de 31-12 (Lei do OE para 2013).

 

Tal síntese corresponde ao constante do RIT, nomeadamente: Com a introdução do nº 13 do artigo 67º, em janeiro de 2014, o Legislador veio clarificar a forma de cálculo do EBITDA a considerar para efeitos do cálculo do limite da alínea b) do nº 1 do mesmo artigo. Ou seja, com a inserção deste nº 13, não existiu, por parte do Legislador, a intenção de alterar as condicionantes de aplicabilidade da limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento, não alterando qualquer norma substantiva sobre a matéria, mas tão-somente clarificar o que deve ser entendido pela expressão que consta da alínea b) do nº 1 “resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos”. A introdução deste nº 13 e a clarificação que o legislador pretendeu dar ao conceito de EBITDA, vem na sequência da proporcionalidade e equilíbrio entre o benefício permitido pela alínea b) do nº 1 do artigo 67º, o volume de dedutibilidade dos GFL e o resultado obtido sujeito a imposto para o qual concorre a dedutibilidade desses gastos. (…) «Assim, deve-se ter em consideração para o cálculo do EBITDA, e desde que entrou em vigor a alínea b) do nº 1, os pressupostos indicados no nº 13 do artigo 67º. Este entendimento sai ainda fortalecido pelo facto da introdução deste nº 13, que vem clarificar o entendimento do Legislador, e dissipar dúvidas que eventualmente pudessem existir sobre o cálculo do EBITDA, ter ocorrido em momento apropriado para permitir a execução dos cálculos necessários à obtenção do limite da alínea b), assim como o correto preenchimento das declarações fiscais, relativamente ao primeiro exercício de aplicação da limitação à dedutibilidade dos GFL. (…)

  1. A que acresce o facto de no período em análise – 2016 – a A... ter obtido um EBITDA negativo, o que determina que fique, por esse motivo, enquadrada na al. a) do n.º 1 do artigo 67º do CIRC e, desse modo, não possa aproveitar o estabelecido no n.º 3, do artigo 67º do CIRC, «já que o mesmo se aplica ao limite previsto na alínea b), do n.º 1, do mesmo artigo»

Consta do RIT (pág. 39),o seguinte: Outro aspeto a considerar é que, ainda que assistisse razão ao sujeito passivo quanto à interpretação que faz do artº 67º do CIRC, o que nos parece de todo inadmissível, é de referir que, estando a A... SGPS, SA, no exercício de 2016, e por via do EBITDA negativo que obteve, abrangida pela alínea a) do n.º 1 do art. 67º do CIRC, não estaria em condições de aproveitar o estabelecido no nº 3 do art. 67º do CIRC, já que o mesmo se aplica ao limite previsto na alínea b) do nº 1do mesmo artigo.

Há pois que dar por assente que no RIT, que consubstancia a fundamentação das liquidações ora sub judice, consta a invocação de duas diferentes razões (dois fundamentos) para sustentar a correção operada ao valor do lucro tributável declarado relativamente a 2016, ainda que uma a título principal (o acima referido em (i)) e outra a título objetivamente subsidiário, como que invocado apenas por “mera cautela” (o referido em (ii)).

            IV.1.1 – Fundamentação a posteriori

A consideração deste segundo fundamento como justificativo da liquidação em causa não implica, pois, a aceitação de uma fundamentação a posteriori, ao contrário do que parece entender a Requerente. Este argumento (a questão de a Requerente ter tido, em 2016, um EBITDA negativo) estava expresso no RIT, ainda que de forma sucinta.

Como veremos de seguida, tendo a AT, em sede de decisão da reclamação graciosa, “deixado cair” o principal fundamento invocado no RIT como sustentáculo da liquidação, compreende-se que tenha, então – na decisão da reclamação graciosa – dado maior ênfase ao segundo fundamento, a que, de início, tinha conferido escasso relevo.

A Requerente compreendeu perfeitamente estarem em causa, no procedimento de liquidação adicional, dois diferentes fundamentos, os quais expressamente refuta, em separado, na sua petição inicial. Não estamos pois perante uma qualquer decisão-surpresa, nem perante uma qualquer fundamentação a posteriori.

 

IV.2 –  A decisão da reclamação graciosa

Consta da informação que sustenta a decisão de indeferimento da reclamação graciosa: Por despacho proferido em 2022-05-27, pela Subdiretora-geral da DSIRC, foi emitido parecer, conforme a informação nº I2022 ..., com referência aos períodos de tributação de 2016 e 2017, de que: Tinha sido entendimento dos SIT, quanto ao exercício de 2015, “…, que por considerarem que o valor do EBITDA de 2013 deveria ser calculado não como o considerou o Contribuinte, mas antes conforme o que veio a constar expresso na redação do n.º 13º introduzido no artigo pela Lei n.º 2/2014, que no modo estabelecido não constituía uma inovação de cariz substantivo, mas apenas uma clarificação da forma de cálculo daquele conceito para efeitos do artigo que já vigorava desde a redação do mesmo artigo 67º introduzida pela Lei nº 66-B/2012 de 31 de dezembro, i.e. em vigor já desde 1 de janeiro de 2013,(§13) Resultando daí a inexistência de qualquer valor a reportar em 2013 para períodos seguintes e consequentemente a utilizar em 2015.”(§14) E, “No pedido de pronúncia apresentado junto do CAAD veio a Requerente contestar este entendimento dos SIT e a decisão da Reclamação Graciosa que o confirma, defendendo que a fórmula de cálculo do EBITDA nos termos em que veio a ficar expresso no n.º 13 do artigo 67º do CIRC, apenas se aplicava ao cálculo do EBITDA dos períodos de 2014 e seguintes, após a entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, não relevando assim para o cálculo do EBITDA referente o período de 2013 e bem assim para o cálculo do valor a reportar para os períodos seguintes nos termos do previsto no n.º 3 do artigo 67º do CIRC, referente a esse mesmo período de 2013, (§15) (…) ”foi proferida decisão, …, no sentido,…, de que o conceito de resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos” (EBITDA) expresso no n.º 13 do artigo 67º do CIRC vigorava apenas para os períodos tributários de 2014 e seguintes, não se aplicando, portanto ao período de 2013,”(§15) “A análise efetuada versou assim sobre a aplicabilidade no tempo do n.º 13 do artigo 67º do CIRC e consequentemente sobre a definição do conceito de EBITDA em vigor em 2013 relevante para a existência ou não em 2013 do valor a reportar para períodos seguintes nos termos do mencionado n.º 3 do artigo 67º do CIRC”, o que determinou a anulação da correção efetuada pelos SIT. (§18 e §19) “(…) com referência ao período de 2016 a questão coloca-se novamente, i.e. se o conceito de EBITDA em vigor para o período de 2013 é ou não tal como veio a ficar expresso no mencionado artigo 13º do artigo 64º do CIRC e nessa decorrência se existe ou não valor a reportar do período de 2013, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 67º do CIRC, para períodos seguintes, nomeadamente, neste caso, 2016”, (§20) “Nesta matéria o entendimento mantem-se, i.e. o conceito de EBITDA que veio a ficar expresso na redação do n.º 13 do artigo 67º do CIRC, conferida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, aplica-se apenas aos períodos tributários que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2014;(§21) “De onde para a existência ou não de valor a reportar do período de 2013, nos termos do n.º 3 do artigo 67º do CIRC (em vigor à data) não releva a referida redação do n.º 13 do artigo 67º do CIRC, conferida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro. [1]

 

No entanto, a ora reclamante, no período de 2016,” (…) apurou um EBITDA negativo, i.e um EBITDA de (€1.662.005,49), ficando assim abrangida, para efeitos de dedução dos Gastos de Financiamento Líquidos do período, pelo limite constante na alínea a) do n.º 1 do artigo 67º do CIRC”; Logo,” (..) não está na condição de poder aproveitar do acréscimo do reporte de períodos anteriores previsto no n.º 3 do artigo 67º do CIRC, na medida em que o mesmo se reporta ao limite previsto na al. b) do n.º 1 do mesmo artigo,” e “Assim sendo, será de manter a correção efetuada ao lucro tributável da A... SGPS, S.A., na sua esfera individual com as consequências dai decorrentes para o apuramento do lucro tributável do grupo.” Face ao exposto, e tendo em conta a informação sancionada pela DSIRC, antes identificada, afigura-se ser de manter as liquidações reclamadas.

 

IV. 3A fundamentação (atual) da liquidação impugnada (IRC/2016)

A conclusão a retirar da fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa parece-nos inequívoca: a AT reconheceu a razão da Requerente quanto à ilegalidade de pretender aplicar ao cálculo do EBITDA, relevante para a determinação dos gastos de financiamento dedutíveis, com referência ao exercício de 2013, as alterações ao no n.º 13 do artigo 67º do CIRC, considerando que as mesmas apenas são aplicáveis aos exercícios de 2014 e seguintes, após a entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

Ou seja, neste ponto, a Requerente obteve ganho de causa em sede da reclamação graciosa, sendo que o indeferimento se baseou apenas no segundo dos fundamentos acima enunciados.

 

Mesmo que assim não se entenda (que não é este o significado a retirar da decisão administrativa sobre a reclamação graciosa), este tribunal arbitral sempre seria levado a concluir no mesmo sentido: as alterações operadas pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, ao nº 13 do art. 67º do CIRC contendem diretamente com a incidência do imposto, na medida em que restringem em maior grau a dedutibilidade de certos gastos (os de financiamento líquido) que, segundo as regras gerais, seriam, por princípio totalmente dedutíveis, ou seja, tal alteração da norma foi no sentido de conduzir a um lucro tributável superior ao contabilístico. Isto porquanto o limite máximo de dedutibilidade de tais gastos é, em certos casos, fixado em função de uma percentagem do EBITDA do sujeito passivo nesse exercício. Estabelecendo tal norma regras próprias para o cálculo do EBITDA fiscalmente relevante para este efeito, das quais resulta, por regra, um valor inferior ao que decorreria da aplicação do normativo contabilístico, estamos perante um norma agravadora da incidência do imposto.

Pelo que a sua aplicação a factos tributários totalmente esgotados antes da entrada em vigor da lei nova (no caso, ao cálculo do EBITDA, fiscalmente relevante, de 2013) consubstanciaria uma flagrante violação da proibição da retroatividade da lei fiscal consagrada no art. 103, n.º 3,  da CRP.

Assim sendo, não há que considerar mais esta questão, pois este fundamento da liquidação foi reconhecido como ilegal pela Requerida e, mesmo que o não o tivesse sido, sempre seria ilegal por traduzir um entendimento violador de uma norma constitucional.

 

IV.3. 1- Princípios de confiança e boa fé;

Tendo este tribunal arbitral concluído que, na decisão da reclamação graciosa, a AT deu razão à Requerente quanto à questão da aplicação do ora disposto no nº 13 do art.67º do CIRC ao cálculo do EBITDA fiscalmente relevante do exercício de 2013, passando a sufragar, também nesse procedimento, o entendimento expresso em procedimentos e processos arbitrais anteriores, alguns envolvendo a Requerente ou sociedades do grupo que domina, há que concluir que a AT cumpriu, ainda que apenas em sede de reclamação graciosa, com as exigências decorrentes dos princípios da confiança e da boa fé.

IV. 4 – Possibilidade de utilização da “folga” no exercício de 2016

Está, pois assente que a Requerente tinha ainda disponível parte de uma “folga”, originada no exercício de 2013, que utilizou para justificar a dedutibilidade de gastos financeiros em que incorreu no exercício de 2016.

A questão que subsiste é, pois, fácil de enunciar: podia fazê-lo?

 

IV. 4 .1 – O regime da dedução fiscal dos gastos de financiamento líquidos

Cremos ser útil começar por uma breve síntese dos aspetos aqui relevantes do atual regime de dedução fiscal dos gastos de financiamento líquidos:

Está em causa a limitação da dedutibilidade fiscal dos gastos de financiamento incorridos pelos sujeitos passivos. O seu objetivo é combater o sobre-endividamento das empresas, limitando as vantagens fiscais que o recurso a capitais alheios implica (consideração como gasto do montante dos encargos financeiros – juros – suportados) comparativamente ao recurso a capitais próprios, que, ao tempo, não originava qualquer gasto fiscal, ou seja, responder, ainda que apenas parcialmente, ao chamado debt-equity tax bias

Importa ter presente, com melhor se salientará adiante, a ratio – o intuito limitador - da norma.

  • Os gastos de financiamento líquidos incorridos em determinado exercício são dedutíveis, até determinados limites, nesse exercício e, se necessário, em exercícios seguintes (após a dedução de tal tipo de gastos incorridos em cada um desses exercícios), até um máximo de cinco (nº 2 do art. 67º CIRC).
  • Os limites à dedução, a serem considerados relativamente a cada exercício, são 1 000 000 euros ou 30 % do EBITDA, apurado nos termos do nº 13 da norma (nº 1 do art. 67º CIRC).
  • O limite a ser considerado é, sempre, o de maior valor (nº 1 do art. 67º CIRC, in fine).
  • A aplicabilidade, em determinado exercício, de um ou outro dos limites antes referidos não releva apenas no aspeto quantitativo, pois

- apenas em  exercícios em que o limite à dedução seja de calcular com base no EBITDA do sujeito passivo, ou seja, nos termos do art. 67º, nº 1, al b) do CIRC, é que o montante não utilizado (a diferença entre o que foi deduzido e o máximo dedutível), origina uma “folga”, transponível para exercícios posteriores (nº 3 do art. 67º do CIRC).

- a utilização de tal folga apenas é possível em exercício(s) posterior (es) em que o limite à dedução seja de calcular com base no EBITDA do sujeito passivo, acrescendo então ao montante máximo dedutível (30% de tal EBITDA) - (nº 3 do art. 67º do CIRC) .

 

O sistema, embora complexo, tem uma lógica facilmente inteligível: indo além da simples fixação de um máximo de dedução por exercício, ainda que com possibilidade de reporte dos valores que, num ano, excedam tal limite, a lei confere a possibilidade de uma maior dedução fiscal dos GFL aos sujeitos passivos que apresentem EBITDA’s de valor significativo (quando 30% do EBIDAT seja mais que 1.000.000 de euros).

Essa exigência refere-se, como vimos, quer ao exercício em que uma “folga” é gerada, quer ao exercício em que se pretende utilizá-la.

A solução legal compreende-se: a apresentação de EBITDA’s de valor significativo traduz uma atividade operacional positiva, que, em regra, se traduzirá em lucro tributável, e, em particular, mostra que os resultados da exploração corrente são suficientemente positivos para justificar um maior grau de endividamento (para justificar a aceitação fiscal da dedutibilidade de um maior montante de GFL).

 IV.4.2 – O caso concreto

Como vimos, há que considerar por assente que, em 2013, a Requerente, em razão da diferença entre os GFL que deduziu e os que poderia deduzir, atento o seu EBITDA nesse exercício, gerou uma “folga”, da qual ainda subsistia, em 2016, parte, que utilizou para justificar a dedução dos gastos desse tipo incorridos em tal exercício.

A pergunta que subsiste é se o poderia fazer.

A Requerente sustenta, em suma, que em 2016, encontrando-se disponível uma folga de € 6.838.594,95, fixada em 2013 este valor acresce ao valor de “30 % do resultado antes de depreciações, amortizações, gastos de financiamento líquidos e impostos” previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º do Código do IRC, este é naturalmente superior ao limite de € 1.000.000,00 vertido na alínea a) do mesmo número. Por isso, estabelecendo o n.º 1 do artigo 67.º do código do IRC que o limite a ter em conta é o que tiver um valor superior, fica afastado o limite de € 1.000.000,00.

A AT, por seu lado, sustenta que tendo a Requerente, em 2016, um EBITDA negativo, ficou necessariamente abrangida pela al. a) do nº 1 do artº 67ª do CIRC, o que lhe veda a utilização da folga que ainda tinha disponível.

Partilhamos o entendimento da Requerida.

A aplicação do disposto nas alíneas a) ou b) do n.º 1 do art. 67º do CIRC é feita com base na comparação entre o valor de 1.000.000 de euros e 30% do EBITDA desse exercício e não com base na comparação entre 1.000.000 de euros e o EBITDA desse exercício acrescido da folga que se pretende utilizar.

Não está em causa uma interpretação restritiva da norma, mas sim a interpretação de uma norma cuja ratio é, como já salientámos, a de restringir a dedutibilidade dos GLP. Objetivo que resultaria frustrado a ser aceite o entendimento preconizado pela Requerente.

Não está em causa, ao contrário do que entende a Requerente, um benefício fiscal, mas algo em sentido contrário, uma limitação ao direito a deduzir gastos que, não existindo a norma especial, seriam fiscalmente aceites, independentemente do seu montante, no exercício em que aconteceram.

Está em causa uma entorse ao princípio da tributação do rendimento real (à tributação com base no lucro contabilístico), constitucionalmente aceitável, imposta, ao nível de toda a EU, pelo objetivo (esse sim extra-fiscal) de combater o sobre-endividamento das empresas.

Uma norma que temos por proporcional à realização de tal objetivo.

Em resumo, a resposta à questão decidenda tem, necessariamente, que ser negativa.

A correção operada pela Requerida mostra-se assim perfeitamente conforme com a letra e o espírito da lei, pelo que não merece censura.

 

IV.5 - Liquidação adicional de IRC relativa a 2017

Sendo legal a correção efetuada relativamente a 2016, é também legal a liquidação adicional de imposto relativa a 2017, a qual, como ambas as partes reconhecem, é mera decorrência da primeira.

Na realidade, os PEC’s em causa seriam, em princípio, deduzidos à coleta de 2016. Não o foram por a Requerente ter apurado um resultado negativo, tendo esta procedido a tal dedução em 2017. Corrigido o lucro de 2016, passando este a ser positivo, tornou-se possível a dedução de tais PEC’s nesse exercício o que, necessariamente, obrigou a uma “alteração simétrica”, à sua desconsideração no exercício seguinte.

IV.6  – Liquidações de Juros

                        IV.6.1 - juros compensatórios

A Requerente entende que, mesmo no caso de improcedência dos pedidos principais – o que é o caso – as liquidações de juros compensatórios são ilegais, pois que atuou de boa fé, sendo o seu erro desculpável.

Temos, em primeiro lugar, que o ilícito praticado pela Requerente está suficientemente explicitado no RIT (sendo expressamente preconizada a aplicação de uma sanção contraordenacional) e que as notificações relativas às liquidações de tais juros compensatórios contêm o mínimo de fundamentação que a jurisprudência, pacificamente, considera exigíveis: a quantia sobre a qual incidem, o período de tempo considerado para e a taxa ou taxas aplicadas, podendo tais elementos constar da notificação da liquidação ou de documento anexo.

 Este tribunal arbitral conhece e partilha a jurisprudência dos tribunais superiores segundo a qual a exigência de juros compensatórios não é consequência automática de um atraso na liquidação motivada pelo contribuinte (no caso, por “erro” na autoliquidação) exigindo-se o também o requisito culpa.

A questão é pois se o comportamento da Requerente é censurável, mesmo que só a título de negligência. Negligência objetivamente avaliada, não por correspondência a “estados de alma”.

A privatização de funções que antes incumbiam à administração fiscal, traduzida, nomeadamente, na autoliquidação dos principais impostos, operou uma transferência do risco que a interpretação/aplicação para os sujeitos passivos. O erro na autoliquidação – que, por regra, configura a prática de um ato ilícito - é um erro da autoria do sujeito passivo, que origina um prejuízo para o estado, que a exigência de juros compensatórios visa colmatar.

 O erro só é desculpável quando estejamos perante uma vexata quaestio.

Ora, no caso, a interpretação feita pela Requerente não encontra sustentáculo no elemento literal das normas em causa e, muito menos, na sua teleologia. Não é alegada – nem conhecida – a existência de correntes doutrinárias ou jurisprudenciais relevantes que sufraguem uma tal interpretação.

O erro da Requerente não é, assim, objetivamente desculpável, pelo que as liquidações de juros compensatórios devem ser tidas por legais.

 

            IV-6.2 Juros moratórios

Como dado como provado, a Requerente foi notificada de um documento intitulado Demonstração de Acerto de Contas, em que consta a mesma referência que a da  liquidação adicional de IRC relativa a 2017 (Nr. Compensação 2020...), do qual resulta o apuramento de uma dívida relativa a juros moratórios, pelo período compreendido entre 01/07/2011 e 20/08/2018, no montante de 311,44 euros.

A respetiva fundamentação consiste, apenas, numa remissão para o disposto nos artº 109º do CIRC e 44º da LGT.

Com a Requerente entendemos que simplesmente, aqueles artigos apenas permitem a liquidação de juros em caso de não pagamento de imposto já liquidado. No presente caso e com referência a 2017, o valor do imposto ora cobrado à Requerente resulta da redução do valor dos PECs deduzido naquele exercício que efetuada em 2020 pela AT, o que significa que, antes disso, o IRC em causa não se mostrava definitivamente apurado ou liquidado naqueles termos.

 

Entendemos que esta exigência de juros moratórios sofre claramente de vício quanto à sua fundamentação. Não é percetível para um normal destinatário as razões pelas quais, não existindo atrasos no pagamento, é feita a exigência de juros moratórios, nem é inteligível o período considerado para a sua contabilização.

Esta manifesta insuficiência de fundamentação, equivalente a falta de fundamentação, fere de ilegalidade (ineficácia) tal liquidação / acerto de contas, por violação, entre outros, do disposto no art. 77º da LGT.

 

IV.6.3 – Juros indemnizatórios

 

Tendo improcedido os pedidos relativos à anulação das liquidações adicionais de imposto e de juros compensatórios, improcedem os pedidos relativos a juros indemnizatórios a que a Requerente teria direito em caso de sucesso.

Apenas relativamente ao montante dos juros moratórios ilegalmente liquidados a Requerente terá direito a receber juros indemnizatórios, atento o disposto no art. 43º da LGT, em valor a ser quantificado pela Requerida em execução de sentença.

 

V- Decisão Arbitral

  1. Improcedem totalmente os pedidos de anulação das liquidações adicionais de imposto e de juros compensatórios .
  2. Procede o pedido de anulação da exigência de juros moratórios, no valor de 311,44 euros.

 

VALOR: € 76.033,12

 

CUSTAS no montante de 2.448,00, sendo, atenta a proporção dos respetivos decaimentos, 99,6% a cargo da Requerente e 0,4% a cargo da Requerida.

 

17 de março de 2023

 

Os Árbitros

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

Álvaro Caneira

 

 

José Aberto Pinheiro Pinto (vencido, conforme declaração junta)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VOTO DE VENCIDO

Acabou por prevalecer, no sentido da decisão, o fundamento “secundário” que a Requerida invocou para justificar a liquidação controvertida – aliás, expresso “de forma sucinta” no RIT, mas omisso no Projeto de RIT, e, portanto, não submetido a direito de audição do sujeito passivo.

Efetivamente, o n.º 3 do artigo 67.º do Código do IRC foi interpretado no sentido de que a “folga” apurada no período tributário de 2013 não poderia ser aproveitada no período de 2016 pelo facto de nele a Requerente ter apresentado um EBITDA negativo.

Ora, em meu entender, o preceito não consente tal interpretação, assente no pressuposto de que a fixação do limite máximo de dedução se faz antes do eventual aproveitamento da “folga”.

Na verdade, a referência nele feita à alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º do Código do IRC apenas existe com o propósito de estabelecer que a “folga” só pode ser acrescida aos 30% do EBITDA e não à quantia de € 1 000 000 que constitui o limite da alínea a) do mesmo número. E não diz a lei que a “folga” não possa ser acrescida aos 30% do EBITDA, mesmo quando esta quantia for negativa – o que é, quer de um ponto de vista matemático, quer de um ponto de vista de razoabilidade, perfeitamente possível.

Discordo ainda do recurso à interpretação restritiva que se fez em relação a uma norma com caráter excecional como é a do artigo 67.º do Código do IRC, já que contraria o princípio geral – com consagração na nossa Constituição – de tributação do rendimento real das empresas.

Ademais, é isso que, na minha leitura, claramente resulta da lei, e que me impede de subscrever o acórdão.

 

 

José Alberto Pinheiro Pinto



[1] Sublinhado nosso.